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LITERATURA E ÓPERA NO BRASIL OITOCENTISTA

LITERATURE AND OPERA IN 19 TH . CENTURY BRAZIL

DIEGO, Marcelo da Rocha Lima. . Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado . São Paulo: Edusp, 2022, 328 p.

Marcelo Diego é um jovem professor de literatura comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro, que já há algum tempo vem se destacando no meio acadêmico com artigos de crítica literária versando sobre aspectos da obra de Machado de Assis. Com o lançamento de Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado (São Paulo: Edusp, 2022, 328 p.), afirma-se como estudioso de largo fôlego da nossa literatura do século XIX, abordando-a de um ponto de vista original: o da apropriação que os escritores Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e Machado de Assis fizeram da ópera em seus escritos, tanto nas comédias, contos e sobretudo romances - para construir enredos e personagens que evocam a vida social do Rio de Janeiro -, quanto em crônicas e textos críticos.

O resultado é um vasto panorama em que se cruzam as trajetórias do teatro lírico e da literatura, complementando-se mutuamente, o primeiro motivando a segunda, que não se faz de rogada e o incorpora em seu próprio universo. É o que vemos na comédia O Diletante, de Martins Pena, representada em 1845, que satiriza a “mania” da ópera que tomou conta do Rio de Janeiro a partir de 1844, com a vinda de uma companhia lírica italiana, da qual fazia parte a cantora Candiani, que acabou ficando no Brasil, tamanho o sucesso que fez por aqui. Também em seus folhetins o comediógrafo deixou um testemunho importante acerca desse momento de nossa vida cultural, descrevendo o entusiasmo das nossas plateias com os espetáculos líricos.

Marcelo Diego faz um breve histórico da presença da ópera entre nós desde a segunda metade do século XVIII e sob D. João VI e D. Pedro I. Surpreendentemente a Regência proibiu os espetáculos operísticos e foi preciso D. Pedro II subir ao trono para que cessasse a interdição. Daí a verdadeira febre que assolou o Rio de Janeiro a partir de 1844 e que Joaquim Manuel de Macedo retratou com graça no romance O Moço Loiro, de 1845, ao caracterizar os “partidos” que eram formados entre os diletantes, a favor de uma cantora ou outra, e as disputas nos teatros que por vezes necessitavam da intervenção policial para acalmar os ânimos dos mais exaltados. Norma, de Bellini, foi o carro-chefe da temporada de 1844-1845, seguida de outras óperas, como O Barbeiro de Sevilha, de Rossini, ou Belisário e O Elixir do Amor, de Donizetti. Nem mesmo Machado de Assis deixou de registrar a atração que nessa época o teatro lírico exerceu sobre a sociedade brasileira, fazendo o narrador e personagem Brás Cubas lembrar-se da Candiani no capítulo 65 das suas Memórias Póstumas.

A presença da ópera na vida social fluminense só fez aumentar nos anos que se seguiram ao sucesso da companhia lírica italiana que aqui chegou em 1844. Como aponta Marcelo Diego, se num primeiro momento a preferência do público dividia-se entre Bellini e Donizetti, nos anos 1850 o predomínio foi de Verdi, com óperas como Macbeth, O Trovador e La Traviata, entre outras. Também no palco sucediam-se as cantoras, disputando a simpatia da plateia. Candiani teve como primeira oponente Clara Delmastro e logo em seguida Rosine Stoltz; em 1853, a Charton bateu-se contra Emilia Lagrua, e no ano seguinte com Anneta Casaloni.

Essa euforia em relação a compositores e cantoras não podia deixar de se refletir nas obras literárias que descreviam os hábitos de uma parcela da sociedade fluminense. Nas décadas de 1850 e 1860, José de Alencar, nos seus romances urbanos, fez do teatro um espaço em que circulam as personagens e buscou em alguns libretos de óperas inspiração para a criação de cenas e situações ficcionais. Sirva de exemplo o romance Cinco Minutos, objeto de uma bela análise de Marcelo Diego, na qual ele explora a intertextualidade estabelecida pelo escritor brasileiro com as óperas O Trovador e La Traviata, de Verdi. Igualmente bem desenvolvidas são as considerações críticas sobre Lucíola, A Pata da Gazela, Sonhos d’Ouro e Senhora, demonstrando a grande afinidade de Alencar com o teatro lírico. No caso de Senhora, a aproximação com Norma evidencia-se nos enredos que tratam de uma “epopeia do coração traído”. O orgulho ferido das personagens Norma e Aurélia alimentam as suas ações. Nessa parte do livro deve-se destacar também a fina análise do último e pouco lido romance do escritor, Encarnação, em seu diálogo com Lucia de Lammermoor, de Donizetti.

Outras duas atividades de Alencar são contempladas para melhor retratar seu apreço pelo teatro lírico: o folhetinista e o dramaturgo. Na peça O Demônio Familiar, de 1857, o protagonista é um menino escravizado, esperto e inteligente o bastante para saber que seu papel na trama é parecido com o de Fígaro, em O Barbeiro de Sevilha, ópera de Rossini. O escritor havia frequentado muito o teatro lírico, entre 1854 e 1856, quando escreveu crônicas semanais para o Correio Mercantil e o Diário do Rio de Janeiro. Comentou muitas óperas e presenciou as disputas entre os partidários da Charton e da Casaloni. Tudo isso tem reflexos em sua obra.

Cabe observar que impressiona o conhecimento que Marcelo Diego tem da ópera. Ele discorre sobre dezenas delas, que foram representadas no século XIX brasileiro, analisando seus argumentos, trazendo informações sobre os compositores, comentando o desempenho dos intérpretes, servindo-se de uma abrangente bibliografia especializada que pôde consultar em bibliotecas dos Estados Unidos, uma vez que fez seu doutorado em Princeton. Somos introduzidos com mão segura ao mundo dos tenores, barítonos, sopranos e contraltos, bem como a um universo de beleza ímpar. Não é menor por parte do autor o conhecimento da literatura brasileira do século XIX, que não seria de grande valia se não fosse o seu preparo e a sua capacidade de analisar e interpretar textos, em diálogo com a melhor fortuna crítica dos escritores estudados, mas sempre avançando em direção a uma argumentação original.

Essas qualidades do livro de Marcelo Diego avultam ainda mais quando ele se debruça sobre os romances de Machado de Assis. Nosso maior escritor foi um apaixonado pela ópera e frequentador assíduo dos espetáculos líricos. Nos seus romances, que se passam no Rio de Janeiro, as personagens vão constantemente ao teatro, tanto o dramático quanto o lírico, e deixam transparecer o interesse do escritor por essa forma de arte. Por vezes a referência a uma determinada ópera tem apenas a função de fornecer uma baliza temporal ou de caracterizar a classe social que a frequenta, a elite, como no capítulo 11 de A Mão e a Luva, no qual se comenta a representação de Ernani, de Verdi. Ou como no capítulo 92 de Memórias Póstumas de Brás Cubas, que descreve a família de Damasceno, cuja filha cantava ao piano trechos de Ernani. Em ambos os romances as cenas se passam no início da década de 1850.

Na parte final do livro, o estudo de Dom Casmurro e Memorial de Aires demonstra o quanto Machado de Assis se apropriou da ópera na criação das suas narrativas. Não se trata mais de referências apenas circunstanciais no interior do enredo, ou de descrever hábitos da elite. A ópera é internalizada e contribui para a forma do romance. No caso de Dom Casmurro, basta lembrar a imagem de que “a vida é uma ópera”, formulada pelo tenor italiano Marcolini e lembrada pelo narrador. A ideia barroca do theatrum mundi sempre seduziu Machado de Assis. E sua rica imaginação ditou o extraordinário capítulo em que Deus e Satanás são autores de uma ópera - o primeiro responsável pelo libreto, o segundo pela música - e a Terra um planeta criado para sua execução. Essa obra feita a quatro mãos não podia dar certo: “há lugares em que o verso vai para a direita e a música, para a esquerda” (ASSIS, 1977ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. 267 p., p. 79). A vida de Bentinho e Capitu é a maior prova disso. Marcelo Diego analisa com precisão o capítulo “A Ópera”, refere-se a contos e crônicas do escritor marcados pela presença da música e demora-se em considerações críticas sobre passagens do romance em que Shakespeare é citado por Machado. Embora o escritor conhecesse as peças Macbeth, As Mulheres Patuscas de Windsor e Otelo, é possível também que se tenha inspirado nas óperas Macbeth, Fastaff e Otelo, de Verdi. O diálogo mais evidente com o dramaturgo inglês, em Dom Casmurro, é com Otelo, que Bentinho vê no teatro, mas Marcelo Diego aprofunda outra relação intertextual, um tanto oculta nas entrelinhas: o protagonista do romance age muito mais como Hamlet, consumido pelas próprias dúvidas e hesitações, do que pelo ciúme. Uma boa matéria para discussão.

O romance de Machado em que a presença da música é mais intensa é Memorial de Aires. Antonio Candido já havia observado que Fidélia é um nome beethoveniano e Tristão, wagneriano. Outros críticos se dedicaram a estudar as relações intertextuais entre a narrativa machadiana e as óperas Fidélio, de Beethoven, e Tristão e Isolda, de Wagner. Marcelo Diego os menciona e discute seus argumentos para propor uma nova leitura, levando em conta que o narrador ardiloso plantou pistas falsas ao evidenciar as duas obras líricas no curso do enredo. A seu ver, o núcleo do romance não está no relacionamento de Fidélia e Tristão, mas nos dramas do casal Aguiar e do próprio conselheiro Aires. Daí considerar que o diálogo intertextual mais profundo é com Lohengrin e Tannhäuser, óperas de Wagner cujo lirismo melancólico é o mesmo de Memorial de Aires. Como assinala o autor, “é principalmente por meio da afinação, da atmosfera, que essas três obras se irmanam” (DIEGO, 2022DIEGO, Marcelo da Rocha Lima. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Edusp, 2022. 328 p., p. 289).

O livro de Marcelo Diego entrega o que promete na introdução: demonstrar que a ópera desempenhou “um papel central na constituição do romance como gênero no Brasil” (DIEGO, 2022DIEGO, Marcelo da Rocha Lima. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Edusp, 2022. 328 p., p. 27). Como ele observa, as duas artes se desenvolveram ao mesmo tempo, exatamente a partir de 1844, mas não houve no Brasil a criação de uma ópera brasileira. Nosso “sistema operístico” dependeu de compositores e artistas estrangeiros. E assim como na Europa o ponto culminante da tradição lírica oitocentista se deu com Wagner, entre nós o desenvolvimento da literatura culminou em Machado de Assis. Não deve ser por acaso que o escritor brasileiro escolheu o compositor alemão para estabelecer com ele um rico diálogo em Memorial de Aires.

Referências

  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1977. 267 p.
  • DIEGO, Marcelo da Rocha Lima. Ópera Flutuante: teatro lírico, literatura e sociedade no Rio de Janeiro do Segundo Reinado. São Paulo: Edusp, 2022. 328 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2022
  • Aceito
    10 Abr 2022
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