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AS CURIOSIDADES DE DOM CASMURRO: TRADUZIR A "VASTA POLÊMICA" 1 1 Este texto constitui uma reelaboração e um aprofundamento sobre alguns pontos contidos no texto introdutório em espanhol da edição de Don Casmurro, publicada pela editora da Universidad EAFIT, em 2022 (ASSIS, 2022).

THE CURIOSITIES OF DOM CASMURRO: TO TRANSLATE THE "VASTA POLÊMICA"

LAS CURIOSIDADES DE DON CASMURRO: TRADUCIR LA "VASTA POLÉMICA"

Resumo

Este artigo faz uma revisão de instâncias chaves da recepção de Machado de Assis em espanhol, em particular na Colômbia, sublinhando como tiveram lugar não apenas importantes esforços na tradução do carioca - embora não suficientes para consolidar o reconhecimento por parte do público geral -, bem como aguçadas análises e aprofundamentos críticos. É a partir de alguns desses referentes que aqui se tecem considerações sobre modos de traduzir a complexidade de Dom Casmurro, em particular no que respeita à representação da mulher e à caraterização do feminino na obra, para o caso hipostasiado na enigmática referência à "boceta de Pandora".

Palavras-chave:
Pandora; recepção; tradução; Teoria da bolsa da ficção; ambiguidade

Abstract

This article reviews pivotal instances of the reception of Machado de Assis in Spanish, particularly in Colombia. It underlines notable efforts regarding the translation of the carioca, although not notable enough to consolidate recognition among the general public. It also asses critical deepenings presented in academic contexts and projects some of those considerations to the praxis of translating Dom Casmurro's complexity, in particular regarding the representation of women and the characterization of the feminine in the novel, in this case, hypostasized in the enigmatic reference to "Pandora's purse".

Keywords:
Pandora; reception; translation; carrier-bag theory of fiction; ambiguity

Resumen

Este artículo revisa instancias clave de la recepción de Machado de Assis en español, particularmente en Colombia, subrayando cómo se han hecho esfuerzos importantes en la traducción del carioca, aunque no suficientes para consolidar el reconocimiento por parte del gran público, pero también agudos análisis y profundizaciones críticas. Es a partir de algunas de estas referencias que aquí hacemos consideraciones sobre las formas de traducir la complejidad de Dom Casmurro, en particular en lo que se refiere a la representación de la mujer y a la caracterización de lo femenino en la obra, para el caso hipostasiado en la enigmática referencia al "cofrecito de Pandora".

Palabras clave:
Pandora; recepción; traducción; teoría de la bolsa de la ficción; ambigüedad

A pouca familiaridade dos leitores hispano-americanos com a literatura brasileira poderá ter como emblema uma referência inconsciente inscrita no famoso conto "Tlön, Uqbar, Orbis Tertius" de 1940. Numa conversa noturna, Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares cultivaram uma ambição literária: "[...] nos demoró una vasta polémica sobre la ejecución de una novela en primera persona, cuyo narrador omitiera o desfigurara los hechos e incurriera en diversas contradicciones, que permitieran a unos pocos lectores - a muy pocos lectores - la adivinación de una realidad atroz o banal" (BORGES, 2017BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. In: ______. Borges Esencial. Madrid: Alfaguara, 2017. p. 15-18., p. 15). Para alguns leitores, talvez diferentes daqueles que tinham em mente as personagens do conto de Borges, essa descrição do projeto pode trazer à mente um romance escrito, quase meio século antes, pelo carioca Joaquim Maria Machado de Assis. Tudo indica que Borges não leu Machado (cf. SONTAG, 1990SONTAG, Susan. Afterlives: the case of Machado de Assis. New Yorker, Nova York, p. 102, 1990., p. 102) ou, uma vez o tendo lido, o interesse pelo precursor não foi transmitido aos seus dedicados leitores que, lendo esse ou outros dos contos do autor de Pierre Menard, dificilmente pensariam em literatura brasileira. Certamente trata-se de um preconceito produto do desconhecimento. Trazer aqui essa estória de casualidades e desencontros serve para insistir numa convicção: Machado, e a sua obra, deveriam ser mais conhecidos e circular mais correntemente no mundo hispânico. Talvez a necessidade dessa insistência apenas sublinhe o fato de que a crítica literária, a tradução e a edição são tarefas teimosas; casmurrices, calha bem dizer.

Contudo, não têm sido nem poucos nem frívolos os esforços dos hispano-americanistas para tecer laços entre as duas tradições: a hispânica, com seus múltiplos vasos comunicantes, e a brasileira, na sua paradoxal insularidade continental. Por exemplo, Emir Rodríguez Monegal explorou, em ensaios, prefácios e artigos acadêmicos, diferentes maneiras como as leituras de Machado, Mário de Andrade, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos são chamadas a enriquecer, contrastar e expandir às de Borges, Carpentier, Bombal, Rulfo e Sarduy (RODRÍGUEZ MONEGAL, 1962RODRÍGUEZ MONEGAL, Emir. El boom de la novela latinoamericana. Caracas: Editorial Tiempo Nuevo, 1962.; 1970______. La nueva novela latinoamericana. In: Actas del Tercer Congreso Internacional de Hispanistas. México D.F.: Colegio de México. 1970. p. 47-63.). Jorge Schwartz fez do seu trabalho sobre a vanguarda um contraponto sistemático entre tradições e movimentos de ambas as línguas, que poderiam ser lidos como mutuamente implicados, numa tentativa de derrubar esse fantasmagórico "Muro de Tordesilhas" que fez paralelos os caminhos de César Vallejo e Oswald de Andrade, mesmo quando ambos passaram da experimentação autorreferencial com a linguagem para a poesia socialmente comprometida, e, também, pelas ruas de Paris (SCHWARTZ, 2002SCHWARTZ, Jorge. Las vanguardias latinoamericanas: textos programáticos y críticos. México D.F.: Fondo de Cultura Económica , 2002., p. 36-42). Mais tarde, Earl E. Fitz destacaria a necessidade de acrescentar Clarice Lispector à lista de escritores notáveis, reconhecendo-a como contemporânea de Borges e leitora de Machado, insistindo assim no papel pioneiro do carioca para a transformação da narrativa latino-americana, a partir dos anos 30 e em ambas as línguas (FITZ, 1998FITZ, Earl. Machado, Borges e Clarice: a evolução da nova narrativa latino-americana. Revista Iberoamericana, Pittsburgh, v. 64, n. 182-183, p. 129-144, 1998., p. 139-140).

Os aqui referidos são apenas uns poucos exemplos numa lista que não pretende ser exaustiva e que poderia incluir as referências a Machado por parte de escritores fundamentais das letras hispânicas, entre os quais Rulfo (1996RULFO, Juan. Prólogo a la traducción de Antonio Alatorre de Memorias póstumas de Blás Cubas. In: ______. Toda la Obra. San José: Editorial Universidad de Costa Rica, 1996. p. 437-441.), Fuentes (2001FUENTES, Carlos. Machado de la Mancha. México D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2001. , p. 24; 2011______. De la colonia a la independencia. Machado de Assis. In: ______. La gran novela latinoamericana. Madri: Alfaguara, 2011. p. 90-120.), Mutis (DINIZ; RANGEL, 2017DINIZ, Davidson; RANGEL, Lívia. Intercambios y traducciones: Benjamín de Garay y Raúl Navarro/Newton Freitas y Lívia Besouchet. In: CROCE, Marcela (Ed.). Historia comparada de las literaturas argentina y brasileña. Tomo IV: de la vanguardia a la caída de los gobiernos populistas (1922-1955). Córdoba: Editorial Universitaria Villa María, 2017. p. 359-401. , p. 382) e Edwards (2002EDWARDS, Jorge. Machado de Assis. Barcelona: Omega, 2002.), ou o reconhecimento recebido pela crítica estado-unidense da mão de Susan Sontag (1990SONTAG, Susan. Afterlives: the case of Machado de Assis. New Yorker, Nova York, p. 102, 1990., p. 102) ou Harold Bloom (2002BLOOM, Harold. Genius: A Mosaic of One Hundred Exemplary Creatives Minds. Nova York: Warner Books, 2002., p. 676-677). O que é certo é que a aparente autossuficiência, seja histórica ou teórica, dessas tradições vizinhas já foi questionada e revisada minuciosamente por, por exemplo, João Cezar de Castro Rocha (2017ROCHA, João Cezar de Castro. ¿Culturas shakespearianas?: Teoría mimética y América Latina. Guadalajara: ITESO, 2017. , p. 233-239), mas ainda não abolida. Quase todos os comentários sobre Machado de Assis, escritos num idioma diferente do português, começam com uma vindicação ou admoestação sobre o seu limitado reconhecimento internacional - incluído este. Entretanto, é certo que as oportunidades para novas abordagens comparativas são variadas e esperam ser melhor exploradas tanto pelo público geral como por críticos especializados. Uma nova tradução de Machado de Assis é apenas uma ocasião favorável, entre outras, para lembrar essa possibilidade: sacudir a toalha de mesa e convidar os comensais a virem pela primeira vez, ou novamente, e roer, como os vermes bibliófilos, esse gigantesco corpus literário.

Convém para isso rever alguns dados. Até o ano de 2022 Dom Casmurro teve 12 traduções para o espanhol, sendo a primeira publicada em 1910 e quatro delas após o ano 2010.2 2 Garnier (1910); Editorial Nova (1943); W. M. Jackson (1945); Acme (1953); Espasa Calpe (1955); Editorial Montesinos (1985); Cátedra (1991); Editorial Andrés Bello (1980); Universidad Nacional Autónoma de México (2012); Fondo Editorial Universidad Antonio Nariño y Universidad Estadual de Campinas (2012); Edicións Courel (2021); Editorial EAFIT (2022) (cf. SOTO, 2012; DOMÍNGUEZ, 2010). Isso deixa claro que, por um lado, o interesse tem crescido de maneira substantiva nos últimos anos e, por outro, os esforços isolados de alguns poucos tradutores, e das respetivas editoras ao longo do século, ainda não foram suficientes para trazer Machado para o reconhecimento massivo dos leitores de língua espanhola. Muitos dos editores que embarcaram nessa empreitada sofreram com a falta de fundos ou a escassez de visão para o futuro, imprimindo tiragens muito limitadas, que rapidamente saíram de circulação e que nem sequer chegaram às grandes bibliotecas públicas e universitárias, fazendo com que cada um desses livros se tornasse, em pouco tempo, uma raridade bibliográfica e impedindo o interesse pelo autor de transcender o pequeno nicho de leitores mais assíduos.

Como em outras partes do continente, continua sendo verdade que Machado é pouco lido na Colômbia, país vizinho do Brasil; que os seus livros não se encontram facilmente nem em bibliotecas nem em livrarias; e que os leitores que têm a oportunidade de ler as obras de Borges, García Márquez e Rulfo, em simultâneo, chegam a Machado muito mais tarde e sem as suficientes ferramentas - introduções críticas, notas filológicas ou bibliografia secundária - para construir as pontes de leitura que fazem dele um precursor fundamental para a narrativa latino-americana num sentido lato. Contudo, tem havido no nosso país - e aqui o objetivo é sublinhá-lo - um interesse genuíno pelo carioca, informado por publicações de estudiosos, escritores e tradutores, que pela sua vez ainda não foram integradas dentro do marco amplo da crítica machadiana nos Estados Unidos e no Brasil.

Quanto a traduções colombianas de Machado, existem alguns precedentes importantes que remontam pelo menos à publicação do poema "La mosca azul" de Guillermo Valencia em 1914VALENCIA, Guillermo. Ritos. Londres: Wertheimer, Lea y Cia, 1914. [Edição fac-similar. Cali: Carvajal, 1979.] (VALENCIA, 1979VALENCIA, Guillermo. Ritos. Londres: Wertheimer, Lea y Cia, 1914. [Edição fac-similar. Cali: Carvajal, 1979.]). Mais recentemente, o escritor Juan Cárdenas - Popayán, 1978 - publicou em uma editora espanhola a primeira tradução em outro idioma da novela Casa Velha (1885-1886), acompanhada por um "Postfacio" sintético com uma apreciação do estilo machadiano, que poderia compaginar-se com uma leitura de Dom Casmurro:

[...] la tragedia no trae consigo un desgarramiento y una orgía purificadora, antes bien, la injusticia y el dolor provocados se entremezclan en un solo estado de ánimo con algo que a duras penas atino a describir como el encantamiento de las horas: ese placer que los personajes parecen experimentar con el mero paso del tiempo, con el ritmo de maduración del mundo (ASSIS, 2005______. Los papeles de Casa Velha. Tradução de Juan Cárdenas. Madrid: Funambulista, 2005., p. 186-187).

Porque se trata de um dos escritores mais relevantes da literatura colombiana contemporânea, é de se esperar que o bilinguismo e o trabalho literário de Cárdenas, com e à volta de Machado, possa impactar no modo como será entendida no futuro a integração do que até agora foram duas tradições artificialmente independentes no único espaço cultural do território americano.

Finalmente, em termos de divulgação, o público colombiano tem uma importante dívida com Elkin Obregón (1948-2021), que traduziu Memórias póstumas de Brás Cubas, O Alienista e alguns contos machadianos, em várias edições e coletâneas, e que promoveu a admiração pelo autor de "Missa do galo" nas suas colunas do jornal Universo Centro, de Medellín (ASSIS, 1990______. Misa de gallo y otros cuentos. Tradução de Elkin Obregón. Bogotá: Norma, 1990.; 2000a______. Cuento de escuela (y 17 cuentos más). Tradução de Elkin Obregón. Medellín: Universidad Pontificia Bolivariana, 2000a.; 2000b______. ¡Venus! ¡Divina Venus!. Tradução de Elkin Obregón. Medellín: Universidad Pontificia Bolivariana, 2000b.; 2002______. Memorias Póstumas de Bras Cubas. Tradução de Elkin Obregón. Bogotá: Norma, 2002.; 2013______. El Alienista. Tradução de Elkin Obregón. Medellín: Frailejón, 2013.; OBREGÓN et al., 1992OBREGÓN, Elkin et al. Cuentos brasileños del siglo XIX. Tradução de Elkin Obregón. Bogotá: Norma , 1992. ; CARRASQUILLA et al., 2010CARRASQUILLA, Tomás et al. Lecciones: Selección de cuentos. Medellín: Editorial EAFIT , 2010.). Contudo, ainda há muito a fazer até que Machado se torne o suficientemente familiar para o leitor hispano-americano, a ponto de este não ficar surpreendido quando o autor lhe for apresentado como prenúncio daquilo que de mais experimental e inovador teve o boom do século XX.

Passando ao domínio da crítica, merece particular destaque que, em 1984, a professora Montserrat Ordóñez (1941-2001) escreveu um meticuloso artigo numa revista acadêmica colombiana, que colocava o dedo na chaga do problema interpretativo de Dom Casmurro. Segundo Ordóñez, o romance se revela para nós como algo mais intrincado - e, aliás, mais borgiano - do que a fantasia dos escritores projetava no conto aqui antes citado. Diz Ordóñez (1984ORDÓÑEZ, Montserrat. Machado de Assis: los adulterios decimonónicos de Virgilia y Capitu. Cuadernos de Filosofía y Letras, Bogotá, v. VIII, n. 3-4, p. 29-83, 1984., p. 39): "El narrador pide la colaboración al lector para que le ayude a interpretar y le dé la solución. Y en la trampa caemos todos, tratando de dar interpretaciones unívocas y éticas [...] a una realidad literaria que está basada en el polisentido y la indeterminación". Para Ordóñez, essa indeterminação torna-se representativa da plasticidade de um espelho que serve como uma irônica mise-en-scène da banalidade atroz da misoginia na cultura ocidental: por sua vez, o romance torna-se um artefato iluminador das convicções de quem lê: "Nadie puede hablar de Bento y de Capitu sin delatarse" (ORDÓÑEZ, 1984ORDÓÑEZ, Montserrat. Machado de Assis: los adulterios decimonónicos de Virgilia y Capitu. Cuadernos de Filosofía y Letras, Bogotá, v. VIII, n. 3-4, p. 29-83, 1984., p. 58). Esse tipo de consideração sublinha uma sintonia hermenêutica que tem atravessado o continente em alturas inclusive insuspeitadas, forjando o extenso e muito dinâmico processo de recepção internacional de Dom Casmurro, para o qual as traduções desempenharam um papel definitivo. Os comentários de Ordóñez fazem ressonância com aqueles que, por exemplo, servem como corolário da rigorosa revisão da recepção do romance machadiano que adiantou o especialista Hélio de Seixas Guimarães (2012GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século 19. 2. ed. São Paulo: Edusp; Nankin, 2012., p. 195), mais de trinta anos após:

[...] o leitor é colocado no centro da arena de discussão, já que persuadir é um dos principais interesses da prosa de Dom Casmurro. Mas o processo de convencimento e persuasão não quer fazer com que o leitor evolua no seu modo de pensar ou de encarar os problemas, mas sim fornecer-lhe matéria para que ele se convença a si próprio, a partir dos seus próprios preconceitos.

Por sua vez, Guimarães retoma pontos assinalados pelo mineiro Silviano Santiago (2001SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: ______. Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. p. 27-46., p. 46), que datam de 1969, como o de sublinhar que a intenção principal de Machado com Dom Casmurro teria sido: "desmascarar certos hábitos de raciocínio, certos mecanismos de pensamento, certa benevolência retórica - [...] para sempre enraizados na cultura brasileira [...]"; brasileira sim, mas não somente.

A confluência crítica poderá estabelecer os fios para a revisão dos vasos comunicantes de uma crítica pan-americana que ainda não consegue configurar-se, embora ofereça sinais de vitalidade. O contributo crítico de Santiago ao debate em torno da peculiaridade da encenação da leitura, como tema e modelo narrativo de Dom Casmurro, na forma de um sopesado exercício de análise retórico-jurídico - "Retórica da verossimilhança" -, não comparece na bibliografia de Ordóñez. Porém, a referência consta na de Maria Luisa Nunes (1983NUNES, Maria Luisa. The Craft of an Absolut Winner. Westport: Greenwood Press, 1983.), cujo livro é fundamental para a proposta revisionista da professora colombo-catalã. Como em muitos outros casos, tratar-se-ia de um exemplo no qual o diálogo entre países sul-americanos passa pela academia dos Estados Unidos, fator que não deixa de ser eloquente sobre os pressupostos e limitações dessa mobilidade intelectual.

Certamente, esse tipo de consideração reclama especial atenção sobre os esforços de tradução que possam salvar a distância linguística, facilitando novos encontros entre os públicos hispânicos e brasileiros, e entre a crítica especializada. A leitura incisiva de Ordóñez, a respeito da possibilidade de, com Dom Casmurro, estar perante um romance que revela um profundo substrato misógino da cultura, informando irremediavelmente as leituras sucessivas do texto, conflui na mesma direção de perspectivas críticas desenvolvidas mais recentemente, na esteira do trabalho de Helen Caldwell (cf. HABERLY, 2005HABERLY, David T. Dom Casmurro e o romance do adultério feminino. In: SARAIVA, Juracy Assmann. Nos labirintos de Dom Casmurro: ensaios críticos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 43-60., p. 56), por acadêmicos brasileiros ativos nos Estados Unidos, como Luiz Valente e Marta Peixoto (AIDOO; SILVA, 2016AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Eds.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. Nova York: Palgrave Macmillan, 2016.), apenas para nomear alguns. Uma nova tradução para qualquer língua deverá, desde o seu processo de leitura e deliberação, ser sensível às oportunidades de trazer, para a compreensão crítica dos novos leitores, os elementos que só o desenvolvimento da fortuna crítica machadiana tem consolidado como constituintes da interpretação da obra.

Nesse sentido, a tradução do português para o espanhol permite manter certa fidelidade em relação ao texto original, assistida pelas numerosas semelhanças entre os dois idiomas, especialmente em termos lexicais e de gramática. No entanto, essa mesma proximidade é às vezes um obstáculo para que o texto traduzido garanta a sua legibilidade ou a desafie, este último sendo sempre uma prerrogativa intrínseca da faculdade criativa de um autor de literatura. Assim, em alguns casos, é apropriado que uma tradução cultive no leitor a consciência de ler um texto transplantado entre idiomas, pelo que constantemente deverão ser tomadas decisões que mantenham o diálogo entre a fonte e a tradução em aberto. Certamente, essa relação revisionista só poderá estar mediada por uma fortuna crítica que tenha tornado manifestos no texto, para o tradutor, questões e elementos problemáticos da interpretação.

Para a edição de Don Casmurro da Editorial EAFIT, publicada em 2022, Adriana García e eu traduzimos Machado com a consciência de estar a ler um autor do século XIX, contemporâneo de Flaubert, Chekhov, Eliot e Melville, que nos fala de seu próprio tempo e convenções, apesar de ser tão contemporâneo no que respeita à sua abordagem artística. Por isso, escolhemos traduzir "moleque" como "muleque", ou "chinelo" como "chinela", pois estamos confiantes de que, embora o uso dessas palavras não seja generalizado em espanhol, as dúvidas do leitor podem ser rapidamente resolvidas com a ajuda de um dicionário. Ao contrário do que Bento Santiago faz, nós o encorajamos à consulta. Inclusive, estamos certos de que ler Dom Casmurro requer consultar dicionários e outras múltiplas fontes. Em outros casos, reconhecemos no romance um ritmo enumerativo que prolonga as frases, o que provoca uma possível sobreposição de elementos através de caminhos narrativos deliberadamente sinuosos, ou de palavras cujo sentido pragmático é ambíguo de maneira recalcitrante. De fato, talvez o maior desafio de traduzir Machado encontra-se no risco de carregar mais do que é preciso em algum dos pratos da balança da ambiguidade, por ele magistralmente equilibrada com arte de funambulista.

Esse é o caso de um aspecto que chamou logo a minha atenção no romance, isto é, o uso atípico de uma expressão que se encontra no capítulo VII: "Nenhum premiado as acusou ainda de imorais [às loterias], como ninguém tachou de má a boceta de Pandora, por lhe ter ficado a esperança no fundo; em alguma parte há de ela ficar".3 3 Todas as citações da obra de Machado de Assis remetem à edição digital de Marta de Senna em www.machadodeassis.net. Cabe anotar, em primeiro lugar, que, já em tempos de Machado, teria sido comum falar de "caixa de Pandora", e que a formulação gramatical da frase torna patente a reificação do mito no tempo presente da enunciação: a esperança fica no seu lugar. O episódio em que ocorre a expressão é sobre a mãe de Bento, Dona Glória, e está marcado pela insinuação de um recalque sexual. Em última instância, o que o narrador descreve, de maneira um tanto quanto cândida e infantilizada, é a ligação física entre os pais, da qual ele é, presumivelmente, produto e constatação: "Sou toda sua, meu guapo cavalheiro!", diz ela, e "Vejam como esta moça me quer...", diz ele. A leitura mais comum da passagem, adotada por quase todas as traduções para o espanhol que foram consultadas, é a de que a palavra estranha será um simples latinismo culto, uma âncora de Machado no ido século XIX, que pode ser, sem consequências, atualizado para "caja de Pandora".4 4 Essa também é a leitura que faz Marta de Senna, consignada numa nota da edição hospedada em www.machadodeassis.net: "A palavra 'boceta' era empregada no século XIX como 'bolsa pequena', 'bolsinha', 'caixa'". A minha intuição sobre o problemático dessa expressão, nutrida por um conhecimento superficial de alguma poesia erótica portuguesa oitocentista,5 5 Entre outras referências curiosas, encontram-se algumas no Vocabulário português e latino de Rafael Bluteau, obra do século XVIII: "bocèta. Vaso pequeno de qualquer materia, grandeza, & figura. Pyxis, idis. Fem. Cic. Esta palavra se diz propriamente das bocetas debaxo, mas nem por isso se deixa de dizer. [...] De maneira, que quando as bocetas se vão chegando á grandeza de huma caxa, melhor he, que se diga Capsa, ae. Cic. Não he facil de crer que Cista signifique Boceta, como alguns nos querem dàr a entender. § Boceta. Proverbialmente dizemos, ter alguem numa boceta, id est, telo mimoso, trata muito do seu commodo". Essa e outras obras podem ser consultadas no Corpus Lexicográfico do Português: http://clp.dlc.ua.pt/Inicio.aspx. agudizou-se após confrontá-la com o episódio de Memórias póstumas, protagonizado pela mesma Pandora - capítulo VII também. Aí, a figura monstruosa, que é ao mesmo tempo "mãe" e "inimiga", tem "bolsa" em lugar de "boceta". Nesse episódio, porém, já não há nenhum recalque sexual. O conteúdo é, pelo contrário, invulgarmente explícito: "Vamos lá, Pandora, abre o ventre, e digere-me; a cousa é divertida, mas digere-me".

Gregory Rabassa, nas suas The Posthumous Memoirs of Brás Cubas traduziu "bolsa" para "bag" (ASSIS, 1998______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. Oxford: Oxford University Press, 1998.), criando um uso que não recupera a caracterização tradicional do mito de Pandora em inglês, já distorcida a partir de uma mais antiga, "jarra" ou "ânfora", pelo celebérrimo humanista Erasmo de Roterdão (cf. HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 8). Tenho a ideia de que Machado, se tivesse traduzido a sua própria obra para o inglês, teria usado "purse" no lugar de "bolsa", e baseio-me para isso na tradução que faz Bento ao citar Othelo: "O conselho do fino Iago" é "mete dinheiro na bolsa", isto é, "put money in the purse", no original inglês. O conselho de Iago para Roderigo passa pelo esquecimento do "amor", o desafio a que seja "homem" e a falsa promessa de sexo com Desdêmona, que nunca se realizará. Isso justifica a pergunta: em que sentido foi "fino" Iago? E, ainda: como traduziria Machado "boceta" para o inglês, a fim de não apagar a diferença que criou chamando-a antes, em Memórias póstumas, "bolsa"? Certamente entramos aqui no campo da especulação e atribuímos ao autor uma preocupação típica dos tradutores. Porém, pelo conhecimento de algumas das peculiaridades do estilo compositivo machadiano e pela sua particular maneira de revisar os clássicos e trazê-los para a abertura de sentido da sua própria obra - como o faz com Homero, a Bíblia ou Montaigne -, talvez não seja uma questão completamente disparatada. De fato, já foi arguido por alguns filólogos e lexicógrafos da língua inglesa que "purse" comparte uma linha genealógica, muito antiga, pela via das línguas germânicas, "puss"/"pussa", e por essa mesma via com a origem do termo vulgar "pussy", nas suas duas acepções contemporâneas;6 6 "puss", Oxford English Dictionary, 1933; e "purse", Webster's Third New International Dictionary, 1981. em última instância, tratar-se-ia de derivações entrecruzadas do termo latino "bursa" ou "buxis"7 7 O erro na tradução de Erasmo de Roterdão poderá ter sido provocado por uma confusão entre termos gregos e latinos nos mitos de Pandora e Psique: "puxos/pyxis", caixa; "pithos", jarra (cf. WEST apud.HAYNES, 2022, p. 8). e de formas populares para denotar o corpo da mulher, e a ela por sinédoque. Mas vou deter-me nesse ponto.

Parece-me razoável considerar que Machado tenha criado deliberadamente uma polaridade significativa no uso do termo boceta/bolsa, encobrindo assim, camonianamente, com "um delgado cendal" - veja-se o capítulo CV de Dom Casmurro -, a conotação vulgar do termo que, se não era já de uso muito corrente a finais do século XIX no Brasil, estava a caminho de sê-lo, e poucas décadas mais tarde, como poderá conferir-se em poemas de Manuel Bandeira (BUENO, 2004BUENO, Alexei. Antologia da poesia pornográfica: de Gregório de Matos a Glauco Mattoso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.), quando já não cabiam dúvidas. Além disso, parece eloquente o fato de que, numa edição de 1950, as três ocorrências de "boceta" fossem censuradas e deformadas em "bolsa de Pandora", "bolsa fatídica" e "tampa da caixa".8 8 Essa informação consta na edição crítica de Manuel Mourivaldo Santiago (ASSIS, 2021, p. 253-255) - e agradeço a Hélio Guimarães pelo aviso. Sobre o terceiro uso de "boceta" em Dom Casmurro, isto é, no capítulo XXXV, "O Protonotário Apostólico", o uso se relaciona de maneira mais concreta com o continente do rapé: "Cabral ouvia com gosto a repetição do título. Estava em pé, dava alguns passos, sorria ou tamborilava na tampa da boceta. O tamanho do título como que lhe dobrava a magnificência [...]". Contudo, torna-se difícil ignorar que nesse caso também se trata de um capítulo com um importante subtexto sexual, em parte por aquele que o precede, o XXXIV, "Sou homem!", em parte porque representa um momento de clímax no relato, onde a tensão se constrói à volta da possibilidade de Bento vir a ser um homem casto e portanto infértil - assunto de máxima relevância para uma compreensão do romance como alegoria da ordem social do segundo império brasileiro (HABERLY, 2005HABERLY, David T. Dom Casmurro e o romance do adultério feminino. In: SARAIVA, Juracy Assmann. Nos labirintos de Dom Casmurro: ensaios críticos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005. p. 43-60., p. 58-59) -, ante à qual o menino, recém-beijado, se revolta.9 9 Cabe anotar que, com o sentido de continente para o rapé, "boceta" comparece no conto "A mulher de preto", de 1868, na novela Casa Velha, 1885-1886, e em "O empréstimo", 1882. Com o sentido de caixa pequena, no capítulo XCI de Memórias póstumas. Trata-se de apenas dez usos da palavra em toda a obra machadiana, o que faz dela, com certeza, uma palavra invulgar e cuja relevância se encontra, sobretudo, em Dom Casmurro.

Até onde chega o meu conhecimento, só uma tradução para o espanhol terá manifestado incomodidade frente ao uso suspeito de "boceta de pandora". José A. Fernández, traduziu "cofrecito de pandora" (ASSIS, 1980ASSIS, Machado de. Don Casmurro. Tradução de José A. Fernández. Santiago de Chile: Andrés Bello, 1980[?].[?], p. 19) na sua versão para a editora Andrés Bello, nos anos oitenta, sem dar maiores explicações para a sua decisão.10 10 Infelizmente a decisão do tradutor não foi consistente e, na terceira ocorrência do termo, opta por traduzir: "tapa del joyero" (ASSIS, 1980[?], p. 71). Na nossa tradução, Adriana Garcia e eu decidimos seguir essa ocorrência, porque temos sérias dúvidas sobre a maneira pela qual Machado poderia ter sido "fino" no episódio, e confiamos em que a sutileza do diminutivo poderá resultar o suficientemente suspeita para alguns leitores da língua espanhola - é, claro, uma aposta. Agora, mais interessante - parece-me - será discutir em quais das bordas da polissemia da palavra se encontram Bentinho e Machado, e se um deles pode ou pretende ser a fonte do lapso do outro, isto é, o lugar de onde emerge o conteúdo latente na manifestação do tabu. Certamente, o que está no coração do solapamento é uma força de atração/intimidação, o kalon kakon helênico, exercida pelo caráter feminino:

[...] "a beautiful evil" - which Zeus gives to mortals as a penalty for the fire that Prometheus has stolen for us. The phrase is usually translated that way round. [...] But both words are adjectives, and both can have a moral or physical meaning: kalos can be fine, beautiful, pretty, and also morally good, noble or virtuous. Kakos, equally can be bad or evil, and also inept, ugly, unfortunate (HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 30).

O impacto do paradoxo provém da intuição do sentido profundo da relação entre origem e destino - a natureza como "mãe" e "inimiga" -, que sublinha o quanto esse romance, como outros de Machado, é sobre mulheres e sexo.

Em qualquer caso, o capítulo VII de Dom Casmurro e o VII de Memórias póstumas ganham em relevância ao inserir-se numa "vasta polêmica" milenária sobre misoginia, ginofobia e, potencialmente, ginodulia, da qual Pandora é o emblema arquetípico. Quando de mitos se fala, estamos sempre à procura da religação entre passado e presente por meio do sentido:

Myths may be home of the miraculous, but they are also mirrors of us. Which version of a story we chose to tell, which characters we place in the foreground, which ones we allow to fade into the shadows: these reflect both the teller and the reader, as much as they show the characters of the myth (HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 7).

Como sublinha Natalie Haynes, Pandora não é qualquer mulher, é antes de nada a "ur-mulher", da qual provêm todas as mulheres sucessivas, incluídas Dona Glória e, certamente, Capitu. Em contradição com o mito cristão, onde Eva e Adão são progenitores de toda a humanidade, no mito grego, na versão de Hesíodo, Pandora é identificada como molde da condição feminina, separada do filão gerador dos homens: "[mortal men] will have no device against her. From this woman, Hesiod says, comes the whole deadly race of women" (HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 11). Não é preciso demostrar que Machado estava ciente da larga história de desleituras que fez com que a anfôra ou jarra de Pandora virasse uma "caixa", no século XVI, para aperceber-se de que a sua indecisão ou ensaio sobre o uso de "bolsa" ou "boceta", para o caso, requer uma reflexão mais demorada sobre as implicações da escolha. Até onde tenho conseguido verificar - apoiado na ferramenta de pesquisa que oferece o site www.machadodeassis.net -, Pandora não surge em outro passo da obra machadiana, para além dos dois romances citados.11 11 Não exatamente. O nome de Pandora ou a "boceta" ou "bolsa" não surgem em nenhum outro passo da obra machadiana, porém há uma referência curiosa ao mito no romance Helena: "Helena precipitou-se depois para o corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abri-la, receoso dos males que iam dali sair, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abri-la, e hesitou se o devia fazer na ausência de Estácio e D. Úrsula; venceu o escrúpulo e leu". Nesse caso, o "curioso" é o homem. Ver nota 9. Por outro lado, que a curiosidade de Pandora tenha sido substituída ou fusionada no ocidentalismo judaico-cristão com aquela de Eva (HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 24-25), e ambas de igual forma castigadas pelos próprios autores dos seus relatos e paradigmaticamente difamadas como exemplos da incontinência ou da irresponsabilidade feminina, simultaneamente cimenta a diferença entre os valores morais expectáveis de cada gênero (cf. GREENBLATH, 2017GREENBLATT, Stephen. The rise and fall of Adam and Eve: the story that created us. Nova York: WW Norton & Company, 2017., p. 68) e põe-nos cara a cara com o substrato possibilitador da existência humana, como o próprio Machado afirma pelos lábios do juiz de fora, no conto "Adão e Eva" (1896). Nesse conto, é imaginado um mundo em que os pais da humanidade não pecaram:

A terra que deixastes fica entregue às obras do Tinhoso, aos animais ferozes e maléficos, às plantas daninhas e peçonhentas, ao ar impuro, à vida dos pântanos. Reinará nela a serpente que rasteja, babuja e morde, nenhuma criatura igual a vós porá entre tanta abominação a nota da esperança e da piedade.12 12 Cabe anotar que esse conto - que poderá ser lido como uma instância da gênese de Dom Casmurro, no mesmo sentido que o conto "Civilização" está na de A cidade e as serras, de Eça de Queirós - começa com uma reflexão acerca de se a curiosidade é um atributo/vício masculino ou feminino. Essa pergunta, pela associação caráter-gênero, não é alheia ao mito de Pandora que, em outras versões helênicas, tem a Epimeteu, "a curious and greedy man", como responsável pela abertura da caixa (cf. HAYNES, 2022, p. 18). Note-se, ainda, que a referência à "esperança" no conto, ausente no mito hebraico, é uma reminiscência machadiana da sua leitura de Pandora.

As curiosidades de Capitu, às quais está dedicado um capítulo completo do romance - o XXXI -, oferecem uma oportunidade de exploração coletiva da relação de domínio/perigo sobre o feminino, por parte do patriarcado como modelo civilizacional, que Machado veicula na sua obra, embora com isso não vamos dizer que o autor está alinhando com princípios morais contemporâneos, arduamente vingados pela ação do feminismo sobre os séculos XX e XXI:

Machado imagines a woman character of great energy and seduction, but with a finally undeterminable nature - one who, simultaneously and in a contradictory fashion, harks back to traditional and misogynist myths of women's devious power, but who is also mature, intelligent, and possibly behaves in utter conformity with the role considered appropriate for upper-class wives in late nineteenth-century Brazil (PEIXOTO, 2016PEIXOTO, Marta. Capitu's Curiosity: Undecidability and Questions of Gender in Dom Casmurro. In: AIDOO, Lamonte; SILVA, Daniel F. (Eds.). Emerging Dialogues on Machado de Assis. Nova York: Palgrave Macmillan , 2016. p. 149-162., p. 160).

Se o que Pandora aporta aos mortais, segundo Natalie Haynes (2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 287), é a complexidade, não faz outro favor Capitu a Dom Casmurro.

Nessa ordem de ideias, extrapolando um pouco ainda, podemos dizer que a indagação pela complexidade do lugar que a "boceta" ou "bolsa" de Pandora deve ocupar na história da civilização e em Dom Casmurro aproximaria Machado ao diálogo com Ursula K. Le Guin (1989LE GUIN, Ursula K. The Carrier Bag Theory of Fiction. In: ______. Dancing at the Edge of the World: Thoughts on Words, Women, Places. Nova York: Grovre Press, 1989 [1986]. p. 165-170., p. 29), que, num breve ensaio, também dos anos oitenta, desenvolve uma contundente proposta de revisão sistemática da obliteração da agência da mulher pelo patriarcado:

The first cultural device was probably a recipient... Many theorizers fell that the earliest cultural inventions must have been a container to hold gathered products and some kind of sling or net carrier [...] we've all heard all about all the sticks and spears and swords, the things that bash and poke and hit with, the long, hard things, but we have not hear about the thing to put things in, the container for the thing contained. That is a new story. That is news.

O ensaio oportunamente chama-se "The Carrier Bag Theory of Fiction", publicado em 1986. A de Le Guin também é uma estória de Pandora: da origem feminina da civilização. O fascínio da "nova" história que Le Guin propõe encontra-se precisamente no fato de esta ter sido invisibilizada, como a estória de Capitu está invisibilizada e ao mesmo tempo feita possível pela de Bento.

Com o apresentado aqui, não tenho outro propósito do que apontar para o potencial de continuar traduzindo Machado, por meio de exercícios de investigação determinados pelo estudo da crítica desenvolvida internacionalmente e animando o diálogo entre as fontes que podem vitalizar o percurso de atualização da obra, na sua evolução no tempo da leitura, transformando-a na medida em que o leitor, que não é menos personagem do romance, também muda.

Referências

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    » https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/57638
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  • VALENCIA, Guillermo. Ritos. Londres: Wertheimer, Lea y Cia, 1914. [Edição fac-similar. Cali: Carvajal, 1979.]
  • Errata

    No artigo "As curiosidades de Dom Casmurro: traduzir a 'vasta polêmica"', com número de DOI: 10.1590/1983-682120231621, publicado no periódico Machado de Assis em Linha, v. 16, p. 1-16, e273004, na página 1:
    Onde se lia:
    The curiositys of Dom Casmurro: to translate the "vasta polêmica" Leia-se:
    The curiosities of Dom Casmurro: to translate the "vasta polêmica"
    E na página 2:
    Onde se lia:
    Las curiosidades de Don Casmurro: traduzir la "vasta polémica" Leia-se:
    Las curiosidades de Don Casmurro: traducir la "vasta polémica"
  • 1
    Este texto constitui uma reelaboração e um aprofundamento sobre alguns pontos contidos no texto introdutório em espanhol da edição de Don Casmurro, publicada pela editora da Universidad EAFIT, em 2022 (ASSIS, 2022______. Don Casmurro. Tradução de Adriana García Arriola e Jorge Uribe. Medellín: Editorial EAFIT, 2022.).
  • 2
    Garnier (1910); Editorial Nova (1943); W. M. Jackson (1945); Acme (1953); Espasa Calpe (1955); Editorial Montesinos (1985); Cátedra (1991); Editorial Andrés Bello (1980); Universidad Nacional Autónoma de México (2012); Fondo Editorial Universidad Antonio Nariño y Universidad Estadual de Campinas (2012); Edicións Courel (2021); Editorial EAFIT (2022) (cf. SOTO, 2012SOTO, Pablo Cardellino. Traducciones de Machado de Assis al español. In: GUERINI, Andréia; FREITAS, Luana Ferreira de; COSTA, Walter Carlos (Orgs.). Machado de Assis: tradutor e traduzido. Florianópolis: PGET/UFSC, 2012. p. 129-159.; DOMÍNGUEZ, 2010DOMÍNGUEZ, Carlos Espinosa. Andanças póstumas: Machado de Assis em espanhol. Caracol, n. 1, p. 65-85, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/57638.
    https://www.revistas.usp.br/caracol/arti...
    ).
  • 3
    Todas as citações da obra de Machado de Assis remetem à edição digital de Marta de Senna em www.machadodeassis.net.
  • 4
    Essa também é a leitura que faz Marta de Senna, consignada numa nota da edição hospedada em www.machadodeassis.net: "A palavra 'boceta' era empregada no século XIX como 'bolsa pequena', 'bolsinha', 'caixa'".
  • 5
    Entre outras referências curiosas, encontram-se algumas no Vocabulário português e latino de Rafael Bluteau, obra do século XVIII: "bocèta. Vaso pequeno de qualquer materia, grandeza, & figura. Pyxis, idis. Fem. Cic. Esta palavra se diz propriamente das bocetas debaxo, mas nem por isso se deixa de dizer. [...] De maneira, que quando as bocetas se vão chegando á grandeza de huma caxa, melhor he, que se diga Capsa, ae. Cic. Não he facil de crer que Cista signifique Boceta, como alguns nos querem dàr a entender. § Boceta. Proverbialmente dizemos, ter alguem numa boceta, id est, telo mimoso, trata muito do seu commodo". Essa e outras obras podem ser consultadas no Corpus Lexicográfico do Português: http://clp.dlc.ua.pt/Inicio.aspx.
  • 6
    "puss", Oxford English Dictionary, 1933; e "purse", Webster's Third New International Dictionary, 1981.
  • 7
    O erro na tradução de Erasmo de Roterdão poderá ter sido provocado por uma confusão entre termos gregos e latinos nos mitos de Pandora e Psique: "puxos/pyxis", caixa; "pithos", jarra (cf. WEST apud.HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 8).
  • 8
    Essa informação consta na edição crítica de Manuel Mourivaldo Santiago (ASSIS, 2021______. Dom Casmurro: edição crítica e atualizada. Estabelecimento de texto e estudo de variantes por Manoel Mourivaldo Santiago-Almeida. São Paulo: Desconcertos, 2021., p. 253-255) - e agradeço a Hélio Guimarães pelo aviso.
  • 9
    Cabe anotar que, com o sentido de continente para o rapé, "boceta" comparece no conto "A mulher de preto", de 1868, na novela Casa Velha, 1885-1886, e em "O empréstimo", 1882. Com o sentido de caixa pequena, no capítulo XCI de Memórias póstumas. Trata-se de apenas dez usos da palavra em toda a obra machadiana, o que faz dela, com certeza, uma palavra invulgar e cuja relevância se encontra, sobretudo, em Dom Casmurro.
  • 10
    Infelizmente a decisão do tradutor não foi consistente e, na terceira ocorrência do termo, opta por traduzir: "tapa del joyero" (ASSIS, 1980ASSIS, Machado de. Don Casmurro. Tradução de José A. Fernández. Santiago de Chile: Andrés Bello, 1980[?].[?], p. 71).
  • 11
    Não exatamente. O nome de Pandora ou a "boceta" ou "bolsa" não surgem em nenhum outro passo da obra machadiana, porém há uma referência curiosa ao mito no romance Helena: "Helena precipitou-se depois para o corredor, deixando o padre só, com a carta nas mãos, sem ousar abri-la, receoso dos males que iam dali sair, sem certeza ao menos de que ficaria no fundo a esperança. Ia abri-la, e hesitou se o devia fazer na ausência de Estácio e D. Úrsula; venceu o escrúpulo e leu". Nesse caso, o "curioso" é o homem. Ver nota 9.
  • 12
    Cabe anotar que esse conto - que poderá ser lido como uma instância da gênese de Dom Casmurro, no mesmo sentido que o conto "Civilização" está na de A cidade e as serras, de Eça de Queirós - começa com uma reflexão acerca de se a curiosidade é um atributo/vício masculino ou feminino. Essa pergunta, pela associação caráter-gênero, não é alheia ao mito de Pandora que, em outras versões helênicas, tem a Epimeteu, "a curious and greedy man", como responsável pela abertura da caixa (cf. HAYNES, 2022HAYNES, Natalie. Pandora's Jar. Nova York; Londres: Harper Perennial, 2022. , p. 18). Note-se, ainda, que a referência à "esperança" no conto, ausente no mito hebraico, é uma reminiscência machadiana da sua leitura de Pandora.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Aceito
    10 Maio 2023
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