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MACHADO DE ASSIS: INTERSECÇÕES E CONTRASTES ENTRE A CRÍTICA TEATRAL E OS CONTOS DO JORNAL DAS FAMÍLIAS

MACHADO DE ASSIS: INTERSECTIONS AND CONTRASTS BETWEEN THEATRICAL CRITICISM AND THE SHORT STORIES OF THE JORNAL DAS FAMÍLIAS

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo apresentar pontos de intersecções e contrastes entre o Machado de Assis crítico teatral e o contista. Como ele acreditava que o jornal e o teatro estavam a serviço da instrução moral, é possível aproximar e distanciar o crítico do contista em um momento em que praticamente exerceu as duas atividades: de 1862 a 1864 como censor, e de 1864 em diante no Jornal das Famílias. Para isso, o estudo inicia-se com a comparação da carta-programa do Jornal das Famílias com as regras estabelecidas pelo Conservatório Dramático Brasileiro e, posteriormente, com os dezesseis pareceres de Machado no cargo de censor, de forma a observar-se como o conceito de moralidade e os valores dela foram construídos.

Palavras-chave:
Machado de Assis; crítica teatral; Jornal das Famílias

Abstract

The present work aims to present points of intersection and contrasts between the theatrical critic Machado de Assis and the short story writer. As he believed that the newspaper and the theater were at the service of moral instruction, it is possible to bring the critic closer and further away from the short story writer at a time when he practically carried out both activities: from 1862 to 1864 as a censor, and from 1864 onwards in the Jornal das Famílias. For this, the study begins with a comparison of the program letter of the Jornal das Famílias with the rules established by the Brazilian Dramatic Conservatory and, later, with the sixteen opinions of Machado in the position of censor, in order to observe how the concept and values of morality were constructed.

Keywords:
Machado de Assis; theatrical criticism; Jornal das Famílias

Introdução

No período de 1862 a 1864, Machado de Assis foi membro do Conservatório Dramático Brasileiro, juntando-se a outros vinte censores, cuja função era a elaboração de pareceres, que deveriam ser emitidos conforme as disposições presentes na Resolução Imperial de 1845. Ao longo de dezesseis pareceres referentes aos exames censórios, Machado revela-se um crítico preocupado com "a moral e os bons costumes". No mesmo ano de 1864, tornou-se colaborador do Jornal das Famílias e o que se nota é que, ao contrário do censor preocupado com a moralidade, há um contista com olhar crítico sobre essa mesma realidade.

O caráter moralista e civilizador justifica-se pelo fato de que ele, assim como José de Alencar e Quintino Bocaiuva, almejava um teatro que fosse, segundo Faria (1993FARIA, João Roberto. O teatro realista no Brasil: 1855-1865. São Paulo: Perspectiva; Edusp, 1993., p. 153), muito além de um "passatempo das massas", "um instrumento de civilização e moralização dos costumes, pois acreditava na função educativa da arte, que devia caminhar na vanguarda do povo como uma preceptora".

Machado, naquele momento, era tão adepto da ideia do papel civilizador do teatro que o colocava em posição de superioridade com relação a outros meios de representação, o jornal e a tribuna, ainda que todos colaborassem para a educação pública, consoante apresenta em suas "Ideias sobre o teatro", no periódico O Espelho:

Há porém uma diferença: na imprensa e na tribuna a verdade que se quer proclamar é discutida, analisada, e torcida nos cálculos da lógica; no teatro há um processo mais simples e mais ampliado; a verdade aparece nua, sem demonstração, sem análise.

Diante da imprensa e da tribuna as ideias abalroam-se, ferem-se, e lutam para acordar-se; em face do teatro o homem vê, sente, palpa; está diante de uma sociedade viva, que se move, que se levanta, que fala, e de cujo composto se deduz a verdade, que as massas colhem por meio da iniciação. De um lado a narração falada ou cifrada, de outro a narração estampada, a sociedade reproduzida no espelho fotográfico da forma dramática.

É quase capital a diferença.

Não só o teatro é um meio [...] mais eficaz, mais firme, mais insinuante.

É justamente o que não temos.

As massas que necessitam de verdades, não as encontrarão no teatro destinado à reprodução material e improdutiva de concepções deslocadas da nossa civilização - e que trazem em si o cunho de sociedades afastadas. (ASSIS, 1859ASSIS, Machado de. Ideias sobre o teatro. O espelho: revista de literatura, modas, indústria e artes, Rio de Janeiro, n. 5, p. 1-2, 2 out. 1859., p. 2).

Assim, temos um Machado crítico teatral, engajado na construção de um teatro nacional, com caráter formador, e um Machado atuando como contista do Jornal das Famílias, preocupado em deslindar algumas facetas um tanto quanto imorais da sociedade da época e um tanto quanto inapropriadas - na visão dele - na literatura, ao combater o Romantismo.

Machado censor teatral

O Conservatório Dramático Brasileiro existiu em dois momentos: de 1843 a 1864 e de 1871 a 1897. Ao longo de seu primeiro momento de existência, foram instituídos vários decretos que regulavam tanto a atividade censória quanto os cargos: o decreto nº 425, de 19 de julho de 1845BRASIL. Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845. Estabelece as regras, que se devem seguir para a censura das peças, que houverem de ser representadas nos teatros desta Corte; e faz extensivas aos das províncias as que lhes são aplicáveis. In: ______. Coleção das leis do Império do Brasil de 1845. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846. t. 8, parte 2, p. 83-85., conferiu ao Conservatório Dramático o exame prévio das peças teatrais e o de nº 622, de 24 de julho de 1849, trata da criação do cargo de inspetor geral dos teatros da Corte. O artigo terceiro apresenta a obrigação do inspetor, que não receberia ordenado, só ganharia aquilo que o governo achasse conveniente:

Incumbe ao Inspetor fiscalizar o emprego dado pela Direção de cada Teatro aos auxílios, que lhe tiverem sido, ou forem concedidos, e inspecionar a marcha dos Teatros, sobretudo no que respeita ao cumprimento das obrigações, com que lhes tem sido ou forem outorgados quaisquer auxílios. (BRASIL, 1849______. Decreto nº 622, de 24 de julho de 1849. Estabelece um inspetor para os teatros desta corte, subsidiados pelo governo, ou protegidos com loterias. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1849. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1849. t. 12, parte 2, p. 98., p. 98).

O decreto nº 425, de 19 de julho de 1845BRASIL. Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845. Estabelece as regras, que se devem seguir para a censura das peças, que houverem de ser representadas nos teatros desta Corte; e faz extensivas aos das províncias as que lhes são aplicáveis. In: ______. Coleção das leis do Império do Brasil de 1845. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846. t. 8, parte 2, p. 83-85., assinado pelo conselheiro de Estado, ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império José Carlos Pereira d'Almeida Torres, estabeleceu as regras que orientavam a prática da censura das peças que eram representadas tanto na Corte quanto nas províncias. Elas deveriam ser enviadas pelas diretorias dos teatros ao secretário do Conservatório Dramático, que por seu turno, através de um protocolo, seria responsável por registrar a entrega, a fim de que fossem remetidas ao presidente do Conservatório. A partir daí, a peça a ser analisada era destinada a um membro censor designado pelo secretário. O artigo terceiro do decreto em questão apresenta orientações quanto à importância da clareza do parecer:

Se o Censor não puser dúvida à representação da Peça, e o Presidente se conformar com este voto, expedirá logo a licença. Se o Presidente, porém, se não conformar, ou entender que a matéria deve ser mais bem elucidada, mandará a Peça a novo Censor. Convindo este com o primeiro, o Presidente é obrigado a licenciar a representação; mas não convindo, fica ao arbítrio do Presidente dar, ou negar a licença. (BRASIL, 1845BRASIL. Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845. Estabelece as regras, que se devem seguir para a censura das peças, que houverem de ser representadas nos teatros desta Corte; e faz extensivas aos das províncias as que lhes são aplicáveis. In: ______. Coleção das leis do Império do Brasil de 1845. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846. t. 8, parte 2, p. 83-85., p. 83).

Nenhuma peça teatral poderia ser apresentada ao chefe de polícia sem a devida censura do Conservatório. Caso isso ocorresse, a punição seria o fechamento do teatro naquela noite. E mais: se alguma fosse representada sem aprovação do conservatório e da polícia, a diretoria da peça ficaria "sujeita à prisão de 3 meses" e "multa, para cada um de seus membros, de cem mil réis".

O segundo momento de existência do Conservatório Dramático (1871-1897) é marcado pelo estabelecimento do decreto nº 4666______. Decreto nº 4.666, de 4 de janeiro de 1871. Cria nesta Corte um novo Conservatório Dramático, marca suas atribuições e dá outras providências. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1871. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1871. t. 34, parte 2, p. 9-11., de 4 de janeiro de 1871, e revogação dos anteriores. O novo, assinado pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do Império João Alfredo Corrêa de Oliveira, inicia com considerações a respeito do antigo Conservatório, a sua ineficiência, a justificativa de sua alteração e trata das diretrizes que devem orientar a nova atividade censória teatral:

Tendo a experiência demonstrado que nem com as medidas do Decreto nº 425 de 19 de Julho de 1845BRASIL. Decreto nº 425, de 19 de julho de 1845. Estabelece as regras, que se devem seguir para a censura das peças, que houverem de ser representadas nos teatros desta Corte; e faz extensivas aos das províncias as que lhes são aplicáveis. In: ______. Coleção das leis do Império do Brasil de 1845. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1846. t. 8, parte 2, p. 83-85., que conferiu ao conservatório dramático o exame prévio das peças teatrais, nem com as do Decreto nº 622 de 24 de Julho de 1849______. Decreto nº 622, de 24 de julho de 1849. Estabelece um inspetor para os teatros desta corte, subsidiados pelo governo, ou protegidos com loterias. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1849. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1849. t. 12, parte 2, p. 98., que criou o cargo de Inspetor geral dos teatros da Corte, se [sic] conseguiu melhorar o teatro nacional, elevando-o ao nível da cultura intelectual e moral da nossa sociedade; e convindo tomar providências eficazes a fim de restaurar as boas normas da literatura e da arte dramática do teatro brasileiro: Hei por bem decretar o seguinte: [...] (BRASIL, 1871______. Decreto nº 4.666, de 4 de janeiro de 1871. Cria nesta Corte um novo Conservatório Dramático, marca suas atribuições e dá outras providências. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1871. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1871. t. 34, parte 2, p. 9-11., p. 9).

Na verdade, o que se nota é que as regras referentes à censura teatral são as mesmas nos dois momentos de existência do Conservatório; entretanto, foram adicionados alguns pontos relacionados à inspeção interna dos teatros, o livre acesso dos censores tanto nos dias do espetáculo quanto nos de ensaio, a presença constante de pelo menos um membro do corpo censório do estabelecimento em todas as representações e a contratação de uma empresa ou companhia que faria o papel do Conservatório enquanto não houvesse a organização definitiva do teatro nacional.

Dar-se-á destaque ao artigo oitavo do decreto, que oferece detalhes sobre os parâmetros da censura:

O exame das peças destinadas aos teatros não subvencionados versará unicamente sobre a moralidade, a religião e a decência. O exame das peças destinadas aos teatros subvencionados se estenderá também ao merecimento literário (BRASIL, 1871______. Decreto nº 4.666, de 4 de janeiro de 1871. Cria nesta Corte um novo Conservatório Dramático, marca suas atribuições e dá outras providências. In: Coleção das leis do Império do Brasil de 1871. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1871. t. 34, parte 2, p. 9-11., p. 10).

Os critérios apontados pelo decreto foram observados à risca por Machado de Assis em seus dezesseis pareceres. Já no primeiro, após criticar a tradução disparatada de uma obra do francês para o português, manifesta preocupação com os rumos que o teatro estava tomando naquele momento, ainda que tenha autorizado a realização da peça:

Pena é que os nossos teatros se alimentem de composições tais, sem a menor sombra de mérito, destinadas a perverter o gosto e a contrariar a verdadeira missão do teatro. Compunge deveras um tal estado de coisas a que o governo podia e devia pôr termo iniciando uma reforma que assinalasse ao teatro o seu verdadeiro lugar.

[...]

Sinto deveras ter de dar o meu assenso a esta composição porque entendo que contribuo para a perversão do gosto público e para a supressão daquelas regras que devem presidir ao teatro de um país de modo a torná-lo uma força de civilização. Mas como ela não peca contra os preceitos da nossa lei, não embaraçarei a exibição cênica de Clermont ou A mulher do artista, lavrando-lhe todavia condenação literária e obrigando pelas custas autor e tradutor. (ASSIS, on-line______. O ideal do crítico. Machado de Assis: vida e obra. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/107_128211801a2d496ca76d98609f0fe81f>. Acesso em: 29 jun. 2023.
http://machado.mec.gov.br/obra-completa-...
).

Faz-se relevante notar que, mesmo com uma tradução malfeita de mais uma "banalidade literária", que não contribuía para formação do espectador, aspectos voltados ao mérito literário, Machado de Assis permitiu a exibição em razão de não ferir os critérios e a moralidade, a religião e a decência. Os valores sociais se sobrepuseram ao literário.

No parecer sobre a comédia A mulher que o mundo respeita, de Veridiano Henrique dos Santos Carvalho, Machado nega a licença da peça por ser um "episódio imoral, sem princípio nem fim", e dispensa fazer qualquer apreciação quanto às "condições literárias" por ser uma "baboseira". Nota-se que há muito mais preocupações relacionadas ao julgamento moral dos conteúdos das peças do que as relacionadas à estética.

No parecer - favorável - sobre a tradução da comédia As leoas pobres, de E. Augier e E. Foussier, exalta como a peça contribui para a manutenção da moralidade e, simultaneamente, apresenta orientações sobre como se deve elaborar uma obra nos moldes que se esperava:

É simples a razão desta vitória do autor de As leoas pobres. Sempre que o poeta dramático limita-se à pintura singela do vício e da virtude, de maneira a inspirar, esta a simpatia, aquele o horror, sempre que na reprodução dos seus estudos tiver presente a ideia que o teatro é uma escola de costumes e que há na sala ouvidos castos e modestos que o ouvem, sempre que o poeta tiver feito esta observação, as suas obras sairão irrepreensíveis no ponto de vista da moral. (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/i...
).

Em um outro julgamento - também favorável - sobre a tradução da comédia Os íntimos, de Victorien Sardou, exalta a alta moralidade e o alto valor literário da obra e a recomenda pelo fato de sua moralidade dirigir-se a toda a sociedade humana, na qual "a boa-fé da amizade foi muitas vezes aviltada pelo cálculo e pela malícia" e acrescenta, num tom mais crítico, bem próximo ao que se vê em seus contos do Jornal das Famílias: "E não me consta de sociedade alguma onde a simplicidade e a pureza dos costumes tenham feito desaparecer essa face do vício".

É interessante abrir um parêntese na discussão. Em 1865, Machado escreve "O ideal do crítico", para o Diário do Rio de Janeiro. O autor defende a necessidade de uma "crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade", uma "crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada", único meio, na visão dele, de "reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos" (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/i...
). Deve-se combater o "ódio, a camaradagem e a indiferença", considerados "chagas" naquele momento. Para se ter uma grande literatura, indica a "sinceridade, a solicitude e a justiça", coerência, tolerância, conselho, moderação, urbanidade e perseverança (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
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).

Ao longo da atividade censória machadiana, nota-se a aplicação dessas orientações constantes n'"O ideal do crítico". Em seus pareceres, Machado de Assis tem o cuidado de apontar os problemas nos textos, sugere alterações em enredos, diálogos, personagens, justificando que para se tornar um bom autor no futuro deve-se observar os defeitos no presente, como ocorre no parecer sobre o drama O anel de ferro, de Areires:

Estas observações têm por fim indicar de passagem ao autor os escolhos a evitar no futuro, e se as faço com liberdade, faço-as também com a convicção de que o talento do autor pode sem dúvida triunfar dos defeitos de hoje e tomar conscienciosamente o caminho do progresso. (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
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).

Em outro parecer, sugere que o autor estude para compensar o que lhe carece:

[...] o autor pode pelo estudo alcançar o que lhe falta. O procedimento contrário seria uma traição. Desejo que o autor se convença de que deve legitimar as suas aspirações com o estudo constante dos modelos, estudo que, ao lado da observação dos sentimentos, é o único meio de conseguir uma glória imperecível, e antes disso, o aplauso legítimo da crítica sincera. (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
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).

Quando Machado aponta, em seu texto no Diário do Rio de Janeiro, a importância de o crítico ser tolerante, enfatiza também a necessidade da tolerância com as diferenças de escola:

[...] se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira; do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras dos românticos e dos realistas, tão inteira justiça, como estes devem fazer às boas obras daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma verdade na obra de um realista. (ASSIS, on-line______. Pareceres de Machado de Assis a diversas peças teatrais. Disponível em: <machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/112_5f6ed6ebdd45cd22a4c0d138176c2aa5>. Acesso em: 29 jun. 2023.
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).

Porém, o que se observa em alguns contos do Jornal das Famílias é que Machado, além de um crítico dos costumes, é um crítico do Romantismo, conforme será explorado.

O papel - social - d'O Jornal das Famílias

O Jornal das Famílias, de responsabilidade do editor Baptiste-Louis Garnier, teve seu primeiro número no ano de 1863 (e estendeu-se até 1878), com enfoque literário e voltado ao público feminino. A revista em questão foi a continuação da Revista Popular (1859-1862), mais variada, voltada a informações e detentora de um público mais diverso.

Em 1864, Garnier convidou o jovem escritor Machado de Assis para escrever regularmente no Jornal das Famílias. Embora se tivesse um Machado de Assis um pouco distinto daquele da fase madura, assim convencionada a partir da produção de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), não se pode ignorar que a elaboração dos contos dessa fase inicial, no exercício da censura teatral e tantas outras contribuições do autor auxiliaram na construção do grande Machado que a crítica reconhece e enaltece.

Para reexaminar essa primeira fase dos contos machadianos, o presente artigo toma como apoio o estudo realizado por Crestani (2006CRESTANI, Jaison Luís. A colaboração de Machado de Assis no Jornal das Famílias: subordinações e subversões. In: Patrimônio e Memória, Assis, v. 2, n. 1, 2006, p. 146-175.), que reconhece que houve exigências por parte do Jornal das Famílias para a elaboração de textos naqueles moldes:

[...] avaliando o contexto original em que Machado de Assis produziu os seus primeiros contos, podemos notar, com base nas considerações dos críticos citados, que as condições e critérios impostos pelo periódico em questão podem implicar transformações e variações que vão desde aspectos aparentemente triviais, como a extensão das histórias, feitas até certo ponto sob medida, até critérios ideológicos, temáticos e de qualidade literária, possibilitando-nos também o conhecimento de importantes informações a respeito do público ao qual Machado se dirigia. (CRESTANI, 2006CRESTANI, Jaison Luís. A colaboração de Machado de Assis no Jornal das Famílias: subordinações e subversões. In: Patrimônio e Memória, Assis, v. 2, n. 1, 2006, p. 146-175., p. 147-148).

Ora, se houve restrições quanto à forma, pensando na extensão dos textos, e até quanto aos conteúdos utilizados por Machado nesse periódico, não se pode deixar de considerar que o próprio periódico impunha uma espécie de censura. Desse modo, assim como Machado de Assis censurava peças teatrais conforme os parâmetros prescritos pelo Conservatório Dramático, também "sofria" uma espécie de censura no Jornal das Famílias.

Faz-se relevante ressaltar a importância de se compreender o contexto de produção dos contos machadianos a fim de que não haja nenhum tipo de julgamento equivocado, como alguns críticos o fizeram. O que estava em jogo, naquele momento, era uma imprensa engajada em funcionar como elemento civilizador. Na própria carta-programa do Jornal das Famílias, há a clara manifestação do tipo de engajamento da publicação: haveria a escolha de artigos voltados ao recreio e à utilidade para a família brasileira, voltados aos interesses do país: economia doméstica, instrução moral e recreativa e higiene.

Jurandir Freire Costa apresenta que, após a Abdicação, o poder central entendeu que não bastava urbanizar a família, era preciso estatizar os indivíduos:

Paralelamente à reeuropeização das mentalidades e costumes, os indivíduos deveriam adquirir a convicção da importância que o Estado tinha na preservação da saúde, bem-estar e progresso da população. Surge então a necessidade premente de se organizarem formas de coerção capazes de redefini-lo aos olhos das famílias. O poder estatal de inimigo deveria passar a aliado. (COSTA, J. F., 1989COSTA, Jurandir Freire. A higiene das famílias. In: ______. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 49-78., p. 56-57).

O Segundo Reinado é marcado pela transferência das famílias do campo para a cidade; muitas delas, detentoras dos poderes locais, passaram, inclusive, a ocupar cargos políticos. Assim, o Rio de Janeiro sofreu uma reestruturação social e cultural e as famílias precisavam saber se comportar. Nesse sentido, a imprensa tem papel fundamental: é sua responsabilidade instruir e estabelecer a moralidade. Desse modo, pode-se observar que tanto a imprensa quanto a medicina higiênica foram acionadas como agentes de consolidação da nacionalidade após a independência do país.

Freire Costa trata da relevância do engajamento tanto dos literatos quanto dos médicos como agentes responsáveis pela instauração e pelo assentamento do elemento civilizador:

Era preciso criar mecanismos de concórdia que poupassem o Estado dos desgastes da guerra ou da paz armada. O reforço e a ampliação do "sentimento nacional" foi um deles.

O sentimento de "brasileirismo", de "nacionalidade brasileira" recebeu enorme impulso no séc. XIX. (COSTA, J. F., 1989COSTA, Jurandir Freire. A higiene das famílias. In: ______. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 49-78., p. 58).

Até aquele momento, os habitantes do país não tinham incorporado à consciência cívica o sentimento de pátria ou nação. "As pessoas não se identificavam por suas origens nacionais mas [...] por suas origens regionais, geográficas, étnicas ou religiosas" (COSTA, J. F., 1989COSTA, Jurandir Freire. A higiene das famílias. In: ______. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 49-78., p. 60). Somente nas décadas finais do XVIII que a língua e a religião, através do nativismo, passam a integrar a corrente cultural em favor do sentimento nacional. "Esse potencial de desobediência civil, notavelmente concentrado nas redes de relações familiares, vai ser atacado pela propaganda nacionalista em todo o séc. XIX. Ataque [...] auxiliado por literatos e [...] médicos" (COSTA, J. F., 1989COSTA, Jurandir Freire. A higiene das famílias. In: ______. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 49-78., p. 62).

No caso do Jornal das Famílias, o público-alvo eram as mulheres, aquelas que eram ou seriam responsáveis pela instrução dos filhos. Elas, naquele momento, tiveram um papel importante na formação de cidadãos, pertencentes a um Estado nacional. Era no âmbito familiar que se formavam os jovens do futuro, e o Jornal das Famílias foi responsável por incutir princípios nesses jovens a partir de aconselhamentos que dava às mães. A mulher ver-se-á, repentinamente, elevada à categoria de mediadora entre os filhos e o Estado:

Em função destes encargos, suas características físicas, emocionais, sexuais e sociais vão ser redefinidas. Seu papel cultural cresce em força e brilho. A higiene passou a solicitar insistentemente à mulher que, de reprodutora dos bens do marido, passasse a criadora de riquezas nacionais. (COSTA, J. F., 1989COSTA, Jurandir Freire. A higiene das famílias. In: ______. Ordem médica e norma familiar. 3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 49-78., p. 73).

O período, inclusive, é marcado pela existência e disseminação de manuais de conduta, como Código do bom-tom ou Regras da civilização e de bem viver no século XIXROQUETTE, José Ignacio. Introdução. In: Código do bom-tom ou Regras da civilização e de bem viver no século XIX. Paris: Aillaud & Guillard, 1867, p. 5-17., de J. Roquette (publicado pela primeira vez em 1845), a fim de contribuir para essa formação civilizadora, preocupação também presente, como se viu, nos pareceres de Machado quanto ao papel do teatro. O referido código de conduta apresenta orientações relativas ao comportamento e à importância de saber policiar os próprios atos, de forma a assentar os valores da sociedade de corte.

Norbert Elias designa as regras de conduta como "etiqueta", e sua prática consiste

[...] numa autoapresentação da sociedade de corte. Através dela, cada indivíduo, e antes de todos o rei, tem o seu prestígio e a sua posição de poder relativa confirmados pelos outros. A opinião social que forja o prestígio dos indivíduos se expressa através do comportamento de cada um em relação ao outro, dentro de um desempenho conjunto que segue determinadas regras. Ao mesmo tempo, nesse desempenho conjunto, torna-se visível imediatamente, portanto, o vínculo existencial entre os homens singulares e a sociedade na corte. Sem a confirmação de seu prestígio por meio do comportamento, esse prestígio não é nada. A importância conferida à demonstração de prestígio, à observância da etiqueta, não diz respeito a meras "formalidades", mas sim ao que é mais necessário e vital para a identidade individual de um cortesão. (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 117-118).

No Antigo Regime, a concepção de representação foi basilar e consistia em, de um lado, fazer "ver uma coisa ausente, o que supõe uma distinção radical entre aquilo que representa e aquilo que é representado", e, de outro, a "exibição de uma presença, como apresentação pública de algo ou de alguém" (CHARTIER, 1990CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand, 1990., p. 17).

A vida na Corte "obriga a um controle das emoções em favor de uma atitude precisamente calculada, com variações sutis no convívio entre as pessoas" (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 126). Esse controle, somado à serenidade, à calma e à prudência, e o ar solene eram traços que determinavam o caráter ideal do homem de corte. "A racionalidade de corte se constitui a partir das coerções da interdependência social das elites; ela serve para tornar calculável, em primeiro lugar, as pessoas e as chances de prestígio como instrumentos de poder" (ELIAS, 2001ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001., p. 127).

Os parâmetros para a elaboração dos textos no Jornal das Famílias podem ser encontrados em sua própria carta-programa, exibida na primeira edição do periódico, texto dedicado aos "nossos leitores". Após agradecer o acolhimento que a Revista Popular sempre teve, revelando que tem experiência no ramo, exalta a pontualidade da revista, garantindo o seu compromisso e a sua organização, e esclarece que era necessário melhorar a publicação: "O Jornal das Famílias, pois, é a mesma Revista Popular d'ora avante mais exclusivamente dedicada aos interesses domésticos das famílias brasileiras" (JORNAL DAS FAMÍLIAS, 1863JORNAL DAS FAMÍLIAS. Aos nossos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1863., p. 2).

Eis o propósito da publicação: dedicar-se aos interesses das famílias brasileiras. Assim, ao mencionar que o Jornal das Famílias é a continuação da Revista Popular, constata-se que a publicação não é elaborada por pessoas inexperientes, o que revela a credibilidade e o compromisso de que o leitor não será desapontado, visto que é planejada e organizada.

Na sequência, a carta-programa indica a manutenção dos "mesmos distintos cavalheiros" colaboradores da revista e a garantia de que dobrará os esforços na escolha dos artigos que publicará: "[...] preferindo sempre os que mais importarem ao país, à economia doméstica, à instrução moral e recreativa, à higiene, numa palavra, ao recreio e utilidade das famílias" (JORNAL DAS FAMÍLIAS, 1863JORNAL DAS FAMÍLIAS. Aos nossos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1863., p. 2). Como se observa, tanto os critérios para a censura das peças quanto a carta-programa do Jornal das Famílias apresentam as mesmas preocupações: instruir quanto à moralidade.

A referida carta-programa apresenta, também, os elementos responsáveis por seu compromisso em ser útil e deleitosa, princípio horaciano: "[...] dará aos seus assinantes [...] gravuras, desenhos à aquarela coloridos, moldes de trabalhos de crochê, bordados, lã, tapeçaria, figurinos de moda, peças de música inéditas" (JORNAL DAS FAMÍLIAS, 1863JORNAL DAS FAMÍLIAS. Aos nossos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1863., p. 2), de forma a preencher uma falta que havia nas publicações daquele período.

Em 1864, em comemoração ao primeiro ano da revista, no número 1 foi publicada uma nova carta-programa. Inicialmente, ressalta-se o empenho dos editores em oferecer às "gentis senhoras"

[...] um volume nítido, variado, elegante, digno de ornar, pela amenidade de seus artigos, pela perfeição de seus desenhos, pelo fino de suas gravuras, pela delicadeza de sua impressão, as estantes dos literatos, os gabinetes dos artistas, e o perfumado camarim de nossas amáveis leitoras. (JORNAL DAS FAMÍLIAS, 1864______. Aos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1864., p. 2).

A nova carta destaca, também, o acolhimento do público e o compromisso de aprimorar cada vez mais a publicação, de forma a estar sempre atualizada e agradece, novamente, ao público "tão benigno" pela acolhida. Na sequência, há um agradecimento aos literatos que contribuíam na revista:

Agradecemos também aos hábeis e amenos literatos que se não esquecerão de enfeitar as nossas páginas com aquelas lindas produções caídas de suas penas em horas de mágica inspiração, com aquelas flores que tão perfumadas e formosas oferecerão às nossas leitoras. (JORNAL DAS FAMÍLIAS, 1864______. Aos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1864., p. 2).

A pergunta que se instala é: será que Machado de Assis, aquele que era, simultaneamente, censor teatral e colaborador do Jornal das Famílias, era tão ameno assim e seguirá à risca o plano da revista?

Alguns contos - e temas - machadianos n'O Jornal das Famílias

"Luís Soares" foi o conto que iniciou, em janeiro de 1869, o Jornal das Famílias, ocupando vinte páginas. Assinado pelo pseudônimo machadiano J. J., é dividido em capítulos e, através do recurso da sumarização, o narrador trata das dissimulações do personagem que dá título ao texto na tentativa de "herdar" bens, já que, por ter uma vida - noturna - cheia de luxo e sem nenhum trabalho, esgotara a sua fortuna, herdada da família. Caracterizado como um personagem que lia apenas alguns romances e que não lia jornais, pois era a "coisa mais inútil do mundo", Luís Soares decide viver de outra herança e procura um tio, o major Luís da Cunha Vilela.

Em capítulos que se assemelham muito aos atos das peças teatrais, por serem bastante dialogados e com poucas interferências do narrador, o leitor é apresentado ao estilo de vida que levou Luís Soares à falência; à busca pelo tio rígido e rico; posteriormente, ao processo de "conversão" dele para o mundo do trabalho (público), a partir de favores que outras pessoas deviam à autoridade do major; ao processo de aproximação e investidas de Luís sobre Adelaide, sobrinha que vivia sob a tutela do major e outrora rejeitada por Soares por não ter uma herança considerável; ao "interesse" dele pelo tio rico, numa possível tentativa de herdar os bens deste; ao aparecimento de um antigo amigo da família, Anselmo, entregando a Adelaide um grande dote, desde que esta se casasse com Luís; ao repentino interesse dele pela prima; à rejeição dela em se casar com Soares; ao recebimento do dote, após ela relatar aos demais o que havia ocorrido, culminando com a partida de todos (exceto Luís) à Europa e o suicídio de Luís.

A teatralidade presente em Machado de Assis é confirmada por Barreto Filho:

O teatro foi [...] um grande benefício para ele [Machado de Assis] pela soma de contatos e experiências que lhe proporcionou. Ensinou-lhe, sobretudo, o modo de armar as cenas. Quando, nos seus livros, o escritor comenta os personagens, revela os bastidores, e critica a própria montagem, isso não é mais do que a incorporação ao romance das indicações que acompanham as peças. É um vício que o romancista herdou da intervenção constante do teatrólogo nas entradas e saídas, nas mudanças de cenário, e até nas atitudes e gestos dos personagens. Todo esse sistema de notações entra transfigurado na tessitura da obra literária (BARRETO FILHO, 1947BARRETO FILHO, José. Introdução a Machado de Assis. Rio de Janeiro: Agir, 1947., p. 56).

Considerando o compromisso de tratar das amenidades apresentadas pela carta-programa do Jornal das Famílias, de feições românticas, já que enfeitavam as páginas com "lindas produções caídas de suas penas em horas de mágica inspiração, com aquelas flores [...] tão perfumadas e formosas" (1864______. Aos leitores. Jornal das Famílias, Rio de Janeiro; Paris, n. 1, p. 1-2, 1864., p. 2), o enredo do conto em questão é revelador de um Machado de alguma forma avesso ao Romantismo e crítico da elite - a mesma que lia o Jornal -, ao abordar as relações "do casamento, da herança e dos negócios", todos eles conduzidos por um mero interesse: não trabalhar, elemento caracterizador e de distinção dessa elite.

Dessa forma, ao mesmo tempo que o conto possui ingredientes românticos, como a intertextualidade estabelecida com Senhora, de José de Alencar ("Trezentos contos! É muito dinheiro para comprar um miserável!"), possui também aspectos antirromânticos: assim como Aurélia fora trocada por um dote de trinta contos de réis, Luís não aceitou se casar com Adelaide por esta possuir os mesmos trinta contos de réis. Como Aurélia, Adelaide receberá uma fortuna de trezentos contos de réis, e Luís Soares tentará reconquistá-la. Entretanto, de maneira distinta a Aurélia, Adelaide não aceitará as desculpas de Luís Soares e, superando os sentimentos e a submissão da mulher romântica, não se deixa levar pelas emoções e age de forma racional: vinga-se!

É interessante observar que, nesse conto, as falas dos personagens são elementos - eficientes e concisos - que auxiliam na construção da representação do mundo a que pertencem: o que são, por onde passam e quais são os seus valores. A morte de Luís Soares, o rejeitado, foi a "punição", a sanção que sofreu pelo estilo de vida por que optou e, como não teve êxito em retornar ao seu estilo de vida inicial, com luxo e sem trabalho, a morte foi a sua libertação do mundo da pobreza.

Machado, através do conto, realiza uma crítica à sociedade daquela época, movida por interesses e pela busca de privilégios sem nada fazer:

Herança e casamento: duas estratégias importantes usadas pelas elites para a manutenção de status e privilégios de classe. O que vemos no conto "Luís Soares" é esse jogo de interesses no centro da trama. A narrativa demonstra que as ações da personagem que dá título ao conto mudam em função das chances de se atingir um objetivo específico: viver bem, mas sem trabalhar (COSTA, L. R., 2014COSTA, Lourenço Resende da. Casamento, herança e negócios no conto "Luís Soares", de Machado de Assis. Todas as Musas, [São Paulo], ano 5, n. 2, p. 101-111, jan./jun. 2014., p. 110).

Ao contrário do Machado censor, defensor da moralidade, o contista ataca a falsa moralidade daqueles que agem e dissimulam para lograr uma herança ou um casamento (bem arranjado), e as atitudes racionais da personagem feminina Adelaide contrariam a expectativa de que ela se casaria com Luís. Tais aspectos revelam-se de forma "amena" no conto, revelando já os germens que, futuramente, seriam explorados em Memórias póstumas.

Sílvia Maria Azevedo (1990AZEVEDO, Sílvia Maria. A trajetória de Machado de Assis: do Jornal das Famílias aos contos e histórias em livro. 1990. 736 f. Tese (Doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990., p. 210) distingue Machado de Assis dos outros colaboradores do Jornal das Famílias: "[...] enquanto os demais colaboradores [...] simplesmente perpetuavam a escola romântica e seus clichês, Machado tinha consciência da crise do Romantismo, o grande tema que perpassou toda a sua produção ficcional desse período".

"Aurora sem dia", publicado originalmente no Jornal das Famílias em novembro e dezembro de 1870, desde o seu título parodia o poema "Meus oito anos", de Casimiro de Abreu, de forma a ironizar a ausência de futuro nos exageros do poeta. A narrativa gira em torno de Luís Tinoco, um jovem de 21 anos, de origem simples, que vivia com o padrinho. Ele tinha a ilusão de que estava "fadado para grandes destinos".

Certo dia, acorda "escritor e poeta", dotado de muita inspiração, entretanto, incapaz de produzir um soneto, forma poética clássica que exige, além de inspiração, muito labor técnico. Assim que finaliza o referido "soneto", Luís encaminha a sua produção ao Correio Mercantil, que publica o poema. A expectativa dele em relação à recepção que teria era das mais otimistas. Dois dias depois, consegue que outra publicação seja impressa no jornal gratuitamente e, por essa razão, ela demora um pouco mais, o que lhe ocorre que não teria sido publicada ainda por inveja.

Publicada a poesia no jornal, pergunta ao padrinho se o havia lido, e este, após insistência do afilhado, lê a obra. Sem saber que era de Luís, o tio põe-se a criticar o texto. Quando fica sabendo que é do afilhado, pergunta-lhe com quem havia aprendido fazer versos. Luís Tinoco responde-lhe que não se aprende a fazê-los, que vêm de "berço", visão tipicamente romântica em relação à produção literária. A preocupação se instala no tio, visto que naquele momento a atividade da produção poética estava ligada à miséria, o que demonstra outro lugar-comum do poeta: o marginalizado, sem trabalho e o alienado. O padrinho procura o sensato dr. Lemos para lhe contar sobre as suas preocupações em relação ao afilhado, funcionando.

O doutor o tranquiliza, dizendo que o poeta não era um marginal como pensara, podendo ser uma profissão como qualquer outra. Luís encontra-se com o dr. Lemos, que ressalta o valor do longo estudo para a produção da poesia, considerada "uma arte difícil", inclusive da leitura de bons modelos. Luís ignora as orientações e insiste em produzir os seus textos, sempre publicados no jornal, o que garantia a sua "qualidade" como escritor, a ponto de desejar produzir um livro: Goivos e camélias. Insistia em se considerar um grande poeta, que produzia textos em pouco tempo e sem emendas, e afirmava que recebia críticas devido à inveja que causava com os seus versos. Lamentava o fato de não receber o devido valor, e, ademais, afirmava que a maioria não estava apta para entender poesia, outra ironia. Naquele momento, cria uma folha literária, com oitenta assinantes, chamada Caramanchão Literário.

Os acontecimentos serviam-lhe de inspiração para escrever: espetáculos e mortes. Assim, dizia sobre as mesmas coisas, só que com outras palavras, crítica comum em relação aos românticos. Luís Tinoco decide escrever um poema épico, com dez cantos e 10 mil versos. Nesse tempo, perde o emprego e está convicto de que poderia viver da pena, já que não lhe falta coragem e "estrela", a amada Laura (nome atribuído nos versos; na realidade, era Inocência), a qual, inclusive, foi a musa inspiradora de uma composição poética produzida anteriormente. Dr. Lemos, que não aprecia as produções de Luís, tenta convencê-lo a deixar o ofício de escritor com uma ironia: "[...] seus versos e os seus artigos são muito superiores ao entendimento popular, e por isso, devem ter muito menos aceitação". Ele aceita o jogo de Luís, e exalta as suas qualidades, para ridicularizá-lo ainda mais.

Oferece-lhe um emprego de escrevente de um advogado. Luís aceita de pronto, mas não abandona completamente o seu Caramanchão. Assim que "Laura" o deixa, escreve "uma extensa e chorosa elegia". O motivo da diminuição da frequência dos textos é o seu entusiasmo com a política por influência do advogado para o qual trabalha e que também tinha sido deputado e colaborador de uma gazeta sobre política. O advogado, por solicitação do dr. Lemos, aceita auxiliar Luís. Pede um artigo para publicação no Correio Mercantil, cujo início era típico dessa modalidade de texto. O seu protetor recomenda-lhe que escreva menos, porém de forma mais assentada e, inclusive, indica-lhe livros, pois a "erudição política de Luís Tinoco era nenhuma".

Após alguns insucessos na escrita política e de brigas, Luís Tinoco aparece (após a indicação de uma lacuna nos acontecimentos) na província natal de seu protetor, com grande convicção de que seria vitorioso. Luís faz longos discursos, considerados inapropriados pelo que o narrador relata. Um adversário decide desprestigiá-lo apresentando ao presidente as produções poéticas do Caramanchão Literário e o livro Goivos e camélias. Passados três anos, dr. Lemos é nomeado para um cargo na província onde Luís está: nessa ocasião, este é um "honrado e pacato lavrador, ar e maneiras rústicas, sem vestígios das atitudes melancólicas do poeta, do gesto arrebatado do tribuno", com esposa e filhos.

Depois da humilhação que sofrera na assembleia (sensação oposta a toda a arrogância que cultivava) e de ter sido derrotado, deu-se conta da má qualidade de seus versos e de sua condição de orador. Antes estar em ambiente sólido do que na ilusão. Descobriu que não "era fadado para grandes destinos".

Pode-se considerar que Luís Tinoco representa a geração romântica, que é criticada, através do recurso da ironia, pela ausência de técnica e estudo e pelo excesso de inspiração, a ponto de ser alienante. O narrador apresenta a imagem idealizada do poeta "iluminado" e predisposto ao dom da criação, visão tipicamente romântica. Através dos acontecimentos com Luís Tinoco, há a prova de que não é possível permanecer naquele cenário, ainda que alguns jornais publiquem os referidos textos e alguns leitores os aceitem.

Assim, a falta de estudo e técnica que se faz presente nas orientações tanto do dr. Lemos quanto do advogado - e político - evidencia a falta de perspectiva na permanência do poeta no cenário literário - respeitado e valorizado pela crítica - e justifica o título. Somente após se frustrar com a poesia e com a política, Luís Tinoco se casou e foi feliz. Somente quando agiu racional e solidamente, bem diferente das alienações e do mundo das aparências em que vivia, e optou por realizar uma atividade braçal, "destino dos medíocres", Luís tornou-se realizado. Fica como moral que o sucesso na arte e na política, "grandes destinos", é somente para aqueles que possuem verdadeiramente habilidades e conhecimento.

Considerações finais

O presente estudo pretendeu evidenciar que durante o tempo que Machado de Assis assumiu a atividade censória do Conservatório Dramático Brasileiro e a atividade de colaborador do Jornal das Famílias, a sua produção adquiriu feições divergentes. Enquanto nos pareceres do conservatório o censor tinha como critério impedir que as obras teatrais se desviassem das regras morais, assinalando, inclusive, a relevância de se tolerar as produções românticas, produções que predominavam no cenário literário da época, Machado, de forma dissonante à moralidade presente na própria carta-programa do Jornal das Famílias, combate, através da ironia, muitos aspectos da ideologia e das produções românticas e faz crítica à conduta da sociedade daquele período, a mesma que lia o Jornal das Famílias e a mesma que frequentava as peças teatrais.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Dez 2022
  • Aceito
    31 Mar 2023
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