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A constituinte é uma farsa?

DESAFIO CONSTITUINTE

A constituinte é uma farsa?

José Alvaro Moisés

Professor de Ciência Política na USP, membro do conselho deliberativo do CEDEC e editor de LUA NOVA

Muda Brasil. De uma forma que eu diria quase arquetípica, esse mote sintetizou para milhões de brasileiros os anseios e as expectativas de mudanças econômicas, sociais e políticas que, em 1984, estiveram no centro das preocupações do país. Foi como se a nação tivesse se reencontrado consigo mesma, abrindo, para o futuro por vir, um imenso crédito de confiança. Mesmo quando a luta pelas diretas-já se converteu em um grito parado no ar, milhões de brasileiros se permitiram ver, na vitória de Tancredo Neves (e mesmo na de José Sarney) no Colégio Eleitoral, uma outra forma de se chegar ao mesmo lugar: o fim do regime militar e, com esse fim, o começo de uma nova era. Pouco importa perguntar, a posteriori, se esse caminho era o melhor. O mudancismo, ou o que ficou conhecido, entre nós, como a nossa via para a transição democrática, se impôs. Transição com transação, segundo os entendidos, para garantir uma saída pacífica para o país.

Nada de irrelevante, se pensarmos que, depois de mais de vinte anos de abstinência política, a transição significava a construção de uma nova ordem, precisamente uma ordem de liberdade, que se comprometesse a restaurar tudo aquilo que o despotismo militar tinha destruído: as liberdades políticas, as garantias civis e os direitos sociais, conquistados a duras penas no período do populismo. Construir uma nova ordem não é nunca irrelevante para qualquer sociedade, em especial quando se trata de sociedades tão fragmentadas e tão marcadas pelas desigualdades, como as nossas. Essa realidade cheia de contrastes impõe sempre alternativas que se excluem e, por isso, gera imensas tensões. É por isso que a transição é sempre um momento delicado, cheio de incertezas e que, por isso mesmo, exige dos atores históricos opções claras e bem definidas.

No entanto, passados alguns meses, o país ainda de vísceras abertas, com feridas não completamente cicatrizadas, vê reaparecerem no cenário nacional os mesmos sinais de desânimo de outrora ou o ruído de um cansaço precoce diante da nova situação. Primeiro foi a desilusão com a política econômica: Tancredo montou uma comissão de aconselhamento econômico — COPAG, cujos conselhos jamais foram levados na devida conta. Nem nos libertamos do flagelo da inflação nem conseguimos retomar, de verdade, o ritmo de crescimento do sistema produtivo. Os sacrifícios exigidos pelo pagamento da dívida externa se mantiveram e, quanto ao FMI, os acordos que ele nos impôs não foram revistos, no essencial.

Ainda assim, muita gente deu o desconto. Dizia-se: não importa, porque se o governo é economicamente conservador, ele é politicamente progressista e, agora, isso é o que interessa. Com os avanços que vamos fazer no plano político, vamos nos preparar para enfrentar mais adiante, e com mais vigor, os desafios da economia. Portanto, sossega, que a hora do bom combate ainda não chegou.

Tempo de metáforas campestres

Deslocamento hábil do plano econômico para o plano político, essa operação foi reforçada pelas primeiras iniciativas do governo Sarney, que, apesar do trauma da morte de Tancredo, assumiu o poder sem maiores contestações públicas em torno da questão da sua legitimidade. Vieram as promessas, logo ratificadas por medidas parciais, aprovadas no âmbito do Congresso Nacional, de que o chamado "entulho autoritário" seria varrido para sempre da vida do país. Foi uma época de generosas metáforas agrícolas e campestres: falou-se, desinibidamente, em mover o trator democrático para limpar o terreno de ervas daninhas como a Lei de Greve, a Lei de Segurança Nacional, as chamadas "medidas de emergência", a Lei de Imprensa, a legislação eleitoral, a legislação político-partidária — tudo como passo prévio para a semeadura em que se deveria converter a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. As palavras livre e soberana foram usadas até mesmo pelo presidente da República, em sua primeira entrevista à imprensa, para indicar que esta plantinha delicada e tenra chamada democracia deveria nascer (ou renascer) sob os cuidados tomados nesta fase da transição. Todo cuidado era pouco, portanto, o que justificava os esforços de todos e, dessa forma, o consenso que se tentava criar em torno dos objetivos iniciais da Aliança Democrática. Não importava se o consenso, nessas circunstâncias, é sempre um princípio totalitário, porque homogeneizador de opiniões e destruidor das diferenças que são essenciais à vida democrática. Para o governo, tratava-se de pedir o apoio da opinião pública aos seus objetivos e, bem ou mal, ele obteve esse apoio. O crédito de confiança se renovou e muitas expectativas se ampliaram. Inegável reconhecer, por exemplo, que o apoio ao governo atingiu até mesmo amplas camadas de trabalhadores.

Muito bem. Vieram, então, alguns sinais políticos de que as coisas podiam mesmo mudar no país: o Ministério do Trabalho reconheceu uma velha aspiração do movimento sindical e reabilitou os líderes operários que tinham sido punidos pelo regime anterior. As centrais sindicais, CUT e CONCLAT, embora sem serem oficializadas, foram reconhecidas à luz do dia. O governo deu os primeiros passos para alterar a Lei de Greve e, embora tenha apresentado um anteprojeto de lei essencialmente conservador, conseguiu o efeito emblemático que procurava: boa parte dos empresários ficou contra a proposta. Depois, ainda que tardiamente, veio a adoção do princípio constitucional das eleições diretas e a liberação da legislação partidária, de modo a permitir a legalização dos partidos comunistas. Tudo parecia caminhar, portanto, em direção às mudanças tão ansiosamente esperadas pelo país. Desacertos aqui e ali deveriam ser desconsiderados — dizia-se —, pois o importante é que, agora, surgia forte a luz no final do túnel.

Tanto que, como disse um famoso cientista político brasileiro chegado a citar frases em língua estrangeira, Eppur si muove, querendo dizer que apesar do ceticismo de alguns, da mesma forma que no tempo de Galileu, a Terra se move debaixo de nossos pés. Se é verdade, sugeriu ele, que a economia continua na mesma, o Plano Nacional de Reforma Agrária está aí a demonstrar que, tão logo logremos modificar a chamada correlação de forças, a terra começará a se mover também no terreno da economia, possibilitando, então, enfrentar-se, olho no olho, os flagelos da miséria e do desemprego.

Pois bem, foi nesse quadro que, ainda no primeiro semestre, o governo Sarney apresentou o seu projeto de convocação da Assembléia Nacional Constituinte: eleições em 1986, atribuindo-se ao futuro Congresso os poderes constituintes. Sem falar uma palavra sobre os chamados pré-requisitos que antes definira como essenciais à Constituinte (revogação das leis autoritárias), o governo driblou a questão da soberania popular e propôs uma fórmula que logo encontraria resistência em amplos setores da sociedade civil. Como foi que se deu essa transmutação, "surpreendente" para muitos setores, da Constituinte em Congresso Constituinte?

Havia-se cunhado, nessa época, um outro neologismo, "momento constituinte", para designar o que muitos identificavam como os amplos anseios populares por mudanças das leis e das regras do jogo. Anseios verdadeiros, se pensarmos que as greves colidem com a lei antigreve, as ocupações de terra conflitam com um direito de propriedade sem nenhuma inspiração social, e a realidade, por exemplo, da prática do aborto nega a lei anti-aborto. Cabia, portanto, à Aliança Democrática, que nascera do entrechoque de interesses das lutas pelas diretas-já, ir ao encontro dessa aspiração. Com a pompa que julgaram conveniente, os novos ideólogos oficiais brandiram, textos nas mãos, os exemplos dos Pactos de Moncloa para sugerir que, tal como ocorrera em 1977 na Espanha, tinha chegado a hora também de o Brasil reconciliar-se com as tradições democráticas do Ocidente. Nada de retornar às teses clássicas de Sérgio Buarque de Hollanda, segundo as quais, no Brasil, a democracia sempre fora um equívoco. Voltar os olhos para a realidade subjacente a essas teses significaria enfrentar as graves distorções sociais que muitas vezes fizeram da democracia, no Brasil, uma mera formalidade. Não, os nossos novos ideólogos não queriam saber disso, agora a retórica era outra.

O lugar da participação popular

Em realidade, a tônica dos argumentos procurou outra via para sedução: se, no passado recente, o regime militar impusera as leis pela força, outorgando Constituições e Atos Institucionais a torto e a direito, tratava-se, agora, de recuperar o lugar da participação popular. É verdade que não se chegou, jamais, a falar dê soberania popular, mas até Rousseau e Montesquieu foram invocados para explicar que estávamos às portas de uma nova fase contratualista, da qual deveria nascer um novo pacto básico, refundador da sociedade política. Incongruências à parte (pois falar em pacto político básico sem soberania popular faria Jean-Jacques Rousseau se remexer na tumba), a própria justificativa da proposta do governo, enviada ao Congresso, aludia, direta ou indiretamente, ao novo ânimo que se dizia pairar sobre a sociedade: era preciso resgatar "o momento constituinte" e dar a ele uma nova institucionalidade. Ou seja, canalizar, de alguma maneira, a disposição de amplos setores da população em reconstituírem os fundamentos da vida política do país.

Moncloa: limpeza antes do pacto

Elidiu-se que, em primeiro lugar, na Espanha, a Constituinte, assim como a correspondente limpeza do "entulho autoritário" local, antecederam os Pactos de La Moncloa. Antes mesmo da Constituinte, na Espanha, quebrou-se a estrutura sindical oficial, recuperou-se o direito de greve, oficializaram-se os partidos clandestinos, rompeu-se com a estrutura das Cortes franquistas e, assim, preparou-se a estrada para a chegada da democracia. Depois veio a Constituinte. Ocultou-se que lá, como em outras transições (a do Uruguai e, até certo ponto, a da Argentina), o avanço democrático foi precedido de um acordo prévio que garantiu, no mais das vezes, as próprias condições de construção da democracia: a participação de todos os atores, sem distinções. Esqueceu-se que, nas condições específicas do Brasil, havia uma mobilização de massas, que se expressara na campanha das diretas-já, à qual era preciso responder com alternativas que, de alguma forma, permitissem a sua integração no sistema político. Sob pena de, mais uma vez, a aspiração democrática separar-se das reivindicações de igualdade social. A transição brasileira temeu, portanto, a mobilização das massas e, para salvar o lugar das elites, fez-se essencialmente conservadora. Os políticos disseram-se os responsáveis pelas mudanças que, segundo eles, exigiam, na fase de consolidação, o concurso de "profissionais". O povo foi desmobilizado e, depois, só lhe restou o gosto amargo da frustração.

Fórmula vazia para corresponder à realidade à qual se desejava resposta, o Congresso Constituinte gerou inúmeras decepções e, desde logo, colidiu com as mais sentidas aspirações da sociedade civil, em especial, com as reivindicações que desejavam, dessa vez, inverter o processo e fazer da Constituinte uma oportunidade de se encontrarem o povo e as leis maiores do país. Em realidade, o projeto do governo Sarney não é um projeto real de convocação da Constituinte. Apesar do cinismo do nome e da solenidade com que se quis revestir o ato do seu anúncio, trata-se de uma proposta destinada a enfatizar o que já existe, a atribuir poderes de ampla reforma da Constituição ao Legislativo. Como disse o jurista Raymundo Faoro, a Aliança Democrática optou pela fórmula de reforçar "o poder constituinte subalterno do Congresso" porque não pode conviver com uma verdadeira Assembléia Nacional Constituinte.

Sem ruptura com a ordem anterior

O próprio Tancredo Neves dissera, antes da sua trágica doença, que a transição brasileira não implicava nenhuma ruptura com a ordem anterior, razão pela qual não deixava nenhum vazio político e jurídico que tivesse de ser ocupado por um poder Constituinte originário. Tancredo expressava um desejo e, mais do que isso, um ato de vontade. Mas os seus intérpretes foram ainda mais longe: aproveitando-se do fato de que a sua agonia criara uma ampla base social de apoio ao governo, apresentaram o seu desejo como uma lei da natureza e, a partir daí, procuraram justificar a inoportunidade da convocação de uma Constituinte efetivamente livre e soberana. Se não tinha havido ruptura antes, também não haveria agora ou no futuro, porque a vontade política majoritária da "oposição moderada" ao regime militar se organizava para evitá-la e, assim, para impedir que os seus possíveis efeitos se espraiassem sobre a vida do país, fazendo as mudanças tão desejadas pelo povo.

Se é verdade que, teórica e politicamente, nada justifica que um poder constituído — o Congresso — venha receber poderes constituintes, até mesmo para redefinir as próprias funções do poder Legislativo, na prática o envio do projeto de ato convocatório do governo ao Congresso predeterminou todo o debate da questão e, principalmente, a sua decisão. Em julho e agosto, o Conselho Político do governo (formado pelos líderes do PMDB e do PFL no Congresso) decidiu fazer todos os esforços possíveis para evitar que o projeto oficial fosse emendado e, assim, pudesse tramitar rapidamente. Não adiantaram os protestos das mais representativas entidades da sociedade civil, como a OAB, ABI-SP, CNBB, CUT, Comissão Justiça e Paz, ANDES — todas integrantes do Plenário Pró-participação Popular na Constituinte de vários estados do país —, para fazer o governo mudar de ponto de vista. Desta vez, ao contrário do que ocorrera durante a campanha das diretas-já, essas entidades foram classificadas de irrealistas, "insensíveis à complexidade do momento que vivemos". E agora?

Agora, estamos no momento da decisão. Confirmada a versão do governo Sarney, consolidar-se-á de vez por todas a orientação conservadora da transição. É incrível que algumas pessoas não se tenham dado conta disto: primeiro veio a desmobilização das diretas-já, depois a vitória no Colégio Eleitoral e, agora, o passo final, a Constituinte sem povo. Alcançada essa meta, a Aliança Democrática poderá descansar em paz, mesmo ao preço de algumas fraturas internas. Estará consolidada a sua hegemonia sobre o país. Seria o contrário se a questão da Constituinte conseguisse resgatar a mobilização que ficou inconclusa no ano passado. É por isso que o governo jogou tanto, e fez tantos esforços de cooptação, pela aprovação do seu projeto.

Então, a Constituinte é mesmo uma farsa? Questões dessa natureza não podem ser respondidas de forma categórica. A Constituinte, hoje, depende, em primeiro lugar, da Comissão Mista do Congresso, que examina o assunto. Essa comissão poderia, em tese, acolher, por exemplo, a subemenda de autoria do deputado Djalma Bom que, precisamente, pede a convocação de uma Assembleia Constituinte para o fim específico de redigir a nova Constituição. Mas isso é apenas uma maneira de falar, porque a composição da comissão é tão conservadora (à exceção do seu relator, deputado Flávio Bierrenbach), que ela dificilmente mudará o posicionamento do governo. A não ser...

Quais as respostas possíveis?

A não ser que a mobilização e a pressão popular sejam de tal porte e de tal natureza que façam o Congresso mudar de opinião. Isso não é impossível, como vimos durante a campanha das diretas-já, mas exige um volume de organização e de mobilização que o movimento popular ainda não alcançou. O que eu quero dizer é que, em última análise, a resposta mais adequada a essa pergunta que me foi formulada, tantas vezes, durante debates e palestras sobre a Constituinte no país inteiro ("A Constituinte é uma farsa?") só pode receber esta resposta: ela será uma farsa se for aprovada na fórmula desejada pelo governo Sarney que, nesse caso, entrará em rota de colisão aberta com os mais representativos setores da sociedade civil.

Mas ela será, ainda, uma farsa se a mobilização popular não crescer. Aqui é preciso enfrentar, de uma vez por todas, um velho preconceito da esquerda brasileira: o domínio das leis e das regras do jogo não pode mais continuar sendo visto como o terreno da formalidade superestrutural que só interessa às classes dominantes. O campo das leis e do direito interessa essencialmente aos trabalhadores e a todos os dominados, e a presença desses setores precisa se fazer sentir na futura Constituição do país. Mesmo porque, se não for assim, os direitos que esses setores têm conquistado a tão duras penas não se irão expressar na futura Carta Magna do país. Além disso, se a democracia é pensada como o campo de conflitos que, inevitavelmente, se expressa na forma de novos direitos sociais e políticos, como imaginar a ausência desse campo precisamente dos setores sociais que são o suporte desses novos direitos?

Por isso é preciso dizer com clareza: a luta pela Constituinte ainda não está perdida, mas ela depende, fundamentalmente, da mobilização popular. Essa é a tarefa que, de agora até 1986, precisa ser cumprida pelos partidos políticos, pelos movimentos populares e pelas instituições da sociedade civil. Só assim ela não será uma farsa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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