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GÊNERO E VEROSSIMILHANÇA EM "UMA VISITA DE ALCIBÍADES"

GENRE AND VERISIMILITUDE IN "UMA VISITA DE ALCIBÍADES"

Resumo

O texto analisa o conto "Uma visita de Alcibíades", de Machado de Assis, a partir de três elementos: a adoção do gênero epistolar, a imitação de lugares-comuns ou tópicas antigas e a crítica às convenções românticas. Logo, o estudo se volta para a maneira como a narrativa denuncia e historiciza seus códigos de composição, adotando o humor como veículo de desconcerto que confessa a artificialidade da narrativa.

Palavras-chave:
Machado de Assis; conto; epístola; sátira

Abstract

The text analyzes the short story "Uma visita de Alcibíades", by Machado de Assis, from three elements: the adoption of the epistolary genre, the imitation of commonplaces or old topics and the criticism of romantic conventions. Therefore, the study turns to the way the narrative denounces and historicizes its composition codes, adopting humor as a vehicle of disconcerting that confesses the artificiality of the narrative.

Keywords:
Machado de Assis; tale; epistle; satire

O conto "Uma visita de Alcibíades", publicado no Jornal das Famílias em 1876, foi assinado por Victor de Paula, pseudônimo de Machado de Assis. Em 1882, um texto homônimo saiu pela Gazeta de Notícias e, no mesmo ano, passou a integrar uma coletânea com doze contos, intitulada Papéis avulsos. A primeira versão, destinada a um público composto, sobretudo, por mulheres, é muito distinta das posteriores: nela, um desembargador galhofeiro e bonachão, Álvares, narra uma estória para moças ávidas por anedotas, durante um festejo natalino. Ao mirar um público leigo, o narrador encontra pretexto para investir em enunciados didáticos. Além disso, o suporte jornalístico exigia enredos curtos ou seriados, compatíveis com o espaço a eles destinado, pois o periódico, entre outras coisas, também abrigava figurinos, receitas de doces e conselhos de beleza.

O relato fantasioso da personagem fictícia, ao fazer reviver um antigo general grego no Brasil do Segundo Reinado, articula conhecimento histórico, ocorrências insólitas e elementos de ampla circulação naquele periódico, muitos deles relativos à moda. Além do cuidado com a redação e o estilo, é possível notar, na última variante de "Uma visita de Alcibíades", maior investimento no aspecto cômico, adoção de um novo gênero discursivo e a desconstrução de convenções romanescas. Todos esses aspectos, decisivos no que diz respeito à estrutura e ao arranjo das partes do texto, serão objeto de análise deste estudo.

O gênero epistolar

É sempre temerário supor a existência de rupturas drásticas e incontornáveis na história, pois a ideia sugere que pensamentos e ações poderiam irromper descoladas do seu próprio contexto cultural, a partir de ferramentas e pressupostos externos/transcendentais, ideais ou inconscientes. Essa precaução serve de estímulo para repensar a supressão dos preceitos retóricos por parte dos autores românticos, como se a literatura fosse desdobramento do ambiente nacional e pudesse ser imune aos protocolos da imitação/emulação. Felizmente, trabalhos como os de Roberto Acízelo de Souza (1999SOUZA, Roberto Acízelo de. O império da eloquência: retórica e poética no Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: EdUERJ; EdUFF, 1999.), João Adalberto Campato Júnior (2003CAMPATO JÚNIOR., João Adalberto. Retórica e literatura: o Alencar polemista nas Cartas sobre a Confederação dos Tamoios. São Paulo: Scortecci, 2003.) e Eduardo Vieira Martins (2005MARTINS, Eduardo Vieira. A fonte subterrânea: José de Alencar e a retórica oitocentista. Londrina: Eduel, 2005.) permitem relativizar a ruína da instituição retórica no século XIX, ao demonstrarem que a crítica idealista e o ensino escolar mantiveram, no seu bojo, as coordenadas e normas retiradas de tratados retórico-poéticos e manuais de eloquência que continuavam a circular pelo império brasileiro. Se Machado de Assis revitalizou as letras, nutrido por estímulos do seu presente, nem por isso deixou de empregar critérios muito tradicionais, inclusive para calçar a chamada "forma livre" ou "shandiana" (ROUANET, 2007ROUANET, Sérgio Paulo. Riso e melancolia: a forma shandiana em Sterne, Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), da qual teria sido um grande representante.

Ao cotejar as versões do conto "Uma visita de Alcibíades", por exemplo, é possível notar uma mudança estrutural: a adoção do gênero epistolar. A carta, escrita por um desembargador em 20 de setembro de 1875, teria por destinatário o chefe de polícia da corte. A estrutura com formato de missiva, no caso, supõe outra maneira de sistematizar a matéria, ao sugerir a existência de um diálogo franco, direto, por vezes protocolar, muito conveniente à brevidade dos contos. Trata-se de uma forma eficaz de estabelecer, não apenas com o destinatário, mas também com o leitor, a ilusão do diálogo, pois a epístola "exige o prosseguimento alternado e sucessivo das escritas. O destinatário é sempre o próximo remetente" (MUHANA, 2000MUHANA, Adma Fadul. O gênero epistolar: diálogo per absentiam. Discurso, n. 31, p. 329-345, 2000., p. 331).

Cícero (1933CÍCERO. Lettres Familiéres I (Livres I-VI). Tradução, prefácio e notas de Édouard Bailly. Paris: Garnier Frères, 1933., p. 70), ao tratar da ars dictaminis, menciona os dois tipos mais comuns: um "coloquial e bem-humorado"; outro sério e formal. Sêneca (2004SÊNECA. Cartas a Lucílio. Tradução, prefácio e notas de J. A. Segurado e Campos. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004., p. 305), por sua vez, nas cartas destinadas a Lucílio, encontra oportunidade para discorrer sobre o decoro implicado na escrita epistolar: "Tens-te queixado de receberes cartas minhas escritas sem grandes pruridos de estilo. Mas quem é que escreve com pruridos se não aqueles cuja pretensão se limita a uma eloquência empolada?".

Os preceitos do gênero continuaram operantes por muito tempo, afinal, "durante mais de 2 mil anos, escrever cartas foi o principal meio de comunicação a distância" (TIN, 2005TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp , 2005., p. 17). Basta lembrar que Erasmo de Roterdã, em seu De conscribendis epistolis opus (1522), dividiu as epístolas em três espécies, conforme os gêneros oratórios de Aristóteles (demonstrativo, deliberativo e judiciário), acrescentando a "carta mista" e subdividindo as quatro modalidades em 21 espécies. Em De conscribendis epistolis (1534), Juan Luis Vives optou pela divisão dual ciceroniana, classificando as epístolas em severas e familiares.1 1 Sobre os tratados de epistolografia, cf. TIN, 2005, p. 17-79.

No século XIX, a arte de escrever cartas continuava regrada, ou seja, ancorada em normas, decoros e tópicas (lugares-comuns) convenientes à matéria tratada, ao lugar social ocupado pelo destinatário e segundo o interesse explicitado pelo remetente. Para utilizar termos mais precisos, sua escrita dependia da invenção (inventio) dos argumentos, disposição (dispositio) de suas partes e escolha da elocução (elocutio) ou de palavras pertinentes, conforme a ocasião e tendo em vista a plausibilidade/verossimilhança da matéria e a promoção de efeitos sobre a audiência, que, devido à contingência e à diversidade das hierarquias sociais, demanda decoros específicos, sujeitos a tipologias e subgêneros variáveis cuja determinação se dá historicamente.

A arte em questão foi desenvolvida no Novo manual epistolar ou Arte de escrever todo o gênero de cartas segundo o gosto atual (1882), de Machado Coelho. O título, ao mencionar o "gosto atual", pode sugerir ao leitor, de forma equivocada, uma superação ou supressão dos modelos e preceitos vigentes, levando-se em consideração não apenas o caráter pragmático do manual, mas o fato de Coelho ter recorrido aos elementos da ars dictaminis, como a sugestão de uma escrita concisa e um estilo simples, sem o abuso de floreios. As lições da retórica greco-latina, como menciona Jean Pierre Chauvin (2019CHAUVIN, Jean Pierre. Uma preceptiva do Oitocentos: a Arte de escrever, de Machado Coelho. Revista USP, São Paulo, n. 121, p. 61-78, 2019., p. 75) em estudo sobre o manual, "continuavam a respaldar as preceptivas concebidas e publicadas, pelo menos até o final do século XIX".

Machado de Assis não ignorava a arte de escrever cartas, pois recorreu às suas técnicas com o intuito de reforçar a naturalidade da narrativa. Na sentença com que abre o conto, afirma: "Desculpe V. Exa o tremido da letra e o desgrenhado do estilo; entendê-los-á daqui a pouco" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 91). Há, no excerto, um primeiro esforço de simulação, a fundamentar a modéstia afetada, como se a escrita do relato tivesse ocorrido em momento dramático, quando o remetente estava com os nervos abalados. O argumento busca anular a distância temporal entre o acontecimento e sua narrativa, pois o estado psicológico impediria o floreio e a farsa, garantindo o teor verídico da missiva. Em outras palavras, o leitor dos Papéis avulsos não encontrará nenhum tremido nas letras ou problemas de estilo, mas a admissão da falha técnica reforça a naturalidade do traçado e, mais do que isso, cria no auditório um interesse pelo seu conteúdo, efetuando a tradicional captatio benevolentiae, prevista nos tratados de epistolografia. Supõe-se, claro, que uma carta dirigida ao chefe de polícia da corte, supostamente registrada com letra tremida, não contenha algo aprazível ou ameno. Essa suposição instiga a curiosidade do leitor do Oitocentos, ávido pelos dramas cortesãos e pelas notícias periódicas que circulavam na imprensa.

No parágrafo seguinte, o desembargador inicia a narração, informando que, naquele dia, após o jantar, sentou-se para ler um tomo de Plutarco, autor das Vidas paralelas. Trata-se de uma série de "biografias" sobre homens ilustres, gregos e romanos. Antes de prosseguir com a narratio, o remetente menciona seu vínculo com o destinatário, afirmando que foram "companheiros de estudos", quando padecia de uma "devoção" (ou "mania") pelo grego. Lendo a vida de Alcibíades, ele usufrui de uma "verdadeira digestão literária", pois a experiência permitiu-lhe viver os tempos antigos. A primeira visita inesperada, portanto, foi realizada pelo magistrado, que, por poucos minutos, teria abandonado seu mundo para transitar pela Antiguidade, com Plutarco na condição de guia: "Deixei-me ir ao sabor da loquela ática, daí a nada entrava nos jogos olímpicos, admirava o mais guapo dos atenienses, guiando magnificamente o carro, com a mesma firmeza e donaire com que sabia reger as batalhas, os cidadãos e os próprios sentidos" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 92).

No entanto, toda a "arqueologia" de sua imaginação soçobrou quando um rapaz entrou e acendeu o gás. Após narrar a interrupção da leitura, o desembargador passa a dissertar sobre outros assuntos, dizendo que era espiritista e que tal sistema poderia ser útil aos problemas históricos: "[…] é mais sumário evocar o espírito dos mortos, do que gastar as forças críticas, e gastá-las em pura perda, porque não há raciocínio nem documento que nos explique melhor a intenção de um ato do que o próprio autor do ato" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 92). É curioso observar como Marc Bloch, em sua Apologia da história, inverte o sentido do excerto anterior: "Qual historiador não sonhou poder, como Ulisses, alimentar as sombras com sangue para interrogá-las? Mas os milagres da Nekuia não estão mais em voga e não existe outra máquina de voltar no tempo senão a que funciona em nosso cérebro, com materiais fornecidos por gerações passadas" (BLOCH, 2001BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 74). Machado produz uma Nekuia2 2 Nekuia é um rito ou ritual que permite o regresso momentâneo das almas dos mortos, invocadas para fornecerem informações, em especial, a respeito do futuro, como ocorre no canto XI da Odisseia, de Homero. ao avesso, pois é o morto quem irrompe, depois de uma invocação sem ritos e hecatombes, fria como o temperamento da corte.

O raciocínio implicado no fragmento sobre o historiador, que parece sugerir questões recorrentes em nosso tempo, como a crítica documental e os pressupostos da autoria, levou o desembargador a evocar a presença do ateniense. Dois minutos depois, ele irrompeu,

mas não era a sombra impalpável que eu cuidara ter evocado pelos métodos da nossa escola; era o próprio Alcibíades, carne e osso, vero homem, grego autêntico, trajado à antiga, cheio daquela gentileza e desgarre com que usava arengar às grandes assembleias de Atenas, e também, um pouco, aos seus pataus. (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 92).

Como foi dito, a passagem inverte uma antiga tópica, relativa à descida ao mundo dos mortos (katábasis entre os gregos, descensus entre os latinos).3 3 Sobre o ritual da catábase, cf. BERNABÉ, 2015.

Machado subverte o sentido da catábase, pois não foi um homem que, por intermédio de rituais mágicos, acessou os ínferos, mas o morto que, a partir de uma invocação, ressurgiu entre os vivos em decorrência do espiritismo. A improbabilidade do feito associa o conto ao gênero fantástico, de modo que a descrença passa a ser um dos seus pressupostos. A dúvida, reforçada pelo próprio autor da carta, ancora a verossimilhança ao sugerir o teor incrível da trama: "Nutri ainda a esperança de que tudo aquilo não fosse mais do que o efeito de uma digestão mal rematada, um simples eflúvio do quilo, através da luneta de Plutarco" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 93). Algumas linhas atrás, o desembargador mencionara o componente "extraordinário da aventura". Um Alcibíades redivivo é, no caso, a ocorrência que extrapola o ordinário, mas a aparição não justifica, de pronto, o despacho de uma carta ao chefe de polícia, pois, a tomar pelas preceptivas do gênero, o fundamento da epístola é a petição, que o conto só explicita ao final.

Se, a princípio, pretendia consultá-lo sobre o vestuário de seu tempo, o magistrado acaba, a pedido do ateniense, narrando a atual situação de Atenas, "admirado de que os mortos lhe não houvessem contado nada" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 93). Ao descobrir que, com a morte, as almas perdem o interesse pelo mundo dos vivos, o narrador afirma que os pormenores foram fornecidos a título de exatidão.

A estrutura epistolar permite que Machado mobilize tópicas historiográficas recorrentes, como a proximidade entre a experiência relatada e a concretização da narrativa, o lugar do testemunho e a precisão dos detalhes. Tais expedientes também são recorrentes na ficção de língua inglesa, como é possível perceber na nota introdutória do Drácula (1897), de Bram Stoker (2015STOKER, Bram. Drácula: edição comentada. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. Rio de Janeiro: Zahar, 2015., p. 8), que alega: "Não há nenhuma afirmação sobre coisas passadas em que a memória pudesse falhar, pois todos os registros escolhidos são perfeitamente contemporâneos aos fatos e oferecidos a partir dos pontos de vista e dentro do espectro de conhecimentos das próprias pessoas que os fizeram". No prefácio à edição islandesa de 1901, o autor afirma que está "plenamente convencido de que não existe qualquer dúvida quanto à realidade dos acontecimentos descritos", por "mais inacreditáveis e incompreensíveis que possam parecer à primeira vista" (STOKER, 2015STOKER, Bram. Drácula: edição comentada. Tradução de Alexandre Barbosa de Souza. Rio de Janeiro: Zahar, 2015., p. 9). O romance é um experimento, com indivíduos a enfrentar suas intempéries internas (relatadas no registro íntimo dos diários e missivas) e ameaças externas, representadas por um morto-vivo.

Sátira menipeia

Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 348) propõe duas tipologias ao considerar a estrutura dos contos escritos pelo autor: uma "verista", ou seja, que imitam o encadeamento lógico da vida; outra "fantástica", por incluir textos que "subordinam os acontecimentos à lógica da fantasia interna das escolhas". Além disso, lembra que Machado adotou a sátira menipeia4 4 Sobre a sátira menipeia, cf. a introdução em SÊNECA, 2021. em muitos de seus textos curtos, com o intuito de ajustá-los ao veículo jornalístico. Tratava-se, em suma, de "fazer o texto parecer com o jornal, com o leitor e com o tempo de sua produção" (TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 141). Ou seja, imitar o discurso da época para colocá-lo em evidência e desconstruí-lo. Para tanto, o autor de Memórias póstumas teria recorrido à "forma livre", entendida como poética pautada na suspensão do efeito de ordem e no apego à inversão artificiosa, ao disfarce e à simulação. Assim, para além da adequação ao suporte dos periódicos, que demandam brevidade ou produção seriada de narrativas, a sátira menipeia contribui com a degradação dos gêneros "puros" tradicionais e com a formulação de situações extravagantes que intercalam passos cômicos e sérios.

Das qualidades que o narrador de Machado atribui ao grego redivivo, destacam-se a esperteza, o sarcasmo, a simplicidade, a dignidade e, acima de tudo, seu comportamento "gamenho", refletido na maneira como se mirava no espelho para assentar sua vestimenta e cuidar do porte. Abalado pela visita, o desembargador toma a resolução de partir sem demora e abandonar seu hóspede. Como desculpa, alega que deveria comparecer em um baile. Quando Alcibíades anima-se com a ideia de "dançar a pírrica", seu anfitrião explica-lhe que cada século "muda de danças como muda de ideias" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 95). Em seguida, arremata: "Nós já não dançamos as mesmas coisas do século passado; provavelmente o século XX não dançará as deste. A pírrica foi-se, como os homens de Plutarco e os numes de Hesíodo" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 95). O magistrado informa o fim do paganismo, a despeito dos esforços do século XVIII em dar-lhe abrigo por meio das "bebedeiras arcádicas". Diante da "indignação póstuma, e naturalmente postiça" do ateniense, lembrou-se de que ele era um "refinado hipócrita, um ilustre dissimulado" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 95). Suas tentativas de dispensá-lo foram ineficazes: "Calei-me; cheguei a cuidar que o pesadelo ia acabar, que o vulto ia desfazer-se, e que eu ficava ali com as minhas calças, os meus sapatos e o meu século" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 96). Típico da soberba burguesa atribuir valor a tudo e a todos, inclusive, ao século em que vive.

Alcibíades afirmou que trocaria seus trajes para ficar "à maneira do século", mas, cauteloso, solicitara que o desembargador se vestisse primeiro, para imitá-lo. Daí em diante, o contraste entre os tempos antigo e moderno se amplifica: o grego estranha os "canudos de pano", mas seu anfitrião afirma que sua época se destacava pelo recato, decoro e gravidade. O risinho de escárnio diante de seus "canudos pretos" acabou ofendendo seu "melindre de homem moderno". "Porque, note V. Exa, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas" (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 97). Seu esforço para se defender reforça o humor do episódio:

Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo e desgracioso é perfeitamente racional e belo, - belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodas recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. (ASSIS, 2007ASSIS, Machado de. 50 contos. Seleção, introdução e notas de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 97).

Depois da colocação irônica, baseada em estereótipos que simplificam a cultura antiga, Alcibíades atira-se sobre o desembargador para impedir que atasse sua gravata, imaginando que pretendia enforcar-se. Ele só a restitui depois que ouve a explicação sobre o acessório, mas, nem por isso, deixa de referir que deveria ser um século muito melancólico, já que trajavam vestes pretas, uma cor "tão morta e tão triste". Quando vestiu a casaca, o ateniense ficou consternado com os "canudos abertos" que acompanhavam os "canudos fechados", todos com a cor da noite. Depois que o narrador colocou o chapéu, o homem redivivo volta a morrer, e a carta se encerra quando o remetente solicita uma equipe que possa conduzir o defunto ao necrotério. Finalmente, a tão aguardada petição.

O retorno de Alcibíades torna possível um estranhamento radical, protagonizado por um indivíduo que não é apenas alheio ao Brasil, mas que viveu no século V a. C. Estranhar, no caso, incentiva a postura crítica e, portanto, denuncia a ingenuidade do leitor. O choque provocado pelas vestimentas modernas, que foi capaz de matar um indivíduo pela segunda vez, amplifica o contraste e leva o auditório a pensar em si. O antigo ressurge para fazer mofa do moderno, relativizando o progresso e os critérios que tendem à universalidade, como a ideia de bom gosto. Um morto, que a ficção ressuscita, denuncia a melancolia de um tempo que não é o seu, fazendo-o com ironia. A Grécia de Machado, no caso, "não é nenhum espaço sagrado, consagrado, intocável, acabado - pelo contrário, é aquela dimensão em que predomina a imperfeição, isto é, justamente a abertura que permite a outras épocas e lugares uma multiplicação de entenderes" (BRANDÃO, 2001BRANDÃO, Jacyntho Lins. A Grécia de Machado de Assis. In: MENDES, Eliana Amarante de Mendonça; OLIVEIRA, Paulo Motta; BENN-IBLER, Veronika (Org.). O novo milênio: interfaces linguísticas e literárias. Belo Horizonte: Editora UFMG; Fale, 2001, p. 351-374., p. 372).

A tópica do morto-vivo

Machado de Assis, além do gênero epistolar e da sátira, trabalhou com um antigo lugar-comum, presente, por exemplo, no canto XXVI d'A divina comédia, quando Dante e Virgílio encontraram Ulisses e Diomedes vagando como chamas ambulantes no oitavo círculo, na fossa reservada aos conselheiros pérfidos. O rei de Ítaca admite que capitaneou uma nau e dobrou as colunas de Hércules. Diferente do guerreiro astucioso que precisou superar obstáculos diversos para regressar a Ítaca, a personagem de Dante é um herói obstinado, incapaz de respeitar os limites instituídos. Posto no Inferno e condenado pelo artifício que lhe conferia distinção heroica na Antiguidade, o herói, assim como as outras sombras consultadas, não passa de um tipo pecador que desengana os ouvintes/leitores com a própria experiência. Suas escolhas temerárias foram lidas sob uma perspectiva cristã, para que seus vícios pudessem ser pensados como pecados que fazem sentido no tempo de Dante, mas não no de Homero. Trata-se, como no conto de Machado, de uma voz pretérita concebida e interpretada com ferramentas cognitivas comuns no tempo da enunciação.

No século II d. C., Luciano de Samósata adotou uma tópica similar, mas com o propósito de formular uma sátira. Em seu Diálogos dos mortos, alega que, após a travessia pelo rio dos mortos, Caronte cobra de Menipo o óbolo devido. Desprevenido, o filósofo cínico faz troça do barqueiro, deixando-o furioso e desconcertado. O deus mensageiro, que acompanhava o certame, ouve do velho ultrajado o seguinte desabafo: "Hermes, de onde tu nos trouxeste esse cão? Que coisas ele dizia durante a travessia… ele ria e zombava de todos os passageiros. Enquanto os outros gemiam, ele era o único que cantava" (SAMÓSATA, 2007SAMÓSATA, Luciano de. Diálogos dos mortos: versão bilíngue grego/português. Tradução, introdução e notas de Henrique G. Murachco. São Paulo: Palas Athena; Edusp, 2007., p. 55). Não por acaso, o autor da sátira se tornou referência a quem quisesse fazer da mofa o núcleo da literatura (em seu sentido mais amplo), como é o caso de Machado de Assis. Esse confronto com antigas personagens, ainda que mitológicas, produz desengano análogo àquele que o autor brasileiro proporcionou em sua obra, embora este não recorra a preceitos moralizantes, como se buscasse, no episódio incrível que relata, reforçar uma conduta edificante digna de ser replicada.

O conteúdo do texto machadiano faz recordar um conto, que Edgar Allan Poe publicou em 1845: "Breve colóquio com uma múmia", saído pela American Review. De início, como o desembargador de Machado, o narrador de Poe alega que sofria dos nervos ao escrever seu relato, voltado para um simpósio ocorrido na noite do dia anterior. Prestes a dormir, ele recebe um bilhete do dr. Ponnonner, que o convidava a ir a sua residência acompanhar a dissecação de uma múmia. O ataúde no qual estava confinada encontrava-se repleto de hieróglifos que revelavam sua identidade: Allamistakeo. Conforme Greicy Bellin (2010BELLIN, Greicy. "Pequena conversa com uma múmia": a faceta humorística de Edgar Allan Poe. Revista Letras, Curitiba, n. 82, p. 179-192, 2010., p. 187), o nome é bastante sugestivo, all + a + mistake, com um "o" suplementar, como se a inscrição mostrasse "aos pesquisadores que tudo o que eles acreditam não passa de um equívoco".

Para efeito de experimento, o grupo reunido resolve utilizar as "pilhas de Volta" para aplicar eletricidade no corpo mumificado. Depois de alguns testes, ela finalmente desperta: "Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, piscando depressa por vários minutos; em segundo, espirrou; em terceiro, sentou-se; em quarto, deu um murro no rosto do dr. Ponnonner" (POE, 2018POE, Edgar Allan. Edgar Allan Poe: medo clássico. Rio de Janeiro: DarkSide, 2018. v. 2., p. 98). Por fim, a múmia dirige uma censura aos senhores Gliddon e Buckingham, grandes conhecedores dos costumes e língua dos egípcios. Todos mantêm a calma, talvez em razão do "espírito da época, norteado pela regra dos contrários, aceitando o paradoxo e a impossibilidade como solução para tudo" (POE, 2018POE, Edgar Allan. Edgar Allan Poe: medo clássico. Rio de Janeiro: DarkSide, 2018. v. 2., p. 99).

A múmia relata que tinha setecentos anos e, por conta de um ataque de catalepsia, foi dada por morta e embalsamada viva. Além disso, desengana seus novos companheiros em diversos aspectos: desmente o paganismo ou politeísmo dos antigos egípcios; demonstra familiaridade com as premissas da frenologia e do magnetismo animal ou mesmerismo; menciona o porte das antigas construções, muito superiores às modernas; critica os transcendentalistas; atenua os efeitos do progresso e os fundamentos da democracia. Por fim, o dr. Ponnonner rivaliza com os antigos no que diz respeito à moda e a múmia, reparando no vestuário circunstante, "abriu aos poucos um sorriso" (POE, 2018POE, Edgar Allan. Edgar Allan Poe: medo clássico. Rio de Janeiro: DarkSide, 2018. v. 2., p. 108), assumindo uma postura zombeteira.

Não é difícil entrever o teor humorístico, a relativizar a ideia de evolução e supor que a contenda entre antigos e modernos poderia ilustrar um pastiche. Com sarcasmo e despeito, a comitiva pergunta à múmia sobre pastilhas de garganta e os comprimidos de Brandreth, invenções do Oitocentos. "O egípcio corou e abaixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado, jamais uma derrota foi tão mal aceita" (POE, 2018POE, Edgar Allan. Edgar Allan Poe: medo clássico. Rio de Janeiro: DarkSide, 2018. v. 2., p. 109). O narrador, no desfecho do conto, tomou a resolução de abandonar a família e, especialmente, o século XIX, no qual tudo ia de mal a pior. "Além do mais, estou curioso para saber quem será o presidente em 2045. Sendo assim, tão logo me barbeie e tome uma xícara de café, vou dar um pulo na casa de Ponnonner e me embalsamar pelos próximos duzentos anos" (POE, 2018POE, Edgar Allan. Edgar Allan Poe: medo clássico. Rio de Janeiro: DarkSide, 2018. v. 2., p. 109).

Embora não se trate de um redivivo, já que, em tese, não havia morrido, as analogias com "Uma visita de Alcibíades" são plausíveis. Poe e Machado apelam para personagens do passado, portadores de um olhar externo, estrangeiro, estranho. Embora uma múmia centenária e um ateniense redivivo sejam os maiores atrativos dos contos, capazes de atrair a atenção do público, talvez a ideia de imortalidade ou a invocação dos mortos não sejam a ênfase dos textos, mas o desconcerto que os olhares dessas personagens provocam. Os mortos não conferem sentido à morte, que é indizível. No entanto, a característica insólita provoca um desengano quanto às formas de enunciação, amplificando o cômico e conduzindo o olhar moderno pelas contingências do seu tempo e pelos absurdos que elas fazem repercutir.

Já no conto "O imortal", publicado em 1872 (com o título "Rui de Leão") e relançado dez anos depois, Machado atribui voz ao dr. Leão, médico homeopata que relata a duradoura vida de seu pai. Para fazê-lo, segundo Hansen (2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006.), mobiliza lugares-comuns românticos, repetidos com variações para preencher a síntese biográfica, repleta de aventuras e adversidades articuladas à história do Brasil. Diferente de Alcibíades, que dura o intervalo de um breve colóquio noturno, o pai de Rui de Leão vive 255 anos graças a uma solução mágica. É como se, "vivendo o impossível da imortalidade, a cada nova experiência estivesse condenado a efetivamente viver as possibilidades restritas de uma vida só mortal, repetindo na longa extensão da sua as mesmas poucas experiências da vida breve de todos, o amor, a aventura e a intriga" (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 60). Mesmo livre da morte, ele continua sujeito às contingências da existência mundana.

Machado contesta a pertinência e eficácia da complicação sentimental e do heroísmo no seu presente, elementos tão valorizados durante o Romantismo, quando substitui a seriedade desses temas convencionais pela degradação e pela deformidade cômica, implicadas na fantasia da imortalidade. O impacto da falta de sentido da vida, que fulminou Alcibíades de pronto ao manifestar-se no modo como os homens se vestiam no século XIX, levou o pai do dr. Leão a encontrar uma maneira de regressar à condição humana, para morrer. O procedimento é similar e o pressuposto, análogo: o progresso não traz reconforto, pois torna a imortalidade/ressurreição um verdadeiro tédio. A improbabilidade de atingir a condição de eterno ou redivivo, temas outrora tratados com seriedade em gêneros graves, como o trágico e o épico, apenas agrava o humor das sentenças e a precariedade dos códigos reguladores da vida social.

O desconcerto romântico

Segundo Ivan Teixeira (2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 149), os contos de Papéis avulsos sugerem, dentre outras coisas, que "a arte não deve imitar a vida, mas deformá-la por força da fantasia". Em rigor, "a arte será representação fabulosa dos textos que compõem o mundo como matéria cognoscível". Sendo assim, os textos curtos, reunidos por Machado, "funcionarão como paródia ou imagem cômica da ordem das coisas na cultura. Fundados em generalizações extremadas, identificam-se, como se tem visto, com o humor alegórico que produz tanto o riso pensativo quanto a reflexão irônica" (TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010., p. 150). Não se trata de uma crítica à moda, mas ao sistema romântico que, inventando as estéticas, edificou o gosto como critério definidor das artes; a originalidade como expressão autêntica da subjetividade; as grandes descrições naturais como figurações da sublime criação divina. Ao fazer ruir a naturalidade do progresso, Machado também denuncia a historicidade de suas formas, demonstrando que o extraordinário das intrigas revela, para o leitor, o ordinário e a mediocridade de suas vidas, degeneradas pela bile negra.

Não é despropositado lembrar que

A partir de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis passou a escrever ficção como dispositivo que dissolve o princípio de causalidade da verossimilhança. É por isso que, nesse livro, sua arte aparece para o leitor como funcionalidade do procedimento a nu, que torna indecidível o sentido da história narrada (HANSEN, 2006HANSEN, João Adolfo. "O imortal" e a verossimilhança. Teresa, São Paulo, n. 6-7, p. 56-78, 2006., p. 76).

Sua adesão ao gênero epistolar sugere domínio dos protocolos, mas as mesmas prescrições que mobiliza são utilizadas para degradar os estilos e demonstrar sua eficácia sempre relativa. O esforço de emprestar veracidade à narrativa impossível acentua a ironia dos enunciados e, mais do que isso, transforma temas sérios em paródias risíveis, porque desconcertantes. A tomar pelo gênero "misto", o teor fantástico da carta soa verossímil, pois os comportamentos de personagens improváveis, como uma múmia centenária, um homem imortal e um antigo e redivivo estratego grego, ressaltam as ações, os critérios e as motivações de uma modernidade vaidosa incapaz de olhar para si com o estranhamento necessário.

Ao final do conto, fica evidenciado o motivo da carta: pedir que o chefe de polícia da corte tomasse as providências necessárias para transportar o corpo de Alcibíades ao necrotério. Nada de piras fúnebres, mulheres a arrancarem suas madeixas ou os dias de luto devidos a grandes homens, como era costumeiro na Grécia antiga, mas um possível exame de corpo de delito (assassinado pelo mau gosto da burguesia?) e uma gaveta em lugar onde os corpos são dispostos com indiferença. Ainda assim, o corpo é a última prova, a atestar a veracidade da missiva, ou melhor, sua verossimilhança, sujeitada aos preceitos da falsa ficção, do fantástico. O desfecho parece sugerir que, pior do que morrer novamente, seria viver como moderno.

Avesso a moralismos, Machado não busca respostas definitivas, como faziam os grandes heróis da Antiguidade, quando desciam aos ínferos para consultar as almas e saber delas o sentido da existência. Certo da sua falta de sentido, resta a Machado explicitá-la, tornando seu presente insuportável à sensibilidade de uma personagem de Plutarco. A retomada das Vidas paralelas talvez remeta, equivocadamente, à ideia de que o autor apague a historicidade para nivelar o desembargador e Alcibíades, ambos retratados como vítimas da vanitas, da vaidade. De fato, o paralelo existe, mas não pela negligência histórica. A morte por desgosto do ateniense demonstra a cesura, e não a continuidade dos tempos. A Grécia de Machado reforça o dinamismo e a contingência, sem apelar para valores universais e fórmulas acabadas. Por sinal, a resposta à carta acaba ficando a cargo do leitor, verdadeiro destinatário da obra.

Erasmo de Roterdã recomenda: "Após ter pesado todas as coisas com cuidado, devemos primeiramente determinar que escritores devemos imitar" (TIN, 2005TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp , 2005., p. 116). O fundamento retórico da arte se evidencia no empenho imitativo/emulativo. Machado realiza esse esforço, não porque encare a imitação como alicerce da sua ficção, mas para formular um episódio fantasioso, sugerindo que a subversão da linguagem pode ser realizada com regra e medida, como aquela concretizada pelo defunto-autor, Brás Cubas. Sendo assim, "Uma visita de Alcibíades" conjuga, pelo menos, três registros de verossimilhança: epistolar (com suas formalidades e seus protocolos); satírico (ao dilapidar as convenções românticas, revelar sua artificialidade e consumar uma inverossimilhança estrutural aparente, resultante da desarmonia e da explicitação da regra que configura a ficção); fantástico (para desconcertar o leitor e permitir que possa flagrar o artifício empregado). Ao emprestar consistência à trama, desvirtuando, de forma cômica e precisa, as engrenagens do status quo e os códigos linguísticos atinentes ao bom gosto do público, esse tripé funciona como simulacro das opiniões tidas por verdadeiras e, simultaneamente, como denúncia da sua precariedade.

Referências

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  • TEIXEIRA, Ivan. O altar & o trono: dinâmica do poder em O Alienista. Cotia: Ateliê; Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
  • TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp , 2005.
  • 1
    Sobre os tratados de epistolografia, cf. TIN, 2005TIN, Emerson (Org.). A arte de escrever cartas: Anônimo de Bolonha, Erasmo de Rotterdam, Justo Lípsio. Campinas: Editora da Unicamp , 2005., p. 17-79.
  • 2
    Nekuia é um rito ou ritual que permite o regresso momentâneo das almas dos mortos, invocadas para fornecerem informações, em especial, a respeito do futuro, como ocorre no canto XI da Odisseia, de Homero.
  • 3
    Sobre o ritual da catábase, cf. BERNABÉ, 2015BERNABÉ, Alberto. What is a katábasis?: the Descent into the Netherworld in Greece and the Ancient Near East. Les Études Classiques, Namur, n. 83, p. 15-34, 2015..
  • 4
    Sobre a sátira menipeia, cf. a introdução em SÊNECA, 2021______. Apocolocintose do Divino Cláudio. Tradução, introdução e notas de Frederico de Sousa Silva. Curitiba: Kotter, 2021..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2022
  • Aceito
    13 Set 2022
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