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MAPEANDO FENÔMENOS INTANGÍVEIS

MAPEO DE FENÓMENOS INTANGIBLES

Resumo

O artigo contribui para a Geografia Cultural por meio de uma proposta metodológica para mapear temas culturais altamente específicos, como a fobia. Com foco em uma reflexão epistemológica sobre a representação da cultura no entorno de um cemitério da cidade de Salinas, localizada na região norte do estado de Minas Gerais, Brasil, o artigo preconiza uma solução metodológica a partir de identidades e abandona a pretensão de representações totalizantes. O resultado é uma alternativa útil para estudos que avaliam os atributos de paisagem e lugar e uma gama mais abrangente de estudos sobre percepção.

Palavras-chave:
Cidade de Salinas; Brasil; Geografia Cultural; Reflexão Epistemológica; Cultura; Identidades; Fobia

Resumen

El artículo contribuye a la Geografía Cultural a través de una propuesta metodológica para mapear temas culturales muy específicos, como la fobia. Centrándose en una reflexión epistemológica sobre la representación de la cultura en torno a un cementerio en la ciudad de Salinas, ubicada en la región norte del estado de Minas Gerais, Brasil, el artículo aboga por una solución metodológica basada en identidades y abandona la pretensión de representaciones totalizadoras. El resultado es una alternativa útil para los estudios que evalúan los atributos del paisaje y el lugar y una gama más completa de estudios sobre la percepción.

Palabras-clave:
Ciudad de Salinas; Brasil; Geografía Cultural; Reflexión Epistemológica; Cultura; Identidades; Fobia

Abstract

The article contributes to Cultural Geography through a methodological proposal to map highly specific cultural themes, such as phobia. Focusing on an epistemological reflection about the representation of culture in the surroundings of a cemetery in Salinas City, located in the northern region of the state of Minas Gerais, Brazil, the article advocates a methodological solution based on identities and abandons the pretense of totalizing representations. The result is a useful alternative to studies that evaluate the attributes of landscape and place and a more comprehensive range of studies on perception.

Keywords:
Salinas City; Brazil; Cultural Geography; Epistemological Reflection; Culture; Identities; Phobia

INTRODUÇÃO

Sabe-se que existem fortes tradições que creem no status ontológico da cultura (MITCHELL, 1995MITCHELL, Don. There's No Such Thing as Culture: Towards a Reconceptualization of the Idea of Culture in Geography. Transactions of the Institute of British Geographers. New Series, v.20, n.1, p.102-116, 1995.) e que ainda estavam entremeadas no pensamento de muitos dos geógrafos culturais até o final do século passado, sob a influência da Escola de Berkeley (DUNCAN, 1980DUNCAN, James S. The superorganic in american cultural geography. Annals of the association of American geographers. V.70, nº2, p.181-198, june, 1980.; COSGROVE, 1993COSGROVE, D. On “the reinvention of cultural geography” by Price and Lewis. Annals of the Association of American Geographers, 83 (3), 515-517. 1993.). No senso comum, parece ser predominante a visão acerca da existência de culturas entendidas como entidades tangíveis. Ou ainda, em um nível de especificidade dotado de maior acuidade, e, por isso, portador de um verniz de sofisticação argumentativa, a compreensão de que elementos culturais sejam passíveis de delimitação espacial (SILVA; COSTA, 2018aSILVA, Leonardo Luiz Silveira da; Costa, Alfredo. A inadequação das regionalizações culturais mediante os pressupostos do pós-colonialismo. Salvador: Geotextos, v.14, nº1, p.225-247, julho, 2018a.; 2018bSILVA, Leonardo Luiz Silveira da; COSTA, Alfredo. Cultura como comunidade imaginada: uma crítica à abordagem ontológica da cultura nos estudos geográficos. Geografias, v.16. nº1, p.27-41, 2018b.). Querem nos fazer crer que, dentre outras frases fáceis, a corrupção faz parte da cultura brasileira, os japoneses são disciplinados e, ainda, em períodos coloniais, como bem denunciou Syed Hussein Alatas, que os nativos colonizados não passariam de preguiçosos (ALATAS, 1977ALATAS, Syed Hussein. The Myth of the lazy native. London: Frank Cass and Company, 1977.). Discordamos dessa possibilidade, tanto quanto às intencionalidades de delimitação destes fenômenos (SILVA; COSTA, 2018aSILVA, Leonardo Luiz Silveira da; Costa, Alfredo. A inadequação das regionalizações culturais mediante os pressupostos do pós-colonialismo. Salvador: Geotextos, v.14, nº1, p.225-247, julho, 2018a.; 2018bSILVA, Leonardo Luiz Silveira da; COSTA, Alfredo. Cultura como comunidade imaginada: uma crítica à abordagem ontológica da cultura nos estudos geográficos. Geografias, v.16. nº1, p.27-41, 2018b.) quanto à pretensão de totalidade que as descrições estereotipadas carregam.

A expressão “pretensão de totalidade” será usada correntemente no texto. É importante destacar que quando a utilizamos queremos nos referir às formas comunicativas utilizadas por outrem que generalizam aspectos culturais, estigmatizam indivíduos que estejam sob o domínio de determinada cultura e, por fim, reificam a cultura.

As tradições que comportaram a noção da cultura como entidade tangível remontam às origens da Antropologia enquanto departamento acadêmico e, fora da universidade, vão a tempos imemoriais, no longo período marcado pelo relato dos viajantes acerca de diferentes povos e costumes (AMORIM FILHO, 2008AMORIM FILHO, Oswaldo Bueno. Literatura de explorações e aventuras: as “Viagens Extraordinárias” de Júlio Verne. Sociedade e Natureza, v.20, n.2, p.107-119, 2008.). Alfred Kroeber, por intermédio da publicação do seu artigo de grande repercussão denominado “O superorgânico” (KROEBER, 1917KROEBER, Alfred. The superorganic. American anthropologist. V.19, n.2, april-june, p.163-213, 1917.), marcou o início de um período de célebres modificações de pressupostos na antropologia. Contudo, o determinismo cultural - apesar de fortemente criticado na aurora do século XX - passaria a perder o seu vigor somente nos anos 1950, período extremamente rico quanto as rupturas paradigmáticas do pensamento geográfico (CAPEL, 2013CAPEL, Horácio. Ruptura e continuidade no pensamento geográfico. (in): Capel, Horacio. Ruptura e continuidade no pensamento geográfico. Maringá: EDUEM, 2013.) e de muitas outras disciplinas das humanidades.

Os estudos da moderna antropologia da segunda metade do século XX passaram a estar amparados pela convicção acerca do caráter permeável, híbrido e dinâmico da cultura (SAÏD, 2007SAÏD, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.; HALL, 2013HALL, Stuart. Pensando a diáspora: reflexões sobre a terra no exterior. (in) Sovik, Liv (org). Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.) bem como de elementos que a compõe. Além disso, a negação da abordagem reificadora da cultura passou a estar associada às tentativas teóricas de representações identitárias (COHEN, 1993COHEN, Anthony P. Culture as identity: an anthropologist´s view. New Literary History, v.24, n.1, winter, p.195-209, 1993.), o que se configurou como uma solução plausível para o vício de generalizações totalizantes.

Dentro deste contexto, este artigo objetiva apresentar uma proposta metodológica para o mapeamento de emoções, que apesar de serem coletivamente intangíveis, apresentam-se como mapeáveis na dimensão identitária. Nosso esforço de campo focou-se no levantamento identitário da fobia, expressa em diversas manifestações, a partir do entorno de um cemitério da cidade de Salinas, situada no norte da província de Minas Gerais, Brasil. As interpretações sociológicas não nos interessam na reflexão deste artigo, que não é um estudo de caso. Utilizamos um exemplo para ilustrar uma proposta teórica de representação de emoções que evita a elaboração de representações totalizantes da cultura.

Acreditamos que o nosso esforço teórico pode contribuir para a execução de outros trabalhos que visem a avaliação intersubjetiva das paisagens e dos lugares. Uma segunda relevância é o interesse da reflexão para a Geografia Cultural e para a Geografia Humanista. Afinal, aspectos topofílicos se associam ao bem-estar geral da população (TUAN, 1980TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.).

A área de estudo é a parte do tecido urbano adjacente aos cemitérios. Não pretendemos aqui materializar a fobia ou mesmo delimitá-la espacialmente. A intenção é cartografar os registros intersubjetivos das pessoas que moram na adjacência do cemitério, o que representa, por si só, uma solução para o imbróglio teórico que permeia a representação cartográfica de manifestações culturais.

A prima facie parece soar como uma contradição: se haverá um mapeamento sobre a fobia, parece sensato concluir que a mesma será delimitada e reificada. Contudo, como se verá adiante, a representação cartográfica centra-se na exposição de sentimentos individuais, sem a pretensão de coletivização do fenômeno.

SOBRE A IMAGINAÇÃO, A FOBIA E SUA MENSURAÇÃO

A imaginação, que é uma possibilidade de exceção da espécie humana, é a raiz de grandes realizações, como também fonte de muita ansiedade e sofrimento (TUAN, 1998TUAN, Yi-Fu. Escapism. Baltimore: John Hopkins University Press, 1998.). As incertezas e o medo da morte, seja brutal ou natural, fazem parte de um grupo de poderosas emoções que interferem no comportamento humano. Até mesmo no que se refere ao comportamento dos Estados no ambiente político internacional, as emoções são problematizadas como variáveis que ajudam a explicar o arranjo geopolítico (MOÏSI, 2010).

As superstições são oriundas da imaginação, podendo ser encontrada em quaisquer sociedades. As superstições são marcadas por dois aspectos principais. O primeiro está associado aos apelos dos seres humanos às forças sobre-humanas no intuito de provocar intervenções positivas ou negativas em suas vidas. O segundo é complementar ao primeiro: estas forças sobre-humanas não podem ser sistematizadas em um conjunto de doutrinas religiosas (CHAKRABARTY, 2008CHAKRABARTY, Dipesh. The power of superstition in public life in India. Economic and Political Weekly. V.43, nº 20, p.16-19, May, 17, 2008.). As superstições podem ainda alimentar as fobias.

O medo de fantasmas tem suas raízes no receio do desconhecido e no bizarro. Os mortos não são temidos em todas as partes. Seus espíritos, especialmente os dos próprios antepassados, podem ser compreendidos como uma fonte de energia para o bem. Uma forte evidência de que as pessoas nem sempre temem os mortos é o costume de sepultá-los ou preservar suas partes nas casas em que viveram (TUAN, 2005TUAN, Yi-Fu. Paisagens do Medo. São Paulo: Editora Unesp, 2005.), como ocorre em certas urnas que possuem a serventia de armazenar as cinzas corporais obtidas pela cremação. É plausível considerar a existência de gradações fóbicas entre indivíduos expostos aos mesmos fenômenos. Além disto, Maurice Halbwachs nos ensina que as nossas identidades carregam memórias individuais e coletivas. Assim, todo indivíduo traria estas duas memórias e, conforme participe de uma ou de outra, adotaria atitudes muito diferentes e mesmo contrárias: de um lado, é no quadro de sua personalidade ou de sua vida pessoal que viriam tomar lugar suas lembranças; do outro, seria capaz, em alguns momentos, de se comportar simplesmente como membro de um grupo que contribui para evocar e manter lembranças impessoais, à medida que estas interessam ao grupo (HALBWACHS, 1990HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Editora Vértice, 1990.). A (inter) subjetividade descrita está presente entre as sociedades e no interior das mesmas, tornando difícil materializar o medo como uma entidade tangível, como um fenômeno coletivo que se materialize de forma dominante no espaço.

A fobia, assim como muitos elementos que são influenciados pelo viver em sociedade, ajudam a compor aquilo que convencionamos chamar de cultura. A descrição e a pretensão de delimitação da cultura conferem à mesma uma condição reificada. Sua existência está condicionada à imaginação coletiva, e, a partir dela, pode explicar, em parte, comportamentos reais dos indivíduos que julgam a ela estarem submetidos. Todavia, a permeabilidade, a heterogeneidade, o dinamismo e a hibridez que são apanágios da cultura, inviabilizam consensos referentes à sua integral constituição, delimitação espacial e evolução temporal. Nem mesmo as relações assimétricas de poder garantem aos poderosos homogeneidade cultural (como se estes pudessem cercear processos de trocas de experiências), sendo a suposta pureza constituinte da cultura um mito, como pontua Saïd (2011SAÏD, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011.):

Quem na Índia ou na Argélia de hoje, é capaz de joeirar com segurança o elemento britânico ou francês do passado entre as realidades presentes, e quem na Inglaterra ou na França é capaz de traçar um círculo nítido em torno da Londres Britânica ou da Paris francesa, excluindo o impacto da Índia e da Argélia sobre essas duas cidades imperiais? (SAÏD, 2011SAÏD, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2011., p.51).

A fobia é um elemento cultural de alta especificidade, posicionando-se ao lado de outros elementos constituintes da cultura propriamente dita, como os hábitos de higiene, o gosto musical, a culinária, dentre muitos. Apesar de ser um elemento cultural, a lógica constituinte da fobia não foge àquela que descrevemos sobre a cultura propriamente dita. Esta é a razão pela qual não pretendemos aqui materializar ou delimitar a fobia. Delimitaremos como escolha do nosso método uma área de estudo em detrimento da extensão espacial do sentimento. Se quiséssemos delimitar emoções como a fobia entraríamos em clara contradição com o nosso arcabouço teórico. A mensuração da fobia associada aos cemitérios se dará no âmbito individual, quali-quantitativamente1 1 Propomos que o método quali-quantitativo, por suas caraterísticas, é capaz de transcender justamente o entremeio e as tensões que envolvem a materialidade e a imaterialidade que compõem o espaço geográfico. Da abordagem quantitativa, se aproveita dos métodos de pesquisas censitárias ou amostrais, que são aptos a gerar informações sobre uma população de maneira estatisticamente comprovada. Da abordagem qualitativa, serve-se de metodologias que permitem compreender, por intermédio da autoexpressão, a trama de significados atribuídas pelos indivíduos ao meio, baseada nas suas experiências e vivências. , pois cremos que as agregações de informações poderiam transmitir a equivocada ideia da existência da fobia como um fenômeno reificado, de fiel representação coletiva. Tal equívoco colaboraria de forma inconteste para a negligência quanto ao entendimento intersubjetivo de mundo, construído pelo acúmulo das experiências individuais e pela força das conveniências sociais e rituais coletivos.

CEMITÉRIOS E A FOBIA

Os cemitérios servem tanto aos propósitos funcionais quanto aos emocionais. Eles oferecem o espaço para a deposição de cadáveres e, mais importante, concedem um lugar onde os vivos podem comunicar com os mortos (FRANCAVIGLIA, 1971FRANCAVIGLIA, Richard V. The cemetery as an Evolving Cultural Landscape. Annals of the Association of American Geographers. V.61, nº3, September, 501-509, 1971.) e/ou homenagear a sua memória. Estas características tornam os cemitérios patrimônios culturais, fazendo com que os mesmos se comportem também como arquivos históricos (TANAS, 2004TANAS, S. (2004). "The Cemetery as a Part of the Geography of Tourism." Turyzm 14(2): 71-87.) ou mesmo joias artísticas tal como o cemitério de Pisa (ANDREOTTI, 2010ANDREOTTI, Giuliana. Paisagens do espírito: a encenação da alma. Ateliê Geográfico, v.4, n.4, p.264-280, 2010.). É difícil ver os cemitérios de forma separada dos rituais que lhes estão associados. Os ritos, símbolos e signos diretamente ligados aos cemitérios lhes conferem uma dimensão simbólica. Certos gestos provenientes das pessoas, ao serem repetidos em público, assumem novas significações. Criam, para aqueles que os praticam ou assistem, um sentimento de comunidade compartilhada (CLAVAL, 2001CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Florianópolis: EdUFSC, 2001.).

O estilo dos cemitérios varia muito. Isto inclui variações específicas nos estilos das lápides (FRANCAVIGLIA,1971FRANCAVIGLIA, Richard V. The cemetery as an Evolving Cultural Landscape. Annals of the Association of American Geographers. V.61, nº3, September, 501-509, 1971.), dos rituais funerários e do tratamento dado aos cadáveres (que pode ser enterrado, cremado, embalsamado, dentre outros ritos e soluções). Estas variações também podem ser explicadas pela noção que se tem da vida e da morte, das relações sociais e ambientais (PITTE, 2004PITTE, Jean-Robert. A short cultural geography of death and the dead. Geojournal: V.60, p.345-351, 2004.). Cemitérios também podem possuir apelo turístico. Túmulos de celebridades costumam ser pontos de visitação. A sofisticação das lápides e mausoléus, bem como suas mudanças de estilo registradas ao longo do tempo também possuem apelo arquitetônico e histórico, fazendo com que, não raramente, alguns cemitérios possuam programas de visitação guiada, como ocorre com o tradicional cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte, Brasil; o cemitério da Consolação, em São Paulo, Brasil e o cemitério da Recoleta, em Buenos Aires, Argentina. Ademais, no campo da discussão patrimonial, cemitérios tem sido alvo de toda sorte de inventários, incluindo, por exemplo, o levantamento da distribuição das rochas utilizadas nas ornamentações dos túmulos (LICCARDO; GRASSI, 2014LICCARDO, Antonio; GRASSI, Clarissa. Geodiversidade no cemitério municipal de Curitiba como elemento cultural em análises de patrimônio. Geonomos, v.22, n.1, p.48-57, 2014.).

A presença dos cemitérios no meio urbano, contudo, desencadeia uma série de fobias que não estão exclusivamente centradas nas questões sobrenaturais, de fundo religioso ou supersticioso. Destacam-se como fobias associadas aos cemitérios em um levantamento de fontes brasileiras:

  • a preocupação ambiental (RIBEIRO; PERUSI, 2010RIBEIRO, Vitor Moraes; Perusi, Maria Cristina. Restrição à expansão do cemitério municipal de Ourinhos-SP e as condições sanitárias da população do entorno. Revista Geografia e Pesquisa. V.4, nº1, p.75-97, 2010.), dentre as quais a que se associa à conservação dos recursos hídricos ou problemas associados aos odores e à limpeza urbana;

  • a suposta presença de animais peçonhentos e de acidentes envolvendo os mesmos (BARBOSA, et al., 2014BARBOSA, A. D. et.al. Distribuição espacial de acidentes escorpiônicos em Belo Horizonte, Minas Gerais, de 2005 a 2009. Arquivo brasileiro de medicina veterinária e zootecnia, V.66, nº3, junho, p.721-730, 2014.);

  • a suposta presença de pessoas com más intenções, dentre elas golpistas e outros criminosos;

  • o receio quanto à desvalorização ou estagnação da valorização imobiliária das propriedades adjacentes ao cemitério;

  • a vergonha ou incômodo de receber visitas motivado pelo fato da residência se posicionar próxima ao cemitério;

  • o receio quanto aos fenômenos sobrenaturais ou força das superstições que poderiam prejudicar o bem-estar dos moradores das adjacências do cemitério;

Estas fobias aqui descritas nos guiaram na elaboração do método do artigo, que será descrito posteriormente. Acreditamos que a nossa proposta, apesar de possuir um viés direcionado por uma certa superestrutura social, tem o potencial de ser empregada em outras experiências. O que sugerimos neste artigo não é uma cartilha de perguntas a serem feitas acerca das fobias advindas dos cemitérios, e sim uma forma de representação que nega a reificação cultural na representação cartográfica.

MAPEAMENTO DE TEMAS CULTURAIS

A “virada cultural2 2 A virada cultural possui como marca a rejeição de epistemologias positivistas e tem como ênfase os estudos sobre os significados. O pós-modernismo, pós-colonialismo e pós-estruturalismo ajudam a consolidar os seus paradigmas. ” (cultural turn) enquanto fenômeno intelectual espalhou sua influência - a partir da década de 1970 - em inúmeras áreas do conhecimento, produzindo um rearranjo não somente na Geografia Cultural, mas amplamente na Geografia Humana (CORRÊA, 2011CORRÊA, R.L. (2011). Denis Cosgrove - a paisagem e as imagens [Denis Cosgrove - the landscape and the images]. Espaço e Cultura, 29, 7-21. 2011.; ALMEIDA, 2013ALMEIDA, M.G. Fundamentações teóricas e perspectivas na geografia cultural [Theory foundations and perspectives in cultural geography]. Geografia e Pesquisa, 7 (2), 28-43. 2013.). Por diversos modos, a virada cultural “tem sido positiva para a geografia, permitindo que novas teorias críticas pudessem emergir, abrindo espaço para a abordagem de tópicos que eram considerados fora do escopo da abordagem geográfica” (VALENTINE, 2001VALENTINE, Gill. Whatever happened to the social? Reflections on the “cultural turn” in British Human Geography. Norwegian Journal of Geography, v.55, p.166-172, 2001., p.167). Como uma onda avassaladora que chegou nos anos 1970 no ambiente acadêmico americano e britânico, apresentou como alvo da investigação cultural temáticas acerca dos significados (com forte influência pós-estruturalista) e das identidades. Por outro lado, o foco na análise coletiva da cultura ficou em segundo plano (JACKSON, 1997JACKSON, Peter. Geography and the cultural turn. Scottish Geographical Magazine. V.113, n.3, p.186-188, 1997.).

Os pressupostos trazidos pela virada cultural inspiram os geógrafos a questionarem as abordagens reificadoras da cultura e denunciarem a inadequação de parcela expressiva das representações culturais. É importante destacar, aprioristicamente, que os temas culturais possuem especificidade e generalização variáveis, como traz o quadro a seguir:

Tabela 1
Hierarquização de alguns temas culturais.

Os temas culturais generalizadores, como “a cultura propriamente dita”, são didáticos no que diz respeito a evidenciar as inadequações de sua representação cartográfica. Mapas que ilustram a espacialidade da cultura são problemáticos e pretensiosos, pois desejam representar uma construção coletiva - a cultura - a partir de um olhar, o do elaborador da proposta. É importante destacar que, nesse sentido aqui teorizado, toda descrição e delimitação de uma cultura, seja na escala continental (cultura latino-americana p.ex.) ou municipal (cultura londrina ou de Las Vegas, p.ex.) é inadequada. Por isso parafraseamos Bennedict Anderson (2008ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.) ao afirmamos que a cultura - assim como o autor se referiu à nação - é uma comunidade imaginada: ou seja, existe como entidade mal definida quando contrastada intersubjetivamente, não se materializando no espaço e apresentando-se intangível enquanto constructo coletivo.

O problema persiste nas representações cartográficas de maior especificidade cultural. Contudo, nestas, existem alternativas de representação que nos permite afastar das abordagens reificadas da cultura. Desejar representar espacialmente a “cultura brasileira” ou a “cultura da Riviera Francesa” é um anseio totalizante que não condiz com os princípios da moderna antropologia: a cultura vista como uma entidade permeável, híbrida, heterogênea e dinâmica, o que sustentaria a inexequibilidade de sua delimitação. Temas culturais de maior especificidade - como a avaliação da aprazibilidade das paisagens de regiões de uma dada área - podem rejeitar o princípio da pretensão da totalidade, desde que o mapa com este tema seja elaborado e apresentado com a devida singularidade: “as belezas da Sicília segundo o olhar de um visitante”. Neste caso, parte-se do pressuposto que a discordância do leitor frente à proposição cartográfica é aceitável e que a representação oferecida rejeita a pretensão de totalidade.

Estas teorizações foram consideradas para a nossa proposta cartográfica de mapeamento das fobias associadas ao cemitério, iniciativa a qual chamamos de “mapeamento de fenômenos intangíveis”. Propusemos uma solução de representação de elementos de alta especificidade cultural, que apresentaremos a seguir.

MÉTODO E ÁREA DE ESTUDO

Estabelecemos, a partir do ponto central do cemitério antigo de Salinas-MG, um raio de 300 metros como área de estudo. Nesta área, composta por 553 edificações de diversos tipos (residencial, comercial, religioso e autarquias governamentais), realizamos entrevistas no dia 23 de novembro de 2019 com uma equipe composta por 50 voluntários. Para cada domicílio inserido em nossa área de interesse, uma pessoa foi entrevistada3 3 De acordo com a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016), não houve necessidade de submissão da pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa. A todos os entrevistados foi apresentado um termo de participação livre e consentida. . Algumas entrevistas foram realizadas em áreas externas ao limite do círculo de 300 metros. A explicação para tanto é que incluímos na pesquisa edificações as quais o loteamento se apresentasse parcialmente cortado pela linha limítrofe deste círculo.

O critério utilizado para a seleção do entrevistado foi o de entrevistar a pessoa mais velha do domicílio que estivesse em condições de nos responder. Somente foram entrevistadas pessoas em unidades residenciais. Todos estes critérios nos levaram a realizar 226 entrevistas dentre as 553 edificações da área de estudo. No horário da aplicação, no turno matutino, 140 domicílios residenciais os moradores estavam ausentes e 38 moradores se recusaram a conceder entrevista. Além disso, 98 domicílios residenciais estavam abandonados. O questionário aplicado possuía, dentre outras questões que tinham como objetivo identificar algumas características do entrevistado, seis perguntas acerca das fobias associadas ao cemitério. Estas perguntas possuíam uma gradação de 0 a 10 que expressava a intensidade da fobia.

Para auxiliar a expressão numérica do entrevistado, os entrevistadores apresentavam uma barra numérica com valores de 0 a 10 e que estavam pintadas com uma transição de cores frias em direção as cores quentes. Antes de aplicarmos o questionário na área de estudo, na semana imediatamente anterior, fizemos um pré-teste em um município vizinho (Rubelita, Minas Gerais, Brasil) para avaliarmos eventuais problemas nas questões, como, por exemplo, a evidência de ambiguidades ou má compreensão. Eis as perguntas em seu formato final:

  • quanto você acha que o cemitério contribui para a geração de lixo, com mau cheiro e com a contaminação da água da região?

  • quanto você acha que o cemitério é capaz de atrair insetos e animais indesejáveis, como baratas, aranhas, escorpiões, tatus, gatos, cães, etc.?

  • quanto você acha que o cemitério contribui para atrair pessoas com más intenções, dentre elas golpistas e outros criminosos para as redondezas?

  • quanto você acha que o cemitério contribui para a desvalorização das casas da região?

  • quanto você sente vergonha de dizer às pessoas que mora próximo ao cemitério?

  • qual é o seu medo em relação a fantasmas, ou espíritos ou oferendas relacionadas ao cemitério?

A partir das respostas coletadas pelos entrevistados, construímos seis mapas (um para cada pergunta) nos quais os entrevistados foram representados cartograficamente de acordo com os valores que os mesmos atribuíram às respostas dadas. Como foi dito na parte introdutória deste artigo, não objetivamos refletir sobre os significados sociais e antropológicos dos dados mapeados, à medida que este artigo visa apresentar uma proposta metodológica de representação cartográfica.

Figura 1
Área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

APRESENTAÇÃO DA PROPOSTA E DISCUSSÃO

Nossos mapeamentos conjuntamente apresentam uma proposta de representação das fobias no espaço. Atuando na dimensão identitária, abandonamos a pretensão de representação da totalidade. O que representamos são, precisamente, impressões fóbicas individuais associadas ao cemitério de Salinas coletadas em 23 de novembro de 2019. O indicativo temporal é importante à medida que as identidades se reinventam expostas ao tempo inexorável.

É importante dizer que as reflexões sobre a avaliação da paisagem estão intimamente ligadas ao foco da nossa proposição, que é a representação de um tema cultural de alta especificidade. Afinal, paisagem e cultura formam um binômio (CLAVAL, 2001CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural. Florianópolis: EdUFSC, 2001.), e, portanto, os constrangimentos associados à possibilidade de avaliação da paisagem são similares ao da representação espacial da cultura. Isto se explica pelo fato de ambos procedimentos estarem vinculados à possibilidade de expressões coletivas a partir de fontes identitárias.

Nos nossos seis mapeamentos, apresentados a seguir, podemos contemplar distintas espacialidades das expressões identitárias fóbicas. Apesar da fobia ser o tema transversal do questionário, as distintas dimensões exploradas do medo ou aversão permitiram a construção de mapas com arranjos muito variados. Nota-se que, dentre os entrevistados no nosso levantamento, os temas ligados às perspectivas materiais - tais como a qualidade da água, valorização imobiliária, presença de criminosos e de animais indesejáveis - mostraram-se mais fortemente pontuados do que os temas mais intangíveis, como a vergonha de declarar ser vizinho do cemitério ou o medo de manifestações espirituais.

Figura 2
Percepção individual de riscos para a qualidade da água na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Figura 3
Percepção individual de associação com animais indesejáveis na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Figura 4
Percepção individual de associação com criminosos na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Figura 5
Percepção individual de associação com a desvalorização dos imóveis na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Figura 6
Percepção individual de vergonha por viver próximo ao na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Figura 7
Percepção individual do medo de manifestações espirituais e transcendentes na área de entorno do cemitério antigo de Salinas/MG.

Anderson e Smith (2001ANDERSON, Kay; SMITH, Susan. Emotional Geographies. Transactions of the Institute of British Geographers. V.26, n.1, p.7-10, 2001.) argumentam que é difícil compreender as emoções e também agir mediante esta compreensão. Penning-Rowsell (1982)PENNING-ROWSELL, Edmund C. A public preference evaluation of landscape quality. Regional Studies, v.16, i.2, p.97-112, 1982. também concorda com esta argumentação, o que fica claro ao expressar que a possibilidade de identificação de paisagens com diferentes atributos e valorizações é discutível. Clamp (1981CLAMP, Peter. The landscape evaluation controversy. Landscape Research, v.6, n.2, p.13-15, 1981.) prefere se expressar argumentando que nenhum método de avaliação paisagística é plenamente satisfatório. Jay Appleton (1975APPLETON, Jay. Landscape evaluation: the theoretical vacuum. Transactions of the Institute of British Geographers, n.66, nov., p.120-123, 1975.), por sua vez, salientou que existe um vácuo teórico no que tange à representação das apreciações estéticas da paisagem, já que não existiria um método livre de constrangimentos teóricos, algo que foi demonstrado em diversas outras publicações posteriores (MANNING, 1995MANNING, O.D. Landscapes revisited: a note on the methodology of criticism. Landscape Research, 20 (2), p.77-86. 1995.; BRASSLEY, 1998BRASSLEY, P. On the unrecognized significance of the ephemeral landscape. Landscape Research, 23 (2), 119-132. 1998.; AOKI, 1999AOKI, Y. Review article: trends in the study of the psychological evaluation of landscape. Landscape Research, 24 (1), 85-94. 1999.; LOWENTHAL, 2007LOWENTHAL, D. Island, Lovers and Others. Geographical Review, 97 (2), 202-229. 2007. https://doi.org/10.1111/j.1931-0846.2007.tb00399.x
https://doi.org/10.1111/j.1931-0846.2007...
). Appleton (1994)APPLETON, Jay. Running before we can walk: are we ready to map “beauty”? Landscape Research, v.19, n.3, p.112-119, 1994. sugere que, na ausência de uma teoria mais assertiva, podem ser criados mapeamentos acerca dos atributos qualitativos da paisagem, desde que os mesmos sejam apresentados como mapas de probabilidade. O autor faz esta sugestão por crer que a probabilidade tem a capacidade de apresentar uma miríade de respostas acerca dos potenciais qualitativos da paisagem.

Discordamos desta alternativa. A solução da probabilidade se apresenta como totalizante, representando em sua configuração resultados médios. O uso da probabilidade é paradoxal à teoria e incompatível com a própria conclusão de Appleton (1994APPLETON, Jay. Running before we can walk: are we ready to map “beauty”? Landscape Research, v.19, n.3, p.112-119, 1994.) acerca da variedade identitária que está contida no interior daquilo que se convenciona chamar ou entender como uma cultura. Os resultados médios possuem somente curiosidade estatística. Não representam nenhum fenômeno tangível, pois qualidades como a beleza e a tranquilidade de uma paisagem não podem ser apresentados como pontos médios. O ideal é a representação unitária da percepção de indivíduos, ainda que a quantidade da amostra não represente a totalidade do espaço investigado.

Recorreríamos no mesmo equívoco caso tivéssemos optado por entrevistar todos os moradores de cada domicílio e estabelecêssemos um valor médio para as percepções por domicílio, ilustrando-os com uma pintura sólida compatível com o valor da média. O que representaria uma média domiciliar em termos da teoria que defendemos? Absolutamente nada. Cada indivíduo carrega um fino equilíbrio entre as forças da superestrutura social e de suas experiências individuais. As médias estatísticas apagam estes rastros por intermédio de um simples exercício matemático. Harris-Lacewell (2007)HARRIS-LACEWELL, Melissa. Do you Know what it means... mapping emotion in the aftermath of Katrina. A critical journal of black politics, culture and society. V.9, n.1, p.28-44, 2007. publicou um interessante trabalho sobre as percepções após a calamidade provocada pelo furacão Katrina em Nova Orleans. Contudo, na apresentação dos dados, a autora aglutinou os resultados racialmente, gerando um mesmo problema perceptivo. O agrupamento estatístico perturba os resultados identitários a partir de um determinado corte social. As diferenças nos valores inter-raciais servem a determinados propósitos, mas são inconvenientes para expressar as identidades, assim como seria herético no caso deste estudo apontar para a existência de duas culturas ou subculturas. É interessante acrescentar que a aglutinação estatística propõe uma outra espacialidade na representação cartográfica, podendo criar categorias imagéticas que apagam o que há de mais concreto na representação de temas culturais: a expressão identitária.

Em uma crítica ao uso de números na avaliação paisagística, David Lowenthal (1978LOWENTHAL, David. Finding valued landscapes. Progress in Human Geography, v.2, i.3, march, p.373-418, 1978.) considera que muitas pessoas erroneamente concluem que as técnicas quantitativas conferem respeitabilidade acadêmica nos trabalhos científicos que versam sobre a valorização da paisagem. O autor argumenta que a determinação de uma escala de avaliação apresenta-se inapropriada. Dentre os diversos motivos que aponta, argumenta que o tamanho da escala numérica é subjetivo: não seria possível defender escolhas entre escalas de 0 a 5, de 0 a 10 ou de 1 a 15. Além disso, nada garante que gradações numéricas idênticas entre entrevistados representem mentalmente situações igualmente idênticas. Lowenthal (1978)LOWENTHAL, David. Finding valued landscapes. Progress in Human Geography, v.2, i.3, march, p.373-418, 1978., todavia, explicita uma crítica quanto ao anseio totalizante de representar igualdades e diferenças de valorizações paisagísticas no espaço. É interessante perceber que a nossa argumentação justamente endossa a percepção de Lowenthal. A busca de representações areais acerca de fenômenos perceptivos é infrutífera. Utilizamos números em nossa proposta como um modo de expressar as identidades, sem a pretensão de comparar emoções ou de construirmos zonas emocionais no espaço estudado. Parece-nos evidente que parcela importante deste imbróglio reside justamente nos diferentes planos analíticos que abrigam, de um lado, as identidades, e de outro, as reificações da cultura e de elementos culturais. Se a comparação entre as respostas dos entrevistados não pode ser realizada livre de constrangimentos, estabelece-se a pergunta: Qual o valor para a cartografia das identidades? Acreditamos que a cartografia identitária é relevante por apontar impressões das pessoas acerca de certos temas e que podem se constituir como informações valiosas para o estabelecimento de políticas públicas. Afinal, a sensação de conforto ambiental é um aspecto importante da vida, apesar de ser difícil estabelecer os atributos da paisagem e do lugar que contribuem para a edificação de vínculos (LOWENTHAL, 1978LOWENTHAL, David. Finding valued landscapes. Progress in Human Geography, v.2, i.3, march, p.373-418, 1978.).

As cartografias identitárias rejeitam - em sua proposta de execução que é baseada em uma negação da reificação da cultura e dos seus componentes - a descrição totalizante. Entendemos que os anseios totalizantes ligados à avaliação da paisagem podem estar condicionados aos benefícios da implementação de políticas públicas que observem os resultados desta avaliação. Para a aprovação e implementação de políticas públicas, os relatórios que chegam aos executores muitas vezes precisam estar pautados pela objetividade que é, por sua vez, contraditória à condição intersubjetiva das manifestações identitárias. Por outro lado, acreditamos que a nossa proposição de representação identitária pode, em determinadas situações, apontar para algumas áreas nas quais se observe certo padrão comportamental. Independente do intangível equilíbrio entre a força da superestrutura social e da experiência individual na composição identitária, é possível mensurar de sofrimentos emocionais aos prazeres paisagísticos. Pensando ainda sobre a atuação do poder público, os dados objetivos sempre possuirão relevância. A proposição aqui lançada não pretende substituir, por exemplo, informações quantitativas sobre a ocorrência de acidentes escorpiônicos. Todavia, pari passu aos dados objetivos, as emoções possuem impactos reais na vida das pessoas e não podem ser subestimadas. Vale a pena lembrar que os aplicativos de aparelhos de celular possuem um grande potencial para abordar as percepções individuais e já têm sido problematizados na literatura acadêmica (GARTNER, 2012GARTNER, G. Putting Emotions in Maps-The Wayfinding Example. (In) Proceedings of the 8th Mountain Cartography Workshop, Auckland, New Zealand, 1-5 September, pp. 61-65, 2012.) como meio de associar as emoções e o espaço.

CONCLUSÃO

A partir de uma abordagem que nega a reificação, criticamos a representação espacial da cultura. Trata-se de um conceito que flerta com o intangível, de composição não consensual, que apresenta o dinamismo espaço-temporal, a porosidade e o hibridismo como atributos, e, portanto, não parece plausível considerar sua delimitação. Esta problemática parece acometer os temas culturais de alta especificidade, como o que abordamos neste artigo: diversas dimensões da fobia associadas ao cemitério da cidade de Salinas, Brasil. Contudo, nossa proposição é que, contrariamente à dimensão da cultura propriamente dita, temas culturais específicos, assim como opiniões e aspectos valorativos da paisagem e lugares podem ser representados, desde que atendam a certos procedimentos que estejam de acordo com o arcabouço teórico que desenvolvemos.

O primeiro procedimento é o abandono de pretensões totalizantes na representação espacial. É na dimensão identitária que a representação faz sentido, expressa na cartografia por intermédio de pontos. Cada dado da entrevista precisa ser representado espacialmente. Os esforços estatísticos que visam formar polígonos que representam médias ou padrões apagam o que há de mais concreto, que são as respostas individuais de questionários aplicados. O título dos mapeamentos identitários devem também abandonar alusões totalizantes e expressar exatamente a dimensão do que está sendo cartografado.

O segundo procedimento é a determinação temporal dos dados representados. Se a identidade impacta nas expressões sobre a paisagem e o lugar, há de se considerar, por outro lado, que o tempo é uma variável que impacta nas identidades. Afinal, além da força das superestruturas sociais, a identidade também é moldada pela experiência, que se dá no tempo. As superestruturas sociais também podem se modificar ao longo do tempo, ainda que lentamente. Desta forma, para evitar as distorções, os mapeamentos de respostas individuais devem ser aplicados no mais curto espaço de tempo possível, para que as respostas coletadas possam ser compreendidas como um quadro do momento. Aconselha-se que os mapeamentos tragam destacadamente a data da realização dos levantamentos.

A distribuição espacial dos pontos nos nossos mapeamentos aponta para diversos significados sociológicos. Como o levantamento abordou a dimensão da percepção, é importante dizer que - ao rejeitar as abordagens totalizantes da cultura - não temos a pretensão de dizer que o método sugerido deve se impor como um orientador de políticas públicas. Dados coletados pelo serviço público, como, por exemplo, acidentes com escorpiões ou nível de contaminação da água, devem atuar concomitantemente aos estudos perceptivos como instrumentos de geração de bem-estar para a população.

NOTAS

  • 1
    Propomos que o método quali-quantitativo, por suas caraterísticas, é capaz de transcender justamente o entremeio e as tensões que envolvem a materialidade e a imaterialidade que compõem o espaço geográfico. Da abordagem quantitativa, se aproveita dos métodos de pesquisas censitárias ou amostrais, que são aptos a gerar informações sobre uma população de maneira estatisticamente comprovada. Da abordagem qualitativa, serve-se de metodologias que permitem compreender, por intermédio da autoexpressão, a trama de significados atribuídas pelos indivíduos ao meio, baseada nas suas experiências e vivências.
  • 2
    A virada cultural possui como marca a rejeição de epistemologias positivistas e tem como ênfase os estudos sobre os significados. O pós-modernismo, pós-colonialismo e pós-estruturalismo ajudam a consolidar os seus paradigmas.
  • 3
    De acordo com a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016 (BRASIL, 2016BRASIL. (2016). Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. Brasília, DISTRITO FEDERAL, 7 de abr. 2016. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/22917581. Acessado em 29/11/2020.
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    ), não houve necessidade de submissão da pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa. A todos os entrevistados foi apresentado um termo de participação livre e consentida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2020
  • Aceito
    25 Jan 2021
  • Publicado
    15 Mar 2021
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