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MACHADO DE ASSIS: DOIS DEFUNTOS-AUTORES

MACHADO DE ASSIS: TWO DEAD-AUTHORS

Resumo

O presente estudo tem como objetivo construir um diálogo a partir dos narradores de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, publicados por Machado de Assis, em 1881 e 1889, respectivamente. Para tanto, baseando-se nos estudos e na crítica construída entorno desses livros, em especial, nos textos de Souza (2006)SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006., Hansen (2008)HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., Schwarz (2000)SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. e Caldwell (2008)CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., a análise partirá das relações entre os narradores-protagonistas com as duas figuras femininas de maior destaque nos romances, respectivamente, Virgília e Capitu. Desse modo, ambas são aproximadas das musas da Antiguidade (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.; KRAUSZ, 2007KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007.), uma vez que fazem desses "homens comuns" enunciadores de seus passados, reconstrutores de inúmeros fragmentos que compõem ambos os romances.

Palavras-chave:
Narrador; Dom Casmurro; Memórias póstumas de Brás Cubas

Abstract

The present study aims to build a dialogue from the narrators of Memórias Póstumas de Brás Cubas and Dom Casmurro, published by Machado de Assis, in 1881 and 1889, respectively. Therefore, based on studies and criticism built around these books, especially on the texts of Souza (2006)SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006., Hansen (2008)HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., Schwarz (2000)SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. and Caldwell (2008)CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., the analysis will start from the relationships between the narrators-protagonists and the female figures in the novels, Virgília and Capitu, respectively. In this way, both are similar to the muses of Antiquity (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.; KRAUSZ, 2007KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007.), since they make these "common men" enunciators of their pasts, reconstructs of countless fragments that make up the novels.

Keywords:
Storyteller; Dom Casmurro; Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desde a transição da cultura oral para a cultura escrita, aprendemos a partir dos clássicos da literatura grega que a musa é a fonte nascente de toda a inspiração artística, por configurar-se como o feminino da organização, da criação, e o amparo do aedo1 1 O termo aedo é utilizado neste texto em analogia à tradição de contação de histórias da Antiguidade. A noção de memória está entre os assuntos mais estudados nas universidades, principalmente a relação entre os acontecimentos do passado e os acontecimentos subjetivos implicados nessa lembrança. Desse modo, havia uma dependência da memória antiga, contada pelos poetas, os contadores das histórias do passado, e os únicos que tinham contato com as musas, as filhas da memória (HAVELOCK, 1996). Entendidos como aedos, isto é, como propagadores de suas histórias, Bentinho e Brás são lidos a partir do contraste vivido com suas musas, respectivamente, Capitu e Virgília. para que se regule o caos. Com isso, de fato, é essencial pensarmos na projeção das mulheres que são descritas nos romances em primeira pessoa de Machado de Assis (1839-1908): Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899).

Ao propor, ao leitor, um texto sobre um diálogo entre esses dois narradores, pretendemos demonstrar como as nuances de cada protagonista, ao lidar com a figura feminina por quem se apaixonam, constroem-se, em seu antagonismo, a partir da imagem de uma musa.2 2 De modo geral, todas as musas são associadas a uma forma de persuasão, mas nunca a uma persuasão intelectual: sempre pressupõem uma sedução, uma envolvência (que se dá com a beleza). As pessoas envolvidas pelas musas têm grandes capacidades de gerar (ideias), ou até mesmo a fecundidade, pois não há separação entre a fecundidade física e a intelectual (luxúria, exaltação e domínio da vida). Portanto, tudo colabora para o universo de sedução das musas. Essas mulheres são entendidas como inspiradoras da vida cotidiana, ao passo que têm suas índoles atacadas por seus respectivos narradores e, de alguma maneira, também são enaltecidas por eles. Queremos pensar as musas de Machado de Assis com sua retórica clássica que, em sua imagem, desperta em dois homens diferentes - Brás Cubas e Bento Santiago - o exercício de suas profissões de "advogar" a favor e/ou contra essas mulheres. Essa estratégia toma forma tornando-as figuras maiores do que a própria narrativa.

Ronaldes de Melo e Souza faz considerações muito relevantes sobre uma característica essencial vista em ambos os romances citados, fitando, para tanto, o tipo narrativo encontrado: "1º) o eu narrante (o narrador) e o eu narrado (o protagonista) são um e o mesmo; 2º) entre o narrador e o protagonista interpõe-se uma distância temporal; 3º) a distância temporal acarreta metamorfose existencial" (SOUZA, 2006SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006., p. 108). A partir dessa enumeração, o crítico vai designar esse singular narrador de Machado de Assis como "defunto autor", em consonância com o denominado pelo próprio romancista nas páginas iniciais de Brás Cubas:

A invenção machadiana do defunto autor como mediador dos eventos narrados articula o travejamento estrutural de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. As duas obras-primas de Machado de Assis se notabilizam, no contexto literário nacional e internacional, como romances de memórias póstumas. O estatuto ambivalente do narrador desdobrado no encenador e no ator do drama de sua vida singulariza a situação narrativa dos romances machadianos de primeira pessoa (SOUZA, 2006SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006., p. 139).

Por isso, queremos pensar neste texto nos dois narradores de Machado de Assis, pertencentes a uma mesma estética, porém, considerando-os de maneiras distintas nas suas construções individuais. Isso se dará ao perceber na "metamorfose" dos protagonistas o olhar para as mulheres que nos romances se constituem como suas musas. Ainda sobre Dom Casmurro, uma assimetria parece delinear-se suficientemente bem para que possamos perceber a construção desses narradores, como demonstrado por Ronaldes Souza (2006SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006., p. 139-140):

O eu narrante e o eu narrado de Dom Casmurro são um e o mesmo. Ocorre que, devido à metamorfose resultante da distância temporal, o narrador difere tanto do protagonista Bento Santiago, que se torna um outro eu, e tão outro, que assume a alcunha de Dom Casmurro como denominação apropriada à condição póstuma do sujeito abstraído das vicissitudes dramáticas da vida pretérita. No primeiro capítulo, destinado a esclarecer o título do romance, o narrador adverte que não se utiliza o termo casmurro na significação lexicográfica, mas na acepção popular do "homem calado e metido consigo mesmo", que se decreta ausente do mundo propriamente humano. O narrador se caracteriza como observador mortalmente confinado na periferia do universo em que se exerce a experiência comum dos homens ao reconhecer, no capítulo segundo, que falta a si mesmo e ao confessar que pretende escrever uma História dos subúrbios. Ao sujeito situado no espaço exterior ao núcleo da vida corresponde a narrativa suburbana. À margem do centro pulsional dos interesses vitais, o narrador se reduz ao nível infra-ôntico do sobrevivente que não subsiste, senão como sombra do que foi.

A esse respeito, podemos destacar um importante fator sobre ambas as narrativas, pois, conforme pontuado por João Adolfo Hansen (2008HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177.), esses romances apresentam uma estrutura retórica ainda não difundida entre os leitores de seu tempo, os quais esperavam dos livros, senão a verdade, pelo menos a verossimilhança. Desse modo, enquanto Bentinho narrava baseado em suas memórias (sendo assumidamente o portador de uma memória ruim), Brás era um "morto" que escrevia.3 3 A tradição grega considerava que só tínhamos certeza daquilo que experimentávamos, o resto era rumor, rumoração. A relação entre musas e aedos dava-se quando estes chamavam-nas para perguntar o que vinha pela frente. E o que vinha pela frente era o que elas poderiam lembrar. Dessa forma, a musa depende do aedo que a invoca, e esse aedo se reduz a um porta-voz; mas, mesmo como porta-voz, ele é imprescindível, pois a deusa só fala ao eleito, e é ele quem enuncia. Como especialistas em memorização, donos de uma memória fidedigna, esses poetas eram certificados pelas musas, uma vez que, por meio da comunicação com elas, podem saber de tempos diferentes, povos remotos. O que elas (as musas) fazem no Olimpo (presidir as festas) é o que o aedo faz entre os homens (já que é um substituto das musas entre os homens). Nesse ponto, há a demonstração clara de como Bentinho, enquanto narrador, desviava-se retoricamente desse ideal do aedo tradicional, dono de uma memória sólida, pois continuamente se contradiz ou afirma ser acometido de omissões. Sendo assim, trata-se de uma literatura moderna cuja direção narrativa produzia uma imprevisibilidade que desnaturalizava os modos habituais de ler, para tanto, cabendo também ao leitor desconfiar e perceber que "ou o personagem mente, ou [...] que é inepto, ou [...] que lhe está propondo outro esquema retórico, outro gênero literário e outra legibilidade" (HANSEN, 2008HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 151).

Até o ano de 1960, e a publicação de O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro, por Helen Caldwell, nem os leitores nem a crítica de Dom Casmurro desconfiaram ou reconheceram a técnica retórica do romance, pois se encontravam continuamente voltados para o enredo (e para "o que ele quis dizer"), e não para a crítica ou os modos de ler (HANSEN, 2008HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 150).

Em Memórias póstumas de Brás Cubas, por sua vez, o que seria verossímil perante os preceitos aristotélicos de "semelhante ao verdadeiro" não está em questão, pois a ficção dissolve o princípio de causalidade da verossimilhança. Desse modo, ainda segundo Hansen (2008HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 153), o sentido e a noção de realidade da história narrada são críticas e destroem "as semelhanças previsíveis que pressupõem a naturalidade e a normalidade das 'opiniões verdadeiras'". Já em Um mestre na periferia do capitalismo, Roberto Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.) evidencia como as inquietações de Brás são tão postiças quanto sua condição de defunto. Para o crítico literário, as poses do narrador-defunto "não se destinam a enganar, nem ocultam nada. Não se trata portanto de crer nelas, de buscar a sua verdade ou coerência, mas de lhes admirar o descaramento, o virtuosismo com que são manejadas" (SCHWARZ, 2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 15). Ao mesmo passo que Brás ilustra um modo de ser respeitoso, também escarnece dele, sempre combinando prestígio e desprestígio. Tamanha artimanha age, segundo sua noção irônica e fútil de importância, como um triunfo para os próprios méritos retóricos do autor-defunto, e também para que ele ria de seu caráter desfrutável (SCHWARZ, 2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 16).

Ainda que de maneiras diferentes, esses dois homens narradores tentam demonstrar ao leitor quem é o líder da horda, o homem, o masculino; ou aquele que detém o poder, que é o mestre. Em O que é um homem?, Pedro Ambra (2021AMBRA, Pedro. O que é um homem? psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2021.) menciona que "Mestre" (maître: palavra escolhida por Lacan) também pode ser traduzido como "amo" ou "senhor". Por conseguinte, também se esforça a determinar que o histérico é aquele que domina pela fala, seja ele o homem ou a mulher, sendo, dessa maneira, capaz de controlar o espaço e ser "um representante da representação" (Vorstellungsrepräsentanz):

Aqui, encontramos novamente uma aproximação com o tema das diferenças sexuais contra o pano de fundo da História, quando Lacan, ao comentar as Estatuetas de Vênus do paleolítico superior, afirma que se tratava de uma época em que "talvez ainda não houvesse complexo de Édipo" e, mais ainda, que Vorstellungsrepräsentanz variaria conforme as eras. Podemos entender que homem e mulher, nesse momento, não são próximos àquilo que podemos denominar uma identidade de gênero, tampouco um regime de gozo. Mas igualmente não está mais em jogo aqui concebê-los a partir da premissa de ter ou ser o falo. Trata-se, antes, de representantes da representação em relação aos quais o sujeito iráposicionar-se (AMBRA, 2021AMBRA, Pedro. O que é um homem? psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2021., p. 43).

O que cabe aqui adiantar, senão a vontade de ambos os narradores por delimitar seu papel de Mestre, é que Brás afirma desde a infância ser incontrolável e travesso - o menino diabo que tem o tio miliciano como a figura de respeito, enquanto o pai é visto como "o bonachão" querido por todos. Já Bentinho, com sua narrativa, empenha-se para provar a si mesmo quem é o homem, a persona apta para ser o outro da mãe. Dito de outra forma, ambos estão unidos na tentativa de (tentar) representar uma figura masculina em posição de poder.

Cumpre sublinhar que em ambos os romances de Machado de Assis temos narradores homens, membros da alta sociedade carioca, bacharéis em Direito, cujas posições de autoridade na narrativa são destacadas desde o ponto de vista privilegiado. Esses narradores-personagens, todavia, são figuras masculinas que se curvam, mas também se contrapõem às figuras das duas mulheres por quem se apaixonam. Ao passo que Bentinho consegue, de fato, consumar o amor, casando-se com Capitu, a posição de Brás é de amante; chega a frequentar assiduamente a casa de Virgília, e até a travar relações próximas com Lobo Neves (marido de sua amada), no entanto, mesmo que se opusesse ao marido, não tem coragem de enfrentá-lo.

Brás Cubas, apesar do grau de bacharel, não chega a ter nenhuma conquista profissional relevante, não exerce a profissão nem alcança os sonhos que o pai almejava para ele. Como literato, é medíocre. Não se tornou um advogado conhecido, nem chegou a tomar posse da cadeira como deputado, embora o desejo o perseguisse na vida. A morte ainda impede que o Emplasto Brás Cubas o torne célebre, ou que novamente seja demonstrada sua inutilidade para os projetos.

Fútil, Brás Cubas leva a vida movido por seus caprichos, principalmente no que diz respeito às mulheres com quem se envolve. Seduziu Marcela porque era a mais bonita; para tanto, fez uso do dinheiro, ciente de que comprava não só sua companhia, mas também seu amor. Interessante destacar que quem acompanhou Brás à casa de moças na juventude foi o tio João; essa peculiaridade na narrativa será frutífera em nosso percurso, porque essa figura masculina, militar da infantaria e tão diferente do seu pai, a todo momento se mostra como referência de virilidade. A iniciação sexual e afetiva de Brás começa em uma ceia de moças em "Cajueiros", acompanhado desse tio. O curioso capítulo XIV, "O primeiro beijo", inicia-se com uma cena acalorada de demonstração de virilidade:

Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e resolutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula. Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia bem se eram uma criança com fumos de homem, se um homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo garção, lindo audaz, que entrava na vida de botas e esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar ao castelo medieval, para dar com ele nas ruas do nosso século (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 37).

Antes de prosseguir com nossa análise, o leitor precisa concatenar o resgate do cavaleiro medieval que é feito pelo narrador. Se no romance de Dom Casmurro, Bentinho tem pavor e um medo imensurável de cavalos, nota-se que a imagem do cavalo está atrelada à relação de poder em Memórias póstumas de Brás Cubas, pois, no mesmo capítulo da citação acima, foi o tio João quem despertou toda a admiração de virilidade e o caráter que Brás almeja ou enseja conquistar. Vemos, assim, a imagem de um homem viril em seu digno cavalo, em uma grande posição de prestígio e poder. Qualquer figura que o afastasse desse caminho é vista com uma tragicômica narração de desdém. Um claro exemplo é o envolvimento com Eugênia, pois se baseia em um misto de maldade e vaidade; achava-a bonita, mas inferior a ele, tanto social como fisicamente: "O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?" (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 57).

No caso de Virgília, há uma ambiguidade: a mulher que o rejeita para o casamento é a mesma que o aceita como amante anos depois. A rejeição, contudo, não lhe provoca mais do que um ardente despeito e, movido pela própria vaidade, Brás não hesita em conquistá-la, como se a ideia de ser um perdedor tentasse reparar ou compensá-lo de alguma maneira. A definição de Virgília como uma musa, em Memórias póstumas de Brás Cubas, surge na juventude do protagonista, mas é indicada ao leitor no início da narrativa, quando, ao narrar o leito de morte, destaca a senhora próxima à cama, aquela que "padeceu mais do que uma parenta" (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 19). Sua relação com ela começa quando, instigado pela ambição do pai, concorda em conhecer a moça que poderia oferecer tanto uma vida repleta de encantos como um bom negócio: o de um Cubas na política.

Apesar das expectativas, dos beijos trocados, Virgília escolheu outro candidato: Lobo Neves, que apareceu de repente, mas muito determinado a ficar não só com a noiva, mas também com a candidatura. Sarcástico, Brás ressalta que o outro não era nem mais bem-apessoado, nem mais simpático do que ele; por outro lado, era mais inteligente, pois, enquanto o pavão (ele) se preocupava em se exibir, a águia (Lobo Neves) foi astuta e ficou com a mão da moça:

Desde então fiquei perdido. Virgília comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia, deixando o pavão com o seu espanto, o seu despeito, e três ou quatro beijos que lhe dera. Talvez cinco beijos; mas dez que fossem não queria dizer cousa nenhuma. O lábio do homem não é como a pata do cavalo de Átila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o contrário (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 64).

As metáforas dispostas por esse narrador no texto, em uma primeira análise, são sempre ácidas e demonstram a ironia como Brás expõe as relações humanas: a erva pisada pelo cavalo de Átila não tornava a crescer, mas os lábios beijados pelo homem tornavam-se a se oferecer a outros lábios! Para Roberto Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 94), nessa comparação, "nota-se que o namorado desiludido lamenta a diferença, pois se lábios pisassem como cascos, a fidelidade amorosa estaria assegurada, o que não deixa de lançar luz sobre certa dimensão selvagem do mandamento monogâmico". No entanto, Brás não lamenta porque tinha muito interesse por ela (ele mesmo assume que não, pois crê só poder amar a mesma mulher uma vez, e só a amou anos depois), mas por orgulho, por despeito. Se Virgília amou-o àquela época, ou se casou apaixonada pelo marido, não diz, apenas insinua que o casal (ambos ambiciosos) havia unido interesses. Para casar - e casar bem - vale tudo. Contudo, toda essa pompa e preciosismo do narrador esconde uma mediocridade, a acidez de seus comentários ergue-o, põe-no em um degrau maior que os demais, mas camufla os poucos méritos da jornada atroz do protagonista.

Determinado a dar uma função pública ao filho, não por preocupação financeira, o senhor Bento Cubas procura dignificar em vários aspectos o sobrenome da família. É o mesmo orgulho do pai que está no filho, aquele sentimento de se considerar merecedor de todo o brilho que possuíam, quase que também acreditando no passado ilustre (e inventado) dos Cubas. Ora, se a família conquistou de maneiras obscuras o dinheiro ostentado em jantares e luxos dos parentes, faltava-lhe ainda a dignidade da elite que enviava seus herdeiros para conquistar um diploma respeitável no exterior: "um Cubas!", dizia o pai. Porém, vale lembrar que Brás foi enviado para Portugal às pressas, porque estava gastando dinheiro demais com Marcela; e, na universidade, seu desempenho acadêmico foi deplorável, tornando-se um bacharel medíocre. Dessa maneira, a troca feita por Virgília afeta pai e filho quase da mesma forma, uma vez que se resume ao ego ferido pela arrogância de quem acredita ser maior do que, de fato, é.

Quando me lembrava do Lobo Neves, que era já deputado, e de Virgília, futura marquesa, perguntava a mim mesmo por que não seria melhor deputado e melhor marquês do que o Lobo Neves - eu, que valia mais, muito mais do que ele - e dizia isto a olhar para a ponta do nariz… (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 67).

Ao pedante Brás, nenhuma tentativa de rever seus atos é possível, mesmo diante de tamanho resgate do passado que suas memórias proporcionam. A universidade que cursou mal, de modo precário ou feita com certo descuido, apenas alimentou mais sua autoestima de pavão; apesar disso, o narrador permanece inabalável, satisfeito com seu modo de ser, sem se sentir inapto a nada.

Convém retornar a uma questão inicial apresentada neste texto, isto é, a de que Brás toma e estabelece Virgília como sua musa. De início, pode-se destacar o momento da narrativa quando seu pai falava dos planos de casá-lo e Brás rabiscava um nome: Virgílio, em referência ao poeta antigo. Indulgente, o pai se diverte com a coincidência dos nomes; contudo, duas interpretações podem ser destacadas: a configuração da musa como inspiração e a competição travada com o poeta. Dentre as definições da musa, podemos destacar que ela pressupõe uma envolvência que pode agir tanto como fecundidade intelectual quanto como sedução física (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.; KRAUSZ, 2007KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007.). De fato, Virgília exercia um poder sedutor sobre Brás, tendo sempre o controle da relação. Por outro lado, a futilidade de Brás Cubas aproximava-se da emulação; isso porque, tendo também flertado com as musas, ele tem o ego tão inflado que não só imita, como se crê poder competir com Virgílio e outros poetas antigos. Acerca disso, as musas da antiguidade representavam um elo sublime aos homens, pois eram "guardiãs do passado e do futuro", como afirma Krausz (2007KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007., p. 16):

Se a poesia e a música são o âmbito de divindades - as Musas, patronas de toda a beleza e de toda sabedoria -, os poetas são os eleitos das deusas que decidiram, como narra Hesíodo na Teogonia, fazer de homens comuns, e independentemente da vontade destes, conhecedores privilegiados do sublime.

Interessa-nos perceber como Virgília e Capitu fazem desses "homens comuns" enunciadores de seus passados, reconstrutores de inúmeros fragmentos. Tal fenômeno é possível por haver por trás de ambos os narradores as personagens-musas que, mesmo tendo suas índoles atacadas, são maiores do que aqueles que organizam e/ou descrevem essas memórias. Isso se dá porque as duas mulheres ocupam um papel de centralidade nas histórias à medida que também se destacam e são fundamentais para a narrativa. Todavia, na Antiguidade, como filhas da memória, as musas eram chamadas em auxílio para a construção e o amparo na preservação de tais monumentos, o que se registrou desde a tradição oral (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.).

Há uma dependência do aedo (em relação às musas) ao narrar as grandes histórias,4 4 A relação entre o aedo e as musas é de mediação, pois ele descreve/canta a partir do que elas lhe ensinaram. Desse modo, ele é um executante, não um autor das histórias e/ou cantos, transmitindo à audiência os versos que não são dele, mas sim derivados de uma "fonte exterior a si próprio, uma fonte a quem ele chamou 'musa'" (HAVELOCK, 1996, p. 32). assim como esses narradores nos fazem dependentes de suas versões. Em Memórias póstumas de Brás Cubas parece claro que Virgília enxerga em Brás Cubas uma mediocridade para o matrimônio, vendo nele apenas a imagem do amante. Se Brás julgava valer mais que Lobo Neves, faltou à sua amante perceber. Todavia, há nele a tendência a deixar seus planos de lado: assim como o casamento, o mesmo ocorreu com o desejo de obter uma cadeira política.

O retorno de Virgília ao Rio de Janeiro, anos depois do episódio de namoro e corte, reacende em Brás o desejo de conquistá-la. Por despeito, por amor ou pelo prazer da conquista, não sabemos; mas torna-se amante, justamente, da mulher que o pai havia escolhido para ele. É um primo de Virgília, Luís Dutra, "que também privava com as musas" (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 67), quem comunica Brás do retorno da jovem à capital. O personagem-narrador, que a tudo reagia sempre "a olhar para a ponta do nariz", aos poucos começa a travar relações com a antiga namorada e a nos proporcionar uma série de impressões, ora do personagem Brás, ora do narrador defunto.

Para Schwarz (2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 87), se comparada a Lobo Neves e Brás Cubas, Virgília não é uma criatura diminuída, pois, ao passo que o amante e o marido vivem sempre a "compensarem-se" mutuamente, ela quer tudo o que pode ter, e nisso "se incluem as audácias da elegância moderna tanto quanto as vantagens da situação tradicional". A inconstância de Virgília, para o crítico, agrega um encanto a mais àquela figura feminina: por que optar quando poderia ter um e outro? Fundava-se nesse ponto do caráter dela, por exemplo, sua recusa a fugir com Brás e, em vez disso, a opção de alugar uma casinha onde poderiam se encontrar. Dessa forma, tanto não abriria mão do casamento, da consideração pública e da solidez da estrutura familiar, como também teria a liberdade amorosa e os prazeres que o amante oferecia. Se contrariada ou obrigada a optar, reagia mal, assim como a classe dominante à qual pertencia, nada acostumada a não gozar de seus privilégios, seja de mandonismo, escravidão ou vida moderna (SCHWARZ, 2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000., p. 88).

Na ocasião da morte de Brás, manteve-se o mistério de sua identidade: "Contentem-se de saber que essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade, padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa" (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 19). Aquela senhora em cujos cabelos começavam a apontar os primeiros fios brancos, namorada e amante da juventude, apesar dos anos que os distanciou, sofria. Em outra morte, Brás também esteve próximo à Virgília: na de Lobo Neves, o marido. É curioso o paralelo entre ambas: em uma delas, era a viúva que padecia copiosamente; na outra, a ex-amante que, na opinião do vaidoso Brás, sofria mais do que se fosse da família. Assim, tenta, à sua maneira, convencer-se de que Virgília sentiu ainda mais pela sua morte que pela do marido, mesmo que a moral e os bons costumes a impedissem de rolar pelo chão, convulsa e enlouquecida pela dor (como ele gostaria que ela fizesse). No enterro de Lobo Neves, a figura de Virgília não só chama sua atenção, como a própria dor demonstrada por ela é vítima de sua ironia:

Tinham ido todos; só o meu carro esperava pelo dono. Acendi um charuto; afastei-me do cemitério. Não podia sacudir dos olhos a cerimônia do enterro nem dos ouvidos, os soluços de Virgília. Os soluços, principalmente, tinham o som vago e misterioso de um problema. Virgília traíra o marido, com sinceridade, e agora chorava-o com sinceridade. Eis uma combinação difícil que não pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspeitei que a combinação era possível, e até fácil. Meiga Natura! A taxa da dor é como a moeda de Vespasiano; não cheira à origem, e tanto se colhe do mal como do bem. A moral repreenderá, porventura, a minha cúmplice; é o que te não importa, implacável amiga, uma vez que lhe recebeste pontualmente as lágrimas. Meiga, três vezes meiga Natura! (ASSIS, 2008b______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b., p. 138).

É a moral quem recebe (e julga) as lágrimas de Virgília; anos antes, ela traiu o marido (com Brás) com a mesma intensidade com a qual chorava sobre seu caixão. A combinação difícil justifica-se, justamente porque Brás quer evidenciar a hipocrisia de Virgília. No mais, acaba concluindo que a dor se manifesta sem estar necessariamente atrelada à origem, podendo surgir de diversas fontes. Seriam os remorsos de Virgília os responsáveis pelas lágrimas ou a certeza tardia de que amara o marido no final das contas? Se a moral repreender Virgília, Brás a absolverá, pois acredita, enfim, que pouco importava a razão das lágrimas, mas sim que chorou muitíssimo e esteve de acordo com as normas sociais. Ácido e perverso, prefere se deleitar com as hipocrisias alheias a dar um proveito útil à sua existência.

Para evidenciar a construção da proposta deste artigo, pensemos também a trajetória das personagens em Dom Casmurro. No início do romance, as personagens são apresentadas uma a uma: Dom Casmurro (que se apresenta tentando tirar do leitor a impressão que o significado do apelido poderia sugerir - e impondo a sua definição de casmurro), o agregado José Dias, o tio Cosme, a dona Glória, Capitu e a prima Justina. Capitu é a musa dos sonhos do jovem Bentinho e do narrador Dom Casmurro, como rapidamente se percebe.

Há uma estrutura sutil desde o início do romance, uma vez que, ao evidenciar sua infância, a descrição do narrador chama a atenção para a inteligência e a esperteza de Capitu, em oposição ao personagem mimado e fraco de iniciativas que era o menino Bentinho. Ainda menina, ela apresentava uma determinação e habilidade para não apenas refletir, mas também aconselhar o rapaz. Para ele, é como se houvesse, em Capitu, uma malícia para o mundo que, todavia, faltava a ele:

Capitu refletia. A reflexão não era cousa rara nela, e conheciam-se as ocasiões pelo apertado dos olhos. Pediu-me algumas circunstâncias mais, as próprias palavras de uns e de outros e o tom delas. Como eu não queria dizer o ponto inicial da conversa, que era ela mesma, não lhe pude dar toda a significação. A atenção de Capitu estava agora particularmente nas lágrimas de minha mãe; não acabava de entendê-las. Em meio disto, confessou que certamente não era por mal que minha mãe me queria fazer padre (ASSIS, 2008ªASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 35).

Toda a narração sobre ela, sempre influenciada por opiniões alheias às de Bentinho, parece evidenciar como o narrador só passa a reparar com mais afinco os comportamentos de Capitu depois de ouvir atrás da porta a denúncia de José Dias. Assim, tudo vai aos poucos, de forma bem sutil, pondo em xeque o caráter dos personagens. Bentinho é como uma criança na sua primeira infância, que repete tudo o que ouve dos membros do seu círculo íntimo. A Capitu amiga de infância dá lugar à jovem que, segundo as palavras de José Dias, teria olhos "de cigana oblíqua e dissimulada" (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 42), opinião rapidamente aderida e repetida pelo menino. Anos depois, o ponto de vista do agregado é atenuado e, por sua vez, o de Bentinho também. O casamento de ambos se dá com a maior expectativa de felicidade. No entanto, desde muito cedo, Bentinho é cegado pelos ciúmes e começa a apontar na Capitu adulta, sua esposa, as acusações e opiniões que José Dias tinha sobre ela na adolescência e sobre as quais ele, de certa forma, concordava. Se a Capitu, em menina, era dissimulada, essa dissimulação ainda viveria na Capitu adulta, "como a fruta dentro da casca" (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 159), tenta Dom Casmurro provar.

Como mencionado anteriormente, não apenas o leitor só tem acesso à personagem Capitu a partir do que foi passado pelo narrador, como a narrativa é uma defesa em causa própria, pois, Dom Casmurro, "sagaz advogado que é, deixa indeterminado o caráter de cada personagem do caso que possa testemunhar contra ele, suprime evidências, impõe adiamentos até que as testemunhas morram" (CALDWELL, 2008CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 99). A esse respeito, em "Retórica da verossimilhança", Silviano Santiago (2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46., p. 33-34) também reconheceu o livro como uma tentativa de absolvição, pois o hábil advogado de cinquenta e sete anos assume a defesa de Bentinho, o doce e inocente filho da dona Glória, e faz uso de uma arquitetada técnica retórica, já sabendo, de antemão, o que queria provar. Segundo o crítico, a peça oratória é o apriorismo, isto é, um raciocínio desenvolvido de forma verossímil, que conduz a pessoa a ser convencida com a conclusão por ele ambicionada desde o início. Assim, retomando as considerações de Hansen (2008HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177.), bastava, à trama narrada, a verossimilhança para que ninguém contestasse a veracidade das informações e dos julgamentos do narrador.

A insinuação (chamada de "denúncia") da exagerada aproximação entre os adolescentes partiu de José Dias e, só depois da chama acesa, Bentinho começou a crer-se realmente apaixonado por Capitu. Tal fato indica como se absteve não apenas da culpa, mas das decisões, pois sempre as tomava influenciado por opiniões ou atitudes alheias. Somado a isso, há a inscrição dos nomes de ambos, no muro, pela menina. Surpreendidos pelo pai de Capitu, o Pádua, é ela quem rapidamente se recompõe e tenta sugerir que Bentinho faça o mesmo, o que ele não realiza. A figura inocente e sem artimanhas que criou para si o impedia de dissimular, mesmo sendo o mais inteligente a fazer:

O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob a ação do que trouxe a entrada de Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. Há cousas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 31).

Tanto sugeria que só teria aprendido as artes da dissimulação mais tarde, como que Capitu nascera com elas, logo, sempre tinha podido mentir com a mesma rapidez com que dizia a verdade sobre seus sentimentos por ele; no mais, se ela enganava os pais com tanta facilidade, o mesmo poderia fazer com ele? É o que ele quer provar. Entretanto, o trecho não mostra uma prova da "fruta dentro da casca" (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 159), no que diz respeito a Capitu, mas sim da habilidade com que Dom Casmurro narrava e interpretava a sua história.

Um pouco adiante, quando conta a ela a iminência do seminário e a jovem responde que desejava ser rica para poder ajudá-lo na fuga para a Europa, novamente Dom Casmurro analisa, certo de poder "colar" suas impressões às reais intenções da menina:

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos. Não sei se me explico bem (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 36).

O que quer provar é a habilidade com que Capitu o dirigiu, não apenas o convencendo a recusar a vida no seminário, mas arquitetando para que os outros fizessem por ela o que, no fundo, desejava. Assim, perante o tribunal, o advogado sustenta que transformar José Dias de "inimigo do casal" a aliado foi ideia dela, uma artimanha audaz e digna de manipuladores profissionais. Do mesmo modo, futuramente, ela teria se tornado tão indispensável à companhia de dona Glória que a boa mulher, manipulada por todos os lados, cederia e abençoaria a união. Ao mesmo tempo, Dom Casmurro, com sua prática hábil, sinuosa e surda, tenta provar o essencial para a absolvição de Bento Santiago: no caso dele, a fruta não estava dentro da casca, pois a habilidade de manipular fora adquirida, era prática retórica apreendida na faculdade de Direito. Ou melhor: era reflexo da dor causada pela suposta traição da mulher e do melhor amigo, pois "a conclusão à qual Santiago gradualmente leva o leitor é que a traição perpetrada por sua adorável esposa e seu adorável amigo age sobre ele, transformando o gentil, amável e ingênuo Bentinho no duro, cruel e cínico Dom Casmurro" (CALDWELL, 2008CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 29). A esse respeito, podemos citar, ainda, Silviano Santiago (2000SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46., p. 39), haja vista o autor indicar como a reconstituição do passado pelo narrador (cujo ápice foi a reconstrução da casa de Matacavalos) era tanto egoísta e interesseira como medrosa, uma vez que sua complacência para com o Bentinho menino visava liberá-lo do remorso e justificar as decisões das quais foi responsável.

Duas descrições, ainda, podem ser destacadas para colaborar com sua narrativa do caráter dúbio de Capitu: a primeira, a alusão ao comentário de José Dias sobre seus "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", trecho mais conhecido do romance; a segunda, a de que Capitu era mais mulher do que ele era homem:

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada". Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se se podiam chamar assim. Capitu deixou-se fitar e examinar. [...] Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 51).

Esta imagem é porventura melhor que a outra, mas a ótima delas é nenhuma. Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem. Se ainda o não disse, aí fica. Se disse, fica também. Há conceitos que se devem incutir na alma do leitor, à força de repetição (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 48-49).

No primeiro fragmento, o narrador não se ausenta de declarar seu desconhecimento do significado de "oblíqua", mas desconversa atribuindo outra alcunha: olhos de ressaca, tão misteriosos e fortes que pareciam envolvê-lo, levando-o à urgência de "se agarrar" a outras partes. O romance é cheio de metáforas, de insinuações. Estaria o narrador justificando que o menino Bentinho havia tentado fugir, agarrar-se para não ser tragado por aqueles olhos, por aquela determinação de mulher, de musa? Para Caldwell, sim, uma vez que ele a julga em contraste e oposição com a própria mãe, "uma santa!", como define José Dias (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 43). Justifica, então, ser Capitu quem o arrastava para longe do puro, milagroso seio materno; contudo, a ressaca dos olhos dela age, justamente, como a alegoria do desejo sexual que despontava no adolescente. Assim, "nascido e criado no seio de sua pequena e sagrada família, ele está sendo arrastado para o mundo da carne e do demônio" (CALDWELL, 2008CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 53).

Tal metáfora se sustenta, pois, pouco antes, esclareceu como Capitu era mais mulher do que ele era homem. Por isso, dá ênfase ao quanto era fraco de iniciativas, medroso, manipulável, um doce e inocente menino vítima de uma impetuosidade e de um par de olhos dos quais não pôde fugir; é isso o que quer "incutir na alma do leitor" (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 49). E seu estratagema da repetição, levado a cabo até o final do livro, durante muito tempo, foi bem-sucedido perante a crítica.

Na análise a seguir, podemos ver os planos que manifestavam o imaginário do narrador, outra demonstração de sua ingenuidade em oposição à esperteza da namorada:

Em caminho, encontramos o imperador, que vinha da Escola de Medicina. O ônibus em que íamos parou, como todos os veículos; os passageiros desceram à rua e tiraram o chapéu, até que o coche imperial passasse. Quando tornei ao meu lugar, trazia uma ideia fantástica, a ideia de ir ter com o imperador, contar-lhe tudo e pedir-lhe a intervenção. Não confiaria esta ideia a Capitu. "Sua Majestade pedindo, mamãe cede", pensei comigo (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 45).

Capitu preferia tudo ao seminário. Em vez de ficar abatida com a ameaça da larga separação, se vingasse a ideia da Europa, mostrou-se satisfeita. E quando eu lhe contei o meu sonho imperial: - Não, Bentinho, deixemos o imperador sossegado, replicou; fiquemos por ora com a promessa de José Dias. Quando é que ele disse que falaria a sua mãe? (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 48).

Não havia outra opção para Capitu, com a exceção de ser mais mulher do que Bentinho era homem, visto que sua inocência descabida, seus planos mirabolantes, eram, além de péssimos, inexecutáveis até para o ponto de vista do próprio narrador. Para Caldwell (2008CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008., p. 34), "muito antes de José Dias pôr de lado o manto de Iago, Santiago já se preparava para apanhá-lo". Isso ocorre porque Bentinho não apenas reconheceu rapidamente como verdadeira a paixão entre ele e Capitu, como quis acreditar que a família dela maquinava para que a união se realizasse. A autora destaca como, após o primeiro beijo e o surgimento da mãe da menina, ele a trata não só como cúmplice, mas também como conivente da situação, que ela disfarçou, a seus olhos, à base da dissimulação: "achou talvez que houvera entre nós algo mais que penteado, e sorriu por dissimulação" (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 53).

Bento Santiago segue demonstrando ao longo da narrativa ser incapaz de tomar decisões ou executar suas ideias (vide os pensamentos de falar com o imperador para que intervisse na decisão da mãe e, até mesmo, de executar o suicídio ou a morte do filho). Capitu é a primeira a mencionar o divórcio, logo, é possível depreender da narrativa que também partiu dela escolher viver na Europa e, talvez por vergonha de ter que justificar aos outros a separação, Bentinho não se opôs a financiar a vida dela e de Ezequiel na Suíça.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

- A separação é cousa decidida, redargui pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pôde deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois, em um tom juntamente irônico e melancólico:

- Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes! (ASSIS, 2008aASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a., p. 152).

Se pudéssemos responder à pergunta que dá título ao texto de Pedro Ambra (2021AMBRA, Pedro. O que é um homem? psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2021.), "O que é um homem?", nas obras em diálogo neste artigo, partiríamos do ponto em que ambos os narradores estão em tentativa de exposição de força, de poder, de demonstrarem a qualquer custo serem os líderes, os mestres da horda. O narrador de Memórias póstumas tenta de todas as maneiras esconder as fraquezas, chega a mencionar um temor da tia-avó, mas demonstra com uma espécie de indiferença a morte do pai, e não cita ou toca no assunto da morte do tio preferido, no qual tanto se espelhava ou até fantasiava a imagem de um herói. Por sua vez, a identidade masculina do narrador de Dom Casmurro caminha junto com todas as fraquezas, inseguranças e demonstrações de fragilidades, ao passo que ele se esforça para convencer o leitor de que foi criado para ser padre, mas que Capitu e a vida o tornaram o homem amargo, cruel, que desconfiava de todos. Sendo assim, constrói uma imagem na qual sua amargura resulta da necessidade de se impor ou de proteger sua honra.

Desse modo, como delineado no decorrer deste texto, ambos os romances abordados possuem narradores-personagens que tanto narram como afirmam escrever o romance. Como defendido anteriormente, tentam provar ao leitor suas posições de poder, cada um à sua maneira: no caso de Brás Cubas, do além-túmulo; no de Bento Santiago, já próximo aos sessenta anos, com a desculpa de que em seguida se dedicaria à História dos subúrbios. Por trás deles, há a figura do hábil e potente escritor que foi (e ainda é) Machado de Assis.

As duas personagens mulheres evidenciadas, respectivamente, Virgília e Capitu, tiveram especial destaque neste trabalho tanto devido à posição de musas que ocupam nas narrativas, como à importância revelada nas páginas de Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Se Brás não conhecesse e amasse Virgília, se ela não o trocasse pelo marido que poderia lhe oferecer status e respeitabilidade social, se eles não tivessem mantido um caso extraconjugal, dificilmente o romance seria o mesmo. Se sua figura não fosse importante na narrativa, pouca relevância o vaidoso Brás teria dado à senhora que chorava baixinho ao lado de seu leito de morte. Narrando da morte, tudo o que estava mais próximo do fim ganha destaque; no mais, era interessante à própria vaidade que ela estivesse ali.

Já Capitu, se fosse viva e tivesse a oportunidade de se defender ou de se levantar do banco dos réus e contestar o marido que a acusava a fim de aliviar os próprios remorsos, talvez teríamos outro livro. Assim, refletimos as questões: e se as musas não fossem apenas uma invocação para a construção artística, que a partir de sua ligação com o divino organizam suas grandes narrativas? E se as musas na história das artes ou das narrativas pudessem falar? Sem dúvida, haveria outro rumo para a história de Capitu. A própria fraqueza revelada por Bento Santiago tanto exalta a força da mulher que o amou como revela os ciúmes obsessivos que o acometiam desde a infância. Se Capitu não fosse dissimulada, seria ele "a fruta dentro da casca"?

A habilidade retórica presente nesses romances também ganhou destaque, principalmente devido à profissão comum de Bentinho e Brás. Enquanto este era um advogado medíocre, aquele revelava intenso potencial de convencimento e persuasão, características mais do que invejáveis em um bom advogado. Acima de tudo, eram ambos dependentes de suas musas para reconstruir suas memórias, para organizar o caos e, assim, construir suas narrativas. Portanto, frisamos que há entre essas mulheres uma articulação individual que se sobrepõe à demonstração de domínio e poder desses homens; dessa forma, sempre questionando a posição de poder desses narradores.

Referências

  • AMBRA, Pedro. O que é um homem? psicanálise e história da masculinidade no Ocidente. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2021.
  • ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Escala educacional, 2008a.
  • ______. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Escala educacional, 2008b.
  • CALDWELL, Helen. O Otelo brasileiro de Machado de Assis: um estudo de Dom Casmurro . Trad. de Fábio Fonseca de Melo. 2. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2008.
  • HANSEN, João Adolfo. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, M. L.; GRANJA, L.; RICIERI, F. W. (Orgs.) Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177.
  • HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.
  • KRAUSZ, Luis S. As musas: poesia e divindade na Grécia arcaica. São Paulo: Edusp, 2007.
  • SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 27-46.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000.
  • SOUZA, Ronaldes Melo e. O romance tragicômico de Machado de Assis. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006.
  • 1
    O termo aedo é utilizado neste texto em analogia à tradição de contação de histórias da Antiguidade. A noção de memória está entre os assuntos mais estudados nas universidades, principalmente a relação entre os acontecimentos do passado e os acontecimentos subjetivos implicados nessa lembrança. Desse modo, havia uma dependência da memória antiga, contada pelos poetas, os contadores das histórias do passado, e os únicos que tinham contato com as musas, as filhas da memória (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996.). Entendidos como aedos, isto é, como propagadores de suas histórias, Bentinho e Brás são lidos a partir do contraste vivido com suas musas, respectivamente, Capitu e Virgília.
  • 2
    De modo geral, todas as musas são associadas a uma forma de persuasão, mas nunca a uma persuasão intelectual: sempre pressupõem uma sedução, uma envolvência (que se dá com a beleza). As pessoas envolvidas pelas musas têm grandes capacidades de gerar (ideias), ou até mesmo a fecundidade, pois não há separação entre a fecundidade física e a intelectual (luxúria, exaltação e domínio da vida). Portanto, tudo colabora para o universo de sedução das musas.
  • 3
    A tradição grega considerava que só tínhamos certeza daquilo que experimentávamos, o resto era rumor, rumoração. A relação entre musas e aedos dava-se quando estes chamavam-nas para perguntar o que vinha pela frente. E o que vinha pela frente era o que elas poderiam lembrar. Dessa forma, a musa depende do aedo que a invoca, e esse aedo se reduz a um porta-voz; mas, mesmo como porta-voz, ele é imprescindível, pois a deusa só fala ao eleito, e é ele quem enuncia. Como especialistas em memorização, donos de uma memória fidedigna, esses poetas eram certificados pelas musas, uma vez que, por meio da comunicação com elas, podem saber de tempos diferentes, povos remotos. O que elas (as musas) fazem no Olimpo (presidir as festas) é o que o aedo faz entre os homens (já que é um substituto das musas entre os homens). Nesse ponto, há a demonstração clara de como Bentinho, enquanto narrador, desviava-se retoricamente desse ideal do aedo tradicional, dono de uma memória sólida, pois continuamente se contradiz ou afirma ser acometido de omissões.
  • 4
    A relação entre o aedo e as musas é de mediação, pois ele descreve/canta a partir do que elas lhe ensinaram. Desse modo, ele é um executante, não um autor das histórias e/ou cantos, transmitindo à audiência os versos que não são dele, mas sim derivados de uma "fonte exterior a si próprio, uma fonte a quem ele chamou 'musa'" (HAVELOCK, 1996HAVELOCK, Eric A. A musa aprende a escrever: reflexões sobre a oralidade e a literacia da Antiguidade ao presente. Lisboa: Gradiva, 1996., p. 32).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2023
  • Aceito
    10 Jul 2023
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