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O Cotidiano de Michel de Certeau nas Práticas de Gestão Ordinária de uma Organização da Sociedade Civil de Caruaru, Pernambuco

Resumo

A pesquisa objetivou compreender, a partir da noção de cotidiano proposta por Michel de Certeau, como se constituem as práticas de gestão ordinária de uma organização da sociedade civil de Caruaru, Pernambuco. Utilizamos o conceito de “gestão ordinária”, pois buscamos entender como a gestão da entidade realmente acontece, para além dos processos formalizados. Discutimos, ainda, o conceito de “cotidiano ordinário”, de Michel de Certeau, composto de operações heterogêneas, nas quais os sujeitos se utilizam de estratégias e táticas para sua produção e reprodução. Para operacionalizar a pesquisa, utilizamos observações participantes, pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas. Os achados foram tratados por meio da tríade hermenêutica da análise narrativa apontada por Barbara Czarniawska. Acessamos sete práticas cotidianas que nos possibilitaram perceber que estratégias e táticas são mobilizadas continuamente ao construírem a gestão ordinária da OSC. Destacamos que a gestão participativa e descentralizada e a educação popular são as principais premissas da gestão da OSC, e que o estudo da gestão ordinária permite compreender como essas premissas constroem o cotidiano da organização. Constatamos também conflitos, relações de poder e hierarquias relativas aos lugares e espaços ocupados na entidade.

gestão ordinária; cotidiano ordinário; estratégias; táticas; organizações da sociedade civil (OSC

Abstract

Based on the notion of everyday life proposed by Michel de Certeau, the research aimed to understand how the ordinary management practices of a civil society organization in Caruaru, Pernambuco are constituted. We use the concept of "ordinary management" as we seek to understand how the entity's management occurs, indeed, beyond formalized processes. We also discuss Michel de Certeau's concept of "ordinary everyday life", composed of heterogeneous operations in which subjects use strategies and tactics for their production and reproduction. We used participant observations, documentary research, and semi-structured interviews to operationalize the research. The findings were treated through the hermeneutic triad of narrative analysis highlighted by Barbara Czarniawska. We accessed seven everyday practices that allowed us to realize that strategies and tactics are continually mobilized when building the CSO's ordinary management. We highlight that participatory and decentralized management and popular education are the central premises of CSO management and that the study of ordinary management allows us to understand how these premises build the organization's daily life. We also noted conflicts, power relations, and hierarchies relating to the places and spaces occupied by the entity.

ordinary management; ordinary daily life; strategies; tactics; civil society organizations (CSOs

Introdução

Nesta pesquisa, partimos de uma compreensão de gestão que desafia o mainstream e considera a inclusão dos sujeitos marginalizados, suas vivências e práticas cotidianas no ambiente organizacional (Gouvêa, Cabana & Ichikawa, 2018). Para tanto, nos inspiramos na noção de “gestão ordinária”, já bastante aceita no campo dos estudos organizacionais ( Correia & Carrieri, 2019Correia, G. F. A., Carrieri, A. P. (2019). O Cotidiano de Negócios Familiares em Matozinhos/MG. Revista Economia & Gestão, 19(52), 101-117. ; Carrieri, 2018; Teixeira, Carrieri & Peixoto, 2015; Barros & Carrieri, 2015Barros, A., Carrieri, A. P. (2015). O cotidiano e a história: construindo novos olhares na Administração. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 151-161. ; Vale & Joaquim, 2017).

Podemos entender a gestão ordinária como “[...] aquela que se faz no cotidiano dos negócios ordinários”, portanto, ela é uma prática social e cultural, pois é formada por uma diversidade de “[...] códigos, referências, interesses pessoais e relacionais” (Carrieri, Perdigão & Aguiar, 2014, p. 700). Assim, a gestão ordinária leva em conta possibilidades de eventos não previstos que acontecem no dia a dia dos sujeitos que formam essas organizações, por meio das estratégias e táticas ( Certeau, 1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , que pretendem desestabilizar as estruturas impostas e/ou burlar as formalizações ( Gouvêa et al., 2018)Gouvêa, J. B., Cabana, R. P. L., Ichikawa, E. Y. (2018). As histórias e o cotidiano nas organizações: uma possibilidade de dar ouvidos àqueles que o discurso hegemônico cala. Farol – Revista Brasileira de Estudos Organizacionais, 5(12), 297-347. .

Barros e Carrieri (2015)Barros, A., Carrieri, A. P. (2015). O cotidiano e a história: construindo novos olhares na Administração. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 151-161. afirmam que a gestão ordinária possibilita verificar, nos grupos afastados dos saberes tradicionais oficiais, como ocorre a sua gestão, observando suas intencionalidades institucionais. Discutem, ainda, que a gestão ordinária, mesmo dispondo de pontos de contato com a administração, não é diretamente moldada por ela, mas a complementa ao lançar luz sobre outras práticas que não estão prescritas nos seus manuais (Vale & Joaquim, 2017). Queremos dizer que apesar da gestão ordinária possuir discurso estruturado e estabelecer trocas com discursos hegemônicos, por exemplo, ela questiona, na prática, a universalidade das lógicas administrativas de maximização de resultados e orientação racional das ações dos sujeitos ( Barros & Carrieri, 2015)Barros, A., Carrieri, A. P. (2015). O cotidiano e a história: construindo novos olhares na Administração. Revista de Administração de Empresas, 55(2), 151-161. .

Michel de Certeau é um dos principais autores que inspiram o surgimento do conceito de gestão ordinária, por abordar as relações de poder/saber e as práticas de resistência, considerando o cotidiano vivido pelo homem ou mulher ordinária. Utilizaremos o entendimento de “cotidiano ordinário” de Michel de Certeau para investigar a luta silenciosa entre poder e resistência nos conflitos vividos pelo homem ou mulher comum, tão bem abordados pelo autor. Desse modo, partimos da compreensão de que o poder se manifesta de modo transversal, tornando-se uma rede complexa de relações imediatas e cotidianas ( Foucault, 1992Foucault, M. (1992). Microfísica do poder. (10ª ed.) Rio de Janeiro: Graal. ; Teixeira, 2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. ).

Para Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , estratégias e táticas são lógicas de ação fundamentais para a compreensão do cotidiano. As estratégias podem ser entendidas como os cálculos das relações de força em que os sujeitos de querer e poder postulam o lugar capaz de ser próprio. Elas estão relacionadas a um discurso hegemônico de poder e controle. As estratégias possuem o caráter de manter as estruturas sociais de poder, comumente atribuídas aos sujeitos legitimados pelo discurso dominante, sobretudo utilizando o saber. Porém, os sujeitos ordinários também podem se utilizar das estratégias, quando conseguem, por um tempo determinado, reverter sua posição e criar seu próprio lugar na estrutura social ( Teixeira, 2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. ).

Por outro lado, as táticas são as engenhosidades do fraco, para tirar proveito do forte, estando ligadas à resistência. São os usos que os sujeitos fazem das imposições sofridas. Além desses usos, as táticas vêm do próprio ato e são sempre minuciosas, pois, se passam a acontecer de forma estruturada, perdem sua característica de tática e passam a ser estratégias. Por isso, os usuários não são passivos, pois, de alguma maneira, encontram mecanismos para atenuar as imposições, por meio das táticas ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

Acreditamos que essas noções podem ser úteis para compreender todos os tipos de organizações, sobretudo as não empresariais, que desenvolvem uma gestão social, que destoa do mainstream e que atua na resistência aos modelos impostos. Em outros termos, acreditamos que as noções de gestão ordinária, cotidiano, estratégias e táticas podem contribuir para ampliar a compreensão sobre como acontece a gestão de organizações da sociedade civil (OSC). A partir desta compreensão, iremos estudar o cotidiano de uma OSC chamada Centro de Educação Popular Assunção (CEPA), localizada em um contexto periférico, nomeadamente na região Agreste de Pernambuco, marginalizada tanto pelo lugar onde desenvolve seu trabalho quanto pela forma como desenvolve sua gestão.

O Centro de Educação Popular Assunção (CEPA), entidade a ser estudada, tem a missão de contribuir para a disseminação de uma cultura de paz, por meio de um viés formativo, no qual objetiva que os participantes dos projetos desenvolvam uma percepção de mundo e sua intervenção na vida, por meio de livres iniciativas e da consciência dos seus direitos. Para essa atuação, a organização utiliza a educação popular, baseada na metodologia de Paulo Freire, como principal guia para suas ações, atendendo cerca de 350 crianças e adolescentes (Centro de Educação Popular Assunção [CEPA], 2020).

Atualmente, a instituição desenvolve projetos de educação infantil e arte-educação, com as oficinas de dança, capoeira, teatro, audiovisual, maracatu e informática básica, atendendo cerca de 350 crianças e adolescentes, diretamente. Além dessas ações, proporciona rodas de conversas, nas oficinas e com as famílias, sobre diversos temas: violência familiar, drogas, exploração sexual de crianças e adolescentes, cidadania, respeito, diversidade cultural e solidariedade. Consideramos que o CEPA se materializa como espaço de convivência e de resistência, ao oferecer espaço para o desenvolvimento pessoal e comunitário de tantos(as) que procuram acolhimento nessa instituição (Sá, Tabosa, Araújo & Morais, 2020).

Desse modo, a pesquisa dá ênfase à gestão ordinária dessa organização específica, ou seja, na tentativa de compreender o cotidiano do CEPA, analisando as práticas de gestão ordinária e suas relações de poder/saber, já que o poder se manifesta em todos os lugares e em todas as direções ( Teixeira, 2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. ). Portanto, lançamos a seguinte pergunta de pesquisa: a partir da noção de cotidiano proposta por Michel de Certeau, como se constituem as práticas de gestão ordinária de uma organização da sociedade civil de Caruaru, Pernambuco?

Acreditamos estar contribuindo para o conhecimento em Administração por: discutir as práticas que organizam, situam e produzem um conjunto de ações que se relacionam com o cotidiano das organizações e a dinâmica da sociedade; bem como evidenciar como as práticas de gestão são objetivadas nesse cotidiano ( Oliveira & Cavedon, 2013Oliveira, J. S., Cavedon, N. R. (2013). Micropolíticas das práticas cotidianas: etnografando uma organização circense. Revista de Administração de Empresas, 53(2), 156-168. , 2018Oliveira, J. S., Cavedon, N. R. (2018). Paixão pela arte ou arte pela paixão? etnografando práticas e emoções no processo organizativo de um circo no Canadá. Revista de Administração da UFSM, 11(5), 1344-1360. ); buscar pistas das invisibilidades “ordinárias” onde se escondem complexas e distintas relações sociais (Junquilho, Almeida & Silva, 2012); contribuir para o avanço da teoria das organizações, que se tornou abstrata e distante das atividades cotidianas; dar vazão às vozes das organizações e sujeitos invisibilizados e/ou ignorados no campo da Administração; criar um arcabouço na compreensão de fenômenos de mudança e agência nas organizações; desenvolver conhecimento de rotinas que, aparentemente, se “repetem”, mas que podem ser vistas como invenções, na realidade estudada (Machado, Chropacz & Bulgacov, 2020); e contribuir, em relação à gestão dessas organizações, ao revisar alguns conceitos tradicionais ( Pompeu & Rohm, 2018)Pompeu, S. L. E., Rohm, R. H. D. (2018). Administração do terceiro setor: desafios enfrentados na gestão de ONG LGBT. Revista de Ciências Humanas, 52, 1-23. .

Na próxima seção, abordamos os principais conceitos analíticos mobilizados nesta pesquisa.

O cotidiano ordinário de Michel de Certeau

Para Michel de Certeau, as práticas cotidianas seguem itinerários diferentes uns dos outros e devemos encontrar, entre essas práticas, conexões, pois as práticas não compõem, em si, um sistema, mas organizam trânsitos mútuos nesses itinerários. Ou seja, o problema implica analisar ou poder analisar as práticas cotidianas como uma rede de operações (Certeau, 1985). A primeira orientação é encarar as práticas cotidianas, no sentido de que o fundamental é observar as maneiras de pôr em prática. Certeau, Jameson & Lovitt (1980, p. 47, tradução nossa) enunciam, por exemplo, que “[...] a prática do bairro é uma convenção coletiva tácita, não escrita, mas, legível por todos os usuários, através dos códigos da linguagem e do comportamento”.

O autor ainda explana que a questão das práticas cotidianas é uma tentativa de interpretação, pois se busca “[...] pelo consumidor que no próprio ato do consumo utiliza para fins próprios uma norma que lhe é objetivamente imposta” ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. , p. 6). Nessa perspectiva, o teórico ressalta três aspectos das práticas:

[...] um caráter estético na medida em que se trata de uma arte de fazer. [...] Isto é, que não se traduz num discurso, mas, sim, em um ato. [...] um caráter ético que é a recusa à identificação com a ordem ou com a lei dos fatos [...] e um caráter polêmico em que todas as práticas se inscrevem como intervenções em um conflito permanente, em uma relação de força [...] constitui sempre uma arte de pessoas fracas tendo em vista reencontrar, através da utilização das forças existentes, um meio de se defender ante uma posição mais forte. ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. , pp. 6, 7 e 8, grifo nosso)

Junquilho et al. (2012)Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. afirmam que a concepção sobre o cotidiano ordinário de Michel de Certeau valoriza a riqueza das ações dos praticantes, pois estas são providas de uma “arte de fazer” mais do que uma simples repetição desconectada de sentidos. Assim, é possível desvendar o invisível, compreendendo atos de resistência, subversão e (re)criação nessas práticas cotidianas.

Para Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , a prática é uma “maneira de fazer”, constituída na dinâmica de estratégias e práticas cotidianas (ler, habitar, caminhar, cozinhar, entre outras ações). As práticas estão no cotidiano, que é uma instância vivenciada pelos praticantes, ao mesmo tempo em que é inventado por eles. Ou seja, os praticantes, em algumas situações, estão numa posição estratégica de produção, mas em outras circunstâncias estão numa posição de consumo. Nessa visão metafórica de produção e consumo, em uma ponta se encontram tecnologias controladoras no dia a dia; e na outra, o consumo das imposições estratégicas, que não se trata de aceitação passiva, mas de um ato criativo, de uma produção clandestina ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ; Faria & Silva, 2017Faria, A. M., Silva, A. R. L. (2017). Estudos organizacionais baseados em Michel de Certeau: A produção internacional entre 2006 e 2015. Revista Alcance, 24(2), 209-226. ).

Michel de Certeau afirma que, para toda produção racionalizada, centralizadora e espetacular, normalmente vinculada a uma elite legitimada de poder, existe outra produção, silenciosa, astuciosa e quase invisível, pois ela não se apresenta em produto e sim nas maneiras de empregar os produtos impostos pela ordem dominante. Essa outra produção é chamada de consumo (Certeau, 1998). Portanto, os sujeitos ordinários, nos seus lugares, sob leis impostas, produzem a diferença, a criatividade e a imprevisibilidade ( Borges et al., 2016Borges, C. S., Vargas, C. L. B., Cruz, C. B., Santos, G. F. (2016). As pesquisas em Educação e os Cotidianos com Michel de Certeau. Pró-Discente: Caderno de Produção Acadêmico-Científica, 22(2), 9-25. ).

Junquilho et al. (2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. , p. 339) apontam que Michel de Certeau aposta na inteligência e na inventividade do homem e da mulher comum, no que diz respeito à (re)produção de suas práticas sociais. Eles querem dizer que “[...] é na capacidade criativa dos sujeitos que se escondem suas possibilidades de (re)produzir, (re)inventar, por meio de artimanhas sutis e eficazes, maneiras próprias de (re)agir no cotidiano”. Machado, Chropacz e Bulgacov (2020, p. 5) sintetizam muito bem esse aspecto, ao enunciarem que “[...] são procedimentos multiformes, resistentes, astuciosos, teimosos, que estão fora da disciplina; mas, dentro do campo em que ocorrem, tecendo uma teoria das práticas cotidianas”.

Toda essa dinâmica constitui o cotidiano, e para entendê-lo melhor, Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. conceitua o que ele chama de “lugar” e “espaço”. O autor diz que “lugar” é algo estável, pois se opera a lei do próprio (do forte), uma configuração instantânea de posições. Ou seja, é a ordem na qual se distribuem os elementos das relações coexistentes, excluindo a possibilidade de ocuparem o mesmo lugar, indicando uma relação de estabilidade e poder ( Ipiranga, 2016Ipiranga, A. S. R. (2016). Práticas Culturais de Espaços Urbanos e o Organizar Estético: Uma Proposta de Estudo. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 5(2), 105-123. ; Machado, Silva & Fernandes, 2020). Já o espaço é instável, pois é um lugar praticado (do fraco), já que ele é constituído de signos ( Certeau, 1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. . Queremos dizer que os sujeitos habitam os lugares por meio das práticas cotidianas, transformando-os diariamente em espaços, ou seja, em situações de apropriação, porém não rompendo com os lugares de poder (Machado, Fernandes & Silva, 2017).

Dito de outra forma, são as práticas que constituem os espaços, são subversões que se dão por meio de “micronegociações”, de maneiras de usar o sistema. Ou seja, “[...] significa que os sujeitos (re)definem, cotidianamente, as suas ‘artes do fazer’. Os indivíduos, no seu ‘fazer social’, (re)inventam a ordem dominante, de forma ativa, à medida que esse ‘fazer’ traduz maneiras diversas de emprego ou consumo do produto” ( Junquilho et al., 2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. , p. 339).

Para entender um pouco mais sobre essa dinâmica de lugar e espaço, faz-se importante considerar os conceitos de “estratégias” e “táticas”. “Estratégias” são os cálculos das relações de forças em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ambiente. Elas também postulam o lugar capaz de ser próprio, servindo de base para uma gestão de relações com o exterior. As estratégias estão relacionadas a um discurso hegemônico de poder e controle ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. ; 1998) e são movimentos nos quais jogamos, porque queremos ser força de poder ( Teixeira, 2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. ).

Teixeira (2015)Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. , ao estudar as práticas cotidianas de resistir e fazer de empregadas domésticas, observou algumas estratégias desenvolvidas pelos empregadores que já ocupam um lugar estável nessa relação. Como exemplo: a não assinatura da carteira de trabalho da empregada com mais de um salário, mesmo recebendo um valor a mais. Ocorreu, segundo Teixeira (2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. , p. 354), “[...] uma estratégia de poder ligada a um saber que se relaciona à consideração de um não saber relacional da doméstica”, que não apresentou uma resistência relacional, pois a empregada não reconheceu que essa conduta era irreal, do ponto de vista legal e trabalhista.

Ao mesmo tempo, como o conceito de Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. nos leva a considerar que todas as pessoas ocupam lugares de poder ao serem relacionais, Teixeira (2015)Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. também observou algumas estratégias utilizadas pelas empregadas domésticas, ao ocuparem esse lugar de poder, enquanto empregadas. Exemplificando: o fato das domésticas e, mais precisamente, as diaristas poderem escolher os serviços de acordo com o que desejam; assim como, ao fazer um trabalho de qualidade, poderem alcançar qualquer objetivo, caracterizando-se, de acordo com Teixeira (2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. , p. 357), como uma “[...] estratégia de saber propiciada pelo contexto de autonomia, ao escolher para quem vai trabalhar e, ao acionar seus saberes, podem exercer poder sobre seus empregadores”.

Já as “táticas” são os cálculos que não se tem um próprio; mas só têm, por lugar, o do outro. A tática “[...] não dispõe de base para capitalizar os seus proveitos, preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias” ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , p. 46). As táticas consistem nas engenhosidades do fraco para tirar proveito do forte, comandadas pela ausência do poder ( Borges et al., 2016Borges, C. S., Vargas, C. L. B., Cruz, C. B., Santos, G. F. (2016). As pesquisas em Educação e os Cotidianos com Michel de Certeau. Pró-Discente: Caderno de Produção Acadêmico-Científica, 22(2), 9-25. ). Sua síntese intelectual não vem do discurso, e sim da própria decisão, do ato, estando ligada à resistência ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

Certeau (1985)Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. destaca que é na tática que damos golpes, aproveitando as conjunturas e circunstâncias. Ela é mais dependente do tempo e, simultaneamente, melhor aproveitadora do momento certo de dar o golpe. Na tentativa de articular esse conceito de uma realidade mais próxima, as autoras Bernardo, Shimada e Ichikawa (2015) fazem uma relação entre os conceitos de “tática” e “jeitinho”. Cabe ressaltar que o conceito de “jeitinho”, que os autores utilizam, parte do entendimento de Bernardino Leers, para o qual está relacionado a uma atividade bem-intencionada, sinônimo de inteligência e astúcia humana, antípoda ao costume e à ordem estabelecida; e jamais vinculada à corrupção à qual é normalmente associada, pelo senso comum ( Bernardo et al., 2015Bernardo, P., Shimada, N. E, & Ichikawa, E. Y. (2015). O formalismo e o “jeitinho” a partir da visão de estratégias e táticas de Michel de Certeau: apontamentos iniciais. Gestão & Conexões, 4(1), 45-67. ).

Os autores apontam similaridade entre os conceitos, pois ambos se fazem presentes em práticas cotidianas, que permitem “burlar regras”, possibilitando aos “mais fracos” subversão de determinadas situações, de maneira sutil. A questão a ser esclarecida é que, para o “jeitinho”, existem visões sobre julgamento de valores; enquanto seu “lado bom ou ruim” e as táticas são vistas somente como uma forma de sobrevivência ( Bernardo et al., 2015Bernardo, P., Shimada, N. E, & Ichikawa, E. Y. (2015). O formalismo e o “jeitinho” a partir da visão de estratégias e táticas de Michel de Certeau: apontamentos iniciais. Gestão & Conexões, 4(1), 45-67. , p. 60).

Assim, os usuários não são passivos, pois de alguma maneira encontram mecanismos para atenuar as imposições, por meio das táticas. Algo que vale ser ressaltado é que as táticas podem se transformar em estratégias ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), como observado no caso das empregadas domésticas ( Teixeira, 2015Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. ). Além dessa ressalva, Machado et al. (2017Machado, F. C. L., Fernandes, T. A., & Silva, A. R. L. (2017). Michel de Certeau e Estudos Organizacionais: uma leitura do cenário brasileiro. Caderno de Administração, 25(2), 24-43. , p. 28) apontam que os sujeitos “[...] ora podem estar estabelecidos em locais próprios na condição de estrategistas, ora realizando táticas nos espaços de transgressão”.

Portanto, chegamos ao que Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. chama de “maneiras de fazer”, para explicar como os procedimentos populares jogam com os mecanismos de disciplina, para não se conformar com eles, a não ser para alterá-los. “Essas ‘[...] maneiras de fazer’ constituem as mil práticas pelas quais os usuários se apropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural” ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , p. 41). Melhor dizendo, “[...] as práticas são nossas ‘maneiras de fazer’ o cotidiano que, por sua vez, é produzido e reproduzido a partir das práticas que se configuram, histórica, social e temporalmente mediante estratégias ou táticas” (Rezende, Oliveira & Adorno, 2018, p. 39). Importante lembrar que essas maneiras de fazer constituem o caráter estético das práticas e se ligam ao caráter ético e polêmico, conforme apresentado no início deste capítulo ( Certeau, 1985)Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. .

Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. apresenta o que ele chama de “bricolagem”, um conjunto de atividades feitas pelos praticantes que, num contexto fabril, por exemplo, apesar de não possuírem uma racionalidade técnica, são capazes de subtrair tempo da fábrica, já que utilizam os restos dos bens, em vista de um trabalho livre e criativo. Ou seja, o operário trapaceia no próprio lugar em que reina a ordem, pelo prazer de inventar produtos para significar o seu saber/fazer pessoal. Podemos considerar, portanto, que as maneiras de fazer dos homens e mulheres comuns são realizadas frente à tecnicidade imposta.

Todas essas práticas são constituídas por narrativas. Assim, o autor levanta importantes questões. Uma diz respeito ao cuidado em estudar as práticas, pois elas desenham as astúcias e desejos, que não podem ser nem determinados nem capturados pelo sistema onde se desenvolvem. Ressaltamos a importância e o cuidado em captar a sua forma, a bricolagem, a retórica, a inventividade “artesanal”, a discursividade que combinam os elementos, pois o cotidiano é composto de histórias e operações heterogêneas ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

Certeau (1985)Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. também levanta um ponto muito importante sobre o relato. O autor ressalta que estudamos relatos de vida procurando fundamentá-los em estruturas econômicas ou sociais. Porém, para ele, o relato é, em si, a teoria das práticas cotidianas. Este teórico afirma que o relato “[...] é o único tipo de texto que é, ao mesmo tempo, uma discussão das práticas cotidianas e uma prática cotidiana em si. Ele próprio constitui a teoria daquilo que faz, daquilo que conta” ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. , p. 18). Napolitano e Pratten (2007)Napolitano, V., Pratten, D. (2007). Michel de Certeau: Ethnography and the challenge of plurality. Social anthropology, 15(1), 1-12. dizem que Certeau abraça os contos populares e as narrativas, pela sua capacidade de exibir complexidade, multiplicidades e experiências corporificadas. Do mesmo modo, Bittencourt (2012)Bittencourt, M. I. G. F.(2012). Michel de Certeau 25 anos depois: atualidade de suas contribuições para um olhar sobre a criatividade dos consumidores. POLÊM! CA, 11(2), 185-192. explana que a narrativa possibilita ao sujeito legitimar suas ações e se apropriar da sua vida.

Muitas tem sido as pesquisas que utilizam a abordagem de Michel de Certeau para compreender dinâmicas organizacionais. Sobre o assunto, podemos destacar que, no Brasil, as pesquisas que utilizam as ideias de Michel de Certeau estudam organizações que fogem do escopo tradicional da Administração, como feiras, mercados, circos, cooperativas, grupos teatrais e outros ( Machado et al., 2017Machado, F. C. L., Fernandes, T. A., & Silva, A. R. L. (2017). Michel de Certeau e Estudos Organizacionais: uma leitura do cenário brasileiro. Caderno de Administração, 25(2), 24-43. ). Essas pesquisas também apresentam como exemplo do homem e mulher ordinária catadores de material reciclável (Rodrigues & Ishikawa, 2015), empregadas domésticas ( Teixeira, 2015)Teixeira, J. C. (2015). As artes e práticas cotidianas de viver, cuidar, resistir e fazer das empregadas domésticas (Tese de doutorado). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. , pessoas em situação de rua ( Honorato & Saraiva, 2016)Honorato, B. E. F., Saraiva, L. A. S. (2016). Cidade, População em Situação de Rua e Estudos Organizacionais. Desenvolvimento em Questão, 14(36), 158-186. , feirantes (Cabana & Ishikawa, 2017), mestres e mestras das culturas populares (Santos, Silva, Dias & Morais, 2020) etc.

As pesquisas desenvolvidas por Michel de Certeau ainda inspiraram a criação de um importante conceito na área dos estudos organizacionais, a gestão ordinária, apresentada na próxima seção.

Gestão ordinária

A gestão ordinária é “[...] aquela que se faz no cotidiano dos negócios ordinários, dos pequenos negócios e é uma prática social e cultural formada por uma pluralidade de códigos, referências, interesses pessoais e relacionais” ( Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. , p. 700). Por isso, ela pode se configurar como uma prática de resistência a um modelo imposto.

A gestão ordinária se opõe ao modelo de gestão hegemônico legitimado na construção da Administração, a saber, o gerencialismo, que entende que o conhecimento popular, por meio do homem/mulher ordinário(a), é visto como algo amador, improvisado, sem credibilidade, colocado à margem dos estudos de gestão ( Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. ). Assim, apesar de não negar a Administração nem a disciplina do saber científico, a gestão ordinária critica a visão de uma gestão universal, propondo ao gestor/pesquisador abrir sua visão para captar a gestão como ela realmente acontece, e não como processos preestabelecidos (Carrieriet al., 2014); além de contribuir para a gestão, ao lançar luz sobre outras diversas práticas que vão além do que é ensinado e legitimado nas escolas de Administração (Vale & Joaquim, 2017).

Desse modo, a gestão ordinária se apresenta como uma resposta aos “[...] estudos sobre gestão, [que] em grande medida, silenciaram o ordinário, relegando aos sujeitos comuns o espaço da sujeição às estruturas que os dominam, oprimem e modelam comportamentos” (Vale & Joaquim, 2017, p. 60). Parte-se da premissa que os sujeitos usam, transformam, internalizam e codificam tanto as ideias quanto as mensagens transmitidas nas organizações, de formas diversas, interagindo com os discursos, técnicas e práticas, distintamente. Criam, portanto, suas próprias práticas gerenciais, mesmo sem desconsiderar a influência exercida pelas estruturas ( Carrieri et al., 2018)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. .

Queremos dizer que os sujeitos não são passivos e, portanto, consomem o que lhes é imposto de acordo com sua própria intencionalidade, utilizando-se de elementos produzidos em um contexto disciplinar não fabricado por eles ( Machado, 2018Machado, F. C. L. (2018). O ordinário, as culturas e a gestão: um estudo sobre os processos de organizar no artesanato em Piúma (ES) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitóri, ES. ). A agência, para Michel de Certeau, está tensionada entre a disciplina social e a prática de resistir ( Machado, 2018Machado, F. C. L. (2018). O ordinário, as culturas e a gestão: um estudo sobre os processos de organizar no artesanato em Piúma (ES) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitóri, ES. ). Mesmo assim, há possibilidades de infinitas maneiras de fazer, de pensar, de se submeter ou resistir ( Carrieri et al., 2018Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. ).

Carrieri et al. (2014)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. ressaltam a importância de se entender que essa gestão ordinária se dá por meio das significações culturais e identitárias. No que diz respeito às significações culturais, os autores entendem que quando se trabalha a cultura, na organização, deve-se buscar a construção e desconstrução das várias visões de mundo, nos espaços de interação social, apontando três perspectivas: a da integração-discurso, a da diferenciação-discurso e a da fragmentação-discurso. Esta última é apontada por Carrieri et al. (2014)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. como a ideal para dialogar com a gestão ordinária, pois ela trata da produção simbólica dos sujeitos.

Em relação às significações identitárias, os teóricos afirmam que elas podem ser reveladas a partir da produção discursiva verbal ou não verbal do indivíduo, apresentando-se como uma narrativa sobre quem ele é, assumindo três formas básicas: podem ser ações sobre o mundo, significações do mundo e formas de identificação. Além disso, os autores explicam que a construção dessa identidade individual acontece pela interação mútua com a história de outras pessoas. Portanto, “[...] o cotidiano é um espaço individual e grupal” e, assim, “[...] as significações identitárias coletivas envolvem o compartilhamento de sentido por parte dos indivíduos nele inseridos” ( Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. , p. 705).

A gestão ordinária possui forte poder analítico, não se limitando somente a organizações formais, mas também a processos e práticas sociais. Isso fica evidente na pesquisa de Santos (2017)Santos, M. A. E. (2017). “Profissão Pedinte”: (Re) Conhecendo a Gestão Ordinária da Representação Social de uma “Pedinte” na Cidade de Cascavel-PR. In: Anais do VI Encontro de Gestão de Pessoas e Relações de Trabalho – EnGPR. Curitiba, PR. , ao estudar uma “pedinte”. A pesquisa revelou, como resultado, que a prática exercida por ela foi reconhecida como uma tática da gestão ordinária (caracterizada por ações e representações), frente a um sistema pautado pela produtividade.

A pesquisa de Vale e Joaquim (2017) também aponta para o potencial da noção de gestão ordinária, uma vez que eles investigaram o cotidiano e as formas de gestão do Mercado Central de BH, visto a partir de um sujeito ordinário (feirante), que vai além do que prevê os handbooks de administração. De acordo com o estudo, a gestão do feirante pode ser entendida a partir das práticas de negociação, dos saberes, hábitos, regras, mecanismos de resistências e, algumas vezes, da opressão do cotidiano vivido.

De natureza semelhante, Carrieri et al. (2018)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. contrapuseram a gestão de uma cafeteria a um modelo predefinido de gestão e descobriram que os modelos gerencialistas não se aplicaram à sua gestão, observando que o cotidiano organizacional é rico de possibilidades, de criatividade e subversões à cultura administrativa hegemônica. Já Correia e Carrieri (2019)Correia, G. F. A., Carrieri, A. P. (2019). O Cotidiano de Negócios Familiares em Matozinhos/MG. Revista Economia & Gestão, 19(52), 101-117. , pesquisaram cinco negócios familiares e observaram contradições quanto aos discursos de separação dos negócios e das famílias. Observaram, ainda, que o sentimento de pertencimento nos negócios é estimulado pelos vínculos familiares, tornando a atividade produtiva, e que esses negócios sobrevivem, frequentemente, sem vínculos empregatícios formais, dependentes da mão de obra e da dinâmica familiar, subvertendo várias regras e normas.

Na próxima seção, apresentamos os procedimentos metodológicos empregados na pesquisa.

Procedimentos metodológicos

Quanto à natureza da pesquisa, optamos pela abordagem qualitativa, pois esse tipo de pesquisa mostra-se adequado à identificação dos contextos nos quais as interações acontecem, para a compreensão das (inter)subjetividades do meio (Martins & Theófilo, 2009; Severino, 2017)Severino, A. J. (2017). Metodologia do trabalho científico (2ª ed.), São Paulo: Cortez. . Também nos baseamos em Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. para a escolha dessa abordagem, pois o autor comenta que a pesquisa qualitativa é propícia para entender a heterogeneidade entrelaçada nas práticas cotidianas.

A pesquisa se configura como um estudo de caso intrínseco, apoiado no paradigma naturalista de Robert Skate (Leão, Vieira, Gaião & Souza, 2012), o qual defende a premissa de que as realidades são múltiplas, não sendo possíveis as generalizações. Além disso, Czarniawska (1998)Czarniawska, B. (1998). A narrative approach to organization studies. Sage Publications. nos diz que as formas narrativas são mais fáceis de encontrar em estudos de casos; e as bibliometrias de Faria e Silva (2017)Faria, A. M., Silva, A. R. L. (2017). Estudos organizacionais baseados em Michel de Certeau: A produção internacional entre 2006 e 2015. Revista Alcance, 24(2), 209-226. e Machado et al. (2017)Machado, F. C. L., Fernandes, T. A., & Silva, A. R. L. (2017). Michel de Certeau e Estudos Organizacionais: uma leitura do cenário brasileiro. Caderno de Administração, 25(2), 24-43. notaram a predominância dessa estratégia metodológica nas pesquisas nacionais e internacionais nos estudos baseados em Michel de Certeau.

As primeiras técnicas utilizadas para coleta de informações foram: a observação participante e o diário de campo/anotações, entrevistas semiestruturadas ( Silva & Russo, 2019Silva, L., Russo, R. (2019). Aplicação de entrevistas em pesquisa qualitativa. Revista de Gestão e Projetos, 10(1), 1-6. ) e pesquisa documental. As observações participantes ocorreram sob duas formas: in loco , no primeiro contato com o campo, antes do isolamento social da pandemia da covid-19, no qual pudemos, oficialmente, pedir autorização para a pesquisa. Nesse mesmo dia, participamos de uma reunião sobre um feedback de uma avaliação externa de um projeto do ano anterior e fizemos visita domiciliar com duas educadoras. Também participamos de uma reunião com educadores(as) e de reuniões para um curso oferecido por um financiador, após relaxamento de algumas medidas do isolamento social. A outra forma de observação se deu on-line , em que pudemos participar de reuniões com educadores(as) e com a equipe de coordenação/diretoria da entidade. Essas reuniões aconteceram via ferramenta do Google Meet. No total, foi realizada observação participante em 22 encontros, entre os meses de março e outubro de 2020, totalizando 35 páginas de anotações feitas a mão.

Para as entrevistas semiestruturadas foi utilizado o seguinte critério de escolha dos(as) entrevistados(as): desempenhar alguma atividade no CEPA de forma contínua por pelo menos dois anos. Esse critério mais amplo resultou da especificidade de não afunilar as escolhas por utilizarmos teorias e conceitos de gestão ordinária, em que todos(as), independentes das suas posições, constituem as organizações e, consequentemente, formam sua gestão. Porém, houve a preocupação e o compromisso de diversidade das funções/atividades dos(as) entrevistados(as) escolhidos(as). Foram entrevistados(as) três pessoas que compõem a equipe de coordenação, três educadores(as) e uma pessoa da equipe de cozinha e limpeza. Todas as entrevistas foram feitas pelo Google Meet, e aconteceram entre os meses de novembro de 2020 e janeiro de 2021, totalizando 425 minutos de entrevistas e 95 páginas de transcrição, realizada pelos próprios autores.

Sobre a pesquisa documental, foram analisados documentos institucionais (Estatuto Social, Regimento Interno, Projeto Político Pedagógico, Questionário e Relatório de Visita Domiciliar da Educação Infantil e ata de assembleia geral anual), registros fotográficos do acervo da entidade, de apresentações, de reuniões, de atividades, entre outros acessados pelo Google Drive e WhatsApp, e material acadêmico elaborado na entidade para entender aspectos passados em relação à sua gestão ( Sá et al., 2020Sá, M., Tabosa, C., Araujo, R., Morais, W. (2020). Desafios à Gestão de uma ONG Agrestina: o caso do Centro de Educação Popular Assunção (CEPA) sob diversos olhares. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 9(1), 139-157. ).

No que se refere ao tratamento das informações obtidas, utilizamos a análise narrativa. Czarniawska (2000)Czarniawska, B. (2000). The uses of narrative in organization research. Rapport nr.: GRI reports, (2000). apresenta a narrativa, não no sentido de procurar causas e efeitos, mas sim de encontrar conexões frequentes entre vários elementos que a compõem. Ou seja, podemos analisar como as narrativas organizacionais se desdobram, visto que as interpretações não científicas das pessoas e dos eventos da vida estão fundamentadas nas tentativas de estabelecer conexão entre o excepcional e o comum. Portanto, o comum, que é normal, usual e esperado, adquire legitimidade ( Czarniawska, 1998Czarniawska, B. (1998). A narrative approach to organization studies. Sage Publications. ).

Realizamos a análise narrativa a partir da tríade hermenêutica proposta por Czarniawska (2000)Czarniawska, B. (2000). The uses of narrative in organization research. Rapport nr.: GRI reports, (2000). , inspirada em Paul Hernadi. Esta tríade é composta, primeiramente, pela etapa da explicação, na qual se busca entender as histórias. A segunda etapa é a explanação, na qual se interpretam e se desconstroem as histórias. A terceira etapa é a exploração, na qual as histórias são reconstruídas, montando-se novas narrativas mediante histórias múltiplas.

Assim, a etapa da explicação se deu no momento das observações e das entrevistas em que pudemos captar os acontecimentos, falas e comportamentos com a atenção necessária para não as acatar como uma verdade absoluta, por meio da autodescrição dos(as) próprios(as) entrevistados(as).

Utilizamos algumas categorizações teóricas referentes ao cotidiano, às estratégias, às táticas e à gestão ordinária (significações culturais, identitárias, códigos, referências, interesses pessoais e relacionais), principalmente na fase de explanação, em que o(a) pesquisador(a) interpreta, analisa e desconstrói as histórias contadas. Após esta fase, realizamos a etapa da exploração, em que essas histórias individuais e coletivas são reconstruídas incorporando a própria análise à narrativa.

Análise dos resultados

Nesta seção, apresentamos as narrativas referentes às práticas de gestão ordinária, bem como as estratégias e táticas a elas relacionadas, identificadas no CEPA.

Prática de elaboração de projetos sociais

Para que essa prática seja possível, uma importante ação foi identificada: o rastreamento de possíveis editais públicos. Isso é feito por qualquer pessoa na organização, que pode disponibilizar algum tempo para essa busca ou que pode se deparar com algum anúncio de edital na internet/redes sociais. A equipe de coordenação também tem, entre suas atividades, essa atribuição pensada de forma estratégica. A equipe de coordenação analisa se o edital está alinhado com as premissas e temáticas desenvolvidas na entidade e se é possível concorrer no chamamento público, para angariar algum tipo de recurso, seja financeiro e/ou técnico.

A partir dos relatos dos integrantes da organização, percebemos que os financiadores que disponibilizam os editais sociais ocupam um lugar próprio ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), pois, a depender dos seus objetivos, impõem certas exigências, que se apresentam como pistas para compreendermos as estratégias ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) com as quais as OSCs que queiram participar da seleção lidam. Um exemplo dessas exigências é a porcentagem de uso financeiro para pagamento de profissionais.

Em relação à prática de elaboração de projetos sociais, nós participamos efetivamente dessa prática ao nos depararmos com edital público, nas pesquisas de internet. O anúncio do edital nos chamou a atenção, pois, como já vínhamos acompanhando algumas reuniões on-line da equipe de coordenação/diretoria para as observações participantes, tivemos conhecimento de que a entidade estava com dificuldades em obter financiamento para algumas atividades e profissionais. Percebemos que o edital do financiador tinha o objetivo de oferecer não só a formação técnica para as OSCs como também a possibilidade de concorrer a fomento financeiro para o desenvolvimento de atividades voltadas à educação de crianças e adolescentes. Portanto, após uma leitura geral do edital, decidimos compartilhar essa oportunidade no grupo geral do WhatsApp do CEPA. Esse fato aconteceu logo no começo da semana; e a reunião on-line , da coordenação, aconteceria dois dias após esse compartilhamento.

Na reunião, socializamos nossa opinião sobre a possibilidade de participação no edital público, pois a consideramos interessante, pelo fato de que o financiador estava oferecendo, também, um percurso formativo on-line , voltado para atividades reflexivas e práticas para a gestão da entidade. A partir dessa explanação, os demais também se colocaram favoráveis à participação no edital, porém esse ponto de pauta ainda voltou a ser debatido em mais duas reuniões da coordenação. Esses retornos foram importantes porque as pessoas puderam ler o edital, para debater como as etapas dele poderiam ser executadas, diante das demandas atuais da entidade, e para saber quem seriam as pessoas que participariam do curso.

Percebemos que nessa prática existe uma “maneira de fazer” ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) particular. Como apontado anteriormente, a atividade de busca de editais é demandada para todos(as) os(as) profissionais do CEPA. Assim, essa tarefa, que seria relegada a um setor específico, não segue, necessariamente, o que é previsto no organograma da entidade, pois, como assinalam Carrieri et al. (2014)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. , o cotidiano é um espaço individual e grupal, ao envolver o compartilhamento de sentidos por parte dos sujeitos nele inseridos. Ao mesmo tempo em que Carrieri et al. (2018)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. destacam que o cotidiano é rico de possibilidades para a cultura administrativa hegemônica.

Captamos o entendimento prévio de que a diretoria e a coordenação incentivam que qualquer pessoa busque e proponha editais. Essa abertura e a preocupação de toda a organização em propor editais demonstra uma gestão mais democrática e pouco centralizada. Assim, essa prática indica uma possível tática ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), pois subverte a indicação presente no Estatuto Social (2017) de que apenas uma pequena parte da equipe, que detém formação técnica específica, fique responsável por essa ação.

No processo de observação do campo, foi possível enxergar que as principais pessoas que tomam a decisão final são o presidente e a coordenadora pedagógica após a escuta dos(as) demais, mas também por ocuparem um lugar próprio ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ; Machado et al., 2020Machado, R. C., Chropacz, F., Bulgacov, Y. L. M. (2020). Epistemologia de Certeau e sua contribuição para os estudos baseados em prática em organizações. Revista Ciências Administrativas, 26(2), 1-10. ), que indica suas posições de estabilidade e poder. Ambos são reconhecidos, pelos(as) demais, como as principais pessoas da organização nas tomadas de decisão, por questões de experiências profissionais entrelaçadas por diversos saberes e vivências e por ocuparem, nesse momento, as funções de presidente e de coordenadora pedagógica da entidade.

Prática de ensino e a educação popular

Uma questão importante nesta discussão refere-se às bases da entidade que estão fundamentadas no paradigma da educação popular, cuja maior referência é o pensamento de Paulo Freire. Para os(as) entrevistados(as), essa educação popular está relacionada à consideração do contexto no qual a criança se insere e à formação de pessoas que acolham as diferenças, para além de apenas leitores. Também observamos o constante debate de assuntos políticos, a partir de discursos governamentais.

Observamos, nesse fundamento, uma lógica de ação pautada na resistência, que está relacionada ao caráter ético e polêmico ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. ) da prática de ensino analisada. A educação popular se apresenta como um movimento, além da ideia tradicional de educação, que está voltada apenas para os aspectos cognitivos. Portanto, a prática de ensino pautada na educação popular tem caráter ético ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. ), ao se recusar à identificação com a ordem ou com a lei dos fatos postos socialmente. Paralelamente, seu caráter polêmico ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. ) se configura enquanto a arte de pessoas “fracas”, em busca de defender seus ideais diante de uma imposição de forças sociais existentes.

Acreditamos que a premissa da educação popular vai ao encontro da ideia central de constituição da entidade, voltada ao cuidado com a comunidade, mediante os descasos dos órgãos públicos, o crescimento desordenado da cidade e as evolutivas demandas socioeconômicas das condições básicas de vida que a comunidade enfrentou/enfrenta ( Sá et al., 2020Sá, M., Tabosa, C., Araujo, R., Morais, W. (2020). Desafios à Gestão de uma ONG Agrestina: o caso do Centro de Educação Popular Assunção (CEPA) sob diversos olhares. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 9(1), 139-157. ; Morais, 2018Morais, W. M. (2018). O CEPA e seus egressos: para além da avaliação de projetos, quais impactos podem ser mapeados? (Trabalho de Conclusão do curso). Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, PE. ). Assim, percebemos, portanto, que essa lógica de ação se caracterizaria enquanto ideológica, voltada para uma resistência revolucionária, presente numa luta diária, microfísica ( Foucault, 2013Foucault, M. (2013). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Biblioteca Nacional de Portugal. Lisboa: Edições 70. ) e microcotidiana ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ; Certeau et al., 1980Certeau, M., Jameson, F., Lovitt, C. (1980). On the oppositional practices of everyday life. Social text, (3), 3-43. ) da organização. Essa resistência pode ser observada porque o CEPA não nega as estruturas, mas propõe “[...] outras perspectivas, outras formas de viver, existir, fazer. É muito presente, nos discursos da entidade, palavras como: oportunidade e ressignificação, principalmente, das imposições sofridas de forma micro, por meio de novas escolhas” (Diário de Campo, 2020).

Sobre as práticas de ensino, observamos duas “maneiras de fazer”: a prática de educação infantil e a prática de oficinas. Sobre a primeira, percebemos, por meio do relato da Entrevistada 2 (2020), que os(as) educadores(as) se apropriam do espaço organizado pelas técnicas de produção sociocultural, desenvolvendo uma verdadeira bricolagem ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), na medida em que utilizam as conversas com os estudantes como conteúdo para as aulas, utilizam material lúdico e organizam a sala em círculo, e não em fileiras, como na educação tradicional, por exemplo, fugindo de uma lógica puramente cognitiva. Desse modo, percebemos que o cotidiano ordinário da educadora é mais que uma simples repetição desconectada de sentidos ( Junquilho et al., 2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. ).

Observamos, também, algumas estratégias utilizadas pela educadora, por possuir um lugar praticado ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. , Ipiranga, 2016Ipiranga, A. S. R. (2016). Práticas Culturais de Espaços Urbanos e o Organizar Estético: Uma Proposta de Estudo. Revista Interdisciplinar de Gestão Social, 5(2), 105-123. ). A Entrevistada 2 (2020) aborda que: “[...] a gente consegue desenvolver o trabalho. Como a gente já tem um tempo, já tem uma bagagem, então, a gente tem autonomia de saber o que fazer e saber o que é necessário fazer, do que é, do que precisa e a gente consegue desenvolver, sabe? ”. Entendemos, a partir da fala, que as educadoras da educação infantil conseguem ter autonomia na sua prática de ensino, por terem um saber formal, pautado, sobretudo, na formação acadêmica.

Um fato que nos chamou a atenção é que ficou explícito, por meio da narrativa da Entrevistada 2 (2020), que ela sente a ausência de um acompanhamento pedagógico direto: “ [...] a gente sente falta também disso, de ter um apoio, de ter alguém que diga, não, vamos fazer desse jeito ”. Esse é um ponto importante, pois, apesar de ter certa independência e de conseguir suprir as demandas de forma autônoma, possibilitando empregar suas maneiras de fazer ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), as educadoras, usualmente, sentem falta de uma determinação superior mais presente.

Apesar da educadora entender que não há um acompanhamento direto do seu trabalho, percebemos que a avaliação e esse acompanhamento acontecem de outras formas, como, por exemplo, nas reuniões de planejamento, de formação continuada e em outros momentos menos formais, caracterizando a gestão ordinária do CEPA, permitindo uma “ costura das intencionalidades pedagógicas do trabalho desenvolvido institucionalmente ”, como coloca a Entrevistada 1 (2020), coordenadora pedagógica.

Portanto, percebemos um conflito entre diferentes partes na prática de ensino infantil: a produção da coordenação pedagógica não atende à expectativa das educadoras da educação infantil, no sentido de fazer um acompanhamento direto de suas atividades cotidianas. Ao mesmo tempo, as educadoras da educação infantil fazem um uso próprio dessa produção, o que Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. conceitua como “consumo”, ao criar e se utilizar de ferramentas já utilizadas anteriormente, criando suas próprias práticas ( Carrieri et al., 2018Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. ) de ensino, de forma autônoma, e comprovando que os sujeitos não são passivos ( Machado, 2018Machado, F. C. L. (2018). O ordinário, as culturas e a gestão: um estudo sobre os processos de organizar no artesanato em Piúma (ES) (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Espírito Santo, Vitóri, ES. ).

A segunda “maneira de fazer” identificada na prática de ensino é aquela realizada nas oficinas de arte-educação. O Entrevistado 4 (2020), mestre e educador de capoeira, narra que sempre começa as oficinas fazendo perguntas aos estudantes sobre o seu dia a dia e dando orientações básicas, sobre como eles devem se comportar, por exemplo, levando em consideração a aproximação com a realidade dos(as) beneficiários(as) da entidade, voltada à perspectiva da educação popular. Nessa prática, se percebe o esforço do educador em ressignificar a concepção de capoeira, que “ [...] antes, era muito marginalizada, tinha como sendo de maloqueiro ou alguma coisa assim parecida ”; por isso é importante a fala do educador sobre o comportamento dos(as) educandos(as).

As aulas de capoeira são planejadas e desenvolvidas de forma mais espontânea, principalmente por causa da experiência prática do mestre, diferente do observado na narrativa da Entrevistada 2 (2020), que possui uma formação acadêmica referente à sua profissão.

Percebemos que mesmo possuindo dificuldades relacionadas à leitura, por não ter tido educação escolar formal, o mestre e educador de capoeira utiliza ferramentas e equipamentos, como o celular, com o objetivo de filmar os movimentos, para aprimorar sua forma de ensino. Acreditamos que essa característica advém de um olhar mais voltado às necessidades do público que atende e de como o educador pode desenvolver sua prática ao seu favor. Consideramos que o uso dessas ferramentas e equipamentos nas aulas de capoeira pode ser compreendido como uma tática ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), que o entrevistado passou a utilizar na sua prática de ensino.

Observamos, ainda, outras táticas realizadas pelo entrevistado, como a narrada por ele: “ [...] a gente marca pra dar aula lá no salão. Aí chega lá, o salão tá molhado, ou o salão tá ocupado, ou outra coisa. Então, a gente já tem o segundo plano, né? De fazer numa praça, de fazer num parque, de fazer em algum lugar, assim ” (Entrevistado 4, 2020). Caracterizamos essa conduta como uma pista importante para visualizar as táticas de ensino desse educador, porque, mesmo que o entrevistado diga que tem um segundo plano, ele só é definido diante das circunstâncias percebidas no momento da aula.

Outra pista para a compreensão das táticas de ensino nas oficinas de arte-educação mobilizadas por esse educador diz respeito ao “manejo” do mestre ao se deparar com grande quantitativo de pessoas numa roda de capoeira, quando viajou a trabalho para a Bahia. Como ele explanou, utilizou sua criatividade para suprir a demanda de orientar, de forma conjunta, esse quantitativo de pessoas. Inferimos, assim, que é na capacidade criativa que os sujeitos têm a possibilidade de (re)produzir, (re)inventar as maneiras próprias de (re)agir no cotidiano ( Junquilho et al., 2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. ). Em outras palavras, o educador empregou o que Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. conceitua como “bricolagem”, ao inventar produtos para significar o seu saber/fazer pessoal, em vista de um trabalho livre e criativo.

Interessante observar que, apesar das várias táticas expostas, o Educador 4 também parece utilizar estratégias ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) em sua forma de ensinar, a exemplo de quando incentiva o estudante mais graduado a ensinar o menos graduado. Acreditamos que esta ação é impulsionada por sua posição de educador, definindo como os estudantes, que estão sob sua orientação, devem se dividir.

Por meio da narrativa do Entrevistado 6 (2021), capturamos uma forma de consumo daquilo que o financiador exige nos projetos sociais, que pode ser considerado como produção (Certeau, 1996). De acordo com o Educador 6, diante das exigências dos editais nos quais os projetos são aprovados, “ a gente arruma uma brecha pra fazer algumas coisas à parte, tratando de outros temas ”. Assim, percebemos uma forma de consumir aquilo que é imposto pelos editais financiadores dos projetos desenvolvidos no CEPA. Em outros termos, capturamos mais uma pista que permite vislumbrar as táticas ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) mobilizadas pelo educador, uma vez que ele subverte as temáticas impostas pelo edital, acrescentando outros temas subjacentes que também acredita serem importantes à discussão junto ao público atendido.

Este entrevistado, que leciona disciplina na área do audiovisual, também relata uma estratégia adotada na prática em questão, quando atribui determinadas responsabilidades a alguns estudantes, com o objetivo de desenvolver neles certas habilidades. De outro modo, o educador utiliza de uma estratégia na produção da dinâmica de sua aula, por ocupar um lugar próprio enquanto educador da entidade.

Prática de visita domiciliar

Essa prática tem o objetivo de “[...] conhecer a realidade familiar dos/as educandos/as, como também de envolver os familiares na participação das atividades pedagógicas dos/as filhos/as” (Projeto Político Pedagógico, 2018). Ela se constitui da seguinte maneira: por meio dos endereços dos(as) educandos(as) na matrícula, os(as) educadores(as) fazem um planejamento próprio de qual vai ser a dinâmica de visita. Ou seja, quais são os dias e para quais casas irão primeiro, e assim sucessivamente, até suprir a demanda.

Nessa prática acontecem diversas situações inesperadas, que levam as educadoras e educadores a desenvolverem táticas diversas, como no caso em que as crianças visitadas não são aquelas que as educadoras procuram. Neste caso em particular, mesmo que a criança visitada tenha idade mais avançada, as educadoras e educadores que realizam a visita sugerem que a criança seja matriculada nas atividades de arte-educação, e que a família visite o espaço para conhecer o trabalho que é desenvolvido pelo CEPA.

Os(as) educadores(as) têm internalizado que, para as visitas domiciliares, é preciso utilizar a vestimenta padrão da organização, pois, assim, eles(as) são reconhecidos(as) como educadores(as) do CEPA. Esse é um importante ponto a ser destacado, pois visitam lugares nos quais os(as) moradores(as) podem não estar receptivos(as) a receber visitas regulares de outras instituições e órgãos públicos. Logo, uma vez que o trabalho desenvolvido pelo CEPA na comunidade é bastante conhecido e validado, isso proporciona aos(às) educadores(as) serem reconhecidos(as) quando vestem a roupa padrão da entidade, e não serem hostilizados(as) pela população, oferecendo-lhes uma sensação maior de segurança. Portanto, percebemos aqui o que Carrieri et al. (2014)Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. conceituam como significações identitárias e culturais, fundamentais para a gestão ordinária. Essas significações dizem respeito à produção discursiva, verbal ou não verbal, da construção da identidade do indivíduo, proporcionada pela interação com as outras pessoas pelas significações culturais e pela produção simbólica nos espaços de interação social ( Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. ).

Na visita domiciliar, os(as) educadores(as) devem seguir um script desenvolvido pela equipe de coordenação, que aponta para uma possível estratégia certeauniana. Então, devidamente vestidos com a roupa padrão da entidade, os(as) educadores(as) vão às casas dos familiares dos(as) educandos(as), se apresentam como educadores(as) do CEPA e falam que estão fazendo a visita domiciliar. Explicam, de forma geral, que o objetivo da visita é conhecer mais de perto o(a) educando(a) e mostram que esta é uma oportunidade de a família conhecer os(as) educadores(as) do CEPA. Normalmente, a reação dos(as) familiares é boa, convidam para entrar na casa, sentar-se, oferecem água e se dispõem ao diálogo, de forma acolhedora.

Durante as visitas, o teor das conversas é para apresentação mútua e explicação de como acontece a dinâmica das aulas no CEPA. Conquistado esse terreno, os(as) educadores(as) dizem que precisam fazer algumas perguntas e anotar as respostas no relatório de visita domiciliar. Explicam que são perguntas relacionadas ao dia a dia da família e dizem da importância de eles(as) terem uma melhor noção do cotidiano da família. São perguntas voltadas às expectativas dos(as) educandos(as) e seus familiares e sobre a atividade que irão desenvolver no CEPA. Falam sobre as condições de vida da família, relacionadas à moradia, alimentação, questões financeiras, questões de cuidados com os(as) educandos(as), questões relativas ao trabalho, entre outras (Relatório de Visita Domiciliar, 2020).

Essas informações, colhidas por meio desse questionário, servem para construir um relatório de visita domiciliar, para análise da realidade das crianças que são atendidas pelo CEPA, bem como do contexto social em que elas vivem. Além destas questões, os(as) educadores(as) também colocam as dificuldades enfrentadas nas visitas domiciliares. Esse relatório é muito importante para a entidade, pois é a partir dele que algumas ações são planejadas, para melhor atender às crianças, de acordo com sua realidade. Logo, podemos afirmar que são importante fonte de informação para realização da gestão ordinária. Lembrando, novamente, que essas ações são realizadas na perspectiva da educação popular e que essas informações alimentam as justificativas e argumentações necessárias para a elaboração de projetos sociais (Diário de Campo, 2020).

Prática de planejamento

O planejamento está presente em diversas práticas da organização, senão em todas. Em nível macroorganizacional, ele é realizado a partir de uma perspectiva de gestão compartilhada, na qual as ideias e decisões são tomadas de forma colegiada. Esse planejamento é fluido e se desenvolve ao longo do ano, por causa da dinâmica da organização. Verificamos que essa dinâmica vai ao encontro da gestão ordinária, pois acontece no cotidiano ordinário da entidade e é uma prática social e cultural formada por uma diversidade de códigos e interesses ( Carrieri et al., 2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. ). Do mesmo modo, há infinitas possibilidades, por meio das maneiras de fazer, de pensar e de resistir ( Carrieri et al., 2018Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Martins, P. G., Aguiar, A. R. C. (2018). A Gestão Ordinária e suas Práticas: O Caso da Cafeteria Will Coffee. Revista de Contabilidade e Organizações, 12(1), 1-13. ), pois o cotidiano é constituído pela riqueza das ações dos praticantes ( Junquilho et al., 2012Junquilho, G. S., Almeida, R. A., Silva, A. R. L. (2012). As "artes do fazer" gestão na escola pública: uma proposta de estudo. Cad. EBAPE.BR, 10(2), 329-356. ).

Um aspecto relevante para o CEPA, no que diz respeito à prática de planejamento, é a importância da memória organizacional. Mesmo que essa memória possa ser acessada por meio de documentos e processos que podem ser revisitados, também é observada a importância das experiências passadas, recorrentemente solicitadas nas reuniões da organização, conforme observado nas observações participantes. Também pudemos perceber que a visão de longo prazo do CEPA geralmente está determinada em, no máximo, um ano, pois a maioria dos projetos têm esse prazo de execução, o que não exclui a possibilidade de certas ações, promovidas por determinados editais, serem continuadas por mais tempo.

Nesse sentido, as narrativas sobre a prática em questão nos levam a perceber que a prática de planejamento e a prática de elaboração de projetos são fortemente interligadas. Essa articulação acontece porque o planejamento de toda a organização é delimitado pelos projetos sociais financiadores que impõem estratégias ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) e uma “lógica de ação” ( Certeau, 1985Certeau, M. (1985). Teoria e método no estudo das práticas cotidianas. In: Szmrecsanyi, M. I. Q. F. (Org.), Cotidiano, cultura popular e planejamento urbano (pp. 3-17). São Paulo: FAU/USP. ) particular. Ou seja, o planejamento começa a ser desenvolvido a partir da elaboração dos projetos e se estende aos(às) outros(as) profissionais, quando da sua aprovação.

Porém, a equipe diretoria/coordenação está começando a desenvolver planejamentos para dois anos ou mais. Acreditamos que esse processo está sendo desenvolvido pela maior confiança que a equipe está dando ao seu trabalho, bem como é fruto das devolutivas de avaliações promissoras dos financiadores que impulsionam a equipe a buscar desafios maiores, inclusive com concorrência em projetos plurianuais (Diário de Campo, 2020).

Também percebemos um planejamento em nível micro, ou seja, realizado por cada profissional que faz parte do CEPA. Observamos que, para cada profissional, existe uma maneira de fazer própria que está relacionada tanto com suas experiências práticas vivenciadas ao longo do tempo quanto ao seu saber/fazer. Portanto, as maneiras de fazer acontecem de forma diferente a depender da área de atuação do(a) profissional, da sua experiência e da sua formação.

Ainda em nível micro, tivemos acesso à estratégia de elaboração de plano de ação apontada pela Entrevistada 5 (2020). Esse documento é solicitado pela coordenação/diretoria aos(às) educadores(as), sempre no começo do desenvolvimento dos projetos aprovados. O plano de ação contempla o planejamento individual de cada educador(a) referente às atividades que irá desenvolver para atingir as metas dos projetos, para pensar como essas atividades serão colocadas em prática e para analisar os artefatos materiais necessários à realização do plano (Diário de Campo, 2020). Esse documento não é fechado, pois ao longo do tempo ele vai sofrendo modificações a depender da execução do projeto, que é acompanhada pela coordenação/diretoria nas reuniões de planejamento mensal.

Segundo a narrativa da Entrevistada 3, percebemos que a prática de prestação de contas, ao mesmo tempo que está interligada com a prática de elaboração de projetos, se caracteriza como uma estratégia advinda dos financiadores e órgãos de contabilidade, pois precisa atender aos requisitos mínimos da Lei nº 13.019/2014 (Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil [MROSC], 2014). Nessa prática, a profissional segue a forma imposta pela lei, não cabendo nenhuma tática possível.

Ao mesmo tempo, observamos que a Entrevistada 7 (2021), por possuir um lugar praticado ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) enquanto cozinheira do CEPA, que advém do seu saber/fazer, tem um planejamento cotidiano que leva em consideração a dinâmica ordinária da sua tarefa, e é aceita sem muitos questionamentos pela equipe de coordenação, com quem mantém uma relação de poder/saber ( Foucault, 1992Foucault, M. (1992). Microfísica do poder. (10ª ed.) Rio de Janeiro: Graal. , 2006Foucault, M. (2006) Estratégia, Poder-Saber. In: Mota, M. B. (Org.), Ditos e Escritos IV (2ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. ) específica, relacionada ao seu saber/fazer cozinhar.

Prática de reuniões

Uma das reuniões observadas foi a reunião de planejamento com a equipe de coordenação/diretoria. Participam dessa reunião conjunta, entre coordenação e diretoria, as coordenadoras pedagógica e financeira, o pedagogo, a psicóloga, a assistente social, a técnica administrativa, o presidente, a tesoureira, o educador de informática e, algumas vezes, uma integrante do conselho fiscal (Diário de Campo, 2020).

A dinâmica das reuniões de planejamento da equipe de coordenação/diretoria acontece da seguinte maneira: os(as) profissionais vão, de forma natural, elencando pontos de pauta que acham importantes a serem debatidos na reunião e sinalizam no grupo do WhatsApp do CEPA. Comumente, o presidente da instituição coloca uma mensagem de lembrete da reunião, um dia antes, já com alguns pontos que foram colhidos ou que ainda precisam ser debatidos de reuniões anteriores. E as outras pessoas sinalizam se têm mais algum ponto.

As reuniões acontecem nas terças-feiras, a partir das 19h30, sem uma hora específica para terminar, durando em torno de 3 horas. No momento da reunião observamos que o presidente e a coordenadora pedagógica são as pessoas que coordenam, muitas vezes, em paralelo. Depois das boas-vindas e da espera pela entrada dos(as) participantes na sala do Google Meet (em torno de 10 minutos), é lançado o primeiro ponto de pauta para discussão. Assim, o profissional que elencou o ponto de pauta é convidado a iniciar e falar sobre o que se trata, para depois abrir para que os(as) outros(as) participantes deem sua opinião. São lançadas as ideias, sugestões e argumentos sobre o assunto por cada profissional que se sentir confortável, mas é muito comum que todos(as) contribuam, até se chegar a alguma ação que a entidade precisa resolver. Essa ação é sempre demandada para alguém desempenhar.

Percebemos que alguns assuntos/demandas não conseguem ser resolvidos em apenas uma reunião. Então, depois de se chegar à ação a ser realizada naquela semana, o ponto de pauta é debatido novamente na próxima reunião para se saber o que avançou e o que precisa continuar a ser feito. Nessa prática, observamos que, algumas vezes, faz-se necessária uma intencionalidade voltada a atender alguma exigência do financiador; outras vezes é necessário atender aos princípios da entidade, levando a elaboração de táticas a alguma imposição. Constatamos que a ampla participação dos(as) educadores(as) e a coletividade são elementos importantes nessa prática, permitindo a execução de “bricolagens” ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

Uma característica comum na prática de reunião da coordenação é que sempre há explanação de algum ponto que está fora dos pontos de pauta elencados anteriormente. Ou seja, mesmo numa prática em que há um padrão a ser seguido, estipulado pela própria organização, podemos observar uma dinamicidade presente de acordo com a necessidade, ou seja, outras formas de consumo ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

A reunião de planejamento com os educadores, por sua vez, tem o objetivo de alinhar algumas questões com estes profissionais. Antes da pandemia ela acontecia mensalmente, durante uma manhã ou tarde inteiras. No período da pandemia, esse tipo de reunião acabou não acontecendo com muita frequência por causa, principalmente, da suspensão das atividades de ensino. Quando se fala em educadores(as), é preciso abranger todos(as) os(as) profissionais do CEPA, pois a ideia de educação popular aconselha que todos(as), independente da sua função, desempenhem o educar de alguma maneira.

Nessas reuniões, a equipe de coordenação/diretoria repassa e discute questões relacionadas às metas dos projetos, às atividades desenvolvidas, à articulação com outras OSCs e com oficinas diferentes. Repassam informações importantes, bem como os(as) educadores(as) apresentam seu planejamento mensal, possíveis dificuldades que estão enfrentando, ideias e sugestões que pensam em fazer, entre outras questões. Essa é uma prática em que todos(as) têm a oportunidade de explanar suas ideias e ajudar a pensar o planejamento do CEPA.

Um ponto observado, que nos chamou a atenção, é que essas reuniões com educadores(as), em meio à pandemia, tiveram uma preocupação maior, por parte da equipe de coordenação/diretoria, em saber como eles(as) estavam se sentindo. Existe um cuidado com o(a) outro(a), mais do que, simplesmente, saber sobre questões relacionadas às atividades que eles(as) desenvolvem na organização. Esse é um ponto importante, pois essa atitude vai ao encontro da ideia da educação popular freiriana, que é base fundante da entidade, e nos faz refletir que a racionalidade empregada na entidade se distancia daquela que busca maximização de recursos e processos, reforçando o que diz Carrieri et al. (2014Carrieri, A. P., Perdigão, D. A., Aguiar, A. R. C. (2014). A gestão ordinária dos pequenos negócios: outro olhar sobre a gestão em estudos organizacionais. Revista de Administração, 49(4), 698-713. , p. 700), quando apontam que a gestão ordinária é constituída por uma “[...] pluralidade de códigos, referências, interesses pessoais e relacionais”; e não, simplesmente, por uma reprodução acrítica de ferramentas, muitas vezes pensadas em outros contextos e, mais especificamente, objetivadas para resultados monetários.

A reunião de formação continuada também acontecia mensalmente. Nela, o objetivo era discutir algum tema específico como forma de aperfeiçoamento de todos(as) os(as) profissionais do CEPA, considerando a ideia de que todos(as) são educadores(as). Com a pandemia, a prática passou a acontecer de forma remota por meio do Google Meet, o que possibilitou ampliar o público, com a participação de outras pessoas que fazem parte de uma rede de OSCs, pessoas simpatizantes e profissionais de diversas localidades, não somente nacional, mas também internacional.

Normalmente, as pessoas responsáveis pela execução da reunião de formação continuada são a coordenadora pedagógica e o pedagogo. Eles, conjuntamente, elencam os temas a serem trabalhados, seja por causa dos projetos financiados ou pelas sugestões dos(as) demais nas outras reuniões. Nessa prática, o que pudemos perceber é que sempre é almejada a possibilidade de trazer pessoas convidadas para debater sobre os temas sugeridos. Entretanto, também é projetada a possibilidade de a própria equipe liderar a reunião com a discussão de algum ponto de interesse do grupo para poder compartilhar sua experiência e seu conhecimento. Desse modo, percebemos a possibilidade de criação de espaços praticados ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), uma vez que há a possibilidade daqueles(as) profissionais, que não naturalmente ocupam um lugar próprio, de criarem seu espaço, mesmo que de forma temporária, pois os sujeitos ora podem estar em lugares próprios, ora nos espaços de transgressões ( Machado et al., 2017Machado, F. C. L., Fernandes, T. A., & Silva, A. R. L. (2017). Michel de Certeau e Estudos Organizacionais: uma leitura do cenário brasileiro. Caderno de Administração, 25(2), 24-43. ).

Outro tipo de reunião possível é a do curso formativo oferecido pelo edital do financiador. Reuniões semanais aconteceram de forma presencial. O convite para a participação se estendeu para todos(as) os(as) profissionais do CEPA que podiam se deslocar e não estavam no grupo de risco, no momento da pandemia. As reuniões aconteceram na parte da manhã em forma de roda de conversa, em que era apresentada, via projetor, a atividade que precisaria ser executada. Nessa prática, observamos um maior protagonismo do educador de informática, uma vez que o curso utilizou ferramentas on-line , sendo ele a pessoa com mais expertise nessa área. Ao mesmo tempo, ele foi encarregado de explicar o curso, como funcionariam as atividades e como entregá-las.

Ao longo das reuniões, observamos a abertura dada aos participantes em sugerir ideias, de como fazer determinada atividade. Foram discutidas as articulações com as práticas dos(as) educadores(as), como poderiam usá-las para responder a alguma demanda do curso. Portanto, a perspectiva da gestão compartilhada e da coletividade se fizeram presentes também nessas reuniões. Ao final da reunião, eram demandadas as atividades que cada um(a) deveria fazer e trazer no próximo encontro. Percebemos que a coordenadora pedagógica sempre procurava explicar, ou até mesmo ouvir as outras pessoas que não estavam na reunião, e que mesmo sofrendo imposições de data de entrega das atividades, a gestão prioriza mais o processo do que propriamente o resultado em si. De todo modo, ressaltamos que, mesmo assim, a organização precisa se adequar aos prazos estipulados para entrega das demandas, estratégia ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) utilizada pelos financiadores.

Outra observação é que as atividades planejadas quase sempre não eram finalizadas na reunião correspondente. Sempre ficava algum ajuste para fazer no encontro posterior e, algumas vezes, isso gerava a situação de primeiro tentar finalizar a atividade anterior para prosseguir com a próxima atividade, gerando alguns atrasos nas datas internas de execução da atividade (Diário de Campo, 2020). Ademais, também era comum a explanação de algo que não fazia parte específica do encontro, mas que era aproveitado o momento para o debate. Também observamos essa característica nas reuniões de planejamento abordadas anteriormente.

Ao longo das observações feitas nessas reuniões em particular, a coordenadora financeira expressou seu sentimento de desconforto em relação à pouca participação dos(as) profissionais do CEPA, educadores(as) e pessoas que ocupam a posição de apoio à equipe de coordenação/diretoria. Nesta ocasião, pudemos observar o que Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. chama de lugar. Ou seja, a coordenadora financeira ocupa um “lugar próprio” na estrutura da organização e faz parte da sua função esse tipo de atividade de captação de recursos e elaboração de projetos. Pressupomos que, possivelmente, os(as) outros(as) profissionais, por não ocuparem esse lugar próprio, não sentem a necessidade de desempenhar essa função.

Prática de participação nos conselhos de direito

O CEPA possui assento no Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente (COMDICA) e no Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS), ambos de âmbito municipal, nos quais as relações são repletas de disputas de poder. Isso ficou evidente quando a coordenadora financeira, ao socializar as questões debatidas em uma reunião de um dos conselhos, relatou que, diante do atraso do repasse de recursos mensais dos projetos financiados por meio do fundo do conselho, um dos conselheiros argumentou que a prefeitura tinha outras prioridades no momento de pandemia.

Esse depoimento gerou discussão na reunião do CEPA e o presidente chegou a dizer que “[...] é preciso militância, luta. Não se pode baixar a cabeça, principalmente agora. Diz que algum ajuste será preciso fazer (por parte da prefeitura), mas não um corte dessa maneira (deixar de repassar o recurso). Por isso é preciso luta” (Diário de Campo, 2020). Logo, podemos constatar que, além das dinâmicas internas, o trabalho das OSCs precisa resistir às questões de cunho externo, como as imposições feitas pelos editais públicos de cada financiador e as imposições dos órgãos governamentais e dos conselhos de direito, por exemplo.

Em relação às estratégias ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) do CEPA nessa prática, identificamos que a organização tende a pressionar a prefeitura municipal por meio do Ministério Público, para tentar minimizar essa relação desigual perante o conselho. Ao mesmo tempo, também perceberam que é importante se articular com outras OSCs (Diário de Campo, 2020).

Outro ponto importante observado na prática é que as relações com os conselhos de direito são muito relevantes para a gestão do CEPA, pois é a partir delas que muitas decisões são tomadas. Aqui observamos o que Certeau (1998)Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. conceitua como “produção e consumo”, uma vez que o conselho ocupa o lugar de produção, por ser uma instância de poder legitimada, ou seja, por ser o principal órgão de fiscalização do trabalho das OSCs. Essas entidades podem até fazer o consumo ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) dessas imposições de formas diferentes, mas desde que consigam suprir as exigências impostas.

Prática de cozinhar e limpar

Essas práticas acontecem com um planejamento próprio das responsáveis pelas atividades de organização, limpeza e preparação dos alimentos no CEPA. O cardápio, compreendido como estratégia ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ), é elaborado por uma profissional especializada em nutrição, externa à organização. Contudo, observamos que a cozinheira pode se utilizar de táticas e, algumas vezes, estratégias certeaunianas.

Ao narrar o seu cotidiano no CEPA, a Entrevistada 7 (2021) relata que gosta de se planejar de acordo com as demandas da organização e que esse planejamento é realizado de acordo com a sua percepção “na cabeça”, e não é algo fechado ou já posto. Ela declara que o processo mais formal da sua função diz respeito ao cardápio elaborado por uma nutricionista em que a entidade se apoia para oferecer uma alimentação saudável para os(as) educandos(as). Porém, observamos que, nesse processo, a entrevistada utiliza várias ações que indicam possíveis táticas, pois, às vezes, há a necessidade de mudar o planejamento do cardápio a depender das doações que recebem, semanalmente, de uma entidade pública municipal.

Entendemos que, a depender dos alimentos que são recebidos na doação, a alimentação do dia muda, pois a Entrevistada 7 (2021) nos disse: “[...] como a gente recebe doação, às vezes, vem coisa que a gente tem que dar logo pra não estragar. Aí eu aviso que eu não vou fazer aquela merenda [do cardápio] porque tem fruta ou outro alimento que chega [na doação] ”. Em outros termos, a entrevistada mobiliza uma tática, pelo fato de que, somente naquele momento em que chega a doação, é que ela observa o que tem que ser usado rápido, e então ela que decide o que pode ser feito. Essa decisão também corresponde ao seu saber/fazer prático, enquanto dona de casa, e é essencial para a gestão do cotidiano da organização, de modo que evite desperdícios.

Dessa forma, enxergamos a utilização de táticas pela cozinheira quando ela “improvisa” de acordo com o tipo de alimento que foi doado, seja no preparo de alguma refeição ou na elaboração de um cardápio novo que vem da sua inventividade “artesanal” ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ) e da sua experiência prática, inclusive como dona de casa e mãe. Neste sentido, também é possível associar a sua tática ao conceito de bricolagem ( Certeau, 1998Certeau, M. (1998). A invenção do cotidiano 1: artes de fazer. (3ª ed.) Petrópolis, RJ: Vozes. ).

A partir dos relatos, percebemos a existência de uma hierarquia de poder entre a cozinheira (Entrevistada 7, 2021) e a nova auxiliar de serviços gerais, que chegou para ocupar a vaga deixada pela primeira ao ocupar a função de cozinheira. A Entrevistada 7 (2021) foi responsável por ensinar e instruir o trabalho da nova colaboradora a partir da forma como desenvolvia essa função anteriormente, repassando todo o saber/fazer que adquiriu ao longo de sua vasta experiência no CEPA.

Ao ser questionada sobre como aprendeu seu saber/fazer relacionado à cozinha e/ou se houve algum treinamento oferecido pela entidade, a Entrevistada 7 (2021) contou que, quando realizava serviços gerais, ajudava muito a cozinheira antiga, que já não trabalha mais na organização, e observava tudo que ela fazia. Desse modo, percebemos que quando a Entrevistada 7 (2021) ocupava a função de serviços gerais, a relação de poder/saber entre a antiga cozinheira e ela acontecia de modo similar ao que acontece atualmente, com a nova colaboradora. A Entrevistada 7 (2021) reconhecia o “lugar próprio” que a cozinheira anterior ocupava e se utilizava desse reconhecimento para aprender sobre novas atividades e/ou aperfeiçoar seu saber/fazer. Aparentemente, a manutenção dessas hierarquias ou relações de poder/saber são importantes na constituição da gestão ordinária do CEPA.

Conclusões

Por meio da presente pesquisa foi possível demonstrar como a noção de cotidiano de Michel de Certeau pode ser útil para a compreensão da gestão ordinária em organizações da sociedade civil. Identificamos sete práticas que constituem a gestão ordinária da organização estudada, a saber: prática de elaboração de projetos sociais; prática de ensino, desmembrada em prática de educação infantil e prática de oficinas ou arte-educação; prática de visita domiciliar; prática de planejamento; prática de reuniões, desmembrada em reuniões de planejamento com a equipe de coordenação/diretoria, reunião de planejamento com os(as) educadores(as) e reunião de formação continuada; prática de participação nos conselhos de direito; e prática de cozinhar e limpar. Estas práticas estão interligadas, na medida, por exemplo, que o planejamento ou o conteúdo de certas reuniões é decidido em função do projeto de financiamento, ou quando o planejamento é feito a partir dos dados coletados com a visita domiciliar.

Importantes pistas para a visualização de estratégias que constituem a gestão ordinária da OSC foram identificadas ao longo da análise, tais como: as exigências de órgãos financiadores por meio de editais; as tarefas que educadores(as) determinam aos estudantes, com objetivos educacionais diversos; o script das visitas domiciliares; a exigência da coordenação relativa à elaboração de plano de ação individual pelos(as) educadores(as); e a elaboração de cardápio para os estudantes.

Pistas que permitem vislumbrar e compreender táticas importantes na gestão da OSC também foram percebidas nas narrativas acessadas, como, por exemplo: a utilização de recursos educacionais que vão de encontro à lógica educacional cognitivista, como as conversas com os(as) estudantes sobre o cotidiano deles(as); o uso criativo de equipamentos na aula de capoeira; as “brechas” encontradas pelos(as) educadores(as) diante das exigências dos editais; o cuidado com os(as) educadores(as), que se distancia de uma racionalidade instrumental; a reelaboração do cardápio de acordo com as doações feitas. Importante ressaltar que a classificação das maneiras de fazer relacionadas tanto às estratégias quanto às táticas certeaunianas frequentemente se imbricam no cotidiano, fazendo com que uma classificação estrita nem sempre seja possível.

A bricolagem é uma constante no desenvolvimento dessas táticas, e fica evidente em vários momentos, como, por exemplo, no “manejo” do mestre e educador de capoeira ao lidar com turmas grandes; nas diferentes intencionalidades (dos órgãos financiadores, dos estudantes, dos educadores etc.) consideradas na reunião de planejamento macro organizacional; na prática de cozinhar, que se mescla com os saberes da dona de casa e mãe etc.

A delimitação dos lugares e espaços na organização se mostrou elemento fundamental na distribuição de papeis, bem como na definição de significações identitárias e culturais, a exemplo da prática de reuniões, nas quais muitos(as) educadores(as) e colaboradores(as) de apoio não participaram; ou na prática de visita domiciliar, na qual o lugar da OSC na comunidade é expresso por meio da roupa padrão utilizada pelos(as) educadores(as), lhes conferindo certa segurança.

Também concluímos que as principais bases fundantes da gestão ordinária na OSC são a educação popular e a gestão compartilhada. Acreditamos que, por meio da gestão ordinária, é possível perceber como e de que forma essas premissas da OSC são aplicadas no cotidiano. Conflitos, relações de poder e hierarquias organizacionais também foram observadas como componentes importantes da gestão ordinária da OSC. Acreditamos que a memória organizacional, importante componente da prática de planejamento, também exerce importante papel na manutenção de certas relações de poder e hierarquias que caracterizam a gestão ordinária da OSC.

Por fim, ressaltamos que não conseguimos acessar algumas práticas citadas nas narrativas, como: as doações e a matrícula, principalmente devido à situação de pandemia. Como sugestão para trabalhos futuros, sugerimos que estudos sobre o cotidiano ordinário e seus modos de gestão também sejam realizados em outros tipos de organização, como públicas e empresariais, e junto a outros sujeitos que estão à margem dos estudos tradicionais.

Agradecimentos

Os autores agradecem os comentários feitos pelos avaliadores anônimos da Revista O&S, que contribuíram para o melhoramento do projeto inicial deste artigo. Também agradecem o apoio institucional do Centro Acadêmico do Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (CAA/UFPE) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Editora Associada: Letícia Dias Fantinel

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2024

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2023
  • Aceito
    16 Set 2023
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