Acessibilidade / Reportar erro

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS EM TRADUÇÃO: UM PASSEIO POR TRÊS CAPÍTULOS 1 1 Palestra proferida na Universidade de São Paulo no dia 19 de outubro de 2022.

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS IN TRANSLATION: A JOURNEY THROUGH THREE CHAPTERS

Resumo

A tradução de qualquer obra literária, muito mais do que uma transposição linguística, acaba revelando muito sobre a construção e o funcionamento do texto. O presente trabalho mergulha nos bastidores do processo de tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, a fim de examinar os desafios e os nós apresentados por elementos de três capítulos sorteados.

Palavras-chave:
Machado de Assis; crítica via tradução; Memórias póstumas de Brás Cubas

Abstract

The translation of any literary work, when read against the grain, can provide a revealing window into the construction and inner workings of the text. This talk delves into the process of translating The Posthumous Memoirs of Brás Cubas from Portuguese to English to examine the challenges that cropped up in three randomly selected chapters.

Keywords:
Machado de Assis; criticism via translation; The Posthumous Memoirs of Brás Cubas

Não imaginava estar dando essa palestra mais de dois anos depois de lançar a minha tradução, três anos depois de defender a tese, num momento em que minhas próprias escolhas me parecem quase tão remotas quanto as escolhas dos outros tradutores que eu estudei. Mas queria agradecer a Hélio de Seixas Guimarães pelo convite, pela oportunidade de revisitar o processo de tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas e, de certa forma, redescobrir como foi e quem eu fui nesse processo.

Minha tradução, The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, saiu em junho de 2020, quase junto com outra tradução, de Margaret Jull Costa e Robin Patterson, que leva o título Posthumous Memoirs of Brás Cubas: A Novel (ASSIS, 2020a______. Posthumous Memoirs of Brás Cubas: A Novel. Tradução de Margaret Jull Costa e Robin Patterson. New York: Liveright, 2020a. ). E nós três fomos precedidos nessa tarefa compartilhada por mais três sujeitos.

Primeiro veio William Grossman, cuja tradução saiu numa edição autofinanciada em São Paulo, em 1951, sendo publicada depois pela editora Noonday nos Estados Unidos em 1952. Grossman tinha se mudado para o Brasil para lecionar no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em São José dos Campos, foi ler Machado para aprimorar o português dele, e acabou traduzindo Memórias póstumas de Brás Cubas por conta própria. Essa tradução ficou conhecida pelo título que foi dado pela Noonday, que é Epitaph of a Small Winner (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952.), ou Epitáfio de um pequeno vencedor - o que é, no mínimo, um spoiler do último capítulo -, mas sempre gosto de ressaltar que quando Grossman publicou a primeira edição da tradução dele, podendo ter total autonomia sobre a escolha, ele manteve o título The Posthumous Memoirs of Braz Cubas.

Logo em seguida veio E. Percy Ellis, em 1955, com uma tradução intitulada Posthumous Reminiscences of Braz Cubas (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.). Ellis foi um inglês, químico de formação, que veio parar no Brasil no começo do século XX e se notabilizou sobretudo como parte da comunidade evangélica no Rio. A tradução dele foi empreendida no contexto de uma série de traduções planejadas pelo Instituto Nacional do Livro (INL), que teriam sido versões em inglês e espanhol de grandes obras brasileiras. A razão mais plausível pela qual E. Percy Ellis teria sido escolhido para traduzir Brás Cubas, pelo que pude apurar, é que o chefe do departamento responsável por esse projeto fazia parte da mesma comunidade evangélica.2 2 O chefe do departamento de publicações do INL na época era Chrisanto ou Crisanto Martins Filgueiras, documentado como fazendo parte da mesma comunidade evangélica que Ellis, de acordo com o livro Os Irmãos, de Silas G. Filgueiras.

Não consigo não pensar em como poderia ter sido a circulação de várias obras se esse projeto realmente tivesse ido para frente. Entre os títulos na mira do projeto, por exemplo, estava Raízes do Brasil, que só acabou traduzido para o inglês em 2012. No final, a iniciativa acabou só produzindo essa tradução do E. Percy Ellis, que é errática para dizer o mínimo, e uma tradução de outra obra para o espanhol sobre o teatro de costumes.3 3 Teatro costumbrista brasileño, traduzido pelo uruguaio Walter Rela em 1961. Ambas só circularam no Brasil e tiveram um impacto basicamente nulo na divulgação das respectivas obras.

Por fim, houve a terceira tradução, de Gregory Rabassa, cuja versão saiu já em 1997 pela Oxford University Press, com o título The Posthumous Memoirs of Brás Cubas (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997.). Rabassa, claro, já dispensa contextualizações.

Quando fui começar a minha tradução das Memórias póstumas, eu já sabia que queria analisar essas traduções que me precederam, mas também sabia que enquanto eu não terminasse uma primeira versão bem-acabada da minha própria tradução, não poderia entrar em contato com elas; então dá para dizer que houve uma primeira fase de "quarentena" do trabalho dos meus colegas.

Quando eu falo da tradução de Memórias póstumas, quase tão interessante quanto esse processo solitário que foi chegar a minhas próprias conclusões sobre o texto, foi o momento em que eu considerei mentalmente que já tinha entregado a minha prova e pude circular pela sala espiando as provas dos coleguinhas. E se tem uma coisa que eu gostaria de frisar aqui é a riqueza desse exercício, quando feito de forma responsável.

Hoje, eu não queria falar dos desafios mais óbvios em termos de uma transposição de espaço-tempo do século XIX brasileiro para o século XXI norte-americano. Se vocês me permitirem, gostaria de pegar um caminho um pouco mais sinuoso e discreto, mas que creio ser igualmente representativo do processo como um todo. Nesse caso, o que a tradução e o estudo comparado das traduções revelam, quase sem querer, são redes de significado que amarram cenas, gestos e personagens, estabelecendo afinidades talvez insuspeitas.

Tudo se deve dizer: havia no Lobo Neves certa dignidade fundamental, uma camada de rocha, que resistia ao comércio dos homens. As outras, as camadas de cima, terra solta e areia, levou-lhas a vida, que é um enxurro perpétuo. Se o leitor ainda se lembra do capítulo XXIII, observará que é agora a segunda vez que eu comparo a vida a um enxurro; mas também há de reparar que desta vez acrescento-lhe um adjetivo - perpétuo. E Deus sabe a força de um adjetivo, principalmente em países novos e cálidos. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 229)

Adoro esta passagem do capítulo LXXXVII que remete ao capítulo XXIII, esse puxão de orelha dado por um narrador que exige que o leitor tenha prestado atenção na repetição de uma determinada metáfora e no acréscimo do adjetivo. Nesses momentos, sinto que o único leitor possível - a única leitora possível - é uma tradutora. Alguém que, por força de necessidade, vai ter que prestar atenção, sim, naquele substantivo repetido acrescido de um adjetivo. E é dessa capacidade que vim falar aqui hoje. De compartilhar um pouco da visão de perto, muito perto, quase tão perto que a gente fica vesga, que nem o faquir que medita olhando para a ponta do nariz.

Sou uma pessoa que sofre muito ao retrabalhar o próprio trabalho - não gosto de falar sempre dos mesmos exemplos, dos capítulos mais famosos -, então inventei um mecanismo que me ajuda a driblar isso. Já sei que é um mecanismo de tempo limitado, e depois de um tempo vou ter que simplesmente parar de falar sobre a tradução, o que deve ser bom para todos os envolvidos. É o seguinte: aciono um gerador de números aleatórios, com limite inferior de 1 e superior de 160, o que vai me indicar um dos capítulos do livro, e aí eu me obrigo a me debruçar sobre aquele capítulo. A partir do passeio por um capítulo específico, dá para entender melhor como foi meu método, quais foram minhas fontes, e por onde passei para chegar até o texto final. Neste caso, o primeiro número que saiu foi 31. (Pensando em Lobo Neves, seria um número propício, até.)

Capítulo XXXI: A Borboleta Preta

Primeiro, queria me debruçar sobre um gesto específico nesse capítulo que, por acaso, demonstra exatamente o tipo de leitura obsessiva que acabamos de ver:

No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de D. Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu a sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 122)

Num romance com tantas cenas memoráveis, esta é uma que me encanta particularmente pela simultânea pequenez e grandeza da ação central. Brás está de luto pela mãe, num exílio autoimposto na casa da família na Tijuca, e está no processo de se encantar pela moça Eugênia - apesar do fato de ela ser manca e apesar do fato de ela e a mãe terem acabado de se assustar com uma borboleta preta, demonstrando certa falta de sofisticação, uma superstição lamentável… De qualquer forma, ele está sozinho no quarto e entra outra borboleta preta, que pousa na testa dele, depois no retrato de seu pai. Num primeiro momento, ele a ignora. Mas num segundo momento, ele é tomado por um impulso.

Agora é a hora em que começamos a circular pela sala de prova. Como é que meus colegas lidaram com essa frase? Aqui, vou me ater a um estudo das três traduções que me precederam, já que foi essa análise que embasou a feitura da minha própria tradução.

Esta é a ferramenta muito complexa e científica que usei para comparar as traduções: uma tabela no Microsoft Word e algumas cores aleatórias. Aqui, no caso, o amarelo registra alguma marca característica do estilo de um tradutor, como a inversão sintática de E. Percy Ellis na primeira frase, onde ele se mantém muito mais próximo ao português; o verde tem a ver com elementos culturais, como o fato de "descer" significar literalmente descer das montanhas da Tijuca até o núcleo urbano da cidade do Rio; o vermelho seria algo como uma imprecisão, porque na tradução de Rabassa a borboleta pousa na cabeça e não na testa; e o cinza marca um trecho com divergência estilística dentro do mesmo campo semântico. O que é interessante, na verdade, é o quão relativamente pouco as traduções diferem fora desses lugares. Costumo dizer que, na maior parte do romance, os tradutores realmente andamos de mãos dadas.

Mas a cor que mais nos interessa aqui - não poderia ser outra - é o azul. Usei esse tom neon um pouco tenebroso para marcar lugares onde alguma ambiguidade ou estranheza no texto original faz com que os tradutores soltem as mãos e disparem um para cada lado. Por mais que eu tenha usado o vermelho aqui e acolá, e um grifa-texto preto para indicar omissões eventuais, gostaria de frisar o quanto não se trata de apontar dedos, de dizer "fulano errou, sicrano acertou", como se isso fosse possível na maior parte das vezes. Esse cotejo é mais um raio-X que acaba identificando pontos de fricção, pontos que muitas vezes nos indicam o mais interessante, o mais essencial do texto.

Mas vamos ao concreto. A casca de banana da vez, no começo desse capítulo, é justamente a frase repelão dos nervos. A definição de repelão no Houaiss é a seguinte: "1) empurrão violento; encontrão; 2) tranco, solavanco; 3) choque violento; encontrão, repelido, repelo". E num dos dicionários aos quais eu mais recorri durante o processo de tradução e que se tornou meu preferido - um Michaelis de português-inglês do começo do século XX - aparece assim:

a violent, sudden push, thrust, shock; dragging violently (by the hair etc.); slight push or jog in passing by; sudden charge, attack, assault; fig. sharp reprimand, rebuke […] fig. dar um ~ a alg., to reprimand any one severely […]. (MICHAELIS, 1908MICHAELIS, H. A New Dictionary of the Portuguese and English Languages: Enriched by a Great Number of Technical Terms Used in Commerce and Industry, in the Arts and Sciences, and Including a Great Variety of Expressions from the Language of Daily Life. Rio de Janeiro: Laemmert & Co., 1908. , p. 623-4)

Dá para entender por que esse é um dicionário do coração, né? Apesar das imprecisões eventuais, é um texto que respira vida, com um olhar atento para a linguagem no seu habitat natural. Através desses exemplos - "arrastar alguém, tipo pelo cabelo", ou "um leve esbarrão em alguém ao passar perto", ou um ataque frontal, ou, no sentido figurado, "dar uma bronca" - e através da forma como esse verbete vai se desdobrando em língua inglesa, já começamos a ter uma ideia da complexidade da palavra. Cheguei a pensar que teria algo na imagem de uma reação irreprimível e incontrolável que parece exercer uma atração sobre Machado.

Não sei em que altura da tradução comecei a reparar em "repelão", mas, depois de algumas vezes, comecei a mapear os repelões ao longo do livro. A primeira ocorrência é logo na infância, naquele jantar em homenagem à queda de Napoleão, no capítulo XII. Segue a citação no original e em quatro traduções:

A tia Emerenciana arrancara-me da cadeira e entregara-me a uma escrava, não obstante os meus gritos e repelões. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 70)

Grossman:

Aunt Emerenciana had snatched me from my chair and had delivered me to a slave woman despite my struggles and screams. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 46)

Ellis:

My aunt, Emerenciana snatched me from the chair, handing me over to one of the girl slaves, in spite of my shouts and struggles. (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 47)

Rabassa:

Aunt Emerenciana pulled me out of my chair and turned me over to a slave girl in spite of my shouts and shoves. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 30)

Thomson-DeVeaux:

Aunt Emerenciana had wrenched me from my chair and turned me over to a slave girl, despite my shouting and thrashing. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 38)

Quem já lidou ou presenciou uma criança em surto consegue imaginar perfeitamente o que seriam esses repelões. Grossman e Ellis traduziram como struggles (se debatendo), Rabassa como shoves (empurrões), e eu optei por thrashing, o que está no mesmo campo semântico que struggles mas que implicaria um pouco menos de coordenação motora.

A ocorrência seguinte vem uns poucos capítulos para frente, no XV: Brás engata um romance com a linda Marcela, a espanhola, mas anda sofrendo com tudo ao redor dele que serve de lembrança de que ele não é o primeiro homem da vida dela. As evidências são concretas e são muitas: virtualmente tudo que está na casa de Marcela. Mas entre todos os objetos de luxo, presentes de amantes passados, existe um que o irrita particularmente:

A casa em que morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela - uma linda baixela da Índia, que lhe doara um desembargador. Baixela do diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 80)

Grossman:

She owned the house in Cajueiros in which she lived. Everything in it was substantial and in good taste: the furniture of carved rosewood, the mirrors, the vases, the silverware - beautiful silverware from India, given to her by a justice of the Supreme Court. Devilish silverware, it gave me terrible attacks of nerves. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 53)

Ellis:

The house she inhabited in Cajueiros was her own. The furniture, of carved rosewood, was solid and good, like all the ornaments, mirrors, jars, plate, etc. The last-named was from India, given her by a judge. Miserable canteen, how my nerves tingled when I thought of it! (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 57)

Rabassa:

The house in which she lived in Cajueiros belonged to her. The carved jacaranda furniture was solid and good as were all the other items, mirrors, pitchers, a silver plate-a beautiful plate from India that an appeals judge had given her. You devilish plate, you always got on my nerves. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 36)

Thomson-DeVeaux:

The house where she lived in Cajueiros was her own. The furniture, of carved jacaranda wood, was sturdy and well made, as were all the other effects, mirrors, vases, and the crockery- a beautiful set from the East India Company, which had been given to her by a judge. Accursed crockery, you dealt my nerves many a blow. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 46)

Se na primeira ocorrência era o próprio Brás desferindo repelões, agora, como no episódio da borboleta, temos como agente improvável das agressões uma baixela. E ele acusa a baixela disso frontalmente, na segunda pessoa, embora isso não apareça nas traduções de Grossman e Ellis. No caso da versão de Rabassa, "get on one's nerves" é uma frase bem comum em inglês, tipo "dar nos nervos". Os três tradutores parecem estar buscando maneiras mais correntes, mais conversacionais, de expressar essa irritação em termos de nervos - mas o que se constata é que a frase em língua portuguesa escolhida por Machado é muito menos comum na língua de origem do que qualquer uma dessas soluções em tradução.

Quando consultei o corpus histórico da língua portuguesa da Brigham Young University, e depois fui ver as ocorrências da palavra na Hemeroteca Digital na década de publicação do romance, a palavra aparecia sobretudo no contexto de "de repelão", o que seria "de repente", ou no sentido de um tranco físico, sobretudo de alguém tentando se livrar de outra pessoa. No corpus, a única outra ocorrência de "repelão" com relação a nervos era justamente o capítulo XXXI de Memórias póstumas e a morte da borboleta preta.

Mas, antes de chegar de volta à borboleta, vamos passear por mais dois repelões. No capítulo LI, depois de ter valsado com a mulher de outrem e embolsado a moeda de ouro que ele achou na rua, Brás sente uns "repelões da consciência". E no capítulo LXXVI, Brás, tendo acabado de ouvir a história de vida terrível de Dona Plácida, que ele coagiu a acobertar o caso dele com Virgília, está contemplativo, pensando na crueldade sem sentido que, aos seus olhos, a existência dela tem sido. E então, ele diz, "deu-me a consciência um repelão". Segue um compilado das traduções das duas frases:

Grossman:

1) During the night I did not think about the coin; but the next day, on remembering it, I suffered an attack of conscience, and a voice asked me how the devil a coin could be mine if I had neither inherited nor earned it but had merely found it in the street. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 105)

2) My conscience attacked me, accused me of having overcome Dona Placida's integrity, of having consigned her to an indecent role after a long life of hard work and privation. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 137)

Ellis:

1) That night, I thought no more of the coin; but the following day, remembering the matter, my conscience pricked me and a voice seemed to ask me what the devil made it mine, a coin that I neither inherited nor worked for, but only found in the street. (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 131)

2) Suddenly my conscience gave me a twinge, accusing me of having forced D. Placida's probity to capitulate, obliging her to accept a shameful task, after a long life of hard work and privation. (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 177)

Rabassa:

1) That night I didn't think about the coin anymore, but on the following day, remembering the incident, I felt a certain revulsion in my conscience and a voice that asked me why the devil a coin that I hadn't inherited or earned but only found in the street should be mine. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 85)

2) Suddenly my conscience gave me a tug, accusing me of having Dona Plácida surrender her virtue, assigning her a shameful role after a long life of work and privation. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 116)

As frases são muito parecidas, mas o único dos meus precursores que mantém a escolha de palavra (lembrando aqui do desafio posto ao leitor machadiano, do enxurro e do adjetivo) é Grossman - nas duas ocasiões, ele opta por "attack". Ellis usa uma figura de linguagem parecida - na primeira é "prick", que seria dar uma agulhadinha, e na segunda é "twinge", que está mais para pontada. Já Rabassa fica um pouco no meio do caminho. Na primeira ocorrência, o Brás dele sente uma repulsa interna, e na segunda, a consciência dá um puxão, como se estivesse realmente puxando a manga dele, chamando a atenção para o que ele está fazendo.

Por mais que as diferenças sejam sutis, elas não deixam de ser interessantes, em parte porque é aqui que configuramos a relação, imaginada ou não, entre Brás e a própria consciência. A consciência faz parte dele, como se fosse um órgão vestigial que dá umas pontadas de vez em quando? Ou seria uma figura externa, um anjinho no ombro dele que de vez em quando dá um mata-leão e tenta colocá-lo no caminho certo? É importante isso porque a consciência é quase uma das personagens do romance - ela chega a ser explicitamente personificada mais tarde no capítulo LI, parabenizando Brás por ter agido bem no caso da devolução da moeda. Mas é justamente essa imaginação da consciência como uma dama benevolente que me faz pender mais para o lado da imagem do órgão vestigial que de vez em quando dá uma pontada. A minha tradução foi nesse sentido, "twitch", que, ao contrário de algumas das ações aqui, implica sobretudo um movimento involuntário, tipo uma pequena contração muscular. É uma escolha que pode dar uma dimensão diferente para esse embate entre o protagonista e sua consciência.

Thomson-DeVeaux:

1) That night I thought more of the coin; but on the following day, as I recalled incident, I felt my conscience twitch, and heard a voice asking me why on earth a coin that I had neither inherited earned, but simply found on the street, should be mine. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 116)

2) My conscience suddenly twitched and accused me of having forced Dona Plácida's integrity to give in, obliging her to take on a shameful role after a long life of work and want. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 160)

Sempre que eu me debruço sobre um capítulo do romance em retrospecto, acontece isso - eu como que refaço meu caminho de escolhas, às vezes me arrependo, às vezes não. Neste caso, como voltei na Hemeroteca e vi ocorrências de um fulano de tal levando um "repelão" de um policial, cheguei a pensar que minha escolha foi muito discreta e que o mais próximo aqui seria Grossman, que entende o movimento como um ataque - ou que talvez devêssemos enxergar a consciência de Brás como prisioneira dele mesmo, e usar algo como um dos verbos que os tradutores usamos para descrever o menino Brás se debatendo ao ser arrancado da mesa. Não tenho certeza - nunca vou ter -, mas também não me desagrada a interpretação que acabei imprimindo aqui.

Agora vamos encerrar o tour pelos repelões e voltar para a frase onde tudo começou:

Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo lugar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 122)

Aqui, não é um repelão da consciência, mas de novo aquela frase, o repelão dos nervos. Este é um sentimento enigmático, opaco talvez até para o protagonista, e essa ambiguidade transparece na variedade emocional das traduções:

Grossman:

I shrugged my shoulders and left the room; but, returning after a few minutes and finding the butterfly in the same place, I suddenly became nervous. I grabbed a towel, struck the butterfly, and it fell. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 81)

Ellis:

I gave it my back and left the room; but returning a few minutes later and finding it still in the same position, I felt a wave of anger and, taking a towel, hit it and it fell. (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 97)

Rabassa:

I turned my back, left the room, but when I returned a few minutes later and found it in the same spot I felt a nervous shock. I laid hands on a towel, struck it, and it fell. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 61)

Thomson-DeVeaux:

I shrugged and left the room; but when I returned, minutes later, to find it in the same place, I felt a sudden urge, snatched up a towel, struck it, and it fell. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 83)

Num primeiro momento, o que aparece é uma diferença entre nervoso e nervous - aquele significa irritação e este denota algo mais próximo do medo. O Brás Cubas de William Grossman parece estar sentindo o mesmo medo que ele tinha acabado de desprezar na superstição das duas mulheres; já o de E. Percy Ellis é tomado por uma onda de raiva, e o de Rabassa parece levar um susto. Também queria chamar a atenção para o fato de que a tradução de Ellis é a única das antigas que preserva a unidade da frase, que me parece crucial. É como se fosse um plano-sequência ininterrupto em que Brás dá de ombros, sai, volta, é arrebatado por um sentimento e age imediatamente, realmente sem pensar. Tem uma fluidez ali que é fundamental sentir no movimento da frase.

Como podemos entender esse movimento, essa reação que leva a mão à toalha? Já vimos repelões físicos - como no caso do menino sendo arrastado para fora da sala de jantar -, repelões da consciência e repelões aos nervos desferidos por uma baixela e agora uma borboleta. Não quero sugerir que o termo deva ou possa ser traduzido de maneira uniforme. (Nem eu fiz isso, como acabei mostrando aqui.) Mas esse processo de interpretação entre línguas acaba revelando um arquipélago de incidentes conectados por uma palavra um pouco peculiar.

O repelão é uma pancada silenciosa, uma propensão oculta à agressão. Quando vem de dentro do Brás, pode levá-lo tanto a fazer o bem - a devolver uma moeda, a reconhecer o mal que ele está fazendo a Dona Plácida - como a agir com violência. O que observamos é que ele é impelido por uma espécie de piparote interno. No limite, se poderia ler isso como uma extensão ou uma consequência lógica da violência que ele exerce enquanto membro da elite imperial brasileira, que não dissipa apesar de ser descontada nas pessoas ao seu redor, mas continua ricocheteando pelas paredes de seu corpo e alma.

Esse capítulo, como aliás qualquer um do romance, também serve como uma janela para examinarmos de que maneira, na leitura comparada, você consegue enxergar o estilo de cada tradutor, a estratégia, a abordagem que se manifesta tanto em cada escolha como no conjunto delas. Como já mencionei, fui consultando as outras traduções num documento enorme, com todos os textos lado a lado, e com isso pude ir observando esses sistemas de escolhas, as tendências de cada um.

De novo, em ordem cronológica, temos Grossman (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952.) à esquerda, Ellis (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.) no meio, e Rabassa (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997.) à direita. Numa primeira olhada, dá para ver que há muito amarelo na coluna à esquerda, e dá para fazer algumas observações sobre a abordagem de Grossman, que apontam para sua estratégia global. Primeiro, podemos olhar para a frase sobre o "inventor das borboletas". Brás Cubas imagina que a borboleta deve ter pensado que o pai dele é o "inventor das borboletas", o que, convenhamos, é mais esquisito do que a média.

Grossman acaba glosando as três referências à invenção de três jeitos diferentes - primeiro discovery, depois maker, depois creator. Qualquer um desses - o descobridor das borboletas, o feitor das borboletas, o criador das borboletas - acaba sendo um pouco menos estranho do que o original. Animais de fato se descobrem, na biologia, e daria para pensar num sentido religioso sobre a feitura, a aparição dos animais sobre a face da terra. Mas o twist genial aqui, num romance que tem tudo a ver com a ânsia da inovação, da posse de um produto e sobretudo da utilidade das coisas, é pensar em termos de invenção das borboletas. E isso fica de certa forma neutralizado, como se o tradutor estivesse um pouco incomodado com essa escolha.

O outro bloco de amarelo na coluna de Grossman é uma frase também bem estranha, que fica um tanto menos estranha em sua versão:

Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 123)

Modest in its demands on life, it had been content to fly about and exhibit its special beauty under the vast cupola of a blue sky, a sky that is always blue for those that have wings. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 82)

O que eu vejo nesses dois casos, e na abordagem de Grossman de forma geral, é uma tendência explicativa, explicitativa - o que, na melhor das hipóteses, poderíamos pensar se não contribuiu para a divulgação da obra machadiana ao entregar um primeiro romance com o estilo ligeiramente mais mastigadinho, ou, na pior das hipóteses, dá para dizer que ele periga estragar as piadas.

Em mais um momento no mesmo capítulo, Grossman parece estar tentando minimizar um pouco o vaivém nonsense do pensamento de Brás:

Num primeiro momento Brás pergunta, sobre a borboleta que ele acabou de matar, "Por que diabo não era azul?". Depois pensa que, mesmo que ela fosse azul, talvez ele tivesse matado a borboleta do mesmo jeito - então tanto faz, azul ou preta. Nisso ele dá um piparote, despacha o corpo, e aí diz: "Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul". Grossman mantém essa sequência, mas suavizada de um jeito sutil. Em vez de "não, volto" temos um "sim, mantenho minha convicção". É de fato mais fácil de ler assim, porque nosso narrador não justifica sua mudança de opinião - é algo que acontece dentro dele, no momento de jogar o corpo da borboleta para as formigas. A desvantagem da escolha de Grossman, no entanto, é que acaba por passar a impressão enganosa de que Brás Cubas é um ser minimamente consistente.

Capítulo LVII: Destino

O mesmo problema surge no segundo capítulo que foi sorteado pelo Google e pelo destino, que é o capítulo LVII: Destino. O problema está colocado discretamente aqui, na elipse depois de "não é impossível que":

[...] Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Onde andarás agora, grande procurador dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossível que... Já me não lembra onde estava... Ah! Nas estradas escusas. Disse eu comigo que já agora seria o que Deus quisesse. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 171)

Este é um caso em que um movimento editorial do Machado deixou o texto um pouco opaco, de um jeito que só se consegue reconstruir parcialmente voltando à versão do romance que saiu na Revista Brazileira.

[...] Eis-nos a caminhar sem saber até onde, nem por que estradas escusas; problema que me assustou, durante algumas semanas, mas cuja solução entreguei ao destino. Pobre Destino! Vives ainda, meu velho? Que vontade tenho eu de ir puxar-lhe as barbas! Vi-te, pela última vez, não sei em que melodrama; vinhas sonoro, quase metrificado, caías da boca do herói nas orelhas da heroína. Depois, não me lembro se ainda cheguei a ver-te passar, de corrida, nos discursos comemorativos ou nos versos de missa fúnebre; mas serias outro, meu bom velho, devias estar trôpego, encarquilhado, escangalhado. Onde andarás agora, grande procurador dos negócios humanos? Talvez estejas a criar pele nova, outra cara, outras maneiras, outro nome, e não é impossível que tornes ainda a cair da boca do herói nas orelhas da heroína.... Já não me lembro onde estava... Ah! nas estradas escusas. Pois foi ao destino que eu incumbi de me guiar por elas. E disse comigo que já agora seria o que Deus quisesse.4 4 O trecho aparece na Revista Brazileira n. 5 de 1880, na p. 130 (ASSIS, 1880).

Como se vê, houve um grande trecho omitido aqui depois de "Pobre Destino!", um trecho que era essencialmente uma elaboração da ideia original - mas ao tirar essa segunda parte, Machado prega uma peça na frase que termina com uma elipse. Sem acesso a essa versão anterior do texto, o leitor realmente não tem como saber o que o narrador quer dizer com esse "não é impossível que..." - e isso se salienta nas traduções.

Quem parece sofrer mais com a subtração do final da frase é Grossman, que novamente tenta tirar algum sentido da bagunça e acaba acrescentando uma frase - "humanity seems to have exiled you". Nesse sentido, ele transforma o ambíguo "e não é impossível que…" em "e quando a gente menos espera…" - o que é até uma interpretação razoável para o caminho do pensamento, e seria menos truncado do que a sequência que ficou.

Grossman:

Poor Fate! Old dispenser of human affairs, we do not hear much about you these days; humanity seems to have exiled you. Maybe you are taking on a new skin, a new face, new manners, a new name, and when we least expect you... I forget where I was… Oh yes, in hidden paths. (ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952., p. 112)

Ellis, Rabassa e eu acabamos mantendo essa elipse, que de fato não faz muito sentido - é como se realmente estivéssemos tentando acompanhar o caminho do pensamento de alguém que está meio confuso e não quer gastar o tempo de se explicar. Mas já que consegui seguir o fio da meada e esse caso me pareceu interessante, optei por traduzir o trecho que tinha sido omitido e colocar numa nota de fim de livro.

Ellis:

Poor Fate! Where are you wandering now, great dealer in human affairs? You may be putting on a new skin, a new face, other manners, under another name, and it is not at all impossible that... I forget where I was… Ah! yes, in devious ways. (ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 141)

Rabassa:

Poor Fate! Where can you be walking now, great supervisor of human affairs? Maybe you're growing a new skin, a different face, different ways, a different name, and it's even possible that… I forget where I was... Ah, yes, on secret roads. (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997., p. 92)

Thomson-DeVeaux

Poor Fate! Where are you now, great solicitor of human affairs? Perhaps off creating a new skin, another face, other manners, a different name, and perhaps . . . Now I can't remember where I was . . . Ah! Down the devious byways. (ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. , p. 126)

Para além desse buraco que ficou no parágrafo, há uma frase interessante aqui que provoca divergências: estradas escusas. Essas estradas viram paths, roads, ways, e byways - ou seja, elas exibem uma grande variedade de concretudes possíveis. Imaginamos que se possa estar falando tanto de estradas literais, ruas pelas quais Brás segue para tentar minimizar o contato com conhecidos, como de estradas metafóricas - o caminho que esse casal ilícito está traçando.

Nisso, o adjetivo "escuso" traz uma camada excelente a mais, porque pode designar tanto um lugar pouco frequentado como algo moralmente suspeito. Quando fui conferir meus rascunhos, vi que a primeira opção que eu tinha escolhido era obscure, pensando em ruas pouco frequentadas e talvez pouco iluminadas. Foi só ali na sexta versão que acabei indo para devious, acredito que por sugestão dessa versão do E. Percy Ellis - porque devious é uma palavra que pode significar tanto um caminho meio labiríntico e sinuoso para se chegar a um determinado lugar como alguém mal-intencionado e disposto a lançar mão de quaisquer métodos para atingir os fins desejados.

CLII. A MOEDA DE VESPASIANO

E o terceiro número sorteado foi o 152 - o que nos leva ao capítulo CLII e à moeda de Vespasiano. Neste caso, podemos observar tanto a forma de cada tradutor trabalhar a alusão central do capítulo como uma questão de ritmo das frases.

A história da moeda de Vespasiano, para quem não sabe - eu não sabia antes de ler Memórias póstumas -, é a seguinte: segundo Suetônio, que Brás Cubas já citou por aqui, o imperador Vespasiano resolveu baixar um imposto sobre os banheiros públicos de Roma. Quando o filho dele, Tito, achou isso completamente indigno e resolveu reclamar, o pai pegou numa moeda de ouro, enfiou debaixo do nariz do filho e perguntou se fedia. Ele disse que não, e Vespasiano falou: "E, no entanto, vem da urina". Essa teria sido a origem da frase "Pecunia non olet" - ou "dinheiro não tem cheiro" - que Machado parafraseia aqui: "a taxa da dor é como a moeda de Vespasiano; não cheira à origem, e tanto se colhe do mal como do bem".

Aqui, deixei as cores originais na esperança de ficar mais claro. A magenta é a parte da alusão em si; dá para ver em amarelo que Grossman novamente expande e como que traduz duplamente essa alusão compacta, explicando que "não tem nada nela que possa sugerir a aceitabilidade ética ou não de sua origem". Ele também glosa "moeda" aqui e no título do capítulo por "renda".

Passando para a direita, a tradução de Ellis é tão confusa que eu tenho por mim que ele realmente não tinha essa referência do Vespasiano, porque parece que ele está descrevendo outra coisa. Por fim, Rabassa opta por uma solução concisa, que foi muito próxima à minha. A maior diferença, nesse caso, seria paratextual: acabei incluindo uma nota de fim de livro para explicar a alusão e a história de Vespasiano.

Essa é a parte, digamos, mais visível do esforço de tradução do capítulo, mas eu queria chamar a atenção de vocês para algo um pouco mais sutil. É na primeira parte do capítulo, logo antes do trecho que acabamos de ver.

Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono. Acendi um charuto; afastei-me do cemitério. Não podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro nem dos ouvidos, os soluços de Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 345)

O uso do ponto e vírgula aqui, e em outros capítulos também, é algo que só cheguei a entender mais plenamente quando reparei na ausência dele. Coloquei algumas letras maiúsculas em amarelo na tradução de Rabassa porque fui vendo que, no romance como um todo, ele tem uma tendência a transformar vírgulas e pontos e vírgulas em pontos-finais, o que se observa aqui. O efeito é discreto, mas eu vejo a vinculação dessas frases com ponto e vírgula como um movimento quase cinematográfico, de uma conexão elíptica entre as ações.

Num primeiro momento, a ação é concreta - se percebe a ausência de outras pessoas no cemitério, depois temos a partida de Brás - e em seguida tem uma transição para a reflexão interior. Este é um de vários casos em que o romance aproveita o tempo do deslocamento para trazer um recheio filosófico:

Não podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro nem dos ouvidos, os soluços de Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 345)

E o terceiro ponto e vírgula vem assim, para emoldurar a reflexão:

Eis uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil. (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 345)

A função do ponto e vírgula aqui é múltipla. Ele serve quase como um anticlímax desse grande problema que Brás se coloca, porque é um enigma que não chega a durar nem duas frases - ele vende como uma combinação difícil e imediatamente resolve dizendo que é fácil -, e o ponto e vírgula também encerra de forma suave o espaço-tempo do deslocamento. A gente quase sente a simultaneidade da chegada do carro dele e a conclusão do pensamento.

Das traduções, só a de E. Percy Ellis mantém esse ponto e vírgula, e todas se enrolam um pouco justamente com a parte da frase que tem a ver com o trajeto. E não digo isso para apontar o dedo; quando acontece algo assim, invariavelmente é um alerta de que Machado está fazendo algo muito interessante. É que o problema de Brás tem exatamente a duração do caminho do cemitério S. João Batista até a casa dele - e, enfim, não sabemos em qual rua ele mora, mas não é possível que seja um caminho muito longo. O fato de conseguirmos ancorar essa reflexão, Vespasiano, o luto, a natureza, no espaço-tempo desse caminho percorrido é mais um desses casamentos do alto com o baixo, do elevado com o cotidiano, do "difícil" com o "fácil" que são a alma do espírito do romance. E foi só lendo as traduções de forma comparada que eu fui perceber isso.

VII. O DELÍRIO

Para encerrar, não consigo fugir inteiramente daquele capítulo que primeiro me arrebatou enquanto leitora de Machado de Assis. Eu, assim como tantos outros, fui raptada pelo hipopótamo falante, pela enxurrada de imagens, do capítulo do delírio, e é realmente fascinante ver numa leitura comparada como os tradutores lidam com o desafio de traduzir aquilo que o narrador diz que escapa aos seus poderes de descrição. Ao longo do texto, o narrador vai reforçando o quão espantosa é a visão que ele está encarando e o quão difícil é capturar aquilo em palavras.

A chave dessa percepção que transborda para além da expressão, que vem acompanhada do que daria para chamar de uma nonchalance desumana ou talvez pós-humana, talvez esteja numa curta frase no meio da descrição do delírio. Brás explica que ele consegue enxergar detalhes no meio daquele turbilhão porque "os olhos do delírio são outros" (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 53):

because the eyes of delirium are not like other eyes (Graham [ASSIS, 1945______. Delirium. Memórias póstumas de Bráz Cubas. Tradução de Patricia F. R. Graham. Juventude Unida, p. 1-2, n. VII.23, 1945.])

because the eyes of delirium have a virtue of their own (Grossman [ASSIS, 1952______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952.])

owing to the manner of sight in delirium (Ellis [ASSIS, 1955______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.])

because the eyes of delirium are different (Rabassa [ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997.])

as delirium lends one different eyes (Thomson-DeVeaux [ASSIS, 2020b______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b. ])

Para esse capítulo em particular, pude consultar quatro versões que precederam a minha - porque a primeira tradução publicada de qualquer trecho de Memórias póstumas de Brás Cubas foi uma tradução parcial feita por uma mulher chamada Patricia Fitz Randolph Graham. Ela traduziu justamente o capítulo do "Delírio", que saiu numa publicação estudantil chamada Juventude Unida em 1945. A revista só circulou no Brasil, mas consegui consultar um exemplar na Biblioteca Nacional (ASSIS, 1945______. Delirium. Memórias póstumas de Bráz Cubas. Tradução de Patricia F. R. Graham. Juventude Unida, p. 1-2, n. VII.23, 1945.).5 5 A tradução saiu na edição 23 da revista, e foi publicada posteriormente como um livreto avulso.

A frase em si não tem grandes enigmas, e as traduções não variam tanto. A diferença maior e mais evidente é que Grossman, que me parece uma pessoa geralmente otimista, acrescentou algo ali - que os olhos do delírio têm virtudes próprias. E eu gostaria de acreditar, como abri aqui dizendo que o tradutor é um leitor muito particular, que os olhos da tradução são diferentes e que têm virtudes próprias. Por mais que não sejam capazes de "fixar o relâmpago" e dar conta do turbilhão, esses olhos podem ajudar a lidar com o "enxurro perpétuo" que se abate sobre o leitor, retardando um pouco o fluxo a ponto de conseguirmos observar algumas coisas curiosas. Essas leituras múltiplas e sobrepostas de passagens ambíguas podem acabar revelando não só as interpretações latentes no texto, mas também, num nível muito concreto, como os temas e características de uma determinada obra se fazem presentes nos detalhes mais mínimos do texto. Pelo menos é a minha esperança, e minha aposta, ao ter levado vocês num pequeno passeio por alguns desses detalhes.

E, por fim, não queria deixar a data passar batida - hoje é dia 19 de outubro, e amanhã nosso Brás Cubas faria 217 anos, se ainda estivesse entre nós.6 6 "E eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram?" (ASSIS, 2014, p. 58). E é claro que ele está.

Referências

  • ASSIS, J. M. Machado de. Memórias postumas de Braz Cubas. Revista Brazileira, Rio de Janeiro, 1880.
  • ______. Delirium. Memórias póstumas de Bráz Cubas. Tradução de Patricia F. R. Graham. Juventude Unida, p. 1-2, n. VII.23, 1945.
  • ______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William L. Grossman. New York: Noonday, 1952.
  • ______. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.
  • ______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York: Oxford University Press, 1997.
  • ______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • ______. Posthumous Memoirs of Brás Cubas: A Novel. Tradução de Margaret Jull Costa e Robin Patterson. New York: Liveright, 2020a.
  • ______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Flora Thomson-DeVeaux. New York: Penguin Classics, 2020b.
  • MICHAELIS, H. A New Dictionary of the Portuguese and English Languages: Enriched by a Great Number of Technical Terms Used in Commerce and Industry, in the Arts and Sciences, and Including a Great Variety of Expressions from the Language of Daily Life. Rio de Janeiro: Laemmert & Co., 1908.
  • 1
    Palestra proferida na Universidade de São Paulo no dia 19 de outubro de 2022.
  • 2
    O chefe do departamento de publicações do INL na época era Chrisanto ou Crisanto Martins Filgueiras, documentado como fazendo parte da mesma comunidade evangélica que Ellis, de acordo com o livro Os Irmãos, de Silas G. Filgueiras.
  • 3
    Teatro costumbrista brasileño, traduzido pelo uruguaio Walter Rela em 1961.
  • 4
    O trecho aparece na Revista Brazileira n. 5 de 1880, na p. 130 (ASSIS, 1880ASSIS, J. M. Machado de. Memórias postumas de Braz Cubas. Revista Brazileira, Rio de Janeiro, 1880.).
  • 5
    A tradução saiu na edição 23 da revista, e foi publicada posteriormente como um livreto avulso.
  • 6
    "E eis aqui como chegamos nós, sem esforço, ao dia 20 de outubro de 1805, em que nasci. Viram?" (ASSIS, 2014______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014., p. 58).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jun 2023
  • Aceito
    12 Jul 2023
Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 sl 38, 05508-900 São Paulo, SP Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: machadodeassis.emlinha@usp.br