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A VEROSSIMILHANÇA É MUITA VEZ TODA VERDADE: UMA ANÁLISE DO FANTÁSTICO EM "UMA VISITA DE ALCIBÍADES"

VERISIMILITUDE IS OFTEN ALL TRUTH: AN ANALYSIS OF THE FANTASTIC IN "A VISIT FROM ALCIBIADES"

Resumo

No início dos anos 1880, a ficção de Machado de Assis encena uma mistura entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, quer seja pela presença de narrador e autor defuntos, quer pela criação de personagens outrora mortos. Tais procedimentos têm sido entendidos como: um vínculo com a tradição menipeia do diálogo dos mortos; uma forma de afronta ao leitor; o desdobramento do eu em autoconsciência analítica; a galhofa às teorias e ideias da época como o espiritismo, entre outros pontos de vista interpretativos e analíticos. Neste artigo, propõe-se que o insólito encontro entre um desembargador no Rio de Janeiro do Império e o belo homem grego, morto em 404 a.C., pode ser lido como um procedimento retórico que cria a paródia dos discursos aceitos como plausíveis naquela sociedade em que o conto foi publicado. Ao mesmo tempo, a narrativa em si, a carta que descreve um encontro insólito, une a pragmática de um desembargador ao aparentemente inexplicável, que se utiliza do modo fantástico para a solução de um problema intrincado: a presença de um corpo morto em um quarto de vestir.

Palavras-chave:
Machado de Assis; retórica do fantástico; verossimilhança; modo fantástico; homossexualidade

Abstract

In the early 1880s, Machado de Assis' fiction operates a mixture between the world of the living and the underworld, whether through the presence of a deceased narrator and author or through the creation of once-dead characters. Such procedures have been understood as: a link to the Menippean tradition of the dialogue of the dead; a form of affront to the reader; the unfolding of the self into analytical self-consciousness; the mockery of the theories and ideas of the time such as spiritism, among other interpretative and analytical points of view. In this paper, it is proposed that the unusual encounter between a judge in the Empire's Rio de Janeiro and the beautiful Greek man, killed in 404 BC, can be read as a rhetorical procedure that creates a parody of the discourses accepted as plausible in that society in which the tale was published. At the same time, the narrative itself, the letter describing an unusual encounter, unites the pragmatics of a judge with the seemingly inexplicable, which uses the fantastic mode for the solution of an intricate problem: the presence of a dead body in a dressing room.

Keywords:
Machado de Assis; fantastic's rhetoric; verisimilitude; fantastic mode; homossexuality

O conto "Uma visita de Alcibíades", como se sabe, foi publicado por três vezes entre sua primeira versão e aquela que seria a de seu texto definitivo: tendo aparecido primeiramente no Jornal das Famílias em outubro de 1876, assinado por Victor de Paula, o desembargador Álvares era o narrador, não de uma anedota, mas de um caso ocorrido há pouco tempo, na Corte, o qual contava a rapazes e moças no dia de Natal. Na refacção que foi publicada pela Gazeta de Notícias em 1º de janeiro de 1882, o conto já aparece na forma de uma "carta do desembargador X… ao chefe de polícia da Corte", anunciando-se no texto o seu gênero, ou seja, a carta não inicia simplesmente como carta, mas declara-se como tal, em uma espécie de epígrafe ou subtítulo. Já ali, o "conto-carta" aparece datado de 20 de setembro de 1875, curiosidade à qual voltaremos, sendo essa data seis anos anterior ao aparecimento do texto no periódico quotidiano e um ano anterior a essa primeira publicação do conto. Ainda em 1882, ele viria a ocupar, sem alterações, seu lugar em Papéis avulsos, ao lado dos outros "passageiros que acertam de entrar na mesma hospedaria", na metáfora criada por Machado de Assis (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 13). Nesses outros textos, a loucura e a desfaçatez são alguns dos temas, assim como se experimentam as formas do diálogo e do conto filosóficos, o pastiche das crônicas antigas e o sonho como narrativa encaixada fantástica, entre outras, evocados pela constante pesquisa machadiana de possibilidades para a narrativa de ficção de média ou curta extensão. Em sua versão final, o "desembargador X…" escreve ao chefe de polícia pois, em um momento de repouso após o jantar, no qual fazia uma leitura imaginativa da obra Vidas paralelas de Plutarco, ademais sendo "espiritista" e tendo evocado a presença de Alcibíades, ele se encontra, seguidamente ao diálogo com o morto novamente em vida e materializado, com um cadáver em sua casa.

Considerando a crítica machadiana em geral e sobre este conto em específico, a carta, juntamente com a história insólita que conta, podem ser entendidas como um vínculo da obra machadiana com a tradição menipeia do diálogo dos mortos (SÁ REGO, 1989SÁ REGO, Enylton José. O calundu e a panaceia: Machado de Assis, a sátira menipeia e a tradição luciânica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989. 234p.; TEIXEIRA, 2005TEIXEIRA, Ivan. Pássaro sem asas ou morte de todos os deuses. Uma leitura de Papéis avulsos. In: ASSIS, Machado de. Papéis avulsos. Edição preparada por Ivan Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005. (Coleção Contistas e Cronistas do Brasil).), como uma forma de afronta ao leitor (SCHWARZ, 1990SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990.), como o desdobramento do eu em autoconsciência analítica (BOSI, 2006BOSI, Alfredo. Brás Cubas em três versões. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. ), ou, ainda, como galhofa a teorias e ideias da época (MACHADO, 1996MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo: de Castro Alves a Machado de Assis. Niterói: Publicações Lachâtre, 1996.), mas também como o retrato interpretativo de Alcibíades na obra de Plutarco (GAI, 2008GAI, Eunice Terezinha Piazza. Alcibíades redivivo. Interpretação e retrato. Revista Matraga - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, Rio de Janeiro, v. 15, n. 23, jul./dez. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/27888 . Acesso em: 08 dez. 2022.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
) ou como uma construção em torno da relação entre gênero epistolar e autoria ficcional (SEMINATTI, 2022SEMINATTI, Tiago. Autoria ficcional e gênero epistolar em "Uma visita de Alcibíades". Machado de Assis em linha, São Paulo, v. 15, e262887, p. 1-18, 2022.), entre outros pontos de vista analíticos. Destaca-se a leitura crítica que permite incluirmos esse conto em uma estratégia narrativa por meio da qual Machado de Assis assina o texto (conto no jornal ou na coletânea Papéis avulsos), mas "desapropria-se como autor de textos, delegando a escrita para outros autores ou dissimulando mimeticamente na escrita de autores fictícios" (HANSEN, 2008______. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, Marcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (Org.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 143).

Segundo Ubiratan Machado, na primeira versão do conto a materialização de Alcibíades é apenas uma história de salão, que adota tom de galhofa, enquanto que, na segunda versão, o desembargador "está convicto de viver tudo aquilo" e "Alcibíades se materializa, de fato" (MACHADO, 1996MACHADO, Ubiratan. Os intelectuais e o espiritismo: de Castro Alves a Machado de Assis. Niterói: Publicações Lachâtre, 1996., p. 144). Nesse contexto, observamos que a carta é uma primeira moldura narrativa para outra que nela se encaixa, embora imperfeitamente: seria o "inextricável", o "maravilhoso" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 264-265) dessa história que conta a materialização de um homem morto e reproduz o diálogo entre o carioca moderno e o grego antigo o efeito de um sonho ou de um delírio? Se o sonho ou o delírio, em forma de narrativa, encaixam-se sutilmente na carta (o desembargador lia Plutarco no final do dia, depois do jantar, e pode ter adormecido), esse possível sonho não é "revelado" no final do conto, o que abre a perspectiva para o delírio ou, ao menos, mas tão importante quanto, para uma história de difícil explicação: um juiz desembargador no Império brasileiro precisa justificar a presença de um cadáver em sua casa, e mais que isso, do corpo de um homem provavelmente belo (se foi relacionado a Alcibíades, afinal). É digna de nota uma sugestão que tem passado despercebida: o corpo desse belo homem morto estava na parte íntima da residência, o quarto de vestir, no contexto de uma estranha situação de calmaria doméstica, segundo conta o próprio desembargador "X":

Que mais direi a V. Exa.? No fim de poucos minutos conversávamos os dois, em grego antigo, ele repotreado e natural, eu pedindo a todos os santos do céu a presença de um criado, de uma visita, de uma patrulha, ou, se tanto fosse necessário, - de um incêndio. (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 262-263).1 1 Utilizamo-nos, para as citações, da primeira edição em livro de Papéis avulsos (ASSIS, 1882), atualizando a ortografia.

Para desembargar essa situação algo embaraçosa, a boa tradição retórica - entendida como a arte do discurso persuasivo, na tradição aristotélica de retórica como "técnicas dos gêneros oratórios que se ocupam de questões não fictícias da Cidade" (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, São Paulo: Editora 34; Imprensa Oficial, v. 6-7, p. 56-78, 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.revistas.usp.br/teresa/article/view/116608 . Acesso em: 08 dez. 2022.
https://www.revistas.usp.br/teresa/artic...
, p. 12) - une-se, em um "estranho conúbio", ao fantástico ficcional, o qual implica em técnicas de manipulação do leitor e, portanto, de convencimento.

Assim como a do autor do texto, a figura do leitor é constituída em dupla camada neste conto, ou seja, a carta deveria chegar ao interlocutor-leitor, o chefe de polícia, convencendo-o de sua narrativa e, por extensão, persuadindo o leitor da ficção machadiana. Vale dizer que Tzvetan Todorov defende, no livro Introdução à literatura fantástica, que o fantástico é "a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural" (TODOROV, 1975TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. 188 p., p. 31). O mundo do fantástico, assim como suas leis, seria o nosso mundo, esse "mesmo mundo familiar", no qual a irrupção de um acontecimento dito sobrenatural levaria a uma necessidade de tomada de decisão, tanto por parte do personagem representado na narrativa quanto do leitor: escolher uma explicação racional, a qual, embora justificada, não praticasse a extinção das leis do mundo ou aceitar uma explicação sobrenatural, desfazendo as leis que regem o mundo que conhecemos. O fantástico teria a duração desta incerteza, a duração da tomada de uma decisão, mas, diante da decisão tomada, o texto abandonaria o campo do fantástico para encaixar-se em um dos seus dois gêneros vizinhos: ou o estranho ou o maravilhoso (TODOROV, 1975TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975. 188 p.). O fantástico, então, só existiria quando a hesitação se estendesse até a conclusão do conto.

Se aceitarmos a proposta de Todorov para o caso de "Uma visita de Alcibíades", inicialmente, a estrutura dificultaria qualquer tomada de decisão por parte do leitor. Curiosamente, essa atitude, pelo artifício da carta, é legada ao que ele pode imaginar sobre a reação que teve ou terá o primeiro leitor, o chefe de polícia. Ao leitor do conto, resta a reconfortante situação de não ter que se posicionar, ou seja, a carta deve convencer ao chefe de polícia da Corte: imaginado que ele aceite os argumentos e os fatos, fica o maravilhoso inserido na vida quotidiana do Rio de Janeiro; se ele não aceitar, o fantástico é desfeito e algo deve acontecer com o desembargador. De toda forma, o mistério é transferido para a história que se narra na carta, de modo que o leitor do conto em si, implícito ou empírico, está isento de tomar essa decisão. Nesta ideia sobre o fantástico, portanto, o irresoluto da ficção machadiana prolongaria indefinidamente a impossibilidade de o leitor implícito ou empírico decidir por um ou outro caminho, o que tornaria um conto como este a mais fantástica das narrativas.

Já no que se refere ao leitor da carta, a abordagem do narrador é diligente na persuasão do interlocutor, adotando, já de início, uma prática forense de reconhecimento entre pares (ou a reiteração da fórmula de tratamento "Vossa Excelência"), ao evocar repetidas vezes o chefe de polícia da Corte: "Desculpe V. Exa. O tremido da letra e o desgrenhado do estilo; [...] V. Exa., que foi meu companheiro de estudos, há de lembrar-se que eu, desde rapaz, padeci esta devoção do grego; devoção ou mania, que era o nome que V. Exa. lhe dava" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 259, grifos nossos).

Ao lado de a referida reiteração tornar o chefe de polícia um par do desembargador na escala de carreiras da Justiça - o que, efetivamente, ele não era2 2 A Lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4824, de 22 de novembro do mesmo ano, separou a Justiça e a Polícia de uma mesma organização. Consultada em: https://www.camara.leg.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf15.pdf#page=5. Acesso em: 08 dez. 2022. -, a carta adota, em relação a esse interlocutor, algumas tentativas oblíquas de trazer autoridade a seu discurso: o argumentum ab auctoritate (ARISTÓTELES, 2011ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e Notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. 272 p.) não vem da opinião de uma autoridade, mas das relações pessoais do desembargador com a autoridade policial, cuja opinião a carta pretende formar. Nesse caso, a opinião da autoridade não funciona como argumento do orador, mas como subterfúgio para corroborar a aparência de verdade a uma situação esdrúxula. Retomando a citação acima, o narrador presentifica sua trajetória no Direito e apela ao fato de que o próprio chefe de polícia fez parte de sua formação, conhecendo, desde aquela época, suas paixões intelectuais (ao menos, são essas que o desembargador evoca). Em conclusão, a sabedoria trazida pela autoridade é deslocada para a menção que o narrador faz à sua "mania", "devoção" ao grego, a qual pode ser reconhecida pelo outro tipo de autoridade, a policial. Está armada a situação para que o insólito, envolvendo o cadáver de um suposto homem grego antigo, comece a fazer sentido na realidade ordinária do quotidiano, desde que os leitores, da carta e do conto, comecem a se deixar embalar pelas estratégias de convencimento.

Em complementariedade ao uso retórico do gênero carta, "Uma visita de Alcibíades" evoca o aparentemente sobrenatural que irrompe no cotidiano, característica típica do fantástico na literatura. A narrativa (mal) encaixada, razão de ser do próprio conto, apresenta "fenômenos ou seres inexplicáveis e, na aparência, sobrenaturais" (FURTADO, 1980FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. 151 p., p. 19). O aparecimento de um homem que morreu no século V a.C., invocado na casa do desembargador pela crença, ainda que recreativa, no espiritismo, representaria essa aparição inexplicável do sobrenatural dentro da literatura. A situação é ainda mais incompreensível porque Alcibíades aparece diante do desembargador não como o espírito de um homem "desencarnado", como seria de se esperar diante da prática espírita indicada, mas sim "ressuscitado": "era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 261). Esse elemento é parte da inversão paródica que Machado faz tanto do modo de narrar fantástico quanto de uma "teoria [...] revelada pelos espíritos" (Jornal do Commercio, 14 de janeiro de 1875), como veremos.

Furtado (1980FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. 151 p., p. 20) chama de manifestação do "meta-empírico" aquilo que entendemos por sobrenatural, ou seja, o meta-empírico - o "verificável ou cognoscível a partir da experiência, tanto por intermédio dos sentidos ou das potencialidades cognitivas da mente humana, como através de quaisquer aparelhos que auxiliem, desenvolvam ou supram essas faculdades" - seria a fenomenologia daquilo que pode tanto entrar em choque com nossa concepção do real quanto com os fenômenos que são passíveis de explicação científica, mas ainda desconhecidos. Nessa linha, o que caracterizaria a narrativa fantástica seria a forma como esse meta-empírico é disposto dentro da história e como essa história desenvolve a coexistência das manifestações sobrenaturais com a realidade, conforme a percebemos. Em outras palavras, a aparição de Alcibíades redivivo na casa do "desembargador X" representa a manifestação de algo inexplicável, mas também a relação dessa manifestação com o conteúdo real e cognoscível que, no mundo do desembargador, colocaria o acontecimento narrado no campo do fantástico.

No entanto, machadianamente, tudo parece mais complexo que isso, pois esse inexplicável da aparição do "vero homem" seria completamente explicável caso o que aparecesse fosse, ao invés do "vero", o impalpável e incognoscível: o espírito do homem. O desembargador "espiritista" estava perfeitamente alinhado com as ideias de seu tempo, pois, no mês de janeiro de 1875, ou seja, no mesmo ano em que o desembargador escreve a sua estranha carta, Baptiste-Louis Garnier, o principal editor da época no Brasil, acabara de traduzir O livro dos espíritos, de Allan Kardec, o qual era recebido nos jornais da Corte por notícias-resenha parecidas com as que apresentavam quaisquer outros livros, o que garante a verossimilhança do conto como a possibilidade, aristotélica, da "relação de semelhança entre discursos" (HANSEN, 2008______. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, Marcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (Org.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 149), nesse caso, na prática de evocar homens mortos. Segundo o Jornal do Commercio de 14 de janeiro de 1875, o mensageiro da filosofia espírita, Allan Kardec, explica a publicação sem se descolar da justificativa que o próprio livro traz para si:

A missão de Kardec para escrever esta obra está autenticada por uma ordem emanada do mundo dos espíritos, impressa no começo do livro e referendada por São João Evangelista, Santo Agostinho, São Vicente de Paula, São Luís, o Espírito da Verdade, Sócrates, Platão, Fénelon, Franklin, Swedenborg (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1875, p. 3).

A verossimilhança estabelecida pela ficção busca, portanto, os outros textos publicados pelos jornais, que circulavam como ideias aceitas na época, ainda que essas parecessem estranhas e, na verdade, o livro recém-traduzido reunisse, como explicadores de uma nova doutrina: pensadores e mártires do cristianismo católico; filósofos da Grécia antiga; um teólogo e poeta que foi artífice de ideias políticas fundamentais, além de experimentador de um fenômeno tão importante como a eletricidade; o inidentificável mas ambicioso "Espírito da Verdade"; e, por fim, um polímata e espiritualista, todos juntos, intemporalmente, ensinando ao compilador "das novas doutrinas que lhe ensinaram os espíritos" a "a imortalidade da alma, a natureza dos mesmos espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente e a futura e o porvir da humanidade" ( Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1875, p. 3).

Nesse quadro de possibilidades concretas, a reação do desembargador à aparição de Alcibíades (e não podemos esquecer que essa reação é narrada a posteriori) é, primeiramente, de espanto:

Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco; e então esfreguei os olhos, fitei-os, e…

- Que me queres? - perguntou ele.

Ao ouvir isto, arrepiaram-se-me as carnes. O vulto falava e falava grego, o mais puro ático (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 262).

Primeiramente, a aparição é de um vulto; logo será de um redivivo, mas a história não prossegue por esse embate entre o que se vê e o que o vinho ingerido no jantar, ou mesmo a digestão lenta, faz ver. Na verdade, ela prossegue a partir de duas tensões constantes: por um lado, o embate cultural entre o grego antigo e o homem brasileiro "moderno", que se desenvolve nos diálogos relacionados à sociedade, à história e, principalmente, à forma de se vestir; por outro, a ambiguidade do relato, que se apoia no desconforto constante do narrador com a presença daquele personagem, já descartado como "espírito" (vulto) e apresentado em sua integralidade física. Nesse quadro, o possível não rivaliza com o impossível, mas o impossível é tornado possível (a volta dos mortos, no registro espírita), a partir dos discursos verossímeis naquela sociedade, que entram na história narrada por blague ou por necessidade do desembargador: como a manifestação dos espíritos deixou de ser "fantástica", como tudo é explicável e todas as misturas são possíveis (gregos e mártires católicos, por exemplo), até mesmo uma história de fantasmas (espíritos) só pode tornar-se extraordinária por sua própria paródia: sendo o espiritismo recreativo para o desembargador, ao se evocar o espírito, aparece o homem. O autor cria ficção em duas frentes de possibilidades: primeiramente, a recriação do fantástico integra uma ideia geral de construção e experimentação do narrador machadiano, para o qual, em que pesem as possibilidades do tempo, as ideias circulantes - para as quais os textos veiculados pelos jornais funcionam como repositórios - são lidas pela percepção crítica aguda de suas incongruências. Dessa operação, em segundo lugar, derivava o fantástico que ainda era possível: se Todorov tivesse podido ler esse conto veria que a hesitação diante do "indecidível" só podia se "materializar", em Machado de Assis, como um corpo que ocupa o lugar de um espírito. Generalizando o que já se disse para outras práticas da época, existe na ficção a legitimação do que, naturalizado pelos discursos, faria hesitar diante dos fatos. O fantástico é, pois, incorporado à ficção machadiana como paródia de certos discursos e práticas das sociedades em geral (GRANJA, 2018GRANJA, Lúcia. Machado de Assis - antes do livro, o jornal: suporte, mídia e ficção [online]. São Paulo: Editora UNESP, 2018, 111 p., p. 66). Adaptando o que disse Hansen (2008______. Dom Casmurro: simulacro & alegoria. In: GUIDIN, Marcia Lígia; GRANJA, Lúcia; RICIERI, Francine Weiss (Org.). Machado de Assis: ensaios da crítica contemporânea. São Paulo: Editora da Unesp, 2008. p. 143-177., p. 148) para Dom Casmurro, inclui-se na construção da escrita ficcional a dramatização da legibilidade da imprensa diária, nesse caso, do registro do "verdadeiro" e do "real" no mundo das notícias.

Essa impressionante compreensão retórica da verossimilhança que o texto machadiano apresenta torna mais complexo o olhar sobre como o fantástico é construído neste conto, excedendo várias perspectivas teórico-críticas contemporâneas. Para isso, parece ser necessário, antes de tudo, encarar o fantástico sob outro ângulo. Irène Bessière (2009BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. Tradução de Biagio D'Angelo. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 3, set. 2009. Disponível em Disponível em https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/traducao2.pdf . Acesso em: 08 dez. 2022.
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) traz um diferente ponto de vista do relato fantástico ao interpretá-lo como uma forma baseada no que Camarani (2014CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. 216 p., p. 85) chamou de uma "razão paradoxal". O conto fantástico seria o resultado de uma lógica interna que o estrutura, constituído a partir de uma contraditoriedade que

provoca a incerteza ao exame intelectual, pois coloca em ação dados contraditórios, reunidos segundo uma coerência e uma complementaridade próprias. Ele não define uma qualidade atual de objetos ou de seres existentes, nem constitui uma categoria ou um gênero literário, mas supõe uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para o leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário coletivo (BESSIÈRE, 2009BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. Tradução de Biagio D'Angelo. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 3, set. 2009. Disponível em Disponível em https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/traducao2.pdf . Acesso em: 08 dez. 2022.
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, p. 305, grifos nossos).

O aparecimento de Alcibíades, no contexto das ideias que circulavam no Brasil do século XIX, e das quais Machado era forte crítico (SILVEIRA, 2010SILVEIRA, Daniela M. da. Fábrica de contos: ciência e literatura em Machado de Assis. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. 301 p. ), não é exatamente absurdo por seu caráter sobrenatural, mas por se basear em uma realidade que pode ser absurda, ou seja, aquela na qual homens sérios acreditam na possibilidade de invocar e dialogar com os mortos. O fantástico, dessa maneira, "não contradiz as leis do realismo literário, mas mostra que essas leis se tornaram irrealistas, visto que a atualidade é considerada totalmente problemática" (BESSIÈRE, 2009BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. Tradução de Biagio D'Angelo. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 3, set. 2009. Disponível em Disponível em https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/traducao2.pdf . Acesso em: 08 dez. 2022.
https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/...
, p. 307). Ele surge na forma conflituosa de se compreender a natureza a partir de uma perspectiva realista que se revela questionável por sua fragilidade ou, em outras palavras, por anular a ordem do real, sobrepondo-se a ele. A aparição improvável do "vero" Alcibíades provoca incerteza à análise, uma vez que seu conteúdo é contraditório: o grego é um morto que volta à vida, invocado de um passado de muitos séculos. A exposição dessa narrativa duvidosa, em forma de carta, é mais um empecilho para sua análise intelectual. Não há testemunha, não há outro ponto de vista, não há desenrolar dos fatos. Ela é toda uma construção retórica que se utiliza das ideias do tempo para transformar o inverossímil em verossímil, e, por isso, na única verdade apreensível.

A técnica constitutiva dessa lógica narrativa é, a priori, uma técnica retórica, o estabelecimento de uma relação com o leitor na qual este, conduzido pelo narrador, é manipulado e guiado em direção aos mistérios construídos no relato. Michel Viegnes destaca o fato de que "muitas histórias fantásticas são transposições diegéticas de certas figuras de linguagem, tais como sinédoque, hipálage, repetição em suas diversas formas"3 3 No original: "bon nombre de récits fantastiques sont des transpositions diégétiques de certaines figures de rhétorique, notamment la synecdoque, l'hypallage, la répétition sous ses formes diverses." (VIEGNES, 2006VIEGNES, Michel (Org.). Le fantastique. Paris: Éditions Flammarion, 2006. 240 p., p. 49). Esses tropos, convertidos em eventos fictícios, permitem à literatura fantástica criar sua própria ordem, que, instaurada pelo sobrenatural, é incerta: Alcibíades retorna como um homem redivivo, o que seria considerado impossível, mas tal retorno se dá no contexto de uma realidade que naturaliza a ideologia espírita, que lhe dá verossimilhança. O fantástico é resultante não da "hesitação entre duas ordens, mas da sua contradição e recusa mútua e implícita" (BESSIÈRE apud CAMARANI, 2014CAMARANI, Ana Luiza Silva. A literatura fantástica: caminhos teóricos. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. 216 p., p. 86).

A incerteza dessa ordem é a transposição diegética de um tropo básico, o oxímoro, "uma figura de linguagem que aproxima contradições e as sustenta em uma unidade impossível, sem progredir no sentido da síntese"4 4 No original: "a figure of speech which holds together contradictions and sustains them in an impossible unity, without progressing towards synthesis." (JACKSON, 2009JACKSON, Rosemary. Fantasy: The Literature of Subversion. London: Routledge, 2009. E-book. 224 p., p. 12). O oxímoro que sustenta "Uma visita de Alcibíades" é morto-vivo: "Era ele, não havia dúvidas que era ele mesmo, um morto de vinte séculos, restituído à vida, tão cabalmente como se viesse de cortar agora mesmo a famosa cauda do cão" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 262). Ainda que declare ter-se dado conta apenas posteriormente do avanço que aquele acontecimento representava para sua "carreira no espiritismo", a reação imediata foi apenas uma: "deixei-me ficar assombrado" (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882., p. 262). A ordem estabelecida pela chegada do Alcibíades ressuscitado é a fratura na realidade que contradiz o que o desembargador X toma como natural. Está construída aí a justaposição de verossímeis que representa a "colocação em forma estética dos debates intelectuais de um determinado período, relativos à relação do sujeito com o suprassensível ou com o sensível" (BESSIÈRE, 2009BESSIÈRE, Irène. O relato fantástico: forma mista do caso e da adivinha. Tradução de Biagio D'Angelo. Colaboração de Maria Rosa Duarte de Oliveira. Revista FronteiraZ, São Paulo, n. 3, set. 2009. Disponível em Disponível em https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/traducao2.pdf . Acesso em: 08 dez. 2022.
https://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/...
, p. 3). Essa ordem estabelecida, resultante da fragilidade dos discursos naturalizados, das ideologias importadas e das "puras niilidades" de todos os sistemas (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882.), é a ordem que deriva da lógica narrativa do fantástico.

Seu funcionamento, nesse sentido, parece muito mais derivado de uma característica modal do fantástico, baseada na forma de "organizar a estrutura fundamental da representação" na literatura "para transmitir de maneira forte e original experiências inquietantes à mente do leitor" (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora UFPR, 2006. 158 p., p. 12). Como "modo", queremos dizer que o fantástico está menos para um gênero literário e mais para um tipo de discurso que

não está preso às convenções de uma determinada época, nem indissoluvelmente ligado a um determinado tipo de artefato verbal, mas persiste como uma tentação e um modo de expressão em toda uma gama de períodos históricos, parecendo se oferecer, mesmo que apenas intermitentemente, como uma possibilidade formal que pode ser revivida e renovada5 5 No original: "not bound to the conventions of a given age, nor indissolubly linked to a given type of verbal artifact, but rather persists as a temptation and a mode of expression across a whole range of historical periods, seeming to offer itself, if only intermittently, as a formal possibility which can be revived and renewed." (JAMESON, 1975JAMESON, Fredric. Magical Narratives: Romance as Genre. New Literary History. v. 7, n. 1, Critical Challenges: The Bellagio Symposium, p. 135-163, Autumn, 1975. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.2307/468283 . Acesso em: 08 dez. 2022.
https://doi.org/10.2307/468283...
, p. 142, grifos nossos).

Quando Machado de Assis se propõe a escrever uma narrativa fantástica, ele a toma desse local tentador e persistente da literatura, como essa aura argumentativa que percorre a história das letras, das mitologias e epopeias à sátira menipeia, passando pelo auge do fantástico no século XIX. No entanto, ele modifica-a, transforma-a e renova-a a seu modo: ao escrever o fantástico, Machado subverte o que é compreendido ou definido como fantástico, seja no fim do século XIX, seja contemporaneamente. A modificação pode ser notada, por exemplo, na forma como trabalhou o conceito do "objeto mediador", que Remo Ceserani define, no relato fantástico, como algo que, "com sua concreta inserção no texto, se torna o testemunho inequívoco do fato de que o personagem-protagonista efetivamente realizou uma viagem, entrou em uma outra dimensão de realidade e daquele mundo trouxe o objeto consigo" (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora UFPR, 2006. 158 p., p. 74). Esse objeto mediador aparece com frequência em contos de Théophile Gautier, que Machado lia ou, ao menos, dos quais tinha notícias detalhadas, mais ou menos à mesma época, como mostra a "nota D" de Papéis avulsos. "O pé da múmia", por exemplo, do mesmo Gautier, conta a história de um homem que faz uma viagem onírica para o Egito antigo e retorna dele com um objeto daquele período. O escritor francês segue como modelo para seus contos a obra de E.T.A. Hoffmann (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora UFPR, 2006. 158 p.), que Machado certamente lera.

No caso desses autores citados, o objeto mediador é, de fato, um objeto, uma prova material daquilo que parecia, aos olhos do protagonista, mera ilusão dos sentidos ou algo ocasionado pelos sonhos. Machado, por outro lado, vai subverter esse paradigma ao trazer para o texto não um objeto como mediador, mas uma pessoa, o próprio Alcibíades, que é transportado do passado e permanece no tempo do diálogo com o narrador, depois, como o cadáver que vai lhe causar transtorno. No registro do fantástico, o cadáver é a prova material da invocação recreativa do desembargador X e será o objeto mediador que vai forçá-lo a escrever uma carta argumentativa para o chefe de polícia. Esse elemento - o corpo sem vida na área íntima da casa - é a encarnação de uma outra figura, a elipse, que deveria saltar aos olhos em "Uma visita de Alcibíades", já que tudo o que não é dito nesse texto deveria levar ao questionamento, à análise intelectual impossibilitada pela contrariedade estabelecida no fantástico. No caso da análise que fazemos do conto, a elipse escondeu, por mais de um século, o corpo morto de um belo homem nos aposentos íntimos do desembargador, de um homem, aliás, que insistia em acompanhar o juiz a um baile, e do qual esse último queria desembaraçar-se, por não chegar a dissuadi-lo.

Ainda que, genericamente, a elipse no fantástico se dê no "momento culminante da narração, quando a tensão está no leitor, e é forte a curiosidade de saber" (CESERANI, 2006CESERANI, Remo. O fantástico. Tradução de Nilton Cezar Tridapalli. Curitiba: Editora UFPR, 2006. 158 p., p. 74), Machado a transgride ao escolher a carta como forma que, por seu caráter imutável, aliada a esse narrador homodiegético, de falar cuidadoso e que mede as palavras que endereça ao chefe de polícia, indica uma discreta ocultação de intenções que exige uma análise mais desconfiada, à contrapelo. A minúcia do desembargador X, preocupado em contextualizar suas crenças e suas atitudes, faz parte da subversão machadiana do modo: em vez de pormenorizar a construção retórica da narrativa em seu conteúdo realista e ocultar a deflagração do sobrenatural, ele inverte esse paradigma apoiando-se na paródia aos discursos circulantes, e todo o encontro sobrenatural com Alcibíades é repleto de pormenores narrativos, enquanto as questões de nível prático parecem deixadas de lado. Tudo isso parece indicar, na verdade, a construção do detalhismo de um mentiroso compulsivo, ou de um mau mentiroso, para quem, talvez, exista a certeza de que sua "autoridade" não o condenará moral ou judicialmente, conforme o corpo no aposento seja resultado de um misterioso assassinato, ou das relações entre o juiz e um possível amante subitamente morto.

Retoma-se aqui o "estranho conúbio" entre a lógica fantástica e o discurso persuasivo. Citamos Meyer:

Para que haja retórica, é preciso que uma questão seja levantada e permaneça, a despeito do que a soluciona, ou em razão da resposta que a soluciona. Isso implica que o discurso que liga o orador ao auditório seja portador de outra questão que não a pergunta à qual a resposta responde explicitamente (MEYER, 2007MEYER, Michel. A retórica. Tradução de Marly N. Peres. São Paulo: Ática, 2007. 127 p. (Série Essencial)., p. 62).

Tendo em mente esse esquema relacional retórico, nota-se que em nenhum momento o desembargador põe em questão a pergunta motivadora de seu relato. Em vez disso, ele constrói toda uma história fantástica com o intuito de ocultar essa pergunta específica e, sem testemunhas - ao menos por aquilo que ele alega -, garante para si a verossimilhança de um relato que está dentro do aceitável no campo intelectual e discursivo: invoquei um morto, o espiritismo garante que haja muitos mistérios entre o céu e a terra, de forma que o corpo do espírito está no meu quarto, morto. No entanto, essa forma de evitar a questão, essa não especificação da pergunta, aponta para a probabilidade de que ela seja puramente retórica, visando a "eficácia do discurso, to eikós, o verossímil, não a verdade, alétheia" (HANSEN, 2013______. Instituição retórica, técnica retórica, discurso. Matraga - Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, Rio de Janeiro, v. 20, n. 33, p. 11-46, jul./dez. 2013. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/19759. Acesso em: 08 dez. 2022.
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, p. 20). O discurso retórico em "Uma visita de Alcibíades" surge, então, como uma forma de ocultar o que de fato ocorreu, a verdade dos fatos, uma vez que "o problema em questão não está, ele mesmo, em questão" (MEYER, 2007MEYER, Michel. A retórica. Tradução de Marly N. Peres. São Paulo: Ática, 2007. 127 p. (Série Essencial)., p. 67).

Se o verdadeiro problema do desembargador X não está exatamente em questão, a pergunta que deveria ser feita é: por que há um cadáver no quarto do desembargador X? Ou, ainda, por que o desembargador X precisa construir uma história mirabolante para explicar a presença de um homem vestido de toga (ou seja, quase nu para os padrões do século XIX) e morto no seu quarto? Essa é, certamente, uma pergunta sem resposta. Limitados pelo relato da carta, só resta aos leitores conformarem-se com a decisão que tomará o chefe de polícia ou perderem-se em elucubrações que nunca serão satisfeitas e que parecem espelhar o próprio fazer literário machadiano, um fazer aberto a novas análises, mas que repele ao máximo definição ou decifração absolutas. "Uma visita de Alcibíades" une dois elementos que parecem contraditórios: o discurso retórico na busca pela verdade e o relato fantástico como subterfúgio para ocultar essa mesma verdade. E o efeito obtido é justamente o assombro e a confusão diante de um acontecimento absurdo e insidioso que só pode ser verdade porque não há outra explicação para ele.

Renovando certos procedimentos do fantástico e atribuindo a eles ora um caráter galhofeiro, ora uma feição retórica, Machado de Assis criou o autor de um relato que transita entre fatos e ficção e que transcende a forma textual que o abriga: uma carta ao chefe de polícia utiliza-se da lógica fantástica para solucionar um problema intrincado e aparentemente sem solução, a presença de um corpo morto em um quarto de vestir. Diante de um olhar desconfiado e inclinado para análises de modos narrativos e procedimentos formais pouco verificados em sua obra, o autor se mostra ainda capaz de surpreender pela maneira única como construiu sua obra ficcional, especialmente seus contos e, mais especificamente, aqueles que podem ser lidos como "contos fantásticos". Eles representam uma expansão dos limites desse modo narrativo e parecem exigir, cada um à sua maneira, uma conceituação própria que abrigue o experimentalismo machadiano, seus jogos narrativos e metalinguísticos, sua forte ironia e sua consciência e conhecimento dos procedimentos retóricos e literários.

Referências

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  • 1
    Utilizamo-nos, para as citações, da primeira edição em livro de Papéis avulsos (ASSIS, 1882ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Typographia e Lithographia a vapor, Encadernaçao e Livraria Lombaerts & cia, 1882.), atualizando a ortografia.
  • 2
    A Lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto nº 4824, de 22 de novembro do mesmo ano, separou a Justiça e a Polícia de uma mesma organização. Consultada em: https://www.camara.leg.br/internet/infdoc/conteudo/colecoes/legislacao/legimpcd-06/leis1871/pdf15.pdf#page=5. Acesso em: 08 dez. 2022.
  • 3
    No original: "bon nombre de récits fantastiques sont des transpositions diégétiques de certaines figures de rhétorique, notamment la synecdoque, l'hypallage, la répétition sous ses formes diverses."
  • 4
    No original: "a figure of speech which holds together contradictions and sustains them in an impossible unity, without progressing towards synthesis."
  • 5
    No original: "not bound to the conventions of a given age, nor indissolubly linked to a given type of verbal artifact, but rather persists as a temptation and a mode of expression across a whole range of historical periods, seeming to offer itself, if only intermittently, as a formal possibility which can be revived and renewed."

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    11 Fev 2023
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