Acessibilidade / Reportar erro

Carmen Miranda: um Ícone de Mercado Incorporado

Resumo

Com base no referencial de CCT ( Consumer Culture Theory ) de incorporação de ideologias, regimes de gosto e interesses nacionais e regionais por culturas de consumo, este artigo propõe que ideologias sociais e políticas também são incorporadas em ícones de mercado. Este trabalho visa, então, reunir os conceitos de iconicidade e liminaridade para dar conta de Carmen Miranda como um ícone de mercado que não apenas incorporou os mitos nacionais de seu tempo, mas também continua sendo empregado no mercado atual para uma variedade de propósitos. Assim, ícones como Carmen contribuem para a produção de mercados nos quais questões históricas, políticas e ideológicas são naturalizadas. A colaboração de Carmen por meio de indústrias culturais como rádio e cinema, sua onipresença em campanhas publicitárias e na mídia impressa e sua influência na moda feminina contribuíram para a cultura de consumo de seu tempo. Além disso, o caráter mítico de sua persona e seu legado cultural detêm um poder simbólico expressivo, tornando-a um notável ícone do mercado contemporâneo. A chave para sua iconicidade é sua liminaridade; hierarquias inquietantes, atravessando planos sociais e questionando a identidade. Como ícone do mercado, o legado de Carmen é assim constantemente reeditado, alicerçado na ambivalência de sua persona e sinalizando seu potencial transgressor.

Carmen Miranda; ícone de mercado; incorporação da cultura; ícone cultural; liminaridade

Abstract

Building upon the CCT framework of incorporation of ideologies, taste regimes, and national and regional interests by consumer cultures, this paper proposes that social and political ideologies are also embodied in marketplace icons. This paper aims, then, to bring together the concepts of iconicity and liminality to provide an account of Carmen Miranda as a marketplace icon who not only embodied the national myths of her time but also continues to be employed in the current marketplace for a variety of purposes. As such, icons like Carmen contribute to the production of marketplaces in which historical, political, and ideological issues are naturalized. Carmen’s collaboration via cultural industries such as radio and cinema, her omnipresence in advertising campaigns and in the printed media, and her influence on female fashion contributed to the consumer culture of her time. Moreover, the mythical character of her persona and her cultural legacy hold an expressive symbolic power, making her a remarkable contemporary marketplace icon. The key to her iconicity is her liminality; unsettling hierarchies, traversing social planes, and questioning identity. As a marketplace icon, Carmen’s legacy is thus constantly reissued, founded upon the ambivalence of her persona and signaling her transgressive potential.

carmen miranda; marketplace icon; embodiment of culture; cultural icon; liminality

“Quero ficar mais um pouquinho”: Carmen Miranda como um elo entre as pessoas

Em 2011, Isabelita dos Patins, uma famosa drag queen argentino-brasileira, deu um anel para a atriz brasileira Marília Pêra. O anel pertenceu a Carmen Miranda. Foi um presente para Pêra como agradecimento pela ajuda durante a internação de Isabelita. Isabelita, por sua vez, havia recebido o anel em 1996 como presente de Erick Barreto em seu leito de morte. Barreto ficou famoso por sua caracterização como Carmen. A semelhança era tão marcante que ele emocionou Aurora Miranda, irmã de Carmen, e ficaram amigos. Pêra morreu em 2015 e ninguém sabe o que aconteceu com aquele anel desde então. Essa história é bem conhecida entre os fãs de Carmen, e gostamos de pensar que ela representa a forma como Carmen Miranda uniu pessoas diferentes, assim como o carnaval. Nessa festa popular, os brasileiros costumam usar fantasias, uma forma de disfarce, sentindo-se livres para subverter os limites socialmente construídos ( DaMatta, 1997DaMatta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do problema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco. ) e inverter a ordem natural de cabeça para baixo. Da mesma forma, Carmen inverteu a ordem natural de cabeça para baixo com sua dança, músicas, filmes e persona exagerada e hipnotizante.

“Carmen” foi um apelido dado a ela por um tio amante de ópera. Assim como a personagem principal de Bizet, a cigana Carmen, Miranda tinha um ethos transgressor. Ela era uma mulher da classe trabalhadora que alcançou fama internacional, atravessando as fronteiras da sociedade e do gosto brasileiro. Para quem queria questionar as normas de gênero, a atuação exagerada de Carmen na tela serviu de inspiração ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ) e, assim como a cigana Carmen, Miranda usou seus talentos de dançar e cantar (e seu senso de humor) para enfeitiçar e seduzir nós todos. Carmen era extraordinária em muitos aspectos. Ela era carismática, possuidora de um “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica)” ( Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa: Bertrand/Difel. , p. 14). Sua vida e carreira foram marcadas por contradições e ambiguidades. Embora fosse uma imigrante portuguesa, ela ficava profundamente ofendida se alguém insinuasse que ela não era brasileira. Apesar de manter seu passaporte português a vida inteira, Carmen declarou seu amor pelo Brasil muitas vezes. Ela galgou seu caminho para o estrelato transnacional como atriz, cantora e performer , mas enfrentou muitas críticas ao longo do caminho. Carmen tornou-se tanto uma caricatura do Brasil quanto seu raio-X ( Veloso, 1991Veloso, C. (1991, 20th October). Caricature and conqueror, pride and shame. New York Times. Retrieved from https://bit.ly/3rRZJnt
https://bit.ly/3rRZJnt...
), e permanece até hoje como símbolo de brasilidade.

Uma das características mais marcantes de Carmen, e talvez a mais negligenciada nos estudos sobre ela, é sua in-betweenness ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ) ou ambivalência. Carmen existiu em uma posição intermediária entre dois contextos (brasileiro e norte-americano), representando dois pólos distintos e disputados (negritude e latinidade). Como este texto mostrará, a reação da elite brasileira à atuação de Carmen no Cassino da Urca em 1940 (após uma temporada nos Estados Unidos) é bastante sintomática. Durante a década de 1930, Carmen incorporou o ideal de miscigenação racial do governo Vargas no Brasil. Assim, ela serviu como uma fachada social estratégica para a incorporação das diferenças raciais e de classe existentes. Ao chegar aos Estados Unidos, a imagem de Carmen foi projetada para representar a latina. Durante as décadas de 1940 e 1950, os EUA buscaram produzir novos mercados para os produtos americanos e evitar o avanço do fascismo na região. A imagem de Carmen se enquadraria, portanto, na política expansionista local que tinha como principal objetivo ter os países da América Latina sob a influência dos Estados Unidos. A experiência de viver e existir no “entre” também é conhecida como liminaridade e está associada a transições ambíguas e eventos transformadores significativos que são possíveis no âmbito do mercado (Darveau & Cheikh-Ammar, 2020, p. 1). Assim, considerar Carmen um ícone liminar do mercado traduz a ideia de uma produção cultural corporificada que transborda e veicula ideologias de mercado mitificadas.

Como alguns artistas contemporâneos (por exemplo, Jennifer Lopez e Shakira), Carmen incorporou o estereótipo da latina nos EUA. Apesar de suas carreiras convencionais e bem-sucedidas, essas mulheres passaram a encarnar mitos que contribuem para a naturalização da história ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. ). Isso significa que ícones do mercado, como Carmen e Jennifer, conseguem perpetuar ideologias, atuando, ainda que temporariamente, como atores-chave no desenvolvimento de uma comunidade nacional (“ nation-builders ”, segundo Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). Carmen era um ícone do mercado que atuava como símbolo da política da Boa Vizinhança e como representante de uma latinidade tropical e racializada. Jennifer Lopez, por sua vez, mobilizou o mito latina nas décadas de 1990 e 2000 ao explorar discursos multiculturais para incorporar a cultura popular negra à cultura mainstream norte-americana ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). Apesar de suas próprias personalidades e auto-identificações, esses ícones latinos expõem como os países latino-americanos no âmbito das indústrias culturais são mobilizados de acordo com os interesses sociais, culturais e políticos dos EUA (Ovalle). Durante seu tempo em Hollywood, que cobre a maior parte de sua vida e carreira, Carmen foi um barômetro das crenças ideológicas dos EUA em relação à raça, gênero, sexualidade e classe (Ovalle).

Ao todo, esses predicados transformaram Carmen em um ícone de mercado que é empregado até hoje em muitos contextos; transferindo sua liminaridade e centelha mitológica para tudo a que está associada. Essa ambivalência não se refere apenas à incorporação de duas identidades raciais/nacionais, mas também à possibilidade de vivenciar algo que de outra forma seria impossível na vida cotidiana ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. , p. 214). Além disso, está ligado à mudança e à renovação, que Bakhtin (1984)Bakhtin, M. (1984). Rabelais and his world. Bloomington: Indiana University Press. associa ao carnavalesco. Isso insere Carmen no mundo da paródia, carnaval, drag e camp . “ Drag” visa “através da vestimenta e da performance satisfazer as expectativas do destinatário ou do público associadas a uma categoria social [e] muitas vezes o humor é acionado para comentar [essa] categoria” ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. , pp. 214-215). Como afirma Hall-Araújo (2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. , p. 150), “os filmes hollywoodianos de Carmen são repletos de momentos e cenas carnavalescas que vão além do simples cômico, normalmente frequentando comédias musicais”. Por meio de figurinos que privilegiavam os movimentos sociais e espaciais (que constituem formas de simulação e disfarce), Carmen brincava com as hierarquias existentes, transitando entre diferentes planos sociais e criando incerteza e confusão sobre seu pertencimento (ou identidade) ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. ). Disfarces carnavalescos e fantasia estavam assim intimamente ligados: vestida de baiana, Carmen deu um show, mas o público brasileiro certamente não a confundiu com uma baiana de verdade ou tomou seu vestido por um vestido baiano cotidiano. O mesmo pode ser dito sobre a latina Carmen encarnada nos filmes hollywoodianos Technicolor. A “piscadela performativa” de Carmen ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ) mostra, então, que ela podia zombar dos estereótipos que mobilizava durante a performance, desmistificando-os.

Este trabalho é uma homenagem a Carmen, acrescentando à sua lista de conquistas outro título: ícone do mercado. Seu status icônico deriva especialmente da imagem retratada por ela e dela na tela ( Sant’Anna & Macedo, 2013Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
), muitas vezes por meio de arquétipos unidimensionais ( Denninson & Shaw, 2005)Denninson, S., Shaw, L. (2005). Popular culture in the contemporary world. Pop culture in Latin America media, arts and lifestyle. Santa Barbara: ABC Clio. . Carmen ainda influencia a cultura de consumo de maneira significativa. Além disso, os ícones do mercado também são ícones culturais; “veículos potentes e eficientes para difundir e reproduzir ideologias” ( Holt, 2016, pHolt, D. B. (2016). Whiskey: marketplace icon. Consumption, Markets & Culture, 21(1), 76-81. doi:10.1080/10253866.2016.1199360
https://doi.org/10.1080/10253866.2016.11...
, p. 76.) A intensa personagem de Carmen não apenas abraçou o Zeitgeist de seu tempo, mas também o incorporou por meio de sua dicção, movimentos, músicas, filmes, roupas e trajes. Como sujeito criativo, ela “só pode ser plenamente compreendida analisando o espaço sociocultural (tradições, costumes, padrões e valores) ao qual . . . [ela pertencia, como re-inventora] . . . de códigos e linguagens” ( Velho, 2006, pVelho, G. (2006). Autoria e criação artística. In G. Velho (Ed.), Artifícios e artefactos: entre o literário e o antropológico (pp. 135-142). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras. , p. 140).

Com base no referencial da teoria da cultura do consumidor (TCC) da incorporação de ideologias, regimes de gosto e interesses nacionais e regionais pelas culturas de consumo ( Thompson, 2004Thompson, C. J. (2004). Marketplace mythology and discourses of power. Journal of Consumer Research, 31(1), 162-180. doi:10.1086/383432 ), este artigo argumenta que as ideologias sociais e políticas também são incorporadas aos ícones do mercado. Assim, os ícones contribuem para a produção de mercados nos quais são naturalizadas questões históricas, políticas e ideológicas ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. ). Nossas contribuições para os estudos de consumo são três. Primeiro, afirmamos que Carmen era “falsamente óbvia” ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. ) já que ela era um ícone de mercado corporificado. Isso significa que ela incorporou e naturalizou dois mitos nacionais por meio de sua persona, filmes, músicas e roupas, duas ideologias diferentes que se espalharam pelas esferas sociais. Em segundo lugar, afirmamos que Carmen se tornou um ícone liminar (ou ambivalente) ao naturalizar duas ideologias de mercado diferentes; sua persona e imagem foram mobilizadas de acordo com os objetivos políticos de diferentes países. Da mesma forma, a imagem e a persona de Carmen continuam até hoje sendo empregadas no mercado para muitos propósitos. Em terceiro lugar, argumentamos que a liminaridade de Carmen está intimamente ligada à paródia e ao deboche, e que ainda permanece seu potencial de retratar ambivalência, colaborando para desmistificar a artificialidade do que é considerado natural ( Balieiro, 2014Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP. ; Trevisan, 2000Trevisan, J. S. (2000). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro, RJ: Record. ).

Abordamos essas questões considerando Carmen como um ícone de mercado e mostrando como Carmen incorporou as muitas mudanças que ocorreram no Brasil e nos EUA. Em seguida, descrevemos as condições de possibilidade (O'Donnell, 2015; Schroeder & Zwick, 2004)Schroeder, J., Zwick, D. (2004). Mirrors of masculinity: representation and identity in advertising images. Consumption, Markets & Culture, 7(1), 21-52. doi:10.1080/1025386042000212383
https://doi.org/10.1080/1025386042000212...
que possibilitaram essa incorporação. Por fim, discutimos o caráter transgressor de Carmen e abordamos criticamente sua relação com a brasilidade nas narrativas mercadológicas contemporâneas.

“Cantoras do rádio”: Maria do Carmo antes de Carmen Miranda

Em 1908 José e Maria Emília decidiram emigrar para o Brasil devido à instabilidade política em Portugal que ameaçava a guerra e a fome – especialmente para os habitantes das aldeias rurais portuguesas. Após o nascimento da primeira filha, Olinda, em 1907, o casal planejava se mudar para o Brasil, imigrando no segundo semestre de 1908. Porém, a burocracia atrasou seus planos e Maria Emília, grávida do segundo filho, decidiu não dar à luz em um navio de travessia no Atlântico, que carecia de higiene adequada ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. ). Esse atraso burocrático foi a única circunstância responsável pelo nascimento de Maria do Carmo Miranda da Cunha em 9 de fevereiro de 1909, em Portugal. Aos 12 meses, a família emigrou para o Brasil, fixando-se nos bairros boêmios do Rio de Janeiro. Maria logo aprendeu a dançar e cantar, apresentando-se em festas, fazendo audições para programas de rádio e participando de concursos de “busca de estrelas” contra a vontade do pai ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. ). Ela, então, seguiu seu sonho de cantar, encontrando ânimo nos moradores e clientes da pensão de sua família, muitos deles músicos ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ). Em 1928, conheceu Josué de Barros, compositor baiano, apresentando-se com ele sob o nome artístico de “Carmen Miranda” ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ). Barros a ajudou a firmar um contrato com a RCA Victor e, no carnaval de 1930, já era sensação nacional ( Hall-Araújo, 2013bHall-Araújo, L. (2013b). Carmen Miranda and Brasilidade: Hollywood glamour and exoticism reinterpreted. Film, Fashion & Consumption, 2(3), 231-246. doi:10.1386/ffc.2.3.231_1
https://doi.org/10.1386/ffc.2.3.231_1...
) com a música “Pra você gostar de mim (Taí)”, uma marcha carnavalesca.

Apesar de aparecer em vários filmes brasileiros, Carmen era mais conhecida como cantora no Brasil. O rádio foi muito importante para a divulgação de seu trabalho, mas a imagem de Carmen não foi central em sua carreira nessa mídia. Aqui, os holofotes foram reservados para suas canções, cujas letras às vezes evocavam temas nacionalistas. Apesar de pertencer à classe trabalhadora, Carmen forjou um visual sofisticado baseado na estética hollywoodiana e nas últimas tendências promovidas pelas revistas brasileiras de lifestyle (Hall-Araujo, 2013a). Sua imagem de baiana continuou a habitar o universo simbólico de muitas pessoas, mas foi somente em 1938 que Carmen adotou e estilizou esse traje ( Hall-Araujo, 2013bHall-Araújo, L. (2013b). Carmen Miranda and Brasilidade: Hollywood glamour and exoticism reinterpreted. Film, Fashion & Consumption, 2(3), 231-246. doi:10.1386/ffc.2.3.231_1
https://doi.org/10.1386/ffc.2.3.231_1...
). Enquanto a baiana é uma mulher nascida na Bahia, também denota mulheres de origem afro-brasileira e praticantes da religião candomblé ( Denninson & Shaw, 2005Denninson, S., Shaw, L. (2005). Popular culture in the contemporary world. Pop culture in Latin America media, arts and lifestyle. Santa Barbara: ABC Clio. ; Sant’Anna & Macedo, 2013)Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
. Seis dias antes do lançamento de Banana da Terra (1938), o filme com o famoso figurino, Alceu Penna, ilustrador da revista O Cruzeiro, usava a imagem de uma baiana como símbolo de brasilidade ( Bonadio & Guimarães, 2010, pBonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 , p. 155). O visual de baiana ficou ainda mais consolidado, estilizado e exagerado quando Carmen se mudou para os Estados Unidos ( Kerber, 2002Kerber, A. (2002). Carmen Miranda e as representações da nação brasileira nos anos 30: a legitimação do nacionalismo. Métis: histórica & cultura, 1(1), 135-147. ; Pullen, 2014)Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. .

Em 1945, Carmen havia se tornado a mulher mais bem paga dos EUA ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ) e a primeira sul-americana a ser homenageada com uma estrela na Calçada da Fama de Hollywood. O auge de sua carreira como atriz ocorreu entre 1941 e 1945, mas seu declínio foi inevitável e refletiu o fim dos grandes musicais em Technicolor no final da Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida, sua carreira como cantora permaneceu sólida, com shows em boates e na televisão, além de turnês pela Europa. Em agosto de 1955, Carmen morreu subitamente de ataque cardíaco em sua casa em Beverly Hills, “a verdadeira Embaixada do Brasil nos EUA”, como ela costumava descrevê-la ( O’Donnell, 2015O’Donnell, J. (2015). “They said I came back Americanized”: cosmopolitanism and mediation in the trajectory of Carmen Miranda. Ateliers d’anthropologie, (41). ). Este foi um final dramático para uma carreira colorida e prolífica que contou com mais de uma centena de singles de sucesso e vinte filmes. Nessa época, Carmen também se tornou sinônimo da imagem estilizada de baiana que ela aperfeiçoou, imagem esta que serviu para incorporar tanto o projeto de identidade brasileira perseguido pelo regime Vargas dos anos 1930, quanto o estereótipo contemporâneo norte-americano da latina. Posteriormente, essa mesma imagem tornou-se expressão da sensibilidade camp ( Balieiro, 2014Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP. ; Trevisan, 2000Trevisan, J. S. (2000). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro, RJ: Record. ).

“The lady in the tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, o ícone de mercado

Carmen foi o tema da São Paulo Fashion Week em 2009. Nos corredores da Bienal do Ibirapuera, onde aconteceu o evento, as drag queens Dindry Buck e Sissi Girl vestiram produções inspiradas no visual de Carmen, com profusão de colares, pulseiras e até turbantes. Assediada pelos fãs, Sissi declarou: “É assim que é o sucesso, ok, querida? Olhe para todos esses fãs!” ( Orosco, 2009Orosco, D. (2009, 19th January). ‘Carmen Miranda é a mãe das drag queens’, diz convidado da SPFW. G1. Retrieved from https://glo.bo/30cBuEY
https://glo.bo/30cBuEY...
). Carmen era muito popular e amada por seus fãs. Ela fomentou uma relação muito próxima com eles “mantendo uma agenda de atuação muito ativa e visibilidade pública” e “enviando fotografias assinadas em resposta a [seus] pedidos” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 898). E qual seria o maior indicador de que Carmen já era um ícone de mercado do que sua popularidade? Vendeu 35.000 cópias de seu primeiro sucesso, “Pra você gostar de mim (Taí)”, um número extraordinário no início da década de 1930 ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. ), e seu cortejo fúnebre no Rio de Janeiro foi acompanhado por meio milhão de pessoas, cantarolando coletivamente algumas das marchas e sambas carnavalescos mais conhecidos de Carmen ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 140), evento descrito poeticamente por Castro (2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras.: 550) como o último carnaval de Carmen nos braços do povo.

Como as mitologias e ideologias nacionais são apropriadas ao longo do tempo e por diferentes atores sociais, “mas constantemente renovadas para se adequarem à vida contemporânea” ( Stern, 1995Stern, B. B. (1995). Consumer myths: frye’s taxonomy and the structural analysis of consumption text. Journal of Consumer Research, 22(2), 165-185. doi:10.1086/209443 , p. 183), é justo dizer que, até hoje, Carmen é evocada no mercado e narrativas de consumo. Sua herança estética funciona miticamente. Isso significa que, como mito (e ícone), Carmen não negou as coisas; ao contrário, sua função era falar deles ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. , p. 143). Ela era como o vinho, um totem resiliente, que sustentava “uma mitologia variada que não se preocupa com contradições” ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. , p. 58). Carmen era “sobretudo uma substância conversora, capaz de inverter situações e estados, e de extrair dos objetos seus opostos” ( Barthes, 1972Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press. , p. 58). De uma perspectiva crítico-histórica, ela se tornou uma personagem mítica e arquetípica que fornece enredos “que estruturam os textos de consumo e as relações semióticas através das quais os elementos míticos formam um todo coerente” ( Thompson, 2004Thompson, C. J. (2004). Marketplace mythology and discourses of power. Journal of Consumer Research, 31(1), 162-180. doi:10.1086/383432 , p. 162). Como ícone do mercado que encarna uma experiência estética, ela desencadeia avaliações de gostos e valores e possibilidades de compreensão do mundo por meio dos cenários de seus filmes, sua música, seus gestos, seu corpo e seus movimentos – como textos para serem lidos ( Sant’Anna & Macedo, 2013Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
). Quando os fãs imitam Carmen através do consumo, reconhecem que uma imagem comprada para vestir e descartar à vontade é tão essencial para sua identidade quanto qualquer outro produto ( Roberts, 1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 . Assim como ocorre ao aplicarem cosméticos, “os fãs representam fisicamente o disfarce de Miranda, destacando para si a artificialidade dos estereótipos que os interpelam em seu cotidiano” ( Roberts, 1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , mostrando que o mercado atua como mediador dos laços e relações sociais ( Arnould & Thompson, 2007)Arnould, E., Thompson, C. (2007). Consumer culture theory (and we really mean theoretics): dilemmas and opportunities posed by an academic branding strategy. In R. W. Belk, & J. F. Sherry, Jr. (eds.), Consumer culture theory: research in consumer behavior (v. 11, pp. 3-22). Amsterdam: Elsevier. .

Suas habilidades de costura e senso de moda sempre conquistaram suas fãs femininas, que foram atraídas pela maneira como Carmen montava seu visual, em todos os lugares em que se apresentava. Ela era fashionista, ou melhor, tinha “ it ”, “algo que poucas mulheres têm, que as torna diferentes, carismáticas, e que elas não são conscientes” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 39). Em março de 1936, Carmen assinou um contrato com a rádio argentina Belgrano. Sua presença em Buenos Aires causou furor, evidenciado pela manchete do El Hogar, anunciando que Carmen estava marcando tendências na cidade ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 142). “As mulheres portenhas também iam espera-la à saída do rádio ou do teatro e se aproximavam para tatear suas roupas, apreciar o tecido, o corte, o acabamento, e perguntar onde poderiam comprar ou fazer igual” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 142). Em Hollywood, seus looks também foram uma mina de ouro em uma época em que cinema e cultura de consumo estavam fortemente conectados e no epicentro da “promoção de Hollywood de suas estrelas e filmes e alimentou a intensa mercantilização em torno das estrelas, dentro e fora da tela” (Bispo-Sanchez, 2016). A “Miranda-mania” pode ser traduzida em números: Carmen ganhou US$ 311,44 em royalties sobre joias e chapéus em 1939 (aproximadamente US$ 602.613,16 em valores atuais) e US$ 839,90 em 1940 (aproximadamente US$ 1.602.133,25 em valores atuais) ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , pág. 2918). No entanto, esses números representam apenas parcialmente a “mania”, já que seu visual também foi falsificado. Com o sucesso de Carmen logo após sua aparição em “ Streets of Paris ” (um musical que estreou em junho de 1939 no Broadhurst Theatre), a associação de sua imagem com as indústrias de moda e publicidade era quase inevitável. Carmen negociou contratos com confecções e seu estilo logo invadiu as lojas de departamento ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ). A Macy’s foi a primeira a vender roupas e acessórios inspirados no visual de Carmen, “colocando grandes anúncios de varejo, com [seu] nome e foto referindo-se ao Broadhurst Theatre. Era o que Shubert [empresário da Carmen] queria: a roupa vendendo o espetáculo, este vendendo a roupa, e ambos vendendo Carmen” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 222). E não demorou muito para que Carmen tomasse conhecimento do uso inadequado de sua imagem. Ela havia acabado de chegar aos Estados Unidos e os bens de consumo associados à sua imagem já estavam sendo falsificados, sinal, entre outras coisas, de que o visual de Carmen era sucesso no mercado consumidor norte-americano.

Carmen foi “uma das primeiras celebridades a endossar produtos comerciais em anúncios impressos” ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. , p. 69), potencializando sua iconicidade ao mesmo tempo em que incorporava as ideologias que permeavam os múltiplos discursos do mercado; ela apareceu em várias campanhas para marcas como Ford, Kolynos, General Electric, Rheingold Beer e, ironicamente, o curso de língua Barbizon (porque Carmen se tornaria o símbolo de um inglês mal falado). Carmen embalou “identificada paixão exótica pela não-branquitude para o consumo branco” ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 62), ajudando a vender “modas norte-americanas de inspiração sul-americana para mulheres sul-americanas”. Em 1944, a United Fruit Company chegou a criar uma personagem de marca chamada Chiquita Banana inspirada na persona de Carmen ( Gatti, 2006Gatti, J. (2006). Carmen Miranda’s white dress: ethnicity, syncretism and subaltern sexualities in Springtime in the Rockies. Ilha do Desterro, (51), 93-108. doi:10.5007/2175-8026.2006n51p93 ; O'Neil, 2005). Atualmente, Carmen é evocada para promover o turismo ( Macedo & Sant’Anna, 2014Macedo, K. B., Sant’Anna-Muller, M. R. (2014). Carmen Miranda, marca Brasil (Brazil brand) and national identity: a historical glance. 8th Conference of the International Committee for Design History & Design Studies, 1, 251-254. ; O’Neil, 2005)O’Neil, B (2005). Carmen Miranda: the high price of fame and bananas. In V. L. Ruiz, &V. S. Korrol (Eds.), Latina legacies: identity, biography, and community (pp. 193-208. Oxford: Oxford University Press. , marcas ( Carvalho, 2019Carvalho, C. I. C. (2019). A construção da brasilidade inscrita em anúncios impressos e televisivos das sandálias Havaianas. Revista Saridh – Linguagem e Discurso, 1(1), 136-157. ; Castro, 2005)Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , e humor em editoriais de moda ( Sant’Anna & Macedo, 2013)Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
. Isso é especialmente verdadeiro quando o objetivo é transmitir uma aura de brasilidade.

“Down South America way!”: contextos brasileiro e americano

Identidade nacional e cultura popular são conceitos que se manifestam dentro de um quadro mais amplo: o Estado ( Ortiz, 2005Ortiz, R. (2005). Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, SP: Brasiliense. ). O conceito de nacional evoca a ideia de algo que é “nosso” e do que deve ser feito para sustentá-lo ( Ortiz, 2005Ortiz, R. (2005). Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, SP: Brasiliense. ). Carmen incorporou o que Ovalle (2010)Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. chama de in-betweenness , ou seja, ela existiu entre os polos representacionais da negritude e da branquitude, servindo Brasil e Estados Unidos “de maneiras radicalmente diferentes, unificando uma nação por meio de uma semelhança sonora hibridizada e outra por meio de uma diferença visual exotizada ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 49). No entanto, ambas as ideologias compartilhavam elementos comuns ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ). Por exemplo, havia uma suposição subjacente de que “afinal, é um mundo pequeno”, que “sob a pele” somos todos essencialmente iguais e que quaisquer diferenças entre culturas são apenas superficiais e irrelevantes” ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , p. 6, itálico no original). Sugere-se ainda que “as diferenças culturais e étnicas [foram] vistas como problemas que podem e devem ser facilmente resolvidos”. Ao analisar a trajetória de Carmen, podemos apontar como a cultura foi utilizada como meio pelo Estado para encobrir questões sistêmicas e demarcar áreas de influência mercadológica e ideológica em um período de instabilidades econômicas e políticas.

Modelos explicativos conflitantes da cultura brasileira coexistiram desde o final do século XIX, sendo o mais valorizado aquele que trazia a promessa de um “Brasil branco” ( Schwarcz, 1995Schwarcz, L. M. (1995). Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (29), 49-63. Retrieved from https://bit.ly/3GwAawm
https://bit.ly/3GwAawm...
). Ao longo da década de 1920, os modelos raciais de análise passaram a ser duramente criticados, deixando espaço para argumentos sociais, econômicos e culturais ( Schwarcz, 1995Schwarcz, L. M. (1995). Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (29), 49-63. Retrieved from https://bit.ly/3GwAawm
https://bit.ly/3GwAawm...
). Foi então que a “cultura” substituiu a “raça”. Durante a década de 1920, culturas e ideologias opostas foram surgindo no contexto do mercado brasileiro. No Rio de Janeiro (então capital brasileira), a cultura praiana urbana (centrada na afluente Zona Sul) promovendo um corpo ensolarado e bronzeado, e o estilo melindroso hollywoodiano (no qual mulheres brancas ricas e sexualmente liberadas podiam festejar, beber, fumar e dirigir carros) foram enaltecidos. Enquanto isso, em São Paulo, parte da elite intelectual criticava a imagem fantasiosa de que os brasileiros eram canibais selvagens que viviam em um paraíso terrestre (lugar de inegável beleza natural, com pessoas alegres e acolhedoras etc.) produzida pelos europeus. Tanto o movimento antropofágico, quanto a Semana de Arte Moderna de 1922 ajudaram a criar um imaginário cultural irônico que refutou a fantasia europeia.

Perto da década de 1930, os brasileiros foram tomados pela discussão sobre o que constituía a brasilidade e a ideia de mestiço tornou-se seu significante mais poderoso e celebrado. Hall-Araújo (2013a, p.66) destaca o papel central da cultura na disseminação dessa ideologia emergente. Tal movimento foi baseado na obra de Freyre (1933/1986)Freyre, G. (1933/1986). The master and the salves: a study in the development of Brazilian civilization. California: University of California Press. , Casa-Grande e Senzala, inspirada no culturalismo norte-americano, que produziu uma nova racionalidade que singularizou a mestiça, abordando-a de forma positiva ( Bonadio & Guimarães, 2010Bonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 ). A ideia principal da obra de Freyre era que todo brasileiro tem algo que veio da África no corpo, ou pelo menos na alma. No entanto, essa abordagem é amplamente criticada hoje como um conto romântico de três raças ou “racismo brasileiro” ( DaMatta 1987DaMatta, R. (1987). Relativizando – uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco. ; Hall-Araújo 2013b; Souza, 1994)Souza, O. (1994). Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional. São Paulo, SP: Escuta. . Sob esse paradigma cultural emergente, “o espetáculo de uma mulher branca jogando a negritude como um acessório era um modelo de autenticidade. O travestismo racial era agora tão brasileiro quanto arroz e feijão” ( Dibbell, 1991)Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
.

Também na década de 1930, o governo expandiu sua influência nos meios de comunicação de massa – principalmente o rádio – e incentivou a circulação de formas culturais híbridas ( Hall-Araújo, 2013bHall-Araújo, L. (2013b). Carmen Miranda and Brasilidade: Hollywood glamour and exoticism reinterpreted. Film, Fashion & Consumption, 2(3), 231-246. doi:10.1386/ffc.2.3.231_1
https://doi.org/10.1386/ffc.2.3.231_1...
). Seu principal objetivo era produzir uma identidade nacional unificada e única com a qual todos os brasileiros pudessem se identificar, apesar da diversidade local e das questões sistêmicas ( Bonadio & Guimarães, 2010Bonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 ). Em 1939 foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) com o objetivo de regular e censurar as atividades e produções culturais ( Bonadio & Guimarães, 2010)Bonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 . Desde a década de 1920, a Música Popular Brasileira era “o veículo mais importante para a afirmação da [. . .] identidade nacional mestiça em casa e no exterior” ( Dunn, 2001, pDunn, C. (2001). Brutality garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill: The University of North Carolina Press. , p. 13). Carmen entrou em cena nessa época como uma cantora de samba euro-brasileira que atuou brevemente em chanchadas, filmes cômicos que atingiram as massas ( Macedo, 2011)Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
. Como grande estrela do rádio, a ela foi confiada a tarefa de cultivar essa brasilidade idealizada ( Lima, 2013)Lima, G. V. (2013). Carmen Miranda, o Estado Novo e o discurso verdadeiro. Fragmentum, (36), 24-36. . A cultura radiofônica brasileira foi decisiva para transformar Carmen em uma superestrela, já que Carmen foi um dos maiores motores de popularização do rádio e de outras mídias, como o cinema. Seu contrato com a rádio Mayrink Veiga na década de 1930 lhe garantia um programa semanal de 15 minutos ( Castro, 2005)Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. . César Ladeira, seu diretor artístico e locutor, cunhou uma das alcunhas de Carmen: A Pequena Notável. Nas ondas do rádio, Carmen atingiu um público de diferentes classes sociais e foi celebrada pelas massas ( Bishop-Sanchez, 2016)Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. . Na era pré-televisão, o público em geral não podia se dar ao luxo de ver a performance de Carmen nos palcos do cassino, então o rádio era essencial para o desenvolvimento e sucesso de sua carreira. Além disso, “o rádio forneceu à indústria cinematográfica os ídolos que eles sabiam que o público queria não apenas ouvir, mas também ver” ( Bishop-Sanchez, 2016, pBishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 1002).

Em 1934, Franklin D. Roosevelt visitou a América do Sul pela primeira vez para promover a Política de Boa Vizinhança, uma estratégia focada em ganhar influência fiscal e política na América Latina ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. ). Após o crash de 1929, era necessário que os EUA garantissem tanto as fontes de matérias-primas, quanto os mercados para seus produtos industrializados. Além disso, os EUA precisavam garantir sua liderança no Ocidente (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, 2009). Nos EUA, o cinema cumpriu o papel do rádio no Brasil: atingir as massas. A indústria cinematográfica americana foi um meio privilegiado de exportação do modelo civilizacional americano para a América Latina ( Macedo, 2011Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
), região anteriormente descrita por John Quincy Adams como o lar de pessoas que eram “preguiçosas, sujas, nojentas . . . um bando de porcos” ( Macedo, 2011Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
, p. 109). Quando Carmen chegou aos EUA, a indústria cinematográfica era a décima primeira indústria mais rica do país, produzindo, em média, 400 filmes por ano – na época, os EUA tinham mais cinemas do que bancos ( Macedo, 2011Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
). Essa indústria foi instrumentalizada como “veículo simbólico, comunicacional e arma de propaganda” ( Macedo, 2011Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
, p. 109). Em 1940, foi criado o Escritório do Coordenador de Assuntos Interamericanos (OCIAA). Essa fábrica de ideologias ( Tota, 2000Tota, A. P. (2000). O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo, SP: Companhia das Letras. ) mantinha uma relação próxima com grandes estúdios ( Sant’Anna & Macedo, 2013Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
) para estreitar as relações entre os EUA e outros países. Produções com a América Latina como pano de fundo e estrelas latinas estavam em ascensão, especialmente entre 1940 e 1945 ( Sant’Anna & Macedo, 2013)Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
. As incursões de representantes do OCIAA no Brasil (incluindo Walt Disney) visavam apurar o clima ideológico do país ( Macedo, 2011)Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
. Um dos resultados dessa empreitada foi o Saludos, amigos! , de 1943, em que o personagem Zé Carioca, um papagaio trapaceiro, representa o Brasil. Em última análise, a América Latina foi retratada como “disponível para a sedução do 'bom' vizinho, receptiva e de braços abertos para atender os desejos não realizados de seus visitantes, exótica na 'quantidade certa' para não ser levada a sério, apenas como um passatempo ou entretenimento de fim de semana” (Sant'Anna & Macedo, 2013, p. 197).

Assim, Carmen substituiu a América Latina nas fantasias de guerra da 20th Century-Fox. Ela foi retratada pela imprensa e fãs dos EUA como a “Embaixadora da Boa Vontade da América Latina” ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ). A roupa de baiana de Carmen serviu semioticamente aos propósitos da mensagem norte-americana de boa vizinhança, retratando “relações harmonicamente exploratórias entre os Estados Unidos e os países latino-americanos” ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , p. 5). Ao personificar um epítome da identidade latina ( Denninson & Shaw, 2005Denninson, S., Shaw, L. (2005). Popular culture in the contemporary world. Pop culture in Latin America media, arts and lifestyle. Santa Barbara: ABC Clio. ), Carmen forneceu “uma diferença não ameaçadora que poderia ser identificada, desejada e mercantilizada para o público americano ansioso por provar o exótico enquanto negava a discórdia racial em seu próprio quintal” ( Ovalle, 2010, pOvalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , pág. 60). Logo após o lançamento de sua carreira americana, Carmen se apresentou em inglês no Casino da Urca, no Rio de Janeiro (1940) para uma audiência com vários membros do governo brasileiro, a primeira-dama brasileira e jornalistas. Ela foi acusada de se “americanizar” ( Lima, 2013)Lima, G. V. (2013). Carmen Miranda, o Estado Novo e o discurso verdadeiro. Fragmentum, (36), 24-36. e retomou a carreira nos Estados Unidos.

“The Brazilian Bombshell”: incorporando Carmen Miranda

A cena de abertura do “ Weekend in Havana ” de 1941 convidava o público a fugir para “um destino estrangeiro e emocionante através das letras, da música, dos figurinos dos artistas e dos movimentos sensuais de Miranda – em particular, seu gesto marca registrada 'venha aqui' e sua sedutora vibração dos olhos” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 100). O estilo de cantar de Carmen sempre se destacou, e não apenas por sua musicalidade natural e bom ouvido para o tom. Sua performance sempre chamou a atenção: era “visual, interpretativa, cheia de ademanes vocais e um jogo de mãos e braços” ( Castro, 2005, pCastro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 39). Tanto no palco quanto na tela, com o Bando da Lua atrás dela, Carmen parecia uma deusa, engolindo o público com os olhos, a boca, os braços e todo o corpo ( Castro, 2005, pCastro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 115). Já foi dito que Carmen “fez mais do que interpretar sambas; ela os executou” ( Bishop-Sanchez, 2016, pBishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 873) com um sorriso sensual e olhos dançantes, dominando qualquer palco com sua aura radiante, provocante e sedutora ( Bishop-Sanchez, 2016)Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. .

As técnicas corporais são fatos sociais, desenvolvidos dentro das redes sociais e midiáticas ( Crossley, 2015Crossley, N. (2015). Music worlds and body techniques: on the embodiment of musicking. Cultural Sociology, 9(4), 471-492. doi: 10.1177/1749975515576585 ). Assim, a cultura torna-se “incorporada na forma como as pessoas andam, sentam, ficam de pé, comem, lavam-se, respiram e comportam os seus corpos ao longo da vida quotidiana” (Cohen & Leung, 2009, p. 1278). De fato, corpos particulares podem vir a ser representativos de projetos ideológicos ( Brace-Govan, 2010Brace-Govan, J. (2010). Representations of women’s active embodiment and men’s ritualized visibility in sport. Marketing Theory, 10(4), 369-396. doi:10.1177/1470593110382825 ; Thompson & Üstüner, 2015)Thompson, C. J., Üstüner, T. (2015). Women skating on the edge: marketplace performances as ideological edgework. Journal of Consumer Research, 42(2), 235-265. doi:10.1093/jcr/ucv013 , regimes de gosto ( Arsel & Bean, 2013)Arsel, Z., Bean, J. (2013). Taste regimes and market-mediated practice. Journal of Consumer Research, 39(5), 899-917. doi:10.1086/666595 e interesses nacionais e regionais ( Dymond, 2011Dymond, A. (2011). Embodying the nation: art, fashion, and allegorical women at the 1900 Exposition Universelle. RACAR: Revue d'Art Canadienne, 36(2), 1-14. doi:10.7202/1066739ar ; Min & Peñaloza, 2019). Por meio de seu corpo, figurinos, filmes e músicas, Carmen Miranda passou a encarnar o in-betwenness (ou ambivalência): uma negritude mercantilizada no Brasil e uma amálgama latino-americana nos EUA ( Ovalle, 2010, pOvalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 20). Antes de Carmen alcançar a fama nos EUA, seus movimentos eram bem conhecidos do público brasileiro. Hall-Araújo (2013b, p. 235) diz que a performance de Carmen se “desenvolveu com reviravoltas e encolhidas de ombros [que] complementavam as letras irônicas e muitas vezes ambíguas comuns às marchas carnavalescas que ela frequentemente cantava”, e “era altamente teatral e cômica e traduziu bem em jogadas” (Hall-Araújo). A persona sexy, paqueradora e enérgica de Carmen é idêntica se ela canta o Querido Adão de 1936, o burlesco Chico Chico de “ Doll Face ” quase uma década depois, ou “ The Lady in the Tutti Frutti Hat ” de 1943 ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , págs. 127-128). A influência afro-brasileira no estilo de performance e nos movimentos de Carmen é evidente, e parece que ela “compreendeu em um sentido geral que [seus movimentos e poses] vinham de uma autêntica tradição do samba” ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 150). Um fora das câmeras Dorival Caymmi (cantor, compositor, ator e pintor brasileiro) “imitou para Carmen os gestos e movimentos que ela deveria fazer enquanto cantava” ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 138) em Banana da Terra. No entanto, seu público americano provavelmente “desconhecia o significado cultural dos padrões de dança e poses que ela usava” ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 149).

A forma como Carmen utilizou seu corpo nas produções hollywoodianas tem sido amplamente analisada por diversos autores (eg, Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ; Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ; Sant'Anna & Macedo, 2013) que destacam a importância de seus gestos, expressões, movimentos e até mesmo sua maneira de dançar e falar ao encarnar a imagem da latina. Como performer do “ down South ” ( Pullen, 2014)Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , Carmen já é sempre “uma inferior alteridade bakhtiniana, designação sustentada por seu corpo em performance” ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p.129). Seus quadris sempre em movimento e figurinos reveladores apresentam “um corpo grotesco (e igualmente espetacular e convincente)” ( Pullen, 2014)Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. . Seu corpo e seus movimentos sedutores são carregados sexualmente ( Roberts, 1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , posicionados como um espetáculo para despertar o desejo masculino ( Ovalle, 2010)Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. . Em seus filmes americanos, Carmen usa seu corpo para destacar tanto a comédia, quanto os números musicais. As apresentações são sempre excessivas, espetaculares e carnavalescas. A maioria de suas canções são executadas em português, e seu sotaque estrangeiro é enfatizado “pelos impropérios cômicos e más pronúncias do inglês, sugerindo que os estrangeiros são incapazes de um bom inglês e, por extensão, promovendo um estereótipo 'primitivo' e ignorante” ( Roberts, 1993, pRoberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , pág. 11). Portanto, o público deve ler a linguagem universal de seu corpo. O “corpo fantasiado, o inglês com forte sotaque e os quadris performáticos de Carmen tornaram-se um Outro latino-americano genérico contra o qual a americanidade branca poderia ser medida – e da qual ela nunca poderia escapar” ( Ovalle, 2010, pOvalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 20).

O exagero associado a Carmen leva os autores a acreditar que ela tinha total controle sobre sua imagem. Por um lado, Roberts (1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 acredita que ela manipulou sua imagem como uma forma de disfarce, mas que isso não nega os problemas relativos aos estereótipos ligados a ela. Por outro lado, O’Neil (2005p. 206) associa “a pura ousadia da imagem de Miranda” à deslegitimação “dos estereótipos racistas e sexistas subjacentes aos seus papéis em Hollywood”. No entanto, parece que Carmen estava “claramente ciente de estar presa em papéis estereotipados” (O'Neil, 2005, p. 206). Seu estilo de atuação e corpo foram descritos como “bárbaros” e “selvagens”, e “ela era regularmente comparada com animais exóticos na imprensa popular” ( Ovalle, 2010, pOvalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 52). Independentemente disso, Carmen foi capaz de acessar Hollywood de maneiras que os artistas negros nos Estados Unidos não podiam, já que um corpo feminino latino como o dela era necessário para mediar a negritude para o consumo branco ( Ovalle, 2010)Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. . Mais tarde na carreira, Aloysio de Oliveira e Ray Gilbert compuseram a música “ I make my money with bananas ” especialmente para Carmen. Na letra, Carmen canta que adoraria “fazer uma cena com Clark Gable/Com velas e vinho na mesa/Mas meu produtor me diz que não sou capaz/Porque ganho meu dinheiro com bananas”, ironicamente reconhecendo seu papel estereotipado e como seu “negócio” se tornou uma mera mercadoria com a qual ela ganhou dinheiro para si mesma e para os estúdios de Hollywood.

“O que que a baiana tem?”: roupas e fantasias

No Rio de Janeiro do início da década de 1930, a baiana era uma personagem famosa no teatro de revista, tipicamente interpretada por uma atriz de ascendência branca europeia e geralmente retratada como uma exibicionista forte, maliciosa, travessa e sedutora, em trajes ricamente ornamentados, um exagerado número de colares e pulseiras e turbantes ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Quando Miranda cantou a música O que que a baiana tem? vestida de baiana em Banana da Terra (1938), ela deu à personagem uma encarnação irresistível por meio de seus “movimentos inusitados de braços, mãos e quadris que a distinguiam das baianas de palco contemporâneas” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 716), diferenciando-a de todas as outras artistas que se vestiram de baianas antes dela. Durante a década de 1920, Carmen foi uma fervorosa seguidora dos estilos hollywoodianos, principalmente inspirada na atriz Clara Bow e seus longos e finos cachos, lábios pintados e poses coquetes autoconscientes (Hall-Araújo, 2013b). Seu comportamento também refletia as muitas mudanças sociais que ocorriam na época. Sua persona inicial foi inspirada nas sensibilidades modernas, elitistas e brancas dos anos 1920 em meio à cultura afro-brasileira na Lapa, onde morava com sua família. Durante a década de 1930, ela incorporou em sua performance a ideia de hibridismo cultural que era valorizada no Brasil. Seu visual icônico foi inspirado na baiana. “O que que a baiana tem?” descreve a baiana como uma mulher charmosa e sensual, que usa turbante de seda, brincos dourados, saia engomada, sandálias adornadas, pulseiras douradas, trança no cabelo e fivela de prata (balangandã) ( O’Dell, 2008O’Dell, C. (2008). “O que que a baiana tem?” – Carmen Miranda (1939). Retrieved from https://bit.ly/3pDxOF2
https://bit.ly/3pDxOF2...
). A baiana de Carmen era uma mistura de elementos tradicionais, exotismo hollywoodiano e sensibilidade/estilo próprio (Hall-Araújo, 2013b). Dorival Caymmi, o jovem compositor afro-brasileiro da canção, levou Carmen a uma costureira para desenvolver seu visual baiana, ou assim diz a história ( Gatti, 2006Gatti, J. (2006). Carmen Miranda’s white dress: ethnicity, syncretism and subaltern sexualities in Springtime in the Rockies. Ilha do Desterro, (51), 93-108. doi:10.5007/2175-8026.2006n51p93 ).

Vestir-se de baiana não foi ideia de Carmen. O visual inspirado na baiana era uma fantasia de carnaval de rua onipresente no Brasil dos anos 1930 ( Garcia, 2004Garcia, T. C. (2004). O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda. São Paulo: AnnaBlume; Fapesp. ). No entanto, era proibido nos bailes de carnaval da classe alta porque era considerado excessivamente vulgar ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Para ser aceitável como figurino de teatro de revista, a baiana precisava ser “vestida” de veludo, seda e ouro, levando os elementos originais (pulseiras e colares de miçangas, por exemplo) a novos patamares. Aracy Cortes, performer brasileira de teatro de revista de ascendência africana e espanhola, vestiu-se de baiana antes de 1938 como parte de uma onipresente tradição-moda baiana comum nos palcos do Rio de Janeiro ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Ainda, no filme “ Flying down to Rio ”, a cantora afro-americana Etta Moten aparece vestida de baiana enquanto instrui o público sobre “como ser carioca” ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). No entanto, a ampla ressonância cultural com a baiana só aconteceu com a versão do figurino de Carmen (Hall-Araújo, 2013b). Embora tenha sido inicialmente rejeitada nos bailes de gala do carnaval carioca ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ) por sua relação com uma imagem africana, a caracterização de Carmen ajudou a desestabilizar as fronteiras raciais existentes. Estimuladas pela publicidade, pelas produções hollywoodianas de Carmen e pelo mercado de fantasias de carnaval, as mulheres passaram a incorporar a baiana de Carmen como representação da feminilidade brasileira ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ) e uma espécie de exotismo doméstico ( Hall-Araújo, 2013bHall-Araújo, L. (2013b). Carmen Miranda and Brasilidade: Hollywood glamour and exoticism reinterpreted. Film, Fashion & Consumption, 2(3), 231-246. doi:10.1386/ffc.2.3.231_1
https://doi.org/10.1386/ffc.2.3.231_1...
).

Os figurinos que Carmen usava em seus filmes americanos eram versões mais estilizadas e luxuosas da baiana de 1938. Acredita-se que a estética “ over-the-top ” (exagerada) reforçou a dicotomia entre Norte (EUA) e Centro-Sul (Américas) ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ; Sant’Anna & Macedo, 2013Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
). Na tela, Carmen sempre usava colares e pulseiras de contas em ambos os braços, brincos grandes, turbantes ricamente decorados, saias glamorosas que mostravam suas curvas e tops reveladores que deixavam a barriga exposta. Seus figurinos deveriam refletir a sensualidade, o romance e os prazeres que o mundo latino poderia oferecer ( Sant’Anna & Macedo, 2013)Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
. Como suas roupas eram reveladoras para a época, sugeriam uma sexualidade feminina excessiva ( Roberts, 1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 alinhada a arquétipos simplistas como o da latina fogosa e de sangue quente ( Denninson & Shaw, 2005)Denninson, S., Shaw, L. (2005). Popular culture in the contemporary world. Pop culture in Latin America media, arts and lifestyle. Santa Barbara: ABC Clio. . Os olhares de Carmen se conectavam com o exotismo que sempre fez parte da cultura hollywoodiana, segundo a qual algumas etnias glamorosas exóticas estereotipadas eram consideradas comercializáveis ​​(Hall-Araújo, 2013b). “Ao popularizar o chamado estilo latino no cinema, na música e na moda durante a década de 1940, Carmen facilitou a importação norte-americana de uma não-brancura exótica como se fosse uma matéria-prima como café ou açúcar” ( Ovalle, 2010, pOvalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 50). Por meio dos filmes de Carmen, os consumidores aprenderam que poderiam se transformar em tipos glamorosos e exóticos (Hall-Araújo, 2013b), transformando o exotismo em uma forma de disfarce (Hall-Araújo). E não devemos nos esquecer que o exotismo é irmão gêmeo do racismo ( Souza, 1994)Souza, O. (1994). Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional. São Paulo, SP: Escuta. .

O visual de Carmen também influenciou a moda nos EUA. Devido ao seu sucesso em “ Streets of Paris ” (1939) e à ampla divulgação de sua imagem em revistas como Life, Vogue e Esquire, a indústria da moda curvou-se aos seus pés, oferecendo uma porcentagem da venda de produtos em troca dos direitos de exploração de seu nome e imagem ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 222). Sandálias plataforma e turbantes sempre foram duas das marcas registradas de Carmen, garantindo-lhe alguns centímetros a mais. Aliados à aura coquete de Carmen, davam-lhe “um toque de absurdo, alegria e extravagância que passou a caracterizá-la” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 110). Carmen tinha apenas 152 cm de altura (aproximadamente 5 pés), mas passou a encarnar na tela a imagem de uma mulher poderosa, alta e “ larger than life ”. A princípio, suas famosas sandálias plataforma foram consideradas exóticas demais para a consumidora norte-americana ( Shaw, 2013Shaw, L. (2013). Carmen Miranda. London: Palgrave Macmillan. ). No entanto, isso mudou após o sucesso de Carmen, e as sandálias de salto alto foram comercializadas com sucesso pela Bergdorf Goodman ( Shaw, 2013Shaw, L. (2013). Carmen Miranda. London: Palgrave Macmillan. ).

“Disseram que voltei americanizada”: as músicas

Em novembro de 1929, Josué de Barros procurou o escritório da RCA Victor e conseguiu uma audição para Carmen. A gravadora ofereceu a ela um contrato de dois anos. Sua maneira de interpretar as canções a distinguia de outras cantoras da época. Além de sua dicção cristalina e rápida e do potencial para cantar em diversos ritmos e estilos, Carmen cantava afinada e com um sorriso no rosto ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. ). Isso a ajudou a seduzir o público em apresentações públicas. Ela também acrescentou “uma ludicidade única e interpôs gírias brasileiras espontâneas e apartes bem-humorados” às suas performances ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press.: 252), o que reforçou sua aura coquete e irônica. Antes do carnaval de 1930, Carmen teve um encontro fortuito com o compositor Joubert de Carvalho, autor de “Pra você gostar de mim”, o primeiro sucesso de Carmen. A canção foi gravada em 27 de janeiro de 1930, e o sucesso de vendas exigiu sucessivas prensagens ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 53). Ela logo se tornou a Rainha do Disco, e os jornais já a chamavam de a maior expressão da música popular ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 63). Após o lançamento de ”Taí”, Carmen gravou outros 14 discos entre janeiro e setembro daquele ano ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. ).

Carmen era uma it girl carioca, “apresentando-se de uma forma que privilegiava a branquitude em termos de corpo praiano [relacionado à cultura urbana praiana surgida na década de 1920 como parte das sensibilidades modernas] e estilo hollywoodiano” (Hall-Araújo, 2013a, p. 65), cercado por músicas afro-brasileiras como o maxixe e o samba que ganhavam cada vez mais força. Inicialmente, o samba estava associado à comunidade negra brasileira e restrito a espaços associados a essa etnia. Com a ascensão e o desenvolvimento da indústria do entretenimento, especialmente das rádios e gravadoras, o samba passou por um processo de democratização ao lado de um processo “branqueamento” elitizado, este último, uma demanda de certas elites que condicionou sua aceitação a uma versão “depurada” do ritmo ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ; Cunha, 2004Cunha, F. L. (2004). Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade (1917 – 1945). São Paulo: Annablume. ). Mais tarde foi apropriado pelo Estado Novo (Terceira República Brasileira, inaugurada por Getúlio Vargas, que durou de 10 de novembro de 1937 a 31 de janeiro de 1946), tornando-se “a” referência da música brasileira. Os sambas de Carmen expressavam os desejos e aspirações de seu público. O rádio foi o meio fundamental para a divulgação de sua obra durante a década de 1930 (Kreber, 2002). Através das ondas de rádio, a nação magicamente se uniu, e as vozes do presidente Vargas e Carmen representaram uma nação unida através de uma identidade, atingindo todos os brasileiros ( Kerber, 2005Kerber, A. (2005). Carmen Miranda entre representações ds identidade nacional e de identidades regionais. ArtCultura, 7(10), 121-132. ). Entre os temas os sambas estavam elementos que legitimavam a proposta nacionalista do governo. Estes foram formatados da forma mais neutra possível para atrair diversos grupos ( Kerber, 2002Kerber, A. (2002). Carmen Miranda e as representações da nação brasileira nos anos 30: a legitimação do nacionalismo. Métis: histórica & cultura, 1(1), 135-147. ). Um exemplo foi a exaltação da fauna e da flora brasileiras, pois elementos associados à modernidade, como economia e tecnologia, não eram considerados características tipicamente brasileiras ( Kerber, 2002Kerber, A. (2002). Carmen Miranda e as representações da nação brasileira nos anos 30: a legitimação do nacionalismo. Métis: histórica & cultura, 1(1), 135-147. ).

Carmen deveria ser a “embaixadora do samba” ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ), apoiando uma “política cultural que enfatizasse a unidade nacional [brasileira]” ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 , p. 275). No entanto, suas músicas norte-americanas eram uma mistura de gêneros latinos adequados ao gosto americano ( Macedo, 2011Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
). As canções de Carmen muitas vezes envolvem um tema “ getting to know you ” “em que os personagens principais que representam a América Latina e os Estados Unidos demonstram a facilidade com que se [. . .] pode adquirir a cultura de outro país” ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , p. 6). Não havia legendas durante as músicas em português, cheias de trava-línguas que enfatizavam o som das palavras ao invés de seus significados. Sant’Anna e Macedo (2013)Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
relacionam isso à falta de importância das letras para a narrativa dentro do enredo, tendo assim uma função decorativa que contrasta com as realizadas em inglês. Roberts (1993)Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 acrescenta ainda que a língua nativa de Carmen (português) não era nada importante e que, embora seu público não pudesse entendê-la, eles adoravam sua “Alteridade extrema”.

“Não esqueça que eu ganho dinheiro com bananas”: os filmes

Quando Carmen chegou a Nova Iorque perguntaram a ela quais palavras em inglês ela conhecia. Ela respondeu com “uma mistura de sensualidade experiente e ingenuidade efusiva” ( Dibbell, 1991Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
): “ I say money, money, money, and I say hot dog. I say yes, and I say no, and I say money, money, money. And I say turkey sandwich, and I say grape juice.” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , p. 201 em inglês no original). Naquele momento, e talvez sem perceber, Carmen assumiu “um papel que nunca tinha sido seu no Brasil, mas que ela desempenharia pelo resto da vida nos Estados Unidos: o de uma pura comediante” ( Castro, 2005Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras. , pág. 201). Antes de Hollywood, a persona e o estilo de palco de Carmen foram transferidos sem problemas para a tela de cinema em cinco filmes brasileiros entre 1935 e 1939 ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Esses filmes eram produções sem enredos estruturados e com números musicais que garantiam sua coesão, mas consolidavam a associação de Carmen ao carnaval ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 1037). O filme de 1935 “Alô, alô, Brasil!” reuniu na tela “a maioria dos maiores cantores e compositores da época [. . .] consolidando a parceria do rádio e do cinema nacional e garantindo um público para essa indústria nascente a partir de então” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 964). A interpretação de Carmen de “Querido Adão” nesse filme mostrou seu estilo de performance otimista que envolveu o público, “andando e balançando os quadris [. . .] de um lado para o outro, sempre de frente, comunicando-se pelo brilho e movimento dos olhos, expressões faciais exageradas, mãos girando e movimentos de braços abertos” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , pp. 1027-1028).

Nas produções de Hollywood, Carmen aparecia “ou como ela mesma, ou como uma persona estereotipada latina” ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 , p. 8) ou como um estereótipo feminino latino-americano genérico associado ao exotismo ( Shaw, 2013Shaw, L. (2013). Carmen Miranda. London: Palgrave Macmillan. ). Como parte de Hollywood e de seu star system , ela foi amplamente comercializada e mitificada como um diferencial competitivo e “um ícone popular cujo significado fixo e apelo visual convidavam à sua reprodução, imitação e reconhecimento instantâneo” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 163). O status de estrela já estabelecido de Carmen no rádio, discos e filmes no Brasil foi prejudicado pela homogeneização de Hollywood ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ). Seus filmes Technicolor enfatizavam suas roupas vivas e coloridas ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ), e foram classificados como musicais cujas histórias envolviam um tom de comédia e romance suave ( Sant’Anna & Macedo, 2013Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013)...
). O estilo de atuação hiperbólica de Carmen contrastava com os de seus colegas brancos, tornando suas atuações mais realistas e permitindo que o público se identificasse com as narrativas e ideologias de cada filme ( Pullen, 2014, pPullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 131). A produção da latinidade, por oposição, também sinalizava que a América Latina estava madura para a exploração, até mesmo para a opressão ( Gabriel, 2008)Gabriel, Y. (2008). Organizing words: a critical thesaurus for social and critical organization studies. Oxford: Oxford University Press. . Carmen e a banda que a acompanhava, o Bando da Lua, foram considerados personagens não-brancos pelo público americano, enquanto “para os espectadores brasileiros a ausência africana pode não ser evidente, desde que eles vejam Miranda e os integrantes do Bando como brancos (segundo o espectro racial)” ( Gatti, 2006, pGatti, J. (2006). Carmen Miranda’s white dress: ethnicity, syncretism and subaltern sexualities in Springtime in the Rockies. Ilha do Desterro, (51), 93-108. doi:10.5007/2175-8026.2006n51p93 , p. 103).

Após o lançamento em 1940 de “ Down Argentina Way!” (primeiro filme norte-americano de Carmen), Alceu Penna (ilustrador de moda da revista Cruzeiro) publicou uma resenha na qual expressou sua decepção com o estúdio 20th Century Fox. Segundo Penna, apesar de usar um astro brasileiro, a 20th Century Fox havia criado uma trama ambientada na Argentina ( Bonadio & Guimarães, 2010Bonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 ). A crítica de Penna reflete o nacionalismo brasileiro do início dos anos 1940, representado por sambas patrióticos ( Bonadio & Guimarães, 2010, pBonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009 , p. 161) sobre um “Brasil pobre, mas feliz, um paraíso tropical”. O filme “ Down Argentina Way!” incitou muitos atritos diplomáticos devido a inúmeros equívocos em sua trama. Por exemplo, Carmen cantou uma rumba em português e outra atriz tocou castanholas, fatos alheios à Argentina ( Macedo, 2011)Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
https://doi.org/10.5965/1808312906082011...
. O filme foi proibido na Argentina e desaprovado no Brasil. Enquanto os Estados Unidos eram retratados como o modelo perfeito do que uma nação civilizada deveria aspirar a ser, os países latino-americanos eram representados como terras de fantasia ou paraísos tropicais, como lugares para férias permanentes “com haréns de prazer, emoção, calor e romance, não relacionados e isolados das tensões e sofrimentos causados ​​pela guerra” (Sant'Anna & Macedo, 2013, p.189). Os países latino-americanos subdesenvolvidos eram, assim, vistos como maduros para a exploração e intervenção, apesar de sua independência política ( Mauad, 2005)Mauad, A. M. (2005). Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941-1942). Revista Brasileira de História, 25(49), 43-75. doi:10.1590/S0102-01882005000100004 .

Chica boom chic ”: o ícone camp

Os gays são uma presença organizada no carnaval do Rio desde o início dos anos 1930. Por exemplo, Antonio Setta formou um grupo gay de carnaval que desfilava pelas ruas em luxuosos vestidos de lantejoulas, acrescentando um elemento camp que os diferenciava dos heterossexuais que, travestidos, exibiam uma paródia da feminilidade ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 493). Após a atuação de Carmen vestida como baiana em filme de 1938, a “presença gay no carnaval tomou uma forma mais definida [...] com foliões travestidos de baiana, levando as transgressões carnavalescas a um nível totalmente novo por meio de seu jogo subversivo de gênero” (p. 493). Camp é frequentemente associado “à subcultura homossexual e à ideia de potencial subversão sexual, jogo de gênero e marginalidade” (p. 3348), mas seu significado foi estendido a um uso mais mainstream e geral, associado a “exagero, estilização, transformação, ambivalência, incongruência e malandragem lúdica” (p. 3358), criando “uma estética que revira normas e realidades recebidas, transformando o natural e o normal em estilo e artificialidade”. Como ferramenta analítica, o camp nos ajuda a entender como Carmen “foi parte de um baile de máscaras que a levou a se envolver com sua imagem de estrela como uma versão artificial e exagerada da baiana, mas sem rebaixar a si mesma, seu gênero ou sua cultura” (pág. 3358).

Os ícones são intertextuais e o mito de Carmen continua sendo atualizado pela forma como o público o utiliza como ponto de partida, escolhendo o que funciona para eles ( Dyer, 2004Dyer, R. (2004) Heavenly bodies: film stars and society (22nd ed.). London: Routledge. ). A performance excessiva de Carmen pode ser vista como antinatural por suas características espetaculares e carnavalescas, sinalizando transgressão enquanto confirma um status quo ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ). A dualidade e a ambivalência a acompanharam ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. ), apresentada no discurso como sujeito e objeto da autoparódia ( Roberts, 1993Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876 ). Os fãs hoje parecem apreender Carmen como um texto paródico, “uma boba carnavalesca grotesca e excessiva que confirma a narrativa primária branca, heteronormativa e de classe média alta de seus filmes ao representar a inversão dessas normas” ( Pullen, 2014Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 148). Significados estabilizados são dissolvidos e colocados em tensão quando a ambivalência é enfatizada ( Balieiro, 2014Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP. ). Em Hollywood parece que “quanto mais fixa a imagem de Carmen Miranda se tornava, mais sua iconicidade se tornava um espaço de jogo sexual e de gênero” ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. , p. 68).

Como estereótipo de discursos hegemônicos e conservadores marcados pela colonialidade, Carmen foi reapropriada por sujeitos subalternos em uma lógica heteronormativa ( Balieiro, 2014Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP. ). Ela é considerada um ícone clássico do camp gay ( LaBruce, 2015LaBruce, B. (2015, 7th July). Notes on camp/anti-camp [Essay]. Retrieved from http://brucelabruce.com/2015/07/07/notes-on-camp-anti-camp/
http://brucelabruce.com/2015/07/07/notes...
), política, subversiva e revolucionária por natureza. Em suas origens, ‘ camp ’ é definido como uma sensibilidade cuja essência é um amor pelo não natural, pelo artifício e pelo exagero, e um “código privado ou um distintivo de identidade secretamente compartilhado” ( Sontag, 1964Sontag, S. (1964). Notes on Camp. Retrieved from https://bit.ly/3lSTo7A
https://bit.ly/3lSTo7A...
). O triunfo do estilo sobre o conteúdo, da estética sobre a moral e da ironia sobre a tragédia apontaria para uma ausência de sentido, política ou história. No entanto, Carmen cruzou com todos esses elementos durante sua existência e até mesmo em sua vida após a morte ( Dibbell, 1991Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
). Uma abordagem moderna vê o camp como uma forma de ser paradoxal, misturando libertinagem, artifício e maneirismos estéticos que visam desmistificar a artificialidade do que é considerado natural ( Balieiro, 2014Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP. ; Trevisan, 2000Trevisan, J. S. (2000). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro, RJ: Record. ). Portanto, a persona de Carmen é apropriada como dispositivo para expor a arbitrariedade naturalizada da cultura ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ). Para quem busca a autor reinvenção de forma ousada e espetacular ( O’Neil, 2005O’Neil, B (2005). Carmen Miranda: the high price of fame and bananas. In V. L. Ruiz, &V. S. Korrol (Eds.), Latina legacies: identity, biography, and community (pp. 193-208. Oxford: Oxford University Press. ), Carmen é uma fonte de inspiração. Um sargento da Força Aérea que interpretou Carmen em teatros e acampamentos militares durante a Segunda Guerra Mundial, Sasha Brastoff, também merece destaque ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 , p. 284). Sua atuação ficou conhecida no filme de 1946 “Vitória Alada”. Sua interpretação se destacou por adotar o visual de Carmen com algumas estilizações, como um turbante cheio de talheres e um vestido feito com uniforme do exército americano. Carmen o conheceu em 1942 em uma base militar em Nova Iorque e, segundo a história, ela teria dito que ele se parecia mais com Carmen Miranda do que ela ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ), mostrando o humor irônico que sempre fez parte de sua carreira.

Ao visitar o Rio de Janeiro em 1996, a drag queen Ru Paul declarou: “Sou filha de Carmen Miranda” ( Trevisan, 2000Trevisan, J. S. (2000). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro, RJ: Record. , p. 390). A própria Carmen poderia ser considerada uma drag queen . Como bem coloca Dibbell (1991)Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
: “Carmen Miranda – que veio para o Rio com seus pais portugueses com um ano de idade, e ainda viajava com passaporte português – veio para os Estados Unidos com o mandato de personificar a própria cultura brasileira. Seria a performance drag de sua vida.” Ela “foi muitas vezes percebida como uma drag queen , dada sua hiperperfeminização e o artifício exagerado de suas roupas” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 3403), o que a ajudou a desenvolver uma “piscadela performativa”, ou, em outras palavras, a sua capacidade de simultaneamente representar e distanciar-se dessa performance, abrindo assim espaço para zombar dos estereótipos associados aos seus papéis, que ao mesmo tempo que a marginalizavam, colocavam-na no centro do palco, duas características essencialmente camp ” (Bispo-Sanchez, p. 3415).

“. . . e o mundo não se acabou”: considerações adicionais

Erick Barreto (1962-1996) atuou sob o nome de Diana Finsk. Como drag queen , ele “levou o transformismo a um novo patamar de atuação artística no Brasil, para livrá-lo de seu estigma social” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 5173). Ele personificou várias personalidades no palco com precisão, talento, classe e distinção, e foi separado das imitações cômicas e camp ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Carmen foi sua atuação mais aperfeiçoada, e sua excelência e reverência foram reconhecidas por Aurora Miranda, que se tornou sua amiga e o designou para Helena Solberg, cineasta brasileira que dirigiu o documentário “Carmen Miranda: Bananas is my Business” (1995), no qual ele interpretou Carmen e “fascinou o público com seus gestos graciosos, o piscar de olhos e a fluidez de seus movimentos, criando a mais bela interpretação de Miranda nos mínimos detalhes” ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. ). Em maio de 1996, Barreto faleceu prematuramente e foi sepultado no Rio de Janeiro, próximo ao sepulcro de Carmen.

Como este artigo evidenciou, Carmen Miranda foi extraordinária em muitos aspectos. Ao utilizar discussões de ideologia dentro da CCT, demonstramos como Carmen incorporou o transculturalismo, o hibridismo e as ambiguidades no mercado entre 1930 e 1945 como um ícone do mercado. Esse processo de incorporação foi multifacetado, incluindo seus filmes e figurinos, sua música e movimentos, sua dicção e seus gestos, até a forma como mantinha o cabelo escondido sob um turbante ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). Além disso, foi tão lucrativa para o mercado audiovisual e amada pelo público popular brasileiro que, em sua apresentação no Cassino da Urca, em 1940, quando foi recebida com frieza por um público de elite (com presença de vários membros do regime Vargas e da família do presidente), o governo brasileiro não fez grandes críticas públicas ( Lima, 2013Lima, G. V. (2013). Carmen Miranda, o Estado Novo e o discurso verdadeiro. Fragmentum, (36), 24-36. ). No entanto, Carmen vive como um ícone. Seu legado é mítico, abrange décadas e é constantemente reeditado para atender a uma série de propósitos de mercado que se baseiam especificamente em sua liminaridade, potencial transgressivo e poder simbólico expressivo.

Entre os adjetivos usados ​​pela imprensa brasileira da época para descrevê-la, brejeira era o mais comum e o que melhor captava a aura de Carmen ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 850). O adjetivo se traduz como travesso, coquete, perversamente engraçado ou provocativo (Bishop-Sanchez). Sua encarnação da baiana poderia ser interpretada como uma manobra irônica. Uma mulher tão evidentemente branca se vestindo de baiana e popularizando (nacional e internacionalmente) uma imagem tão especificamente negra poderia ser tomada em si como a maior ironia de todas ( Dibbell, 1991Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
). Carmen tinha uma capacidade especial de fazer parte da performance, mas também de se distinguir dela para reagir, rir e olhar. Isso sugere a possível forma com que Carmen olhava sua persona, talvez como uma espécie de performance subversiva ou paródia. A paródia da baiana pode ter sido uma forma de mostrar o que Carmen pensava ser a autêntica cultura popular brasileira para seu público de elite ( Bishop-Sanchez, 2016Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press. , p. 1467), para retratar através de um disfarce aqueles que ficaram na vida real em segundo plano e/ou renegados pelas elites brasileiras e americanas.

Provavelmente, ela procurou lidar com estereótipos ao longo de sua carreira por meio do humor performativo, da ironia e do exagero, algumas das características que também caracterizam o carnaval como uma festa retratada pela inversão e subversão das construções sociais ( DaMatta, 1997DaMatta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do problema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco. ). E, embora o humor (e a ironia) possam ser ferramentas poderosas, eles também podem ser cooptados inadvertidamente (por exemplo, Holt, 2002; Klein, 1999Klein, N. (1999). No logo: taking aim at the brand bullies. New York: Picador. ) ou ter um alcance limitado. Por exemplo, Carmen voltou ao palco do Casino alguns meses depois com a música “Dizem que voltei americanizada”. Por um lado, há quem considere a canção como um mea culpa ( Tota, 2000Tota, A. P. (2000). O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo, SP: Companhia das Letras. ). Por outro, parece que Carmen usou a música naquela ocasião para destacar a hipocrisia da elite brasileira ( Lima, 2013Lima, G. V. (2013). Carmen Miranda, o Estado Novo e o discurso verdadeiro. Fragmentum, (36), 24-36. ) que a acusou de ser americanizada sem nenhum interesse em integrar verdadeiramente múltiplos valores e tradições ao mercado brasileiro. Essa música parece reforçar o compromisso de Carmen com a cultura e a música brasileira, ao mesmo tempo em que aponta o dedo para a elite brasileira da época, que nunca se envolveu de verdade, nem aceitou o samba em suas manifestações originais. Como destacado anteriormente, o samba foi associado à comunidade negra brasileira e chegou às rádios e gravadoras por meio de intérpretes como Carmen, uma mulher branca. Além disso, o governo Vargas tinha inclinações fascistas e a Constituição de 1934, elaborada por uma assembleia constituinte convocada pelo governo provisório de Vargas, representava a elite nacional. O caráter cínico (e perverso) da elite se reflete no artigo 138 do texto constitucional, que apontava o dever da união, estados e municípios de incentivar a educação eugênica ( Pereira, 2014Pereira, S. H. S. (2014, April). Eugenia institucionalizada no Brasil. Jus. Retrieved from https://bit.ly/3IDOYLd
https://bit.ly/3IDOYLd...
). Carmen era um ícone “asséptico”, o ideal para representar a identidade brasileira, disfarçando o racismo sob o mito das três raças. Pode-se imaginar como a elite brasileira ficou chocada quando Carmen apareceu no palco, representando, diante de seus olhos, a forma como os norte-americanos viam todos os latinos, inclusive os brasileiros. É impossível afirmar o que a própria Carmen pensava sobre isso, mas é sabido que, após esse episódio, ela voltou aos Estados Unidos para continuar sua carreira.

Sua persona transgressora foi (e ainda é) apropriada como artifício para comentar as categorias de gênero (e outras sociais) (eg, Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ; Hall-Araujo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. ; Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ), reforçando a ideia de que o gênero, como o corpo, é socialmente construído, não “natural”. A iconicidade de Carmen ainda serve de inspiração para um número avassalador de drag queens e “Carmen Drags” (Hall-Araujo). Sua contribuição para as mulheres como símbolo de força feminina durante a guerra foi ofuscada ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). Nesse período, as mulheres brancas entraram no mercado de trabalho e a imagem de Carmen as ajudou a apimentar seus uniformes de trabalho e negociar seu próprio senso de sexualidade e sensualidade ( Ovalle, 2010Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press. ). Sua imagem, como parte de uma cultura de mercado de massa, tem contribuído para mudanças contínuas nos códigos de gênero e sexo no Brasil desde 1920. Por meio de fotos em revistas, campanhas publicitárias e filmes, ela apresentou a seus fãs novas possibilidades de vivenciar a feminilidade ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ). Embora seu traje de baiana tenha sido inicialmente rejeitado pelas elites brasileiras, o sucesso hollywoodiano o fez alcançar uma presença marcante como símbolo de uma nova forma de feminilidade nacional. Isso contrasta fortemente com a influência de Carmen na moda americana cotidiana ( Balieiro, 2017Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269 ).

Ironicamente, a brasilidade que Carmen encarna hoje está associada à sua imagem hollywoodiana de uma baiana estilizada e exagerada, e pode se relacionar ao que Souza (1994)Souza, O. (1994). Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional. São Paulo, SP: Escuta. chama de “fantasia de Brasil”. Em poucas palavras, o Brasil passou por um processo de “alterização” ( Gabriel, 2008Gabriel, Y. (2008). Organizing words: a critical thesaurus for social and critical organization studies. Oxford: Oxford University Press. ) antes mesmo de se tornar colônia. Devido ao fim tardio do Império brasileiro em 1889, a nacionalidade tornou-se um tema central durante a década de 1920. O movimento modernista e sua ideia de hibridismo cultural (antropofagia) ocorreu em São Paulo e pode ser caracterizado como uma reação à supracitada “alterização” que posicionou os brasileiros como selvagens e canibais que habitavam um paraíso tropical terrestre ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. ). Ao mesmo tempo, outras ideologias tomaram o mercado carioca de assalto, como as ideias conflitantes sobre raça. No entanto, parece que, durante a década de 1930, a ideologia predominante estava ligada à obra de Freyre, que propagava a mestiçagem, permeando todo o espectro social. Carmen Miranda foi a personificação dessa ideologia. Por um lado, a popularidade de Carmen fez sua imagem circular e a transformou em uma estrela brasileira na década de 1930. Por outro lado, sua iconicidade reforçou “o emparelhamento de seus looks euro-brasileiros com um estilo musical afro-brasileiro, [criando] um repositório popular compartilhado para o que constituía a brasilidade dos anos 30” (Hall-Araújo, 2013a, p. 69). O mesmo ocorreu com sua imagem e iconicidade no Estados Unidos durante as décadas de 1940 e 1950, quando Carmen ficou conhecida como um ícone latino. No entanto, o estereótipo latino estava ligado à ideia de que os sul-americanos eram incapazes de seguir o ideal norte-americano de progresso, modernidade e cultura, representando assim o atraso e a precariedade (uma espécie de selvageria moderna).

No filme “ The Gang's All Here ” (1943), o número “ The Lady in the Tutti-Frutti Hat ” é descrito por Dibbell (1991)Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
https://bit.ly/3EIlJVi...
como “uma orgia de bananas fálicas gigantes e morangos vulvares por onde Miranda se move com um caos contido”, capturando “com precisão a fantasia do Atlântico Norte do Sul como um local de anarquia erótica inocente”. Assim, o país estava maduro para a exploração e outras formas de violência ( Gabriel, 2008)Gabriel, Y. (2008). Organizing words: a critical thesaurus for social and critical organization studies. Oxford: Oxford University Press. . A “fantasia” de um país mestiço encarnado pela baiana de Carmen durante os anos 1930 no Brasil deveria ter funcionado como uma invisível, dura, produtiva (no sentido de estruturar a realidade a ponto de ser impossível distingui-las, como Žižek, 1989 argumenta) proteção contra essa violência e suas consequências (as dificuldades sistêmicas nacionais que Schwarcz, 2019Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras. descreve). Também permitiu que os brasileiros fossem (simbolicamente) racistas (ainda hoje, segundo Souza, 1994Souza, O. (1994). Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional. São Paulo, SP: Escuta. ; Žižek, 2014). Por exemplo, havia sanções políticas contra certas práticas afro-brasileiras, como capoeira (arte marcial brasileira) e rituais de candomblé ( Hall-Araújo, 2013aHall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington. , p. 67). Quando essa fantasia foi ampliada pela indústria cultural norte-americana e passou a representar mulheres latinas e países sul-americanos, desagradou a elite brasileira. No entanto, a fantasia tropical foi reorganizada ao longo do tempo, assumindo muitas formas. Por exemplo, Santa'Anna e Macedo (2013) e Carvalho (2019)Carvalho, C. I. C. (2019). A construção da brasilidade inscrita em anúncios impressos e televisivos das sandálias Havaianas. Revista Saridh – Linguagem e Discurso, 1(1), 136-157. fizeram questão de analisar como o visual hollywoodiano de Carmen e a ideologia de seus filmes são incorporados por editoriais de moda e campanhas publicitárias, como sinônimo de brasilidade ligada à ideia de um paraíso tropical e um destino de férias exótico, respectivamente. Em 2005 o governo brasileiro lançou a Marca Brasil, estratégia de marketing que visava posicionar o Brasil no mercado interno e externo como sinônimo de diversidade e fabricante de bens industrializados, não apenas destino de férias e exportador de commodities .

Retomando a busca por uma narrativa identitária homogênea que estabelecesse o país como único diante dos demais, a imagem de Carmen foi escolhida para legitimar esse discurso e dar territorialidade aos produtos nacionais ( Macedo & Sant’Anna, 2014Macedo, K. B., Sant’Anna-Muller, M. R. (2014). Carmen Miranda, marca Brasil (Brazil brand) and national identity: a historical glance. 8th Conference of the International Committee for Design History & Design Studies, 1, 251-254. ). A indústria da moda foi a que mais abraçou o discurso da diversidade ( Michetti, 2012)Michetti, M. (2012) Moda brasileira e mundialização: mercado mundial e trocas simbólicas (Doctorate dissertation). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. e a Havaianas, marca reconhecida internacionalmente como tipicamente brasileira, lançou em 2009 uma campanha centrada na imagem de Carmen ( Macedo & Sant’Anna, 2014Macedo, K. B., Sant’Anna-Muller, M. R. (2014). Carmen Miranda, marca Brasil (Brazil brand) and national identity: a historical glance. 8th Conference of the International Committee for Design History & Design Studies, 1, 251-254. ). Na cerimônia de encerramento das Olimpíadas de 2016, a cantora brasileira Roberta Sá vestiu-se de Carmen, claramente para representar o país em um evento internacional. Todas essas manifestações de Carmen a posicionam como um ícone liminar do mercado, capaz de incorporar uma multiplicidade de significados, evocando assim a ambivalência que acompanhou a performer ao longo de sua carreira. Uma aura liminar paira no ar toda vez que a iconicidade de Carmen é trazida à tona, possibilitando muitas veias analíticas e críticas. Apesar disso, a personalidade alegre, sedutora e irônica de Carmen permanece inabalável.

Agradecimentos

A autora gostaria de agradecer ao Professor Dr. Maurice Patterson (Univeristy of Limerick, Ireland) por seus comentários sobre o manuscrito, apoio e amizade.

References

  • Arnould, E., Thompson, C. (2007). Consumer culture theory (and we really mean theoretics): dilemmas and opportunities posed by an academic branding strategy. In R. W. Belk, & J. F. Sherry, Jr. (eds.), Consumer culture theory: research in consumer behavior (v. 11, pp. 3-22). Amsterdam: Elsevier.
  • Arsel, Z., Bean, J. (2013). Taste regimes and market-mediated practice. Journal of Consumer Research, 39(5), 899-917. doi:10.1086/666595
  • Bakhtin, M. (1984). Rabelais and his world. Bloomington: Indiana University Press.
  • Balieiro, F. F. (2014). Carmen Miranda entre os desejos de duas nações: cultura de massas, performatividade e cumplicidade subversiva em sua trajetória (Doctorate dissertation). Federal University of São Carlos, São Carlos, SP.
  • Balieiro, F. F. (2017). Consuming Carmen Miranda: dislocations and dissonances in the reception of an icon. Estudos Feministas, 25(1), 269-290. doi:10.1590/1806-9584.2017v25n1p269
  • Barthes, R. (1972). Mythologies. New York: The Noonday Press.
  • Bishop-Sanchez, K. (2016). Creating Carmen Miranda: race, camp, and transnational stardom. Nashville: Vanderbilt University Press.
  • Bonadio, M. C., Guimarães, M. E. A. (2010). Alceu Penna e a construção de um estilo brasileiro: modas e figurinos. Horizontes Antropológicos, 16(33), 145-175. doi:10.1590/S0104-71832010000100009
  • Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa: Bertrand/Difel.
  • Brace-Govan, J. (2010). Representations of women’s active embodiment and men’s ritualized visibility in sport. Marketing Theory, 10(4), 369-396. doi:10.1177/1470593110382825
  • Brazilian Contemporary History Research and Documentation Center (CPDOC). (2009). Política de boa vizinhança. Retrieved from https://bit.ly/3A8loK2
    » https://bit.ly/3A8loK2
  • Carvalho, C. I. C. (2019). A construção da brasilidade inscrita em anúncios impressos e televisivos das sandálias Havaianas. Revista Saridh – Linguagem e Discurso, 1(1), 136-157.
  • Castro, R. (2005). Carmen: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Crossley, N. (2015). Music worlds and body techniques: on the embodiment of musicking. Cultural Sociology, 9(4), 471-492. doi: 10.1177/1749975515576585
  • Cunha, F. L. (2004). Da marginalidade ao estrelato: o samba na construção da nacionalidade (1917 – 1945). São Paulo: Annablume.
  • DaMatta, R. (1987). Relativizando – uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco.
  • DaMatta, R. (1997). Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do problema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco.
  • Denninson, S., Shaw, L. (2005). Popular culture in the contemporary world. Pop culture in Latin America media, arts and lifestyle. Santa Barbara: ABC Clio.
  • Dibbell, J (1991, October 29th). Notes on Carmen: a few things we have yet to learn from history’s most incandescent cross-dresser [blog post]. Retrieved from https://bit.ly/3EIlJVi
    » https://bit.ly/3EIlJVi
  • Dunn, C. (2001). Brutality garden: Tropicália and the emergence of a Brazilian counterculture. Chapel Hill: The University of North Carolina Press.
  • Dyer, R. (2004) Heavenly bodies: film stars and society (22nd ed.). London: Routledge.
  • Dymond, A. (2011). Embodying the nation: art, fashion, and allegorical women at the 1900 Exposition Universelle. RACAR: Revue d'Art Canadienne, 36(2), 1-14. doi:10.7202/1066739ar
  • Freyre, G. (1933/1986). The master and the salves: a study in the development of Brazilian civilization. California: University of California Press.
  • Gabriel, Y. (2008). Organizing words: a critical thesaurus for social and critical organization studies. Oxford: Oxford University Press.
  • Garcia, T. C. (2004). O “it verde e amarelo” de Carmen Miranda. São Paulo: AnnaBlume; Fapesp.
  • Gatti, J. (2006). Carmen Miranda’s white dress: ethnicity, syncretism and subaltern sexualities in Springtime in the Rockies. Ilha do Desterro, (51), 93-108. doi:10.5007/2175-8026.2006n51p93
  • Hall-Araújo, L. (2013a). Carmen Miranda: ripe for imitation (Doctorate dissertation). Indiana University, Bloomington.
  • Hall-Araújo, L. (2013b). Carmen Miranda and Brasilidade: Hollywood glamour and exoticism reinterpreted. Film, Fashion & Consumption, 2(3), 231-246. doi:10.1386/ffc.2.3.231_1
    » https://doi.org/10.1386/ffc.2.3.231_1
  • Holt, D. B. (2016). Whiskey: marketplace icon. Consumption, Markets & Culture, 21(1), 76-81. doi:10.1080/10253866.2016.1199360
    » https://doi.org/10.1080/10253866.2016.1199360
  • Kerber, A. (2002). Carmen Miranda e as representações da nação brasileira nos anos 30: a legitimação do nacionalismo. Métis: histórica & cultura, 1(1), 135-147.
  • Kerber, A. (2005). Carmen Miranda entre representações ds identidade nacional e de identidades regionais. ArtCultura, 7(10), 121-132.
  • Klein, N. (1999). No logo: taking aim at the brand bullies. New York: Picador.
  • LaBruce, B. (2015, 7th July). Notes on camp/anti-camp [Essay]. Retrieved from http://brucelabruce.com/2015/07/07/notes-on-camp-anti-camp/
    » http://brucelabruce.com/2015/07/07/notes-on-camp-anti-camp/
  • Lima, G. V. (2013). Carmen Miranda, o Estado Novo e o discurso verdadeiro. Fragmentum, (36), 24-36.
  • Macedo, K. B. (2011). O cinema brasileiro, Hollywood e a política da boa vizinhança da década de 1930: um panorama para Carmen Miranda. DAPesquisa, 6(8), 99-114.doi :10.5965/1808312906082011099
    » https://doi.org/10.5965/1808312906082011099
  • Macedo, K. B., Sant’Anna-Muller, M. R. (2014). Carmen Miranda, marca Brasil (Brazil brand) and national identity: a historical glance. 8th Conference of the International Committee for Design History & Design Studies, 1, 251-254.
  • Mauad, A. M. (2005). Genevieve Naylor, fotógrafa: impressões de viagem (Brasil, 1941-1942). Revista Brasileira de História, 25(49), 43-75. doi:10.1590/S0102-01882005000100004
  • Michetti, M. (2012) Moda brasileira e mundialização: mercado mundial e trocas simbólicas (Doctorate dissertation). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.
  • O’Dell, C. (2008). “O que que a baiana tem?” – Carmen Miranda (1939). Retrieved from https://bit.ly/3pDxOF2
    » https://bit.ly/3pDxOF2
  • O’Donnell, J. (2015). “They said I came back Americanized”: cosmopolitanism and mediation in the trajectory of Carmen Miranda. Ateliers d’anthropologie, (41).
  • O’Neil, B (2005). Carmen Miranda: the high price of fame and bananas. In V. L. Ruiz, &V. S. Korrol (Eds.), Latina legacies: identity, biography, and community (pp. 193-208. Oxford: Oxford University Press.
  • Orosco, D. (2009, 19th January). ‘Carmen Miranda é a mãe das drag queens’, diz convidado da SPFW. G1. Retrieved from https://glo.bo/30cBuEY
    » https://glo.bo/30cBuEY
  • Ortiz, R. (2005). Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Ovalle, P. P. (2010). Dance and the Hollywood latina: race, sex, and stardom. New Brunswick: Rutgers University Press.
  • Pereira, S. H. S. (2014, April). Eugenia institucionalizada no Brasil. Jus. Retrieved from https://bit.ly/3IDOYLd
    » https://bit.ly/3IDOYLd
  • Pullen, K. (2014). Carnival! Carmen Miranda and the spectacle of authenticity. In K. Pullen, Like a natural woman: spectacular female performance in classical Hollywood (pp. 127-168). New Brunswick: Rutgers University Press.
  • Roberts, S. (1993). “The Lady in the Tutti-frutti hat”: Carmen Miranda, a spectacle of ethnicity. Cinema Journal, 32(3), 3-23. doi:10.2307/1225876
  • Sant’Anna, M. R., Macedo, K. B. (2013). Images of Latin America in the body and costumes of Carmen Miranda’s stylized Baiana: social memory and identity. Comunicação e Sociedade, 24, 186-209. doi:10.17231/comsoc.24(2013).1783
    » https://doi.org/10.17231/comsoc.24(2013).1783
  • Schroeder, J., Zwick, D. (2004). Mirrors of masculinity: representation and identity in advertising images. Consumption, Markets & Culture, 7(1), 21-52. doi:10.1080/1025386042000212383
    » https://doi.org/10.1080/1025386042000212383
  • Schwarcz, L. M. (1995). Complexo de Zé Carioca: notas sobre uma identidade mestiça e malandra. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (29), 49-63. Retrieved from https://bit.ly/3GwAawm
    » https://bit.ly/3GwAawm
  • Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Shaw, L. (2013). Carmen Miranda. London: Palgrave Macmillan.
  • Sontag, S. (1964). Notes on Camp. Retrieved from https://bit.ly/3lSTo7A
    » https://bit.ly/3lSTo7A
  • Souza, O. (1994). Fantasia de Brasil: as identificações na busca da identidade nacional. São Paulo, SP: Escuta.
  • Stern, B. B. (1995). Consumer myths: frye’s taxonomy and the structural analysis of consumption text. Journal of Consumer Research, 22(2), 165-185. doi:10.1086/209443
  • Thompson, C. J. (2004). Marketplace mythology and discourses of power. Journal of Consumer Research, 31(1), 162-180. doi:10.1086/383432
  • Thompson, C. J., Üstüner, T. (2015). Women skating on the edge: marketplace performances as ideological edgework. Journal of Consumer Research, 42(2), 235-265. doi:10.1093/jcr/ucv013
  • Tota, A. P. (2000). O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Trevisan, J. S. (2000). Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. Rio de Janeiro, RJ: Record.
  • Velho, G. (2006). Autoria e criação artística. In G. Velho (Ed.), Artifícios e artefactos: entre o literário e o antropológico (pp. 135-142). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras.
  • Veloso, C. (1991, 20th October). Caricature and conqueror, pride and shame. New York Times. Retrieved from https://bit.ly/3rRZJnt
    » https://bit.ly/3rRZJnt
  • Žižek, S. (1989). The sublime object of ideology. London: Verso.
  • Žižek, S. (2014). Violência: seis reflexões laterais. São Paulo, SP: Boitempo.
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento: A autora não recebeu apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.
Editora Associada: Letícia Fantinel
Autoria
Renata Couto de Azevedo de Oliveira Doutora em Administração de Empresas pela Universidade do Grande Rio (UNIGRARIO). Pesquisadora Independente e co-organizadora do Fórum Decolonial ( https://www.facebook.com/groups/715246975847732 ). E-mail: renatacouto@yahoo.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jan 2021
  • Aceito
    12 Jul 2021
Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia Av. Reitor Miguel Calmon, s/n 3o. sala 29, 41110-903 Salvador-BA Brasil, Tel.: (55 71) 3283-7344, Fax.:(55 71) 3283-7667 - Salvador - BA - Brazil
E-mail: revistaoes@ufba.br