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A TRAJETÓRIA EDITORIAL DE MACHADO DE ASSIS EM INGLÊS (1950-1960)

Resumo

Este artigo trata das primeiras traduções dos romances de Machado de Assis para o inglês, publicadas nas décadas de 1950 e 1960, procurando compreendê-las como um processo complexo que, além da voluntariedade e dedicação de tradutores e editores, envolveu questões políticas e geopolíticas associadas às relações dos Estados Unidos com os países da América Latina durante e após a Segunda Guerra Mundial.

Palavras-chave:
Machado de Assis; tradução; edição; estudos transnacionais

Abstract

This article explores the first translations of novels by Machado de Assis into English, published in the 1950s and 1960s, understanding them as a complex process that, beyond the drive and dedication of translators and editors, involved political and geopolitical issues associated with the relations between the United States and Latin American countries during and after World War II.

Keywords:
Machado de Assis; translation; publishing; transnational studies

Este artigo propõe delinear respostas a três perguntas relativas às traduções de Machado de Assis para o inglês:

  1. Como o escritor brasileiro, que até 1950 tinha tido apenas três contos traduzidos para o inglês, no curto intervalo de três anos teve três dos seus romances traduzidos por três tradutores diferentes, estabelecidos em três extremos dos Estados Unidos - Nova York, Los Angeles e Seattle?

  2. Como uma pequena editora em Nova York, a Noonday Press, se interessou pela obra de Machado de Assis e deu início a uma história prolífica de traduções de seus escritos para o inglês?

  3. Por que na década de 1960 a University of California Press passaria a se tornar a principal difusora da obra de Machado de Assis nos Estados Unidos?

Em suma, trata-se de investigar quais fatores - além da dedicação dos tradutores, que em certa altura da vida se encantaram pela obra de Machado de Assis, e se dedicaram em graus diferentes a traduzi-la e difundi-la para o público anglófono - permitiram que as primeiras traduções de livros de Machado de Assis para o inglês se materializassem.

As respostas a essas perguntas começaram a ser delineadas com alguma segurança a partir da localização e do exame da documentação das duas editoras que foram as principais responsáveis pelas primeiras traduções dos romances de Machado de Assis para o inglês: a Noonday Press, cujos arquivos estão na Biblioteca Pública de Nova York, e a University of California Press, da qual há documentos sob a guarda da Bancroft Library, em Berkeley.1 1 Este artigo resulta de pesquisa iniciada nos Estados Unidos em janeiro de 2018 quando, com apoio de uma bolsa da Tinker Foundation, localizei os arquivos da Noonday Press na Biblioteca Pública de Nova York. Decorre também do projeto de pesquisa "Machado de Assis em inglês: tradução, edição e circulação transnacional", desenvolvido entre 2020 e 2023 com apoio de Auxílio à Pesquisa da Fapesp (Proc. n. 2020/02389-6). Agradeço a Francisca Caroline Pires da Silva, que colaborou na organização da documentação por meio do projeto "Organização e indexação de documentos manuscritos, datiloscritos e impressos referentes às traduções para o inglês de obras de Machado de Assis", financiado com bolsa de Treinamento Técnico da Fapesp (Proc. n. 21/0357906).

A Noonday foi fundada em Nova York, em 1951, por Cecil Hemley, editor, escritor, homem de espírito cosmopolita, muito sintonizado com a produção literária internacional, e por seu colega do Jewish Theological Seminary of America, Arthur Cohen, também escritor, teólogo e uma das figuras proeminentes da chamada "paperpack revolution", movimento de popularização dos livros nos Estados Unidos.2 2 Sobre a produção variada de Cohen em seus vários campos de atuação, ver An Arthur A. Cohen Reader: Selected Fiction and Writing in Judaism, Theology, Literature, and Culture (COHEN, 1988). Em 1960, a Noonday foi adquirida pela Farrar, Straus e Cudahy, mais tarde Farrar, Straus and Giroux, um dos grandes grupos editorais norte-americanos, ainda hoje em atividade.

Em apenas nove anos de existência, a Noonday publicou obras do russo Boris Pasternak, do francês Jean-Paul Sartre, do indiano R. K. Narayan, do italiano Cesare Pavese, dos vencedores do prêmio Nobel Knut Hamsun, norueguês, e Herman Hesse, alemão, e do polonês Isaac Bashevis Singer, publicado pela editora muitos anos antes de ser agraciado com o prêmio Nobel de Literatura, em 1978. Machado de Assis foi dos poucos autores do século XIX incluídos no catálogo da Noonday, o único brasileiro e, em língua portuguesa, esteve acompanhado apenas de Eça de Queirós, que teve O primo Basílio e A relíquia publicados respectivamente em 1953 e 1954, mesmos anos das publicações de Dom Casmurro e Philosopher or Dog? (Quincas Borba).

O posicionamento de Machado de Assis como escritor de estatura internacional no catálogo cosmopolita da Noonday é bastante reiterado nos paratextos que acompanham as edições. Uma frase do crítico Dudley Fitts, que aparece na quarta capa da primeira edição de Epitaph of a Small Winner e frequentemente foi lembrada na apresentação do escritor, sintetiza bem o contexto em que Memórias póstumas de Brás Cubas foi apresentado ao público norte-americano: "Machado de Assis foi uma força literária que transcendeu a nacionalidade e a língua". ("Machado de Assis was a literary force, transcending nationality and language".) Foi com esse espírito que William Grossman traduziu e apresentou Memórias póstumas sob o signo de Nietzsche, Helen Caldwell traduziu e interpretou Dom Casmurro à luz de Shakespeare, e Clotilde Wilson verteu para o inglês Quincas Borba, associando-o ao Elogio da loucura de Erasmo na breve introdução que escreveu para o romance.

Dirigindo essas publicações e em contato direto com os tradutores estava o editor Cecil Hemley. Ele conheceu a obra de Machado de Assis no início da década de 1950,3 3 Em depoimento à Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, e a propósito de seu romance The Experience, Cecil Hemley afirma: "Devo confessar minha dívida para com o grande escritor brasileiro, Machado de Assis, cujas obras eu admiro desde que despertaram minha atenção, há oito anos" (HEMLEY, 1960, p. 21). muito possivelmente por intermédio de William Grossman, o tradutor das Memórias póstumas de Brás Cubas, que em 1951 lhe propôs a publicação da tradução do romance pela Noonday.

Grossman se dedicara a traduzir o livro durante os anos em que viveu no Brasil, convidado pelo Ministério da Aeronáutica para ser consultor de assuntos relativos a transporte e para chefiar o departamento de economia do Centro Técnico de Aeronáutica, em São José dos Campos, hoje conhecido como ITA, Instituto Tecnológico da Aeronáutica. A tradução que saiu em Nova York em 1952 com o título de Epitaph of a Small Winner é a mesma que publicara como The Posthumous Memoirs of Braz Cubas em São Paulo em 1951, num volume impresso nas oficinas da São Paulo Editora S/A, o qual recebeu escassa atenção e circulou muito pouco.

A publicação de Epitaph abriu caminho para as traduções dos outros dois romances, que vinham sendo realizadas de forma independente e autônoma por duas professoras universitárias que atuavam na costa oeste dos Estados Unidos.

Helen Caldwell, tradutora de Dom Casmurro, estabelecida na Califórnia, aprendera português e entrara em contato com os escritos de Machado de Assis no início da década de 1940, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), e há muito acalentava a ideia de traduzir o romance, tarefa à qual se dedicava desde pelo menos 1950. A 1.800 quilômetros de Los Angeles, Clotilde Wilson, tradutora de Quincas Borba, aprendera português na Universidade de Washington, em Seattle, onde vivia e lecionava.

Com a publicação de Epitaph of a Small Winner, amplamente divulgada em órgãos de imprensa dos Estados Unidos, ambas procuraram a Noonday para oferecer suas traduções, nos dois casos bastante encaminhadas, o que justifica os curtos períodos que separam os lançamentos: Epitaph of a Small Winner saiu em 14 de julho de 1952, Dom Casmurro em 14 de abril de 1953, Philosopher or Dog? em junho de 1954.4 4 Sobre direitos autorais e estratégias de divulgação envolvendo esses lançamentos da Noonday, ver "The strange case of Machado de Assis and the Noonday Press: Rights and Publicity in English Translation" (FRANK, 2022).

Figura 1
Capas das edições norte-americanas e inglesas das traduções.

Pelo menos no caso de Dom Casmurro, a escolha da data do lançamento foi proposital: no dia 14 de abril comemora-se nos Estados Unidos o dia do Pan-Americanismo, o que colocava a publicação no quadro dos esforços de aproximação cultural entre os países das Américas. Isso se verificará também pelo papel discreto, mas importante, que a Pan-American Union teve nesses lançamentos.5 5 A motivação para a definição da data de lançamento está na carta de Arthur A. Cohen para Mário Guimarães, datada de 13 de janeiro de 1953 (Farrar, Straus & Giroux, Inc. records. Manuscripts and Archives Division. The New York Public Library. Astor, Lenox, and Tilden Foundations. FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3). A partir daqui, serão indicados apenas os números da caixa (box) e da pasta relativas ao fundo da Farrar, Straus & Giroux sob a guarda da The New York Public Library.

Não há registro de nenhum contato prévio entre os três tradutores e nem qualquer indício de que se conhecessem antes de procurarem a Noonday. O que Grossman, Caldwell e Wilson tinham em comum era o interesse que a certa altura da vida desenvolveram pela língua portuguesa e por Machado de Assis a partir de suas trajetórias profissionais e acadêmicas, em cursos distintos - William Grossman graduou-se em literatura e direito, em Harvard, e doutorou-se em direito na Universidade de Nova York, onde foi professor; Helen Caldwell formou-se em letras clássicas na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, onde atuou durante toda sua trajetória como "lecturer" (algo como professora assistente) de latim e grego; Clotilde Wilson formou-se em francês na Universidade de Washington, onde também fez carreira, deslocando-se gradativamente do francês para o português, tendo sido uma das pioneiras do ensino de literatura e cultura brasileiras naquela universidade.

Para além das paixões genuínas que desenvolveram por Machado de Assis, a ponto de dedicarem anos ou mesmo décadas de suas vidas a esse autor, as trajetórias sugerem que a sincronicidade dos movimentos dos três tradutores está relacionada aos esforços dos períodos da guerra e do pós-guerra, que resultaram no crescente interesse dos Estados Unidos pelos países da América Latina, que então se tornava região estratégica e zona de influência norte-americana.

No caso de William Grossman, que se tornara especialista em transporte aéreo, o contato com o Brasil se deu no âmbito da criação de um instituto militar, o ITA. Já Caldwell e Wilson entraram em contato com a língua portuguesa e a literatura brasileira na década de 1940, período de grande investimento do governo norte-americano no ensino de línguas estrangeiras, também em função dos interesses militares na América Latina. No início da década de 1940, havia preocupação nos Estados Unidos com a nova configuração geopolítica que se desenhava para o pós-guerra, o que implicava, por exemplo, o recrutamento, junto às universidades, de pessoas habilitadas em espanhol e português.

Documento do Departamento de Guerra localizado na Seção de coleções especiais da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, é eloquente a esse respeito: "O Departamento de Guerra quer que você dirija a preparação de materiais para ensino de português brasileiro para o Instituto das Forças Armadas. Se puder aceitar, nos avise imediatamente. Os detalhes estão de acordo com nossa conversa telefônica".6 6 Telegrama com o timbre da Western Union, datado de 21 de fevereiro de 1943. M. A. Zeitlin Files. Special Collections Section at UCLA. O Programa de Línguas do American Council of Learned Societies era o responsável direto ou indireto por incentivar, apoiar e orientar os projetos dos Estados Unidos relativos ao ensino de línguas.

O telegrama do diretor do Programa de Línguas do American Council of Learned Societies era dirigido ao professor Marion A. Zeitlin, com quem Helen Caldwell começou a aprender português em 1942. Embora oficialmente chefe do Departamento de Espanhol e Italiano da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Zeitlin também ensinava português. Entre suas primeiras alunas estava Helen Caldwell, que em carta ao professor faz a seguinte declaração: "Vou aproveitar o selo desta carta para dizer que gostei do seu curso de português mais do que qualquer outra coisa que fiz em um longo tempo e que, não importa o que você pense, aprendi muito".7 7 Carta de Helen Caldwell a M. A. Zeitlin, datada de 9 de junho de 1943 (UCLA Library Special Collections). O grifo no "you" é de Caldwell.

O aprendizado de fato foi rápido e frutífero, já que no segundo semestre do curso Caldwell participou e ganhou um concurso de tradução promovido por uma revista comercial, com apoio de órgãos oficiais. Conforme relata ao editor Cecil Hemley, o concurso de tradução de autores latino-americanos era promovido pela Mademoiselle em conjunto com o Committee on Cultural Relations with Latin America e a Pan-American Union, e ela recebeu o primeiro prêmio, de cem dólares, pela tradução do conto "Pecado" (Sin), de Dinah Silveira de Queiroz, divulgado na edição da Mademoiselle de agosto de 1943.8 8 Carta de Helen Caldwell para Cecil Hemley, datada de 9 de dezembro de 1952 (FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3).

Assim, Caldwell, e também Wilson, que nunca haviam estado no Brasil, aprenderam português num momento em que o ensino da língua e da cultura brasileira em nível acadêmico começava a se estabelecer e a se difundir nos Estados Unidos.

Ainda que não tenha havido aportes governamentais diretos para as publicações da Noonday Press, a viabilidade comercial dos seus livros deveu-se também às gestões da editora, especialmente do seu diretor comercial, Arthur Cohen, junto a órgãos oficiais. No caso das publicações das traduções de Machado de Assis, participaram o Committee on Inter-American Cooperation, a American Brazilian Association, a Pan-American Union (cujo Departamento de Assuntos Culturais era então dirigido por Alceu Amoroso Lima e Érico Veríssimo, respectivamente de 1951 a 1953 e de 1953 a 1956) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE.

Particularmente notáveis são os esforços empreendidos pelos diretores da Noonday junto ao serviço diplomático brasileiro, tanto em Nova York como no Rio de Janeiro. Várias cartas promovem as publicações e pedem contribuições no sentido de aquisição de um lote das tiragens a preço reduzido, de forma a abater os custos da edição. As ações resultaram na compra de seiscentos dos 3 mil exemplares da primeira edição de Epitaph e de quinhentos dos 5 mil exemplares da primeira edição de Dom Casmurro pela Secretaria de Estado das Relações Exteriores. Não se localizou o número exato de exemplares adquiridos de Quincas Borba, mas a correspondência da editora indica que as cifras acompanharam as dos títulos anteriores.9 9 Cf. Carta de Mário Guimarães, Chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, para Arthur Cohen, datada de Rio de Janeiro, 14 de julho de 1952 (Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2); Carta de Sérgio Corrêa da Costa, da Secretaria de Relações Exteriores, para Helen Caldwell, datada de Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1953 (FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3); Carta de Jayme Sloan Chermont, Chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, para Arthur A. Cohen, datada de 17 de maio de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).

Do conjunto da correspondência entre a Noonday e funcionários do serviço diplomático brasileiro, que soma pelo menos uma dúzia de cartas, vale destacar duas. A primeira é de Walther Moreira Salles, então Embaixador do Brasil nos Estados Unidos, dirigida a Cecil Hemley, na qual agradece o envio de Epitaph of a Small Winner e o cumprimenta "por esse feito, de tão grande importância para o meu país, e pelas resenhas favoráveis que o livro, com justiça, recebeu".10 10 Carta de Walther Moreira Salles a Cecil Hemley, datada de Washington, D.C., 30 de julho de 1952 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2). O outro documento, produzido por ocasião da publicação da tradução de Quincas Borba, foi escrito por Arthur Cohen e enviado à Secretaria de Estados das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro. Nele, Cohen chama a atenção para a tarefa que a editora tomou para si de incluir Machado de forma permanente no "patrimônio literário da América de língua inglesa", o que qualifica como um "programa":

Parece que em intervalos quase regulares de nove meses a NOONDAY PRESS o procura, como representante da divisão cultural do Governo Brasileiro, para informar da publicação de uma nova obra de Machado de Assis. A recepção nos Estados Unidos de Memórias póstumas e Dom Casmurro foi tão impressionante que estamos dando continuidade a esse serviço cultural com a publicação, na primavera, do último dos três romances de Machado, QUINCAS BORBA. Com isso concluímos a tarefa de incluir Machado de forma permanente no patrimônio literário da América de língua inglesa.11 11 Carta de Arthur A. Cohen a Mário Guimarães, datada de 10 de fevereiro de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).

Esta é uma das cinco cartas escritas por Cohen a Guimarães entre 1952 e 1954, com pedidos de contribuição, bem-sucedidos nos casos dos dois romances anteriores. Em maio de 1954, Jayme Sloan Chermont, chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro, escreveu a Arthur Cohen uma carta demonstrando interesse pela compra de um lote de Philosopher or Dog? em número equivalente ao das publicações anteriores.12 12 Carta de Jayme Sloan Chermont a Arthur A. Cohen, datada de 17 de maio de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).

A correspondência da Noonday Press mostra a intensa mobilização de muitos agentes para que Machado de Assis passasse a existir no ambiente norte-americano na primeira década de circulação de seus romances em inglês. Cecil Hemley, Arthur Cohen e também Sidney Furst, este último mais diretamente responsável pela promoção dos livros da Noonday, se empenharam em enviar material de divulgação e exemplares dos livros para grandes livrarias, clubes de livros e de leitura, periódicos acadêmicos e grandes veículos da imprensa. As investidas da Noonday Press surtiram efeito. Epitaph of a Small Winner, por exemplo, recebeu bastante atenção da mídia, com resenhas elogiosas em periódicos importantes, como o New York Times e a New Yorker. Nas cartas que enviam para a promoção do livro, os diretores da Noonday invariavelmente citam extratos dessas resenhas como forma de convencer os interlocutores a encomendar exemplares ou a divulgá-los.13 13 Bom exemplo desse recurso está em carta de Arthur A. Cohen para Jayme Chermont, Secretário de Estado das Relações Exteriores, datada de 7 de julho de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).

Essas primeiras traduções publicadas nos Estados Unidos abriram novas fronteiras para Machado de Assis também em outros países. Agentes de editoras inglesas negociaram com a Noonday a publicação no Reino Unido das três traduções norte-americanas. Epitaph e Dom Casmurro saíram em 1953 pela W. H. Allen, uma pequena editora londrina, fundada em 1853 e que existiu com esse nome até 1981. Philosopher or Dog?, com o título modificado para The Heritage of Quincas Borba, foi publicado em 1954 pela mesma editora. A chegada de Machado de Assis ao Reino Unido, portanto, se deu via Estados Unidos, e só em 1976 saiu em Londres uma primeira tradução de Iaiá Garcia, por R. L. Scott-Buccleuch, pela editora Peter Owen, fundada em 1951.

Foi também a partir das publicações da Noonday que os escritos de Machado de Assis chamaram a atenção de agentes literários europeus, que escreveram para a editora nova-iorquina solicitando cópias dos livros traduzidos e demonstrando interesse em intermediar a venda dos direitos de tradução para editoras da Holanda, Dinamarca e Suécia.14 14 Carta de Robert Harben para a Noonday Press, datada de Amsterdam, 21 de agosto de 1952; carta de Kurt E. Michaels para a Noonday Press, datada de Charlottenlund, 6 de novembro de 1952; carta de Lars Hökerbergs Bokförlag para a Noonday Press, datada de Estocolmo, 25 de novembro de 1952 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2). As etapas que medeiam as demonstrações de interesse e as efetivas publicações de traduções de Machado de Assis nesses países ainda precisam ser estudadas, mas o fato é que elas se concretizaram. Em 1955, saiu na Suécia a tradução de Dom Casmurro, e as primeiras traduções de escritos de Machado de Assis para o dinamarquês e o holandês se deram em 1956, com a publicação de Memórias póstumas na Dinamarca e na Holanda.

O movimento de irradiação das traduções de Machado de Assis a partir de suas publicações nos Estados Unidos está em acordo com o que Johan Heilbron, em "Towards a Sociology of Translation - Book Translations as a Cultural World-System", afirma sobre o sistema internacional de traduções, marcado pela concentração e pelos fluxos desiguais. Em seu estudo, Heilbron (1999HEILBRON, Johan. Towards a Sociology of Translation - Book Translations as a Cultural World-System. European Journal of Social Theory, v. 2, n. 4, p. 429-444, 1999., p. 436) mostra que a chegada de livros de línguas consideradas "periféricas", como o português, a edições em outras línguas periféricas ou semiperiféricas quase sempre é antecedida por traduções para línguas que ocupam posições centrais no sistema mundial: "a decisão de publicar a tradução de uma língua periférica depende da existência de tradução na língua central".

Nesse sentido, não espanta que a tardia ampliação da presença internacional dos escritos de Machado de Assis, bastante tímida na primeira metade do século XX, esteja associada à consolidação da hegemonia norte-americana no pós-guerra, quando o inglês se tornou língua franca, com grande vantagem de difusão em relação a línguas rivais, tais como o francês, o alemão e o russo:

Quando um livro é traduzido para uma língua central por uma editora reconhecida, ele imediatamente chama a atenção de editores em outras partes do globo. O simples fato de uma editora norte-americana ou inglesa publicar um autor de uma língua semiperiférica é utilizado intensamente pela editora original, uma vez que isso é a melhor recomendação para que editores de outras partes adquiram os direitos de tradução. (HEILBRON, 1999HEILBRON, Johan. Towards a Sociology of Translation - Book Translations as a Cultural World-System. European Journal of Social Theory, v. 2, n. 4, p. 429-444, 1999., p. 436)

Foi exatamente o que ocorreu com as traduções da Noonday Press, publicadas na década de 1950, que fizeram dos Estados Unidos o principal centro de difusão internacional da obra de Machado de Assis. Acompanhando as transformações geopolíticas dos anos de 1950 e 1960 e o acirramento das disputas entre Estados Unidos e União Soviética por zonas de influência no mundo, Machado de Assis passou a ser publicado também nos países do bloco soviético. Dom Casmurro foi traduzido e publicado em servo-croata em 1957, em polonês em 1959, em tcheco em 1960 e em russo em 1961.

Um novo panorama

O início da década de 1960 registrou modificações significativas no panorama da circulação das obras de Machado de Assis traduzidas não só no âmbito internacional mais amplo, mas também nos Estados Unidos. Em julho de 1960, a Noonday Press foi vendida para a Farrar, Straus and Cudahy. Embora tenha mantido a Noonday como subsidiária e como um selo reservado aos livros de qualidade em formato brochura ("quality paperback"), os livros de Machado de Assis deixaram de ter a atenção mais intensiva e artesanal que a Noonday lhes dispensara e que fora fundamental para o sucesso das publicações.

No plano de negócios da Farrar, a Noonday tornou-se uma divisão voltada sobretudo para a produção de livros de uso escolar e acadêmico, principalmente em cursos sobre literatura internacional (World Literature) e romance moderno (Modern Novel). A concentração do foco da Noonday no público universitário foi uma decisão estratégica da Farrar, proposta em memorando no qual se fazia um diagnóstico da editora e se definiam estratégias para a comercialização dos seus títulos altamente prestigiosos.15 15 FSG Box 410 Noonday Books Sales and Marketing 1963-4. Entretanto, os "Reader's Guides", guias de leitura dedicados a autores como James Joyce, Shakespeare, Dostoiévski, John Donne e John Keats, e temas literários como a Beatriz de Dante e o Grupo de Bloomsbury, tornaram-se os carros-chefes da editora nas décadas de 1960 e 1970.

O memorando não faz qualquer referência a Machado de Assis ou a qualquer outro autor de ficção, mas é desse nicho editorial acadêmico que ele passa a participar, e com destaque.

A lista de títulos da Noonday Press de 1963, por exemplo, traz Epitaph of a Small Winner como primeiro título (ver Figura 3), e o descreve como "O romance do grande escritor brasileiro, que se tornou um grande sucesso de crítica quando publicado pela primeira vez nos Estados Unidos", referindo-se à frase que Dudley Fitts publicou no The New York Times Book Review: "uma força literária que transcende nacionalidade e língua, certamente comparável a Flaubert, Hardy ou James".16 16 Idem.

Há uma circulação desigual dos três primeiros romances de Machado de Assis traduzidos para o inglês, como se vê na tabela abaixo.


TIRAGENS DAS TRADUÇÕES DE MACHADO DE ASSIS PARA O INGLÊS (1951-1964)

Em 1963, Epitaph e Dom Casmurro continuavam a ser vendidos. Memorando com o relatório de vendas, concluído em 31 de agosto de 1963, indicava 282 exemplares de Epitaph of a Small Winner e 164 de Dom Casmurro. Philosopher or Dog?, que teve sua primeira edição esgotada e não foi reimpresso, não constava do relatório (ver Figura 2).

Figura 2
Memorando com relatório de vendas

Figura 3
Lista de livros da Noonday Press

Para efeitos de comparação, um livro sobre Dostoiévski, Freedom and the Tragic Life: a Study in Dostoievsky, de Vyacheslav Ivanov, vendeu 489 exemplares no mesmo período. Um breve inventário de 1964 lista vários títulos com registros de vendas que variam entre sessenta e 3.500 exemplares, este último número relativo a um Reader's Guide to Shakespeare.17 17 Box 410 Noonday Books Sales and Marketing 1963-4.

A leitura da correspondência da Farrar, Straus and Giroux sugere que, ao integrarem o catálogo de uma grande editora em franca expansão, os livros de Machado de Assis tornam-se uma presença estranha. Eram inegáveis sucessos de crítica, mas as vendas eram bastante modestas para uma editora de grande porte. Ao longo dos anos de 1960 e 1970, funcionários da Farrar e agentes literários contratados pela editora, sem saber o que fazer com os livros, procuraram convencer outros editores, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a comprar os direitos para a publicação dos romances. Entre várias tentativas sem resultado, a editora teve sucesso em duas ocasiões: em 1968, quando a Penguin Books publicou na Inglaterra Epitaph of a Small Winner, e no final da década de 1970, quando as traduções de Grossman, Caldwell e Wilson foram publicadas em edição de bolso da Bard Book/Avon Books como parte da coleção intitulada "Distinguished Latin American Fiction". Epitaph of a Small Winner saiu em 1978, Dom Casmurro em 1980, e Philosopher or Dog? em 1982.

Embora tenha se empenhado na venda dos direitos subsidiários dos livros, a Farrar não investiu na tradução de nenhum novo título de Machado de Assis. Dos três romances publicados nos inícios dos anos de 1950, Epitaph of a Small Winner fez a carreira mais longa, com várias reimpressões entre 1952 e 1964, somando 23.040 exemplares, dos quais 19.040 foram impressos nos Estados Unidos e 4.000 no Reino Unido.18 18 Os dados com as tiragens e vendas de The Epitaph of a Small Winner estão detalhados nos seguintes documentos: carta de Herman Figatner, contador do Book Find Club, para Arthur A. Cohen, da Noonday Press, datada de 11 de novembro de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4); carta de Barbara Holler, assistente da Noonday Press, para Luiz Fernando Nazareth, Oficial de Assuntos Culturais da Embaixada Brasileira em Washington, datada de 2 de março de 1964 (FSG Box 218 Machado de Assis General Correspondence 1960-5); carta de Gerald J. Pollinger, da Laurence Pollinger, para Frederic Warburg, da Martin Secker & Warburg, datada de 22 de novembro de 1961 (FSG Box 218 Machado de Assis General Correspondence 1960-5).

A tradução de Quincas Borba por Clotilde Wilson, além da tiragem da primeira edição norte-americana, teria uma nova edição pela Farrar apenas 38 anos mais tarde, em 1992. Nesse intervalo, o livro teve seus direitos subsidiários comprados pela W. H. Allen, que lançou o livro em 1954 na Inglaterra, e pela Bard/Avon, na já referida edição de bolso. Uma nova edição inglesa da mesma tradução saiu pela Bloomsbury mais de cinquenta anos depois da primeira publicação, em 1997.

A tradução de Helen Caldwell para Dom Casmurro faria trajetória diferente das demais, abrindo nova frente para a obra de Machado de Assis nos Estados Unidos. Seus livros passariam a ser publicados principalmente por editoras universitárias, e a University of California Press (UC Press), instituição à qual Caldwell estava vinculada, liderou esse processo. Por três décadas, a UC Press se tornaria a principal editora de obras de e sobre Machado de Assis fora do Brasil.

Machado de Assis na Califórnia

O primeiro título sobre Machado de Assis lançado pela UC Press foi The Brazilian Othello of Machado de Assis, em 1960. Em 1963, saiu The Psychiatrist and Other Stories by Machado de Assis, primeira coletânea abrangente de contos de Machado de Assis publicada nos Estados Unidos, com traduções de William Grossman e Helen Caldwell; em 1965 foi lançada a tradução de Esaú e Jacó; em 1972, a do Memorial de Aires; em 1984, a de Helena. Todos os novos títulos traduzidos tinham a marca de Helen Caldwell, que em 1966 trouxe para o catálogo da UC Press a sua tradução de Dom Casmurro. Em 1970, Caldwell publicou pela mesma editora um novo livro sobre a obra machadiana, Machado de Assis - The Brazilian Master and His Novels.

O deslocamento do centro das publicações de Machado de Assis de uma editora comercial de Nova York para uma editora universitária na Califórnia contou com o empenho da tradutora e também coincidiu com um momento de mudanças profundas nas relações dos Estados Unidos com a América Latina, verificadas a partir da Revolução Cubana e do acirramento das tensões da Guerra Fria.

Deborah Cohn (2012COHN, Deborah. The Latin American Literary Boom and U.S. Nationalism During the Cold War. Nashville: Vanderbilt University Press, 2012.), em The Latin American Literary Boom and U.S. Nationalism During the Cold War, apresenta um quadro detalhado e revelador de toda a infraestrutura criada pelos Estados Unidos nesse período para a aproximação com os países latino-americanos. Isso incluía o investimento direto não só na promoção do ensino das línguas e culturas dos países da América Latina, em âmbito universitário, como vinha ocorrendo desde a década de 1940, mas também no apoio para a publicação de autores latino-americanos em tradução. Foram esses apoios que financiaram boa tarde das iniciativas da Associação das Editoras Universitárias Norte-Americanas (AAUP), então sob a liderança de August Frugé, o editor da University of California Press.

Assim, a obra de Machado de Assis, que havia sido publicada inicialmente no ambiente internacionalista e cosmopolita da Noonday Press na Nova York da década de 1950, passava a ser editada no contexto universitário da University of California Press e dos incentivos à tradução da literatura latino-americana, que então ganhava projeção internacional.

Earl Fitz (2009FITZ, Earl. The Reception of Machado de Assis in the United States during the 1950s and 1960s. Luso-Brazilian Review, v. 46, n. 1, p. 16-35, 2009.), em ensaio sobre a recepção da obra de Machado de Assis nos Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, afirma que o chamado boom latino-americano, ao valorizar a produção literária latino-americana contemporânea, acabou deixando à sombra a obra de um escritor do século XIX que escrevia em português e apenas começava a ser conhecido nos Estados Unidos. Entretanto, no campo editorial, foi justamente o guarda-chuva latino-americano que permitiu a August Frugé viabilizar a publicação das novas traduções de Machado de Assis. Foi esse o contexto editorial em que saíram duas novas traduções de escritos de Machado de Assis em inglês, os já mencionados The Psychiatrist and Other Stories (1963), com tradução de William Grossman e Helen Caldwell, e Esau and Jacob (1965), traduzido por Caldwell.

Assim, os mesmos tradutores que deram início às publicações de Machado de Assis em inglês na costa leste dos Estados Unidos davam continuidade ao que agora se constituía como um projeto, discretamente capitaneado por Helen Caldwell, tendo à frente o editor August Frugé e sendo financiado pela Fundação Rockefeller no contexto do Latin American Translation Program (LATP).

A iniciativa desse programa foi da Associação das Editoras Universitárias Norte-Americanas, que o instituiu em abril de 1960, contando com subsídios da Rockefeller Foundation. A ideia do programa foi delineada em 1958 por August Frugé, Jack Harrison, da Fundação Rockefeller, e Frank Wardlaw, então diretor da University of Texas Press.19 19 Minuta de carta de August Frugé, datada de 7 de novembro de 1958 (Pasta Translation Program History - Latin America, The Bancroft Library). A Fundação concedeu à Associação um fundo de US$ 225 mil, a ser despendido num período total de seis anos, a partir de 1º de abril de 1960. Dessa data até 31 de março de 1967, vinte editoras pertencentes à Associação tiveram projetos aprovados pelo Comitê Nacional do programa, financiando a tradução e preparação de 82 manuscritos em inglês.

Foram dezenove os títulos de autores brasileiros traduzidos e publicados no contexto do Latin American Translation Program - oito de ficção e onze de não-ficção. Eles saíram por cinco editoras universitárias: a University of California Press, a Columbia University Press, a Harvard University Press, a Stanford University Press e a University of Texas Press. A que mais publicou obras originalmente escritas em português foi a UC Press, somando dez títulos. Os oito livros brasileiros de ficção que foram publicados saíram pelas duas editoras de participação mais expressiva no programa: a UC Press e a University of Texas Press (UT Press).20 20 Os livros de não-ficção traduzidos com subsídios do Programa foram: Africa and Brazil (1965) e Brazilians: Their Character and Aspirations (1967), de José Honório Rodrigues (1913-1987); The Economic Growth of Brazil: A Survey from Colonial to Modern Times (1963), Development and Underdevelopment (1964) e Diagnosis of the Brazilian Crisis (1965), de Celso Furtado (1920-2004); A History of Ideas in Brazil: The Development of Philosophy in Brazil and the Evolution of National History (1964), de João Cruz Costa (1904-1978); Formação do Brasil Contemporâneo (1967), de Caio Prado Júnior (1907-1990); Introduction to the Literature of Brazil (1968), de Afrânio Coutinho (1911-2000); Negro Integration in Brazil (1968), de Florestan Fernandes (1920-1995); Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político (1968), de Hélio Jaguaribe (1923-2018); e A History of Modern Brazil, 1889-1964 (19..), de José Maria de Albuquerque Belo (1885-1959). Os títulos em português constavam assim do relatório consultado.

A UT Press publicou: Who, If I Cry Out (1967), de Gustavo Corção; Memórias de Lázaro (1968), de Adonias Filho; The Three Marias (1963), de Rachel de Queiroz; e Barren Lives (1965), de Graciliano Ramos. A UC Press publicou: The Rogues' Trial (1963), de Ariano Suassuna; The Pshychiatrist and Other Stories (1963) e Esau and Jacob (1965), de Machado de Assis.21 21 Segundo registros financeiros do Programa, o título The Psychiatrist and Other Stories, aprovado em 19 de março de 1962, recebeu financiamento de $1.500 e Esau and Jacob, aprovado em 31 de maio de 1963, recebeu $2.200. O programa também apoiou a tradução da coletânea de contos brasileiros traduzidos por William Grossman, Modern Brazilian Short Stories (1967).

Como se pode notar, Machado de Assis figurou entre os poucos escritores brasileiros que tiveram obras ficcionais selecionadas pelo Comitê Nacional do programa, e o único a ter dois títulos por ele subsidiados. O destaque chama a atenção também porque a tendência geral foi a de traduzir obras de autores contemporâneos do século XX.

Que motivos teriam permitido esse destaque a Machado de Assis?

August Frugé, em mais de um momento, destacou publicamente a figura de Machado de Assis do contexto latino-americano, indicando-o como exceção no quadro do desconhecimento generalizado da literatura da América Latina por parte do público norte-americano. Num artigo em que recompõe a origem e os propósitos do Latin American Translation Program, o editor pergunta de forma provocativa: "Algum escritor latino-americano, talvez com a exceção de Machado de Assis, realmente é aceito neste país como um igual de escritores norte-americanos e europeus?" (FRUGÉ, 1964FRUGÉ, August. A Latin American Translation Program. Scholarly Books in America, University of Chicago, p. 8-10, April, 1964., p. 8).

Em 1978, rememorando a história do Programa, August Frugé relembra o caso de Machado de Assis:

Ficção traduzida é viável, mas difícil. Nunca tivemos ou quisemos ter um programa específico. Parecia melhor ater-se a obras bem conhecidas, especialmente as que poderiam ser adotadas em disciplinas acadêmicas. Assim, Verga, Machado de Assis, Grossman e Azuela foram razoavelmente bem-sucedidos. E acrescentavam nomes literários de prestígio ao catálogo. Assim como o de Italo Svevo, apesar de este não ter vendido tão bem.22 22 Memorando de August Frugé, datado de 17 de maio de 1978 e endereçado a Doris Kretschmer (The Bancroft Library CU-9.81 Box 4).

Assim, para Frugé, Machado estaria entre os poucos autores que reuniam importância literária e algum sucesso comercial no contexto de publicação das editoras universitárias.

Como se viu, a trajetória da tradução, edição e circulação da obra de Machado de Assis em inglês, que envolveu duas editoras de perfis muito distintos situadas em Nova York e Berkeley, tem em Helen Caldwell a principal figura de ligação. Em sua dedicação de mais de trinta anos ao autor, Caldwell agiu nos bastidores como ferrenha defensora do escritor junto aos editores e uma espécie de guardiã da qualidade das traduções. Quando a editora inglesa W. H. Allen negociava com a Farrar uma nova publicação na Inglaterra de sua tradução de Dom Casmurro, Caldwell condicionou a nova edição a uma revisão completa do texto, que segundo ela apresentava muitos problemas na edição inglesa, e exigia a submissão das provas finais à sua aprovação. Ao mesmo tempo, preparava para a UC Press a tradução do volume de contos The Psychiatrist and Other Stories, a tradução de Esaú e Jacó e a publicação do "seu" Dom Casmurro.

Entretanto, a dedicação dos editores e dos tradutores, extrema no caso de Caldwell, está entrelaçada com questões políticas e geopolíticas que criaram - durante os governos de Franklin D. Roosevelt (1933-1945), Harry S. Truman (1945-1953) e Dwight D. Einsenhower (1953-1961), e como parte dos esforços de guerra e das políticas de aproximação dos Estados Unidos com a América Latina no pós-guerra - as condições de possibilidade para que as traduções pudessem ser realizadas, os livros fossem editados e as obras de Machado de Assis pudessem ser conhecidas pelo público norte-americano.

Referências

  • COHEN, Arthur A. An Arthur A. Cohen Reader: Selected Fiction and Writing in Judaism, Theology, Literature, and Culture. Detroit: Wayne State University Press, 1988.
  • COHN, Deborah. The Latin American Literary Boom and U.S. Nationalism During the Cold War. Nashville: Vanderbilt University Press, 2012.
  • FITZ, Earl. The Reception of Machado de Assis in the United States during the 1950s and 1960s. Luso-Brazilian Review, v. 46, n. 1, p. 16-35, 2009.
  • FRANK, Zephyr L. The strange case of Machado de Assis and the Noonday Press: Rights and Publicity in English Translation. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 15, p. 1-14, 2022.
  • FRUGÉ, August. A Latin American Translation Program. Scholarly Books in America, University of Chicago, p. 8-10, April, 1964.
  • HEILBRON, Johan. Towards a Sociology of Translation - Book Translations as a Cultural World-System. European Journal of Social Theory, v. 2, n. 4, p. 429-444, 1999.
  • HEMLEY, Cecil. Influência de Machado de Assis. Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, n. 4, p. 20-21, 21 jun. 1960.
  • 1
    Este artigo resulta de pesquisa iniciada nos Estados Unidos em janeiro de 2018 quando, com apoio de uma bolsa da Tinker Foundation, localizei os arquivos da Noonday Press na Biblioteca Pública de Nova York. Decorre também do projeto de pesquisa "Machado de Assis em inglês: tradução, edição e circulação transnacional", desenvolvido entre 2020 e 2023 com apoio de Auxílio à Pesquisa da Fapesp (Proc. n. 2020/02389-6). Agradeço a Francisca Caroline Pires da Silva, que colaborou na organização da documentação por meio do projeto "Organização e indexação de documentos manuscritos, datiloscritos e impressos referentes às traduções para o inglês de obras de Machado de Assis", financiado com bolsa de Treinamento Técnico da Fapesp (Proc. n. 21/0357906).
  • 2
    Sobre a produção variada de Cohen em seus vários campos de atuação, ver An Arthur A. Cohen Reader: Selected Fiction and Writing in Judaism, Theology, Literature, and Culture (COHEN, 1988COHEN, Arthur A. An Arthur A. Cohen Reader: Selected Fiction and Writing in Judaism, Theology, Literature, and Culture. Detroit: Wayne State University Press, 1988.).
  • 3
    Em depoimento à Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, e a propósito de seu romance The Experience, Cecil Hemley afirma: "Devo confessar minha dívida para com o grande escritor brasileiro, Machado de Assis, cujas obras eu admiro desde que despertaram minha atenção, há oito anos" (HEMLEY, 1960HEMLEY, Cecil. Influência de Machado de Assis. Revista da Sociedade dos Amigos de Machado de Assis, n. 4, p. 20-21, 21 jun. 1960. , p. 21).
  • 4
    Sobre direitos autorais e estratégias de divulgação envolvendo esses lançamentos da Noonday, ver "The strange case of Machado de Assis and the Noonday Press: Rights and Publicity in English Translation" (FRANK, 2022FRANK, Zephyr L. The strange case of Machado de Assis and the Noonday Press: Rights and Publicity in English Translation. Machado de Assis em Linha - Revista Eletrônica de Estudos Machadianos, v. 15, p. 1-14, 2022. ).
  • 5
    A motivação para a definição da data de lançamento está na carta de Arthur A. Cohen para Mário Guimarães, datada de 13 de janeiro de 1953 (Farrar, Straus & Giroux, Inc. records. Manuscripts and Archives Division. The New York Public Library. Astor, Lenox, and Tilden Foundations. FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3). A partir daqui, serão indicados apenas os números da caixa (box) e da pasta relativas ao fundo da Farrar, Straus & Giroux sob a guarda da The New York Public Library.
  • 6
    Telegrama com o timbre da Western Union, datado de 21 de fevereiro de 1943. M. A. Zeitlin Files. Special Collections Section at UCLA. O Programa de Línguas do American Council of Learned Societies era o responsável direto ou indireto por incentivar, apoiar e orientar os projetos dos Estados Unidos relativos ao ensino de línguas.
  • 7
    Carta de Helen Caldwell a M. A. Zeitlin, datada de 9 de junho de 1943 (UCLA Library Special Collections). O grifo no "you" é de Caldwell.
  • 8
    Carta de Helen Caldwell para Cecil Hemley, datada de 9 de dezembro de 1952 (FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3).
  • 9
    Cf. Carta de Mário Guimarães, Chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, para Arthur Cohen, datada de Rio de Janeiro, 14 de julho de 1952 (Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2); Carta de Sérgio Corrêa da Costa, da Secretaria de Relações Exteriores, para Helen Caldwell, datada de Rio de Janeiro, 23 de fevereiro de 1953 (FSG Box 218 Machado de Assis General Dom Casmurro 1952-3); Carta de Jayme Sloan Chermont, Chefe da Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores, para Arthur A. Cohen, datada de 17 de maio de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).
  • 10
    Carta de Walther Moreira Salles a Cecil Hemley, datada de Washington, D.C., 30 de julho de 1952 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2).
  • 11
    Carta de Arthur A. Cohen a Mário Guimarães, datada de 10 de fevereiro de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).
  • 12
    Carta de Jayme Sloan Chermont a Arthur A. Cohen, datada de 17 de maio de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).
  • 13
    Bom exemplo desse recurso está em carta de Arthur A. Cohen para Jayme Chermont, Secretário de Estado das Relações Exteriores, datada de 7 de julho de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4).
  • 14
    Carta de Robert Harben para a Noonday Press, datada de Amsterdam, 21 de agosto de 1952; carta de Kurt E. Michaels para a Noonday Press, datada de Charlottenlund, 6 de novembro de 1952; carta de Lars Hökerbergs Bokförlag para a Noonday Press, datada de Estocolmo, 25 de novembro de 1952 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1951-2).
  • 15
    FSG Box 410 Noonday Books Sales and Marketing 1963-4.
  • 16
    Idem.
  • 17
    Box 410 Noonday Books Sales and Marketing 1963-4.
  • 18
    Os dados com as tiragens e vendas de The Epitaph of a Small Winner estão detalhados nos seguintes documentos: carta de Herman Figatner, contador do Book Find Club, para Arthur A. Cohen, da Noonday Press, datada de 11 de novembro de 1954 (FSG Box 219 Machado de Assis General Epitaph of a Small Winner 1953-4); carta de Barbara Holler, assistente da Noonday Press, para Luiz Fernando Nazareth, Oficial de Assuntos Culturais da Embaixada Brasileira em Washington, datada de 2 de março de 1964 (FSG Box 218 Machado de Assis General Correspondence 1960-5); carta de Gerald J. Pollinger, da Laurence Pollinger, para Frederic Warburg, da Martin Secker & Warburg, datada de 22 de novembro de 1961 (FSG Box 218 Machado de Assis General Correspondence 1960-5).
  • 19
    Minuta de carta de August Frugé, datada de 7 de novembro de 1958 (Pasta Translation Program History - Latin America, The Bancroft Library).
  • 20
    Os livros de não-ficção traduzidos com subsídios do Programa foram: Africa and Brazil (1965) e Brazilians: Their Character and Aspirations (1967), de José Honório Rodrigues (1913-1987); The Economic Growth of Brazil: A Survey from Colonial to Modern Times (1963), Development and Underdevelopment (1964) e Diagnosis of the Brazilian Crisis (1965), de Celso Furtado (1920-2004); A History of Ideas in Brazil: The Development of Philosophy in Brazil and the Evolution of National History (1964), de João Cruz Costa (1904-1978); Formação do Brasil Contemporâneo (1967), de Caio Prado Júnior (1907-1990); Introduction to the Literature of Brazil (1968), de Afrânio Coutinho (1911-2000); Negro Integration in Brazil (1968), de Florestan Fernandes (1920-1995); Desenvolvimento econômico e desenvolvimento político (1968), de Hélio Jaguaribe (1923-2018); e A History of Modern Brazil, 1889-1964 (19..), de José Maria de Albuquerque Belo (1885-1959). Os títulos em português constavam assim do relatório consultado.
  • 21
    Segundo registros financeiros do Programa, o título The Psychiatrist and Other Stories, aprovado em 19 de março de 1962, recebeu financiamento de $1.500 e Esau and Jacob, aprovado em 31 de maio de 1963, recebeu $2.200.
  • 22
    Memorando de August Frugé, datado de 17 de maio de 1978 e endereçado a Doris Kretschmer (The Bancroft Library CU-9.81 Box 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2023
  • Aceito
    05 Jun 2023
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