Acessibilidade / Reportar erro

Sociedade de esquina

RESENHAS

Cristina Patriota de Moura

Universidade Estadual de Goiás

Whyte, William Foote. 2005 [1943]. Sociedade de esquina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 390pp.

Sessenta e dois anos após a sua primeira edição, finalmente é publicada em língua portuguesa a exemplar etnografia de William Foote Whyte sobre Cornerville (North End), uma área pobre e degradada de Eastern City (Boston), habitada por imigrantes italianos.

Ao terminar o curso de graduação em economia, Whyte recebeu uma bolsa de Harvard para fazer a pesquisa que desejasse, desde que não valesse créditos para um doutorado. Passou quase quatro anos vivendo no North End, embrenhando-se em densas redes de relações ao passo que também fazia extensas leituras em antropologia e sociologia e reformulava sua pesquisa, até chegar ao formato que lhe permitiu escrever Sociedade de Esquina, questionando preceitos compartilhados pelos sociólogos urbanos da época, como a noção de desorganização, cara a Louis Wirth, em Chicago.

Whyte tinha apenas 22 anos quando iniciou seu estudo. Inicialmente incomodava-o a sensação de desconhecimento da população de uma área espacialmente tão próxima de seu circuito como universitário de classe média, e procurava meios de transformar as áreas pobres e degradadas. Em Harvard, travou contatos com Conrad Arensberg, também pesquisador júnior que trabalhara com Lloyd Warner no estudo de Yankee City. Arensberg e Eliot Chapple vinham desenvolvendo uma teoria da interação social que teve grande influência na formulação da metodologia a ser utilizada por Whyte, que se diferenciaria de autores como os Lynd com seus estudos de comunidade. Posteriormente, já com o estudo pronto, Whyte ingressa na Universidade de Chicago, apresentando Sociedade de Esquina como tese de doutorado, sob a orientação de Lloyd Warner e com o apoio de Everett Hughes. Após contundentes ataques de Wirth, o livro foi aceito como tese, desde que o autor elaborasse uma revisão da literatura já existente sobre áreas pobres e degradadas.

O livro começa opondo a perspectiva da classe média branca norte-americana, da qual Whyte fazia parte, que via todas as áreas pobres como caóticas, e a percepção dos "de dentro", que "vêem em Cornerville um sistema social altamente organizado e integrado" (p. 21). O autor propõe, então, justamente compreender essa organização social existente. Constrói uma narrativa dinâmica, complexa e abrangente, permitindo ao leitor acompanhar com clareza os meandros de uma estrutura social formada por diferentes padrões de interação, através dos quais indivíduos se movimentam e organizações formais e informais surgem, desaparecem e brotam novamente, em diversos níveis da hierarquia social.

Mas apesar de a construção de Whyte apresentar uma impressionante sofisticação teórico-metodológica, sem a qual seria impossível chegar ao resultado atingido, o texto não cita obras nem autores e tampouco procura adequar o material de campo a modelos abstratos previamente elaborados. Nas palavras do autor:

Nesta pesquisa sobre Cornerville, pouco iremos nos preocupar com as pessoas em geral. Encontraremos pessoas particulares e observaremos as coisas particulares que fazem. O padrão geral de vida é importante, mas só pode ser construído por meio da observação dos indivíduos cujos padrões configuram esse padrão (p.23).

Encontramos diversos personagens ao longo do texto, em uma trama de ações conjuntas, competições por lideranças, composição de alianças políticas e econômicas, distribuições de bens e favores, estabelecimento, manutenção e rompimento de laços de amizade. Compõe-se uma Cornerville que passa a fazer sentido como organização social digna de respeito e compreensão, mas que tem sua própria lógica, diferente dos padrões estabelecidos e aceitos pela sociedade norte-americana mais abrangente, identificada com a classe média anglo-saxã com origens protestantes. O livro é um amplo exercício de relativização e retomada do "ponto de vista nativo", segundo os preceitos malinowskianos nos quais o autor diz ter se inspirado.

O autor descreve quatro tipos de organização: a gangue de esquina, o clube organizado por "rapazes formados", a organização mafiosa e a política partidária. Os dois primeiros abrigam os "peixes miúdos": os "rapazes de esquina", que ocupam a posição mais baixa na hierarquia social, e os "rapazes formados", que se encontram em meio a trajetórias de ascensão social. Já os gângsteres e os políticos são os "peixes graúdos", ocupam o topo da hierarquia local. Mas cada "tipo" identificado por Whyte é construído a partir da observação e da descrição de trajetórias de indivíduos e grupos concretos com os quais o autor não só entrou em contato, mas de fato envolveu-se em ações, disputas e projetos conjuntos.

Acompanhamos a trajetória de Doc e seus rapazes de esquina, que formavam a gangue dos Norton, e de Chick, que fazia parte do Clube da Comunidade Italiana, com os interesses divididos entre atuar como base de mobilidade social para os rapazes formados ou servir ao bem da comunidade local. Os Norton acabam desintegrando-se e os membros formados do Clube da Comunidade Italiana vão se distanciando cada vez mais dos rapazes e das moças locais, com suas redes de obrigações recíprocas que dificultam as trajetórias de ascensão individual e a entrada em um mundo com valores individualistas. Conclui-se que o que diferencia Doc de Chick não é a maior habilidade ou inteligência de cada um. Os dois inserem-se em diferentes padrões de atividades que envolvem, inclusive, diferentes lógicas econômicas e formas de gastar dinheiro. Se Chick vive segundo uma economia de poupança em que o que conta é o lucro e a ascensão pessoal, Doc age segundo uma economia de consumo, na qual as relações pessoais e a reciprocidade devem falar mais alto. Ao chegar a esta conclusão, vemos críticas às políticas públicas que instalam centros comunitários com assistentes sociais externos que pouco sabem sobre a população local, suas formas de organização e que não estariam também procurando se adaptar às necessidades e aos padrões de liderança já existentes.

Na segunda parte do livro encontramos os gângsteres e os políticos com suas organizações. Aprendemos que as grandes organizações mafiosas desenvolveram-se na época da Lei Seca, como os negócios de venda de bebidas. Elas foram posteriormente legalizadas ou transformaram-se em outro tipo de empreendimento, desta vez lidando com jogos ilegais. O jogo de números, diz o autor, é um negócio como qualquer outro, com rotina, organização, eficiência e disciplina. Há uma estrutura que vai do apostador, agentes, passando pelos "homens de 50%" — que repassam 50% dos ganhos ao escritório — até chegar ao escritório ou à companhia, controlado pelo grande mafioso T. S., um "homem de negócios" discreto e com amplas "conexões" com a polícia e os políticos. A coerção física é minimizada, mas já houve épocas em que prevalecia o gangster violento, "criminoso romântico", "pirata".

A polícia atua como um amortecedor entre duas organizações sociais distintas e com diferentes expectativas. Se a classe média espera que o policial faça cumprir a lei de forma impessoal, em Cornerville espera-se que ele se insira em relações pessoais e aja mais como um mediador e regulador de atividades ilegais. Há subornos e trocas de favores entre gângsteres e policiais, mas há também relações pessoais significativas que envolvem amizade e confiança mútua, principalmente levando em conta que grande parte dos policiais cresceu no mesmo ambiente e compartilha a visão de mundo local, que distingue entre atividades ilegais "honestas" e outras atividades moralmente condenáveis, como roubo e assassinato, por exemplo. O autor nos apresenta então um complexo jogo de interesses, no qual há diferentes tipos de pressões exercidas sobre policiais, gângsteres e a população local, em suas interações internas e externas. As organizações mafiosas também cumprem importante papel como provedoras de empregos, empréstimos e oportunidades de ascensão social a indivíduos discriminados pelo mercado de trabalho formal.

Para entender as relações dos gângsteres com os rapazes de esquina e os diferentes tipos de liderança, acompanhamos os acontecimentos envolvendo o estabelecimento e a trajetória do Clube Social e Atlético de Cornerville, formado inicialmente por duas cliques e contando com o patrocínio de Tony Cataldo, dono de casas de apostas e de um jogo de bingo. Inicialmente, o clube é composto por duas cliques, cada uma com um líder informal — um rapaz de esquina e um membro da organização mafiosa. Durante um período de quase dois anos, vemos o desenvolvimento das atividades do clube, as disputas de poder e a mudança da organização informal, desaparecendo as clivagens internas e passando a haver um líder interno, ainda que Tony permanecesse como figura importante. Carlo e Tony tinham diferentes tipos de poder. "Fora do clube, Tony iniciava ações para um grande número de homens sobre os quais Carlo não podia agir" (p. 205), mas Carlo tinha intimidade com os rapazes de esquina e, portanto, maior capacidade de iniciar ações no clube.

Ao longo de todo o livro, Whyte procura mostrar ao leitor como os indivíduos de Cornerville e principalmente os líderes de diversos grupos sociais encontram-se em posições ambíguas, entre um tipo de padrão de interação baseado em altos níveis de sociabilidade e códigos de obrigações recíprocas e outro tipo, valorizado pela sociedade envolvente, baseado no desempenho individual, o que facilita o reconhecimento por pessoas de fora, como assistentes sociais, professores e estudantes das grandes universidades norte-americanas e políticos republicanos. Estes últimos opõem-se aos políticos do partido democrata, os quais se mantêm conectados às redes que incluem rapazes de esquina e seus líderes, famílias e agências funerárias, sociedades ligadas à igreja católica e, como não poderia deixar de ser, aos gângsteres.

Conhecemos, então, a complexa organização social de Cornerville através de um relato cheio de personagens, grupos formais e informais, conflitos e alianças. Mas além dos já citados, há um outro personagem que aparece no livro em diversas posições e às vezes influenciando as decisões tomadas nos grupos: é Bill Whyte. Nesse ponto, é impressionante a forma como o autor evidencia sua própria participação na dinâmica social que procura compreender. Aparece jogando boliche, votando nas reuniões de clubes e até fazendo campanha política para um senador. Afinal de contas, nos diz o autor, "assim como seus informantes, o pesquisador é um animal social" (p. 283).

Se o livro é um clássico dos estudos urbanos e um valioso trabalho sobre organizações, lideranças e as relações entre o que mais recentemente vem sendo chamado de "agência" individual e a construção social da pessoa, o apêndice A, intitulado "Sobre a evolução de sociedade de Esquina", é um texto de grande interesse para todos aqueles que desejam compreender melhor as questões metodológicas e éticas envolvidas em qualquer trabalho de campo antropológico. O texto de quase 80 páginas — escrito em diversas etapas, desde a segunda edição do livro em 1955 até sua derradeira edição em 1993 — inclui preciosas considerações sobre o histórico da pesquisa, a construção do objeto, a inserção do pesquisador no campo e seus relacionamentos com os membros dos grupos pesquisados. Inclui também um raríssimo acompanhamento da recepção do trabalho entre os habitantes de Cornerville, das trajetórias posteriores de alguns dos principais personagens do livro e, inclusive, respostas a críticas feitas à obra, já na década de 1990, no contexto do que o autor chama de "marco pós-fundacional" nas ciências sociais, referindo-se à virada crítica iniciada por Clifford Geertz em Works and Lives e continuada pelos antropólogos pós-modernos.

A edição traduzida para o português traz uma esclarecedora apresentação de Gilberto Velho, que discute não só a atualidade da obra, mas também sua relação com as diferentes abordagens presentes na Escola de Chicago. Dela consta também o prefácio à quarta edição norte-americana e um apêndice, ambos escritos pelo autor, que são tão interessantes quanto o próprio texto original. Insere, finalmente, o surpreendente depoimento de Angelo Orlandella, um ex-rapaz de esquina que trabalhou como assistente de pesquisa e narra as influências de Sociedade de Esquina em sua vida profissional.

Sociedade de Esquina é, portanto, uma obra que, apesar de sua idade avançada, nos chega com a maturidade de um clássico relido e problematizado por moradores do North End, cientistas sociais com diferentes perspectivas teórico—metodológicas e seu próprio autor. Vem proporcionar-nos uma perspectiva original, interessante tanto em termos de contribuir para a formação em ciências sociais e estudos urbanos quanto para compreender fenômenos que podem apresentar semelhanças importantes com aqueles encontrados, ainda hoje, nas áreas pobres e degradadas de nossas cidades.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2006
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - PPGAS-Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Quinta da Boa Vista s/n - São Cristóvão, 20940-040 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 2568-9642, Fax: +55 21 2254-6695 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistamanappgas@gmail.com