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Violência Sexual e Aborto Legal: Possibilidades e Desafios da Atuação Psicológica

Sexual Offence and Legal Abortion: Opportunities and Challenges from Psychological Working

Violencia Sexual y Aborto Legal: Posibilidades y Desafíos de la Atención Psicológica

Resumo

A violência sexual e o aborto legal são temas tabus em nossa sociedade. No campo da saúde, a(o) psicóloga(o) atua em fases distintas, seja na avaliação psicológica do pedido pelo aborto legal, que culminará ou não em sua aquiescência; seja no momento posterior à solicitação, no atendimento em enfermarias ou ambulatorial. Partindo de relato de experiência, este artigo tem como objetivo refletir sobre as possibilidades e desafios da atuação psicológica no atendimento em saúde para pessoas em situação de gestação decorrente de violência sexual e que buscam pelo aborto legal. Para tanto, dividimos o artigo em três momentos. No primeiro deles, será possível encontrar dados conceituais, estatísticos e históricos sobre ambos os temas, trazendo recortes nacionais e internacionais. No segundo, trazemos apontamentos sobre o que chamamos de “eixos norteadores”, ou seja, dialogamos com aspectos fundamentais para o trabalho nesta seara, sendo eles gênero, família, sexualidade e trauma. Por fim, no terceiro, aprofundamos a reflexão sobre o atendimento psicológico atrelado aos conceitos já discutidos, analisando de forma crítica principalmente um dos pontos mais espinhosos da atuação: a avaliação para aprovação (ou recusa) do pedido pelo aborto. Apoiamo-nos no referencial psicanalítico e defendemos que esta atuação psicológica é primordialmente uma oferta de cuidado, comprometido com as demandas das pessoas atendidas e com a promoção de saúde mental, e consideramos que o papel da psicologia é essencial para o reconhecimento do sofrimento e dos efeitos do abandono socioinstitucional na vida do público atendido.

Palavras-chave:
Violência Sexual; Aborto Legal; Psicologia; Saúde

Abstract

Sexual abuse and legal abortion are taboo subjects in our society. On the health area, the psychologist works on different fields, such as psychological evaluation from the request of legal abortion, that will end or not on its approval, and also in a further moment, either the care on wards or ambulatorial treatment. Relying on a case report, this article aims to contemplate the possibilities and challenges from psychological work on healthcare to pregnant women from sexual violence and seek legal abortion. For this purpose, we divide this article in three moments. On the first, it will find definitions, statistics, and historical data about both issues, including national and international information. On the second, we bring notes called ‘guiding pillar,’ that is, we interact with fundamental aspects from this area, such as gender, family, sexuality, and trauma. On the third one, in-depth discussions we dwell on psychological care tied to the concepts previously addressed, critically analyzing one of the hardest moments of working in this area: the evaluation to approve (or refuse) the request for abortion. We lean over psychoanalytic thoughts and argue that this psychological work is primarily an offer of care, committed to the needs from those who seek us and to promoting good mental health and, also, we consider that psychology is essential to acknowledge the suffering and the effects of social and institutional neglect on the lives of the people seen.

Keywords:
Sex Offenses; Legal Abortion; Psychology; Health

Resumen

La violencia sexual y el aborto son temas tabús en nuestra sociedad. En el campo de la salud, el(la) psicólogo(a) actúa en diferentes fases: en la evaluación psicológica de la solicitud del aborto legal, que culminará o no en su obtención, y/o en el momento posterior a la solicitud en la atención en enfermería o ambulatorio. Desde un reporte de experiencia, este artículo pretende reflexionar sobre las posibilidades y los desafíos de la Psicología en la atención en salud para personas en estado de embarazo producto de violencia sexual y que buscan un aborto legal. Para ello, este artículo está dividido en tres momentos. En el primer, presenta datos conceptuales, estadísticos e históricos sobre los dos temas, trayendo recortes nacionales e internacionales. En el segundo, comenta los llamados “ejes temáticos”, es decir, se establece un diálogo con aspectos fundamentales para el trabajo en este ámbito, como género, familia, sexualidad y trauma. Por último, en el tercer, profundiza en la reflexión sobre la atención psicológica asociada a los conceptos discutidos, analizando de forma crítica uno de los puntos más espinosos de la actuación: la evaluación para la aprobación (o negativa) de la solicitud de aborto. Se utilizó el referencial psicoanalítico y se argumenta que esta atención psicológica es sobre todo una forma de cuidado, comprometida con las demandas de las personas atendidas y la promoción de la salud mental, y el papel de la Psicología es esencial para reconocer el sufrimiento y los efectos del abandono socioinstitucional en la vida del público atendido.

Palabras clave:
Delitos Sexuales, Aborto Legal, Psicología; Salud

Considerações iniciais

No Brasil, por determinação do Ministério da Saúde, quando alguém solicita aborto legal em gestação decorrente de estupro, essa pessoa precisar ser atendida por uma equipe de profissionais - incluindo a(o) psicóloga(o) - que, mediante um processo de avaliação, deve acatar ou não sua solicitação. As normativas de saúde também orientam quanto ao fornecimento de atendimento acolhedor, humanitário, não pericial; a escuta qualificada e sem julgamentos; a informação sobre os direitos, incluindo a não obrigatoriedade do Boletim de Ocorrência e/ou alvará judicial (Ministério da Saúde, 2011aMinistério da Saúde. (2011a). Atenção humanizada ao abortamento: Norma técnica (2a ed.) https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Repositorio/41/Documentos/atencao_humanizada_abortamento_norma_tecnica_2ed.pdf
https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/R...
, 2011bMinistério da Saúde. (2011b). Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual: Perguntas e respostas para profissionais de saúde (2a ed.). https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/aspectos_juridicos_atendimento_vitimas_violencia_2ed.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, 2012Ministério da Saúde. (2012). Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: Norma técnica. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
).

Refletir sobre o trabalho da psicologia neste contexto é também pensar nas (im)possibilidades de atuação, considerando que tanto as mulheres quanto as profissionais “estão submetidas ao lugar que o aborto ocupa no conjunto das instituições sociais que temos . . . lugar de altíssima tensão” (Martino, 2022Martino, M. K. (2022). Violência sexual contra mulheres e discursos sobre aborto legal. Juruá. , p. 207).

Este artigo, desta forma, partiu do trabalho realizado por psicólogas em um serviço de saúde referência para atendimento a pessoas em situação de violência sexual e aborto legal. Apoiadas na psicanálise, nosso objetivo é trazer reflexões críticas sobre a atuação psicológica neste contexto, considerando que tratamos de dois campos amplos e complexos e, diante disto, não temos a pretensão de esgotar temas tão sensíveis.

Para realizar tal discussão, pretendemos organizar o texto em três partes. Na primeira, são expostos dados conceituais, históricos e estatísticos para contextualizar os temas. Em seguida, apoiamo-nos em eixos norteadores, com conceitos que consideramos cruciais para a prática clínica nesta seara. Na terceira parte apresentamos algumas articulações entre os tópicos abordados ao longo do artigo e a atuação psicológica.

Quanto aos aspectos éticos, cabe ressaltar que o sigilo e a confidencialidade são mantidos ao longo de todo o texto, sendo que quaisquer dados que pudessem identificar pessoas ou locais foram alterados.

Por fim, partiremos para um apontamento relacionado à escolha que fizemos sobre o termo utilizado para nos referir à clientela. O(a) leitor(a) encontrará nomenclaturas diferentes, como mulher, menina, adolescente, pessoa, paciente. Essa escolha, intencional, procurou abarcar a multiplicidade de pessoas que buscam o atendimento. Apontamos, neste sentido, a importância de que mais estudos se debrucem sobre o atendimento a homens transexuais, por exemplo, que podem necessitar deste tipo de serviço (Angonese & Lago, 2017Angonese, M., & Lago, M. C. S. (2017). Direitos e saúde reprodutiva para a população de travesti e transexuais: Abjeção esterilidade simbólica. Saúde e Sociedade, 26(1), 256-270. https://doi.org/10.1590/S0104-12902017157712
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201715...
).

Violência sexual e aborto legal: contextualizações

Neste item, inicialmente, o(a) leitor(a) encontrará dados sobre a violência sexual e, posteriormente, sobre o aborto. Em ambos, será possível localizar alguns conceitos, dados estatísticos e marcos históricos que circundam os temas.

Violência

A Organização Mundial da Saúde (OMS), desde a década de 1990, define violência como “uso intencional de força física ou poder, real ou ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulta ou pode resultar em prejuízo, morte, dano psicológico, deficiência no desenvolvimento ou privação” (Coelho et al., 2014Coelho, E. B. S., Silva, A. C. L. G., & Lindner, S. R. (Orgs.). (2014). Violência: Definições e tipologias. Universidade Federal de Santa Catarina. https://ares.unasus.gov.br/acervo/html/ARES/1862/1/Definicoes_Tipologias.pdf
https://ares.unasus.gov.br/acervo/html/A...
; World Health Organization [WHO], 2002World Health Organization. (2002). World report on violence and health. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
, p. 5). Note-se que este conceito traz uma visão ampliada do que se entende por violência, considerando diferentes tipos, consequências e intensidades de danos.

As pesquisadoras Minayo e Souza (1998Minayo, M. C. S., & Souza, E. R. (1998). Violência e Saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 4(3), 513-531. https://www.scielo.br/j/hcsm/a/S9RRyMW6Ms56S9CzkdGKvmK/?format=pdf⟨=pt.
https://www.scielo.br/j/hcsm/a/S9RRyMW6M...
) explicam que a partir de discussões internacionais e intersetoriais, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), também na década de 90, passou a reconhecer a violência como um problema de saúde pública, necessitando, deste modo, de ações e atuação no campo da prevenção, promoção e reabilitação em saúde.

Aproximando-se da questão de violência contra a mulher, tomamos a conceituação de Marilena Chauí (1985Chauí, M. (1985). Participando do debate sobre mulher e violência. In B. Franchietto, M. L. V. C. Cavalcanti, & M. L. Heilborn (Orgs.), Perspectivas antropológicas da mulher 4 (pp. 23-62). Zahar. ) sobre dois aspectos. Em primeiro plano, violência pode ser entendida como uma transformação de diferenças em desigualdades e na relação de superioridade e inferioridade. Em segundo plano, a violência é estudada como a ação que silencia o(a) outro(a), procurando colocá-lo(a) em posição de passividade e inércia, objetificando-o(a), portanto. A autora reflete sobre a importância de serem analisados aspectos que envolvem as classes sociais e as relações interpessoais no contexto da violência. Isso implica pensarmos quais corpos estão mais ou menos suscetíveis à violência, reconhecendo a vulnerabilidade de gênero e os marcadores sociais como classe, raça, faixa etária, entre outros.

Violência sexual contra a mulher: definições e marcos históricos

Entre as décadas de 1940 e 1990 foram realizadas, pela Organização das Nações Unidas (ONU), Conferências e Convenções Mundiais que buscavam discutir temas essenciais à vida humana, incluindo aspectos fundamentais às mulheres. A partir dos anos 1970, estes encontros pautaram as formas de violência contra as mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos, tais como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, 1979), a III Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Belém do Pará, 1994) e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995), que incluem a questão do aborto. Cabe ressaltar que, anteriormente, a ótica da segurança pública era preponderante para o entendimento da violência contra a mulher, havendo mudança de paradigma na década de 1970, quando estudos e discussões trouxeram à tona o caráter multissetorial e interdisciplinar da violência sexual, permitindo sua compreensão a partir da saúde. O Brasil, enquanto signatário de tais Conferências e Convenções Mundiais, assume o compromisso de segui-las por meio de ações e estratégias que combatam a violência contra a mulher e assegurem seus direitos (Melo & Melo, 2016Melo, V. H., & Melo, E. M. (2016). Para elas. Ministério da Saúde; Núcleo de Promoção de Saúde e Paz/UFMG. ).

A OMS demonstra abrangência em seu entendimento, definindo violência sexual como:

qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou investidas sexuais indesejadas, ou atos direcionados ao tráfico sexual ou, de alguma forma, voltados contra a sexualidade de uma pessoa usando a coação, praticados por qualquer pessoa independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer cenário, inclusive em casa e no trabalho, mas não limitado a eles (WHO, 2002World Health Organization. (2002). World report on violence and health. World Health Organization. https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42495/9241545615_eng.pdf
https://apps.who.int/iris/bitstream/hand...
, p. 149).

No campo jurídico, diversas legislações tratam direta ou indiretamente do assunto. Temos, como exemplo, o Código Penal de 1940 com a definição de estupro, que sofreu alterações e ampliação dos conceitos em 2009. Em 2006, destacamos a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Esta legislação, considerada a terceira melhor lei do mundo sobre o tema, reconheceu a magnitude da violência na vida sexual e reprodutiva das mulheres em âmbito doméstico e familiar (Decreto-Lei nº 2.848, 1940Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. (1940, 7 de dezembro). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
; Dias, 2015Dias, E. (2015, fevereiro). Lei Maria da Penha: A terceira melhor lei do mundo. Jus.com.br. https://jus.com.br/artigos/36178/lei-maria-da-penha-a-terceira-melhor-lei-do-mundo
https://jus.com.br/artigos/36178/lei-mar...
; Lei nº 11.340, 2006Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. (2006, 7 de agosto). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
).

Estatísticas e consequências da violência sexual

As estatísticas nacionais e mundiais da violência sexual são consideradas alarmantes. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estudo que reúne os dados da violência sexual a nível nacional, mostra que, no ano de 2021, 88,2% das vítimas são do sexo feminino; 53,1% das vítimas são pretas, pardas ou indígenas; o agressor é alguém conhecido em 8 a cada 10 casos; e 61,3% das vítimas têm até 13 anos de idade. Estes dados vão ao encontro dos achados em anos anteriores e, apesar dos altos números nos registros, há considerável subnotificação dos casos (Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], 2022Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2022). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 16. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
). Outro dado relevante mostra que 96,3% dos autores de violência sexual são do sexo masculino (FBSP, 2019Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2019). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, 13. https://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf
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).

Considerando o contexto da pandemia de covid-19, durante os primeiros meses, entre março e maio de 2020, houve diminuição no número de registros de violência sexual no país. A principal hipótese relaciona-se ao problema da subnotificação, possivelmente vinculado às dificuldades de acesso aos serviços de segurança pública e saúde durante a pandemia. Neste mesmo sentido, pesquisas realizadas entre os anos de 2020 e 2021 apontaram para o aumento das dificuldades para se realizar a denúncia (FBSP, 2021Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2021). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, 15. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/10/anuario-15-completo-v7-251021.pdf
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
; “Pandemia dificulta denúncia”, 2020Pandemia dificulta denúncia de violência sexual contra crianças e adolescentes no Estado de São Paulo, revela relatório. (2020, 2 de dezembro). Unicef.org. https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/pandemia-dificulta-denuncia-de-violencia-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-em-sp
https://www.unicef.org/brazil/comunicado...
). Outros estudos publicados em 2021, mostram acréscimo no número de notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, embora estas notificações tenham sido realizadas tardiamente (Laudares, 2021Laudares, R. (2021, 18 de maio). Com pandemia, denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes crescem, mas são feitas de forma tardia. G1. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2021/05/18/com-pandemia-denuncias-de-abuso-sexual-contra-criancas-e-adolescentes-crescem-mas-sao-feitas-de-forma-tardia.ghtml
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/notici...
; Prefeitura do Rio de Janeiro, 2021Prefeitura do Rio de Janeiro (2021, 18 de maio). Pandemia aumentou em 50% denúncias de violência contra crianças e adolescentes. https://prefeitura.rio/assistencia-social-direitos-humanos/pandemia-aumentou-em-50-denuncias-de-violencia-contra-criancas-e-adolescentes/
https://prefeitura.rio/assistencia-socia...
).

As consequências dessa violência são inúmeras. Podemos destacar diversos prejuízos e traumas, como Transtorno de Estresse Pós Traumático; tentativa ou consumação do suicídio; depressão; transtornos alimentares, de ansiedade e/ou dissociativos; dificuldades afetivas e/ou de relacionamentos; enurese/encoprese; hiperatividade/ Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade; conduta hipersexualizada; abuso de substâncias; comportamentos de risco/ autodestrutivos; traumatismos físicos severos; infecções sexualmente transmissíveis; danos no aparelho sexual e/ou reprodutivo; gravidez, entre outros. A gravidez indesejada, neste cenário, pode ser considerada uma segunda violação do corpo e tende a intensificar os demais sintomas (físicos, emocionais, sociais). Nestas situações, a legislação brasileira permite o aborto, como veremos no tópico a seguir (Drezett, 2003Drezett, J. (2003). Violência sexual contra a mulher e impacto sobre a saúde sexual e reprodutiva. Revista de Psicologia da Unesp, 2(1), 36-50. https://seer.assis.unesp.br/index.php/psicologia/article/view/1041
https://seer.assis.unesp.br/index.php/ps...
; FBSP, 2022Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2022). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022, 16. https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5
https://forumseguranca.org.br/wp-content...
; Souza et al., 2012Souza, F. B. C., Drezett, J., Meirelles, A., & Ramos, D. G. (2012, setembro-dezembro). Aspectos psicológicos de mulheres que sofrem violência sexual. Reprodução & Climatério, 27(3), 98-103. https://doi.org/10.1016/j.recli.2013.03.002
https://doi.org/10.1016/j.recli.2013.03....
).

Aborto legal: conceitos e legislação

A principal definição de aborto segue uma conceituação médica. De acordo com a OMS, o abortamento é a interrupção da gestação até a 20ª-22ª semana ou peso fetal de até 500 gramas. Pode dar-se de maneira natural ou induzida. Nos abortos induzidos, diferenciam-se dois subtipos: os seguros e inseguros. No primeiro caso, é necessário que haja profissionais qualificados e local habilitado para se realizar o procedimento, enquanto o aborto inseguro é caracterizado pela falha em um (ou ambos) os quesitos (profissionais e local). É importante ressaltar que o abortamento inseguro traz consideráveis riscos para a saúde da mulher, podendo culminar em lesões sexuais, reprodutivas ou até mesmo sua morte, sendo a 4ª causa de mortalidade materna no Brasil (Cássia & Sousa, 2018Cássia, S., & Sousa, H. (2018, 31 de julho). “Aborto é a quarta causa de morte materna no Brasil”, afirma pesquisadora: audiência pública sobre descriminalização do aborto acontece entre os dias 3 e 6 de agosto no STF, em Brasília. Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2018/07/31/aborto-e-a-quarta-causa-de-morte-materna-no-brasil-afirma-pesquisadora/
https://www.brasildefato.com.br/2018/07/...
; OMS, 2013Organização Mundial da Saúde. (2013). Abortamento seguro: Orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde (2a ed.). Organização Mundial da Saúde.).

O Brasil, signatário das Convenções e Conferências citadas, responsabiliza-se por assegurar, nos casos previstos em lei, que o abortamento seja realizado de maneira segura. Nos casos de aborto ilegal, onde também se concentram os abortos inseguros, o Estado é responsável por “reforçar seus compromissos com a saúde da mulher, a considerar o impacto de um aborto inseguro na saúde . . . em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços de qualidade para o tratamento de complicações resultantes de aborto” (Fundo de População das Nações Unidas [FPNU], 1994Fundo de População das Nações Unidas. (1994, 5 a 13 de setembro). Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. Plataforma de Cairo. http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf
http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relator...
, p. 77).

Desde 1940, o Código Penal estabelece a possibilidade de realizar o aborto em dois casos: quando há risco de vida materna e quando a gravidez é resultante de estupro. Em 2012, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), somou-se a estas duas possibilidades, a realização de aborto em caso de anencefalia. Nessas três situações, a pessoa que busca o procedimento não necessita de autorização judicial, tampouco realização do Boletim de Ocorrência para acessar a interrupção legal da gestação (Decreto-Lei nº 2.848, 1940Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. (1940, 7 de dezembro). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
; STF, 2012Supremo Tribunal Federal. (2012, 12 de abril). Arguição de descumprimento de preceito fundamental (Med. Liminar) 54. https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=3707334
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pa...
).

Com o advento da pandemia de covid-19, as pessoas que buscaram os serviços de aborto legal no país enfrentaram inúmeros empecilhos e dificuldades para o acesso, havendo fechamento, interrupção e orientações errôneas sobre o funcionamento (Boldrini, 2021Boldrini, A. (2021, 6 de março). Pandemia aprofunda crise em serviços de aborto legal e profissionais buscam saídas. Folha de S.Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/03/pandemia-aprofunda-crise-em-servicos-de-aborto-legal-e-profissionais-buscam-saidas.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/...
; Ionova, 2020Ionova, A. (2020, 22 de novembro). Pandemia e novas regras dificultam acesso ao aborto legal no Brasil. BBC News. https://www.bbc.com/portuguese/geral-54695318
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). Neste mesmo cenário, cabe destacar a iniciativa de alguns serviços que passaram a realizar o procedimento via telessaúde (Anis Instituto de Bioética, 2021Anis Instituto de Bioética. (2021). Aborto legal via telessaúde: Orientações para serviços de saúde. Letras Livres. https://anis.org.br/publicacoes/aborto-legal-via-telessaude-orientacoes-para-servicos-de-saude-2021/
https://anis.org.br/publicacoes/aborto-l...
).

Aborto: estudos e estatísticas

Estudos mundiais mostram que a descriminalização do aborto, associada ao planejamento reprodutivo e à educação sexual de qualidade realizada prematuramente diminuem as taxas de aborto, como nos mostram os dados da Alemanha, Holanda e Bélgica. Estes fatores associados ao combate à violência de gênero, ao apoio social, psicológico, cultural e econômico à maternidade são medidas eficazes para diminuir a incidência de aborto no mundo (Faúndes & Barzelatto, 2004Faúndes, A., & Barzelatto, J. (2004). O drama do aborto: Em busca de um consenso. Komedi.; Henshaw et al., 1999Henshaw, S. K., Singh, S., & Haas, T. (1999, janeiro). The incidence of abortion worldwide. International Family Planning Perspective, 25, 30-38. https://www.guttmacher.org/journals/ipsrh/1999/01/incidence-abortion-worldwide
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; Singh et al., 2018Singh, S., Remez, L., Sedgh, G.; Kwok, L., & Onda, T. (2018). Abortion worldwide 2017: Uneven Progress and Unequal Access. Guttmacher Institute. https://www.guttmacher.org/sites/default/files/report_pdf/abortion-worldwide-2017.pdf
https://www.guttmacher.org/sites/default...
; Stephenson et al., 1992Stephenson, P., Wagner, M., Badea, M., & Serbanescu, F. (1992, outubro). Commentary: The public health consequences of restricted induced abortion: Lessons from Romania. American Journal of Public Health, 82(10), 1328-1331. https://doi.org/10.2105/AJPH.82.10.1328
https://doi.org/10.2105/AJPH.82.10.1328...
). Os países com leis mais restritivas, maiores taxas de aborto e mortalidade materna concentram-se na África e América Latina (Center for Reproductive Rights, 2022Center for Reproductive Rights. (2022). The world’s abortion laws. https://reproductiverights.org/maps/worlds-abortion-laws/
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).

A Pesquisa Nacional de Aborto (2016)Diniz, D., Medeiros, M., & Madeiro, A. (2017, fevereiro). Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência e saúde coletiva, 22(2), 653-660. https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016
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, importante estudo realizado em território brasileiro, mostra que o aborto é um recurso utilizado por mulheres de diferentes regiões do país, faixa etária, raça/cor, níveis de escolaridade e classe social. O estudo aponta que cerca de uma a cada cinco mulheres realizam pelo menos um aborto até os 40 anos de idade. Há uma diferenciação entre classe e cor/raça que afeta as mulheres: as que mais morrem ou apresentam sequelas reprodutivas em decorrência de abortos inseguros são negras, moradoras da periferia e das classes sociais mais baixas (Diniz et al., 2017Diniz, D., Medeiros, M., & Madeiro, A. (2017, fevereiro). Pesquisa Nacional de Aborto 2016. Ciência e saúde coletiva, 22(2), 653-660. https://doi.org/10.1590/1413-81232017222.23812016
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).

No Brasil, apesar da previsão legal desde 1940, só em 1989 foi criado o primeiro serviço de saúde para aborto legal. Pesquisas de diferentes décadas indicam que os serviços de saúde cadastrados para abortamento legal no país, em sua maioria, não o fazem. Por questões religiosas e morais, a estigmatização ocasionada pelo tabu da violência sexual e do aborto parece isolar os serviços que seguem realizando o atendimento. Além disso, os estudos também apontam o julgamento moral e/ou a exigência de documentos não obrigatórios por lei (como o Boletim de Ocorrência policial, autorização judicial) como um grande obstáculo, havendo, portanto, dificuldades de acesso que foram intensificadas durante a pandemia de coronavírus (Madeiro & Diniz, 2016Madeiro, A. P., & Diniz, D. (2016, fevereiro). Serviços de aborto legal no Brasil: Um estudo nacional. Ciência e saúde coletiva , 21(2), 563-572. https://doi.org/10.1590/1413-81232015212.10352015
https://doi.org/10.1590/1413-81232015212...
; Mapa do Aborto Legal, 2022Mapa do Aborto Legal. (2022). Tudo sobre aborto legal no Brasil. https://mapaabortolegal.org/
https://mapaabortolegal.org/...
; Talib & Citeli, 2005Talib, R. A., & Citeli, M. T. (2005). Dossiê: Serviços de aborto legal em hospitais públicos brasileiros (1989-2004). Católicas Pelo Direito de Decidir. ).

Eixos norteadores: atravessamentos e especificidades

Conforme explicamos no início deste artigo, para refletirmos sobre nossa atuação enquanto psicólogas(os) no atendimento a pessoas em situação de violência sexual e aborto legal, acreditamos ser importante considerar alguns aspectos. Vamos chamá-los de eixos norteadores para uma atuação crítica, e é importante que o(a) leitor(a) tenha em mente que essa divisão tem o intuito de nos auxiliar na construção de hipóteses e na leitura da situação, sem a intenção de findar as possibilidades de compreensão. Nos guiam e orientam em caminhos - no plural - possíveis. Trataremos de quatro eixos: gênero, dinâmica familiar, sexualidade e trauma.

Gênero

Gênero diz respeito aos valores e representações sociais que são atribuídos ao menino e à menina, ao homem e à mulher, bem como as expectativas de comportamentos específicos para cada um destes. Trata-se de um processo cultural e de socialização onde as categorias de feminino e masculino são criadas e ganham valores (Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos [Clam], 2009Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. (2009). Gênero e diversidade nas escolas: Formação de professoras/es em gênero, sexualidade, orientação sexual e relações étnico-raciais. Caderno de atividades. CEPESC. http://www.e-clam.org/downloads/Caderno-de-Atividades-GDE2010.pdf
http://www.e-clam.org/downloads/Caderno-...
).

Simone de Beauvoir (1949/2016)Beauvoir, S. (2016). O segundo sexo: Fatos e mitos (3a ed., Vol. 1). Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 1949), em seu tratado “O segundo sexo”, é pioneira em apontar para a construção social e histórica dos papeis de gênero, em especial, das mulheres, opondo-se à ideia de natureza feminina e, principalmente, de uma natureza inferior da mulher em comparação ao homem. Ela discorre sobre a importância de desconstruirmos a ideia de que naturalmente as mulheres devem apresentar este ou aquele papel, devido a diferenças entre os sexos que olha para os homens como de “primeira classe”, os seres universais, enquanto as mulheres ocupam papel de submissão, ou o “segundo sexo”. Assim, a autora afirma que, a partir das diferenças biológicas, criou-se desigualdades entre homens e mulheres ao longo da história e do desenvolvimento da própria sociedade. Estas desigualdades não se justificam pelas diferenças anatômicas, mas pelo valor historicamente atribuído a cada um deles.

De acordo com definição da ONU Mulheres:

O gênero é parte do contexto sociocultural mais amplo e junto com raça e etnia, ao menos no Brasil, conformam componentes de desigualdades estruturantes, onde mulheres e população negra apresentam os piores indicadores socioeconômicos. Outros critérios igualmente importantes para a análise sociocultural são classe, nível de pobreza, orientação sexual e identidade de gênero, idade, etc. (ONU, 2016Organização das Nações Unidas. (2016). ONU Mulheres. http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Glossario-ODS-5.pdf
http://www.onumulheres.org.br/wp-content...
, p. 17).

A violência sexual é uma das expressões da violência de gênero, sendo imprescindível levar em consideração os marcadores sociais de diferença tais como raça, classe, identidade de gênero, orientação sexual. Neste contexto do atendimento em saúde, negar a existência da violência de gênero pode incrementar e perpetuar o sofrimento das vítimas, compreendendo como individual ou intrapsíquico, um problema que possui causas amplas e raízes sociais.

Dinâmica familiar

A instituição família é produto de uma construção humana histórica, que pode ser definida como “uma unidade social emissora e receptora de influências culturais e de acontecimentos históricos” (Ferrari & Vecina, 2002Ferrari, D. C. A., & Vecina, T. C. C. (Orgs.). (2002). O fim do silêncio na violência familiar: Teoria e prática. Ágora., p. 28). Segundo as autoras, a família possui uma dinâmica própria onde são desenvolvidas experiências de caráter individual e social e possui o papel de intermediar influências contínuas e recíprocas entre o indivíduo e a sociedade, em dialética constante com a cultura. Historicamente sofre alterações em suas características e funções, sendo que a partir do século XVIII, passou a ter atribuição de socialização e, por isso, tem influência e responsabilidade no processo de subjetivação das crianças.

A família que produz e reproduz violências em seu interior, transmitindo-as por gerações, deve ser compreendida como produto de um contexto histórico-cultural, sendo as causas do fenômeno da violência múltiplas, porém nunca naturais. Famílias cuja dinâmica é permeada por violências, frequentemente apresentam rigidez em relação aos papéis estabelecidos, dificuldades em relação à simbolização e à comunicação, dificuldade para lidar com limites, isolamento social, bem como desigualdades de gênero e de geração, onde uma assimetria de poder é instalada entre homens e mulheres/adultos e crianças, manifestada através de múltiplas formas de violências (Ferrari & Vecina, 2002Ferrari, D. C. A., & Vecina, T. C. C. (Orgs.). (2002). O fim do silêncio na violência familiar: Teoria e prática. Ágora.).

Neste cenário, cabe destacar a noção do pacto do silêncio, que é caracterizado pela atuação de forças que impedem ou dificultam a revelação da situação de violência sexual intrafamiliar, e cujo objetivo é evitar a crise e a desorganização psíquica na família e em seus membros (Ferrari & Vecina, 2002Ferrari, D. C. A., & Vecina, T. C. C. (Orgs.). (2002). O fim do silêncio na violência familiar: Teoria e prática. Ágora.).

Na compreensão sistêmica, por sua vez, Mandelbaum (2008Mandelbaum, B. P. H. (2008). Psicanálise da família. Casa do Psicólogo.) explica que a família funcionaria como um sistema único com regras implícitas e explícitas que organizariam e dariam sentido às relações estabelecidas em seu interior e aos comportamentos de seus membros, tendo potencial para o desenvolvimento e/ou adoecimento destes. Os lugares psíquicos e papéis de cada membro do sistema familiar tenderiam a relacionar-se com o objetivo de manter o equilíbrio, a homeostase do sistema. O equilíbrio do sistema, por sua vez, pode representar também o equilíbrio psíquico de seus membros. Esta concepção denota que o ser humano deve ser compreendido a partir de sua relação com o meio familiar e social.

Em uma perspectiva psicanalítica, encontramos em René Käes a importante noção de transmissão psíquica. Este autor enfatiza sofrimentos advindos de heranças familiares inconscientes, não elaboradas por gerações anteriores, que se materializam em repetições de padrões adoecidos nos relacionamentos e em problemas na constituição subjetiva individual (Käess, 2001Kaës, R. (2001). O sujeito da herança. In R. Kaës & H. Faimberg (Orgs.), Transmissão da vida psíquica entre gerações (pp. 9-25). Casa do Psicólogo. ; Padilha & Barbieri, 2020Padilha, C. R. M., & Barbieri, V. (2020). Transmissão psíquica transgeracional: Uma revisão da literatura. Tempo Psicanalitico, 52(1), 243-270. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382020000100010&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

O inconsciente individual seria então formado a partir de uma herança geracional e vale lembrar que a herança, por sua vez, não incluiria somente os aspectos não elaborados, mas também as potencialidades daquele grupo familiar. Caberá ao sujeito, em sua jornada, a busca pelas transformações e mudanças que possam caminhar na direção da elaboração dos temas tabus e dos interditos causadores de adoecimento psíquico (Käess, 2001Kaës, R. (2001). O sujeito da herança. In R. Kaës & H. Faimberg (Orgs.), Transmissão da vida psíquica entre gerações (pp. 9-25). Casa do Psicólogo. ; Padilha & Barbieri, 2020Padilha, C. R. M., & Barbieri, V. (2020). Transmissão psíquica transgeracional: Uma revisão da literatura. Tempo Psicanalitico, 52(1), 243-270. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-48382020000100010&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
).

Diante destas compreensões sobre família e as violências que ocorrem e se perpetuam em seu meio e, considerando ainda que a violência sexual intrafamiliar acontece em grandes proporções, principalmente contra grupos vulneráveis como crianças, adolescentes ou pessoas incapazes perante a lei, não podemos deixar de observar as influências do contexto familiar sobre a formação psíquica individual e sobre as demandas de saúde da clientela que busca ou recorre ao aborto legal. Nestes casos, intensifica-se a complexidade, uma vez que a solicitação do aborto necessita ser realizada pelo responsável legal, quem muitas vezes está inserido nessa mesma dinâmica familiar violenta.

Sexualidade

A sexualidade pode ser entendida como uma energia de vida que move o ser humano na constante busca pelo prazer e afastamento do desprazer em todas as áreas da vida. Esta visão abrange desde ações simples como acordar, fazer tarefas diárias, atividades prazerosas e afins, até os relacionamentos interpessoais e relações sexuais em si. Assim como os demais tópicos trazidos para discussão, a sexualidade também é construída e permeada pela cultura na qual estamos inseridos(as) e que, por sua vez, trata esse tema como tabu (Meyer, 2017Meyer, C. A. (2017). Livro “O que é privacidade?’: Uma ferramenta de prevenção da violência sexual para crianças [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”]. Repositório Unesp. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/150592/meyer_ca_me_arafcl.pdf?sequence=3&isAllowed=y
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), principalmente quando abordamos a sexualidade infantil ou feminina.

A busca pelo prazer afetivo, erótico e sexual é estimulada ou não a depender do lugar social que cada sujeito ocupa. A sexualidade feminina, por exemplo, adquire nuances diversificadas conforme o momento histórico e o ambiente sociocultural. É essencial compreender a busca por bem-estar e pelo pleno exercício da sexualidade como um direito também das mulheres, uma vez que as violências sexuais podem agravar este cenário.

Nesta perspectiva, podemos citar o trabalho do historiador e sexólogo Thomas Laqueur (2001). Em sua obra Inventando o sexo, o autor aponta que há determinações socio-histórico-culturais que influenciam e ditam os rumos da sexualidade, mostrando como, em diferentes momentos históricos, a linguagem predominante (seja da mitologia, da religião ou da ciência) serviu de base para justificação do sexo feminino como inferior ao masculino.

No contexto da infância e adolescência, por sua vez, a educação sexual de qualidade tem como ponto de partida uma lógica baseada no respeito à autonomia na relação com as crianças e adolescentes, que são sujeitos em desenvolvimento. Esta compreensão busca superar desigualdades, além de acatar e atender às necessidades destas fases.

É papel da família, da escola e da sociedade oferecer informações apropriadas sobre autonomia, privacidade, sobre o próprio corpo, as relações corporais e de afetos, os limites nestas relações, entre outros, em cada etapa do desenvolvimento, com segurança e liberdade, e assim, proporcionar educação sexual de qualidade, que é afinal, uma das mais importantes ferramentas de combate e prevenção de violência sexual, e que resulta, mais amplamente falando, em sujeitos mais apropriados de si e de sua sexualidade também na vida adulta (Meyer, 2017Meyer, C. A. (2017). Livro “O que é privacidade?’: Uma ferramenta de prevenção da violência sexual para crianças [Dissertação de mestrado, Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho”]. Repositório Unesp. Recuperado de https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/150592/meyer_ca_me_arafcl.pdf?sequence=3&isAllowed=y
https://repositorio.unesp.br/bitstream/h...
; ONU, 2016Organização das Nações Unidas. (2016). ONU Mulheres. http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2017/05/Glossario-ODS-5.pdf
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).

Trauma

Segundo Laplanche e Pontalis (1982/2001)Laplanche, D., & Pontalis, J. B. (2001). Vocabulário de psicanálise. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1982), do ponto de vista da economia psíquica, o trauma é definido como um excesso pulsional que não pode ser metabolizado psiquicamente pelo indivíduo e como um acontecimento que assalta a vida cotidiana, cuja intensidade impõe desorganização psíquica, ameaça a integridade e exige trabalho árduo posteriormente ao evento traumático, no sentido de ligar o afluxo excessivo de excitações a representações.

O psicanalista Sándor Ferenczi (1992/2011)Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992) afirma que o evento disruptivo/traumático é precedido por um estado em que o sujeito possui um sentimento de segurança preservado. O trauma estaria ligado ao despreparo diante do evento adverso, quando o indivíduo buscaria alterar o meio circundante, fazendo cessar o perigo em si. Na impossibilidade de alterar a realidade e permanecendo o estímulo estressor que origina a angústia em grau tão elevado, a saída defensiva encontrada pelo psiquismo é a autodestruição, uma vez que pela fragmentação e/ou cisão do Ego, a angústia é afastada para partes de si mesmo e nunca integrada, dada sua intensidade. Seria como dizer que quando um evento real se impõe para um sujeito de maneira excessivamente aterradora em termos da angústia despertada, e que foge às suas capacidades de alterar essa realidade, a opção encontrada pelo psiquismo seria alterar a si mesmo para sobreviver à angústia e ao excesso de desprazer. Os custos desse tipo de manobra na saúde mental são altos e configuram os efeitos traumatogênicos em si.

Deparando-se com a violência sexual contra crianças, cujos agressores comumente são os pais, familiares ou pessoas próximas, o psicanalista nomeou como confusão de línguas entre os adultos e a criança este encontro no qual a criança, desprovida de maturidade para vivenciar o caráter erótico-genital numa relação afetiva, busca o contato do adulto com intenção e necessidade de receber afeto; mas recebe, em oposição a isto, investidas sexuais, atos e intenções sexuais quando o adulto utiliza a unidade física e psíquica da criança para sua própria satisfação sexual. Tais atos perpetrados pelos adultos ou pessoas que possuam poder em relação à criança são indubitavelmente carregados de ódio e culpa, porém nunca elucidados ou assumidos dessa maneira pelo agressor. Resta, para a vítima, a tarefa de significar o ocorrido e lidar com os sentimentos de ódio e culpa que foram projetados nela na ocasião do abuso. Se o agressor é uma figura primordial de cuidados (comum nesse tipo de violência), maior será a dificuldade da criança em lidar com um ato inesperadamente destrutivo advindo desta figura (Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992)).

Se a criança não encontra em seu meio externo recursos para lhe auxiliar a escapar das agressões, poderá reagir modificando seu meio interior, introjetando o agressor, de modo que este desaparece enquanto ameaça e passa a existir internamente na criança, que agora identifica-se totalmente com ele. Esta identificação com o agressor decorre do medo intenso que demonstra força aterradora contra a qual é impossível se opor (Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992)).

Segundo este mesmo autor, o trauma teria uma dimensão temporal relacionada ao desamparo. O primeiro tempo do trauma pode ocorrer na cena real, o abuso propriamente dito, por exemplo. Em um segundo tempo, o trauma pode ser instalado se não surgir possibilidade de compreender e dar significado ao ocorrido. Ou seja, a impossibilidade de construir uma narrativa que dê significado ao que foi vivido também traumatiza. A construção desta significação se dará por intermédio de um interlocutor que a pessoa busca para auxiliá-la a compreender suas vivências. Se acolhida a vivência do sujeito, as possibilidades de elaboração da experiência adversa aumentam. Na ausência deste interlocutor, entretanto, fica caracterizado o abandono que mina as esperanças e impossibilita a confiança no mundo como um lugar seguro. Se o abandono está no cerne do trauma, compreendemos que o papel dos serviços de saúde e da sociedade é o acolhimento e cuidado. E à(ao) psicóloga(o) cabe, também, favorecer a construção de uma narrativa sobre o vivido.

Atuação psicológica: entre potencialidades e desafios

Como pontuado ao longo deste artigo, pensar sobre o atendimento psicológico em situações de abortamento legal em casos de violência sexual institui o desafio de responder simultaneamente a múltiplas demandas: aos direitos humanos, à ética profissional, à autonomia da paciente, ao raciocínio clínico, às normativas técnicas e à legislação vigente. É fácil imaginar que por vezes tais reivindicações são conflitantes, de modo que qualquer possibilidade de atenção psicológica exige reconhecimento da tensão existente entre seus diversos agentes (Martino, 2022Martino, M. K. (2022). Violência sexual contra mulheres e discursos sobre aborto legal. Juruá. ).

Com essas questões em mente, é fundamental que a(o) psicóloga(o) esteja ciente e atenta(o), também, a quais efeitos este campo de tensões tem sobre si, considerando as crenças, valores e entendimentos pregressos sobre os temas que estão presentes e como atender à demanda sem interferências de ruídos internos. Neste sentido, tanto normativas do Ministério da Saúde quanto documentos norteadores da categoria profissional são explícitos ao orientar profissionais: cabe à atuação em saúde o cuidado e o respeito à paciente, garantindo que o trabalho da(o) profissional favoreça à pessoa atendida a efetivação de seus direitos sexuais e reprodutivos de acordo com os desejos e sentidos próprios à clientela solicitante.

Este campo da violência sexual e do aborto é, portanto, um campo de disputa de narrativas que acaba por favorecer uma lógica de busca pela ‘verdade’ no relato da mulher (Dios, 2016Dios, V. C. (2016). A palavra da mulher: Práticas de produção de verdade nos serviços de aborto legal no Brasil [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]. Repositório UnB. https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/21464/1/2016_VanessaCanabarroDios.pdf
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). Como trabalhadoras(es) de saúde não nos cabe responder a questionamentos sobre a veracidade do relato que nos é confidenciado pela clientela, uma vez que atuamos com a realidade psíquica e suas demandas, e não com a realidade dos fatos, como bem o faz o campo jurídico (Ministério da Saúde, 2011bMinistério da Saúde. (2011b). Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual: Perguntas e respostas para profissionais de saúde (2a ed.). https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/aspectos_juridicos_atendimento_vitimas_violencia_2ed.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
; Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) em Programa de Atenção à Mulher em Situação de Violência. http://crepop.pol.org.br/wp-content/uploads/2013/05/2013-05-02b-MULHER.pdf
http://crepop.pol.org.br/wp-content/uplo...
, 2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). CFP defende descriminalização e legalização do aborto no Brasil. https://site.cfp.org.br/cfp-defende-descriminalizacao-legalizacao-aborto-brasil/
https://site.cfp.org.br/cfp-defende-desc...
; Conselho Regional de Psicologia de São Paulo [CRP-SP], 2016Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. (2016, 5 de setembro). Documento de orientação CRP SP 01/2016: Às/aos psicólogas/os Documento de orientação frente ao atendimento de mulheres em situação de interrupção da gravidez. https://www.crpsp.org/uploads/impresso/1650/jVoSvozW9znlDNP49UpfROzanhryWkKi.pdf
https://www.crpsp.org/uploads/impresso/1...
).

Estamos com ouvidos atentos, no intuito de auxiliar a clientela na busca pela compreensão do que ela gostaria de fazer consigo própria, uma vez que já se encontra diante de uma situação de aniquilamento de sua vontade e de extrema violação: a gravidez decorrente do estupro.

Diante dos dados e considerações apresentados sobre o tema, a intenção aqui é abarcar de forma crítica tais complexidades. A reflexão sobre a atuação psicológica será exposta com ênfase na avaliação inicial para o abortamento, momento no qual as tensões acima descritas se apresentam de forma mais acentuada.

O primeiro desafio se coloca quando a(o) profissional é convocada(o) a atestar que o pedido de abortamento legal da paciente “se encontra em conformidade com o artigo 128 do inciso II do Código Penal, sem a presença de indicadores de falsa alegação de crime sexual”, conforme consta em documento presente na norma técnica do Ministério da Saúde (Ministério da Saúde, 2012Ministério da Saúde. (2012). Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: Norma técnica. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicaco...
, p. 121), a ser assinado pela equipe multiprofissional. Diante de tal solicitação, a(o) psicóloga(o) se depara com impasse semelhante ao da discussão acerca de sua atuação no chamado “Depoimento sem dano”, implantado pela Lei nº 13.431/2017. Em seu artigo sobre esse tema, Conte (2008Conte, B. S. (2008, abril-junho). Depoimento sem dano: A escuta da psicanálise ou a escuta do direito? Psico, 39(2), 219-223. https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/2262/3043
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs...
) questiona qual verdade estamos buscando em nossa escuta enquanto psicólogas(os), e se nos cabe uma intervenção voltada meramente à produção de um conteúdo para fins de prova jurídica. A mesma questão se aplica nos casos de avaliação para abortamento legal: é possível afirmar a ausência de indicadores de falsa alegação de crime sexual, ou, ainda que fosse, seria esse nosso objetivo?

A avaliação psicológica configura-se não como uma inquirição, mas como uma oportunidade de acolhimento em frente a uma situação traumática. Seu objetivo deve ser a produção de um conhecimento de si, de uma verdade pertencente ao campo do subjetivo que permita a construção de novos sentidos após o acontecimento traumático.

No primeiro contato da(o) psicóloga(o) com a pessoa solicitante de abortamento legal apresenta-se então uma tarefa ambígua. Exige-se da(o) profissional, simultaneamente, a abertura para uma escuta clínica acolhedora e a apresentação de uma espécie de parecer no qual se autoriza ou não a realização do procedimento de acordo com seu alinhamento à legislação em vigor. Seu desafio passa a ser encontrar uma atuação que permita conciliar os interesses da lei com o respeito à autonomia e subjetividade da paciente como exigido pela ética profissional.

A respeito de impasse semelhante diante de avaliações de pacientes que necessitam de transplante de fígado, Moretto (2006Moretto, M. L. T. (2006). O psicanalista num programa de transplante de fígado: A experiência do ‘outro em si’ [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Portal Teses USP. https://doi.org/10.11606/T.47.2018.tde-06122018-144620
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) propõe que:

é, sim, um processo de avaliação, mas que se diferencia substancialmente de todos os outros, visto que não nos propomos, de maneira alguma, a avaliar para aprovar ou reprovar, para indicar ou contra-indicar. Sustentamos a lógica de que quem decide se vai ou não para a cirurgia é o próprio sujeito em questão, e o escutamos levando em conta sua relação com a doença, com a cirurgia, com a equipe, com o analista e com o mundo (p. 52).

Neste sentido, destacamos uma importante diferença. Se, nos casos de transplante, como descritos por Moretto, há diversos exames físicos e clínicos que “comprovem” o fígado adoecido e a consequente necessidade do procedimento, nos casos de gravidez decorrente de estupro, a materialidade existente é a da gravidez em si, não havendo outro tipo de exame físico que comprove que esta gestação está vinculada àquela violência sofrida. O que comprova essa violência é o relato da mulher sobre o ocorrido.

Embora não seja papel do psicólogo atestar sobre a veracidade deste relato, é comum pedidos de que a psicologia diga se a mulher está ou não mentindo. É neste momento que reforçamos a atuação política da psicologia. Novamente retomamos, nosso objetivo não é pericial e sim o de acolhimento e cuidado com uma pessoa em sofrimento, no intuito de auxiliá-la a compreender o que ela gostaria de fazer consigo nesta situação.

Outro ponto que se mostra crucial é compreender o relato que nos é trazido. Em alguns casos, a pessoa atendida irá dizer, com todas as letras, que o ocorrido foi uma violência. Em tantos outros, a mulher ainda está buscando um contorno para a experiência vivenciada, buscando no psicólogo o papel de testemunho para nomear o ocorrido, nos termos que bem nos mostra Ferenczi (1992/2011)Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992), Das (2011Das, V. (2011, julho-dezembro). O ato de testemunhar: Violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, 37, 9-41. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200002
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) e Cho (2008Cho, G. (2008) Haunting the Korean diaspora: Shame, secrecy and the forgotten war. University of Minnesota Press.). A atuação psicológica é, portanto, também política, uma vez que escolhemos atentar para as dinâmicas de violência, considerando aspectos legais, sociais, históricos e culturais abarcados nos eixos norteadores aqui apresentados. Entendemos que, sem isso, é impossível responder às demandas clínicas de saúde mental da clientela de maneira coerente com a ética profissional.

Nessa perspectiva, propõe-se aqui que a avaliação seja conduzida nos princípios do que Kupermann (2009Kupermann, D. (2009). Princípios para uma ética do cuidado. Viver Mente e Cérebro, 3, 44-51. ) chama de ética do cuidado. Para esclarecer o que se quer dizer com isso, no entanto, é preciso estabelecer alguns pontos de partida.

Compreendemos, como já dito anteriormente, que a violência sexual é um acontecimento traumático. Também definimos que o segundo tempo do trauma consiste na experiência do desmentido por parte de um terceiro que não oferece testemunho e presença sensível (Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992); Kupermann, 2009Kupermann, D. (2009). Princípios para uma ética do cuidado. Viver Mente e Cérebro, 3, 44-51. ). A literatura demonstra com clareza que predomina entre os profissionais de saúde justamente uma atitude de descrença à palavra da mulher e dúvida quanto à sua responsabilidade no estupro (Dios, 2016Dios, V. C. (2016). A palavra da mulher: Práticas de produção de verdade nos serviços de aborto legal no Brasil [Tese de doutorado, Universidade de Brasília]. Repositório UnB. https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/21464/1/2016_VanessaCanabarroDios.pdf
https://repositorio.unb.br/bitstream/104...
; Drezett, 2000Drezett, J. (2000, novembro). Aspectos biopsicossociais da violência sexual. Jornal da Rede Saúde, 22(16), 16-24. https://www.researchgate.net/publication/268278440_Aspectos_biopsicossocias_da_violencia_sexual
https://www.researchgate.net/publication...
; Soares, 2003Soares, G. S. (2003). Profissionais de saúde frente ao aborto legal do Brasil: Desafios, conflitos e significados. Cadernos de Saúde Pública, 19, S399-S406. https://doi.org/10.1590/S0102-311X2003000800021
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). Em outros termos, a maneira como socialmente se recebe um relato de experiência de violência sexual constitui exatamente o cenário produtor de trauma descrito por Ferenczi e por diversos(as) outros(as) autores(as) (Cho, 2008Cho, G. (2008) Haunting the Korean diaspora: Shame, secrecy and the forgotten war. University of Minnesota Press.; Das, 2011Das, V. (2011, julho-dezembro). O ato de testemunhar: Violência, gênero e subjetividade. Cadernos Pagu, 37, 9-41. https://doi.org/10.1590/S0104-83332011000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-8333201100...
).

Lembramos que com frequência a gestação decorrente da violência sexual é vivida como um segundo evento traumático em todo seu vigor, intensificando seu potencial adoecedor (Martino, 2022Martino, M. K. (2022). Violência sexual contra mulheres e discursos sobre aborto legal. Juruá. ). Esse contexto exige da(o) terapeuta uma adaptação da técnica psicanalítica tradicional, no intuito de reduzir o impacto patogênico dos eventos traumáticos.

O modelo clássico de psicanalista/terapeuta que preza pela neutralidade e pelo princípio de abstinência pode produzir um dispositivo clínico marcado pela assimetria de relações entre terapeuta e paciente, no qual o segundo percebe o primeiro com uma figura fria e reservada, incapaz de acolher suas necessidades afetivas, muitas vezes por questões próprias que não receberam o devido cuidado (a “hipocrisia profissional” nomeada por Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992)). Por isso, Kupermann (2009Kupermann, D. (2009). Princípios para uma ética do cuidado. Viver Mente e Cérebro, 3, 44-51. ), em sintonia com a crítica ferencziana, propõe que o atendimento a pacientes traumatizados seja pautado na hospitalidade e na empatia - a referida ética do cuidado. Trata-se de um exercício por parte da(o) terapeuta de adaptação ativa às necessidades e à linguagem da(o) paciente, sintonizando-se às suas modulações afetivas a partir da experiência de “sentir com” (Einfühlung) (Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992)).

A avaliação assim compreendida integra os processos de diagnóstico e intervenção, transforma o encontro terapêutico em uma busca conjunta de criação de sentidos para a experiência vivida (Kupermann, 2009Kupermann, D. (2009). Princípios para uma ética do cuidado. Viver Mente e Cérebro, 3, 44-51. ) e compartilha coautoria do saber sobre si (Evangelista, 2016Evangelista, P. (2016). O psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial grupal como possibilidade de ação clínica do psicólogo. Revista da Abordagem Gestáltica, 22(2), 219-224. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672016000200014
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). Esse encontro, vivido no momento crucial de emergência da crise decorrente do abuso e da gestação indesejada, permitirá a construção de uma narrativa que pode culminar numa decisão consciente e acompanhada sobre a realização do abortamento.

Uma vez delineado o percurso de trabalho neste processo de avaliação, voltamo-nos a pontos específicos da prática com esse público que atravessam o momento do atendimento psicológico. Não é de pequeno impacto para o vínculo transferencial inicial que exista uma obrigatoriedade do atendimento, e que esta seja marcada pela expectativa de aprovação do procedimento por parte da paciente, geralmente com curto prazo devido ao tempo gestacional. Soma-se a isso as dificuldades impostas pela rota crítica (Sagot, 2020), tornando-se complexo solicitar que a paciente “associe livremente”. Reforça-se a importância de que fique claro o objetivo do atendimento inicial, para que o par terapêutico compreenda como a vivência da violência e do abortamento se inscrevem na narrativa daquela paciente e de que maneira ela se posiciona diante disso. O que de fato se avalia, portanto, é o quanto esta mulher está apropriada de sua decisão, caso esta já exista, ou como podemos auxiliá-la na direção desta apropriação.

Tais considerações envolvem também verificar se a paciente compreende as consequências de sua decisão, quais são suas fantasias e temores em relação ao procedimento, qual é a rede de apoio que lhe dará suporte posterior, e se há alguma vulnerabilidade em particular que a exponha a novas situações de violência.

Vale aqui destacar o manejo de casos com características específicas, como pacientes menores de 14 anos ou com comprometimentos importantes de ordem cognitiva ou mental (Decreto-Lei nº 2.848, 1940Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. (1940, 7 de dezembro). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
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). Como já mencionado, nestes casos, torna-se necessária a participação do núcleo familiar ou de apoio mais próximo no momento da avaliação - embora o desejo final da paciente prevaleça sobre outras interferências. Avaliar a influência do ambiente familiar na decisão e mediar possíveis conflitos torna-se mais uma das funções da(o) psicóloga(o) no momento da avaliação.

Por vezes, a(o) psicóloga(o) se encontrará diante de demandas de atendimento ligadas a fatores adjuntos à situação traumática, como a angústia diante da realização do aborto ou a negativa por parte de outros profissionais, impossibilitando o abortamento. Em referência ao primeiro caso, é muito comum que as pacientes apresentem fantasias diversas de morte, infertilidade e mutilação diante da realização do aborto, parcialmente em razão de seus próprios sentimentos de culpa, mas extremamente influenciados pelo tabu social e falta de informação acerca do aborto seguro (Martino, 2022Martino, M. K. (2022). Violência sexual contra mulheres e discursos sobre aborto legal. Juruá. ). Nesses casos, como parte do processo de acompanhar o trânsito pela situação crítica, é fundamental a continuidade do atendimento, que pode, inclusive, ser realizado em outros contextos, como nas enfermarias antes ou depois do procedimento.

Verifica-se que este tipo de atendimento apresenta a vantagem de não envolver mais a preocupação com a aprovação, reduzindo a ansiedade da mulher diante da figura da(o) psicóloga(o) e possibilitando que ela compreenda que o objetivo, de fato, é acompanhá-la e acolhê-la. O alívio da tensão da busca pelo objetivo (a aprovação) permite uma escuta mais flutuante voltada aos receios daquela paciente diante da concretização da remoção de algo que ela experimenta, na maior parte das vezes, não apenas como um ‘outro em si’ qualquer como nomeia Moretto (2006Moretto, M. L. T. (2006). O psicanalista num programa de transplante de fígado: A experiência do ‘outro em si’ [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Portal Teses USP. https://doi.org/10.11606/T.47.2018.tde-06122018-144620
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), mas como uma materialização de seu agressor dentro de seu corpo.

Se nos casos de abuso infantil há a possibilidade de uma identificação de ordem defensiva com o agressor por parte de quem sofre o abuso (Ferenczi, 1992/2011Ferenczi, S. (2011). Obras completas: Psicanálise IV. WMF Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1992)), o que podemos verificar nos casos de estupro de adultas que resultam em gestação é a fantasia de implantação forçada de uma parte do estuprador dentro de si - se é que podemos chamar de fantasia uma situação que alcança tal nível de literalidade. Assim, o acompanhamento psicológico cumpre a função de ofertar presença no momento em que se realiza algo que é desejado, mas também temido e fonte de sentimentos ambivalentes de culpa e alívio.

Dentre muitas funções importantes deste segundo momento de atendimento, uma que merece destaque é a de mediadora(or) no diálogo da paciente com membros da equipe de saúde que realizará a assistência durante e após o procedimento. Como descreve Moretto (2002Moretto, M. L. T. (2002). O que pode um analista no hospital? Casa do Psicólogo.), a sustentação do discurso médico é a exclusão da subjetividade tanto da(o) paciente quanto da(o) médica(o) (ou demais profissionais pautados no mesmo discurso), o que por si só concretiza a necessidade de uma presença que faça recordar a humanidade da(o) paciente. Se consideramos ainda o agravante do sentimento de repúdio socialmente compartilhado em relação a mulheres que realizam aborto e, caso essa paciente esteja em contato com profissionais que não possuem treinamento especializado no tema, essa função torna-se ainda mais indispensável. A(o) psicóloga(o) apoiada(o) na ética aqui defendida acaba (voluntária ou involuntariamente) exercendo uma tarefa potencialmente subversiva.

A psicoterapia, por sua vez, constitui-se como o terceiro momento do atendimento, podendo ser ofertada em modalidade individual ou grupal de acordo com as possibilidades do serviço e com as necessidades da paciente. O objetivo desta etapa torna-se acompanhar a paciente na (res)significação da experiência da violência sexual, da gestação e do abortamento - ou da negativa deste. Para as pacientes que por alguma razão não foram autorizadas pela equipe a realizar o procedimento, a psicoterapia volta-se a duas questões centrais: a obrigatoriedade de levar a gestação até o final, incluindo o momento do parto; e a tomada de uma nova decisão quanto a manter o futuro bebê e inseri-lo no seu núcleo familiar, ou realizar a entrega protegida para fins de adoção (Ministério da Saúde, 2012Ministério da Saúde. (2012). Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: Norma técnica. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/prevencao_agravo_violencia_sexual_mulheres_3ed.pdf
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). O respeito pela autonomia da paciente em suas decisões permanece como alicerce da atuação.

Para as pacientes que realizaram o aborto, a psicoterapia apresenta questões diversas. Uma vez apaziguada a urgência produzida pela situação da gestação, passa a ser possível trabalhar com os elementos antes ofuscados pela turbulência. Retirado o representante concreto da violência, a tarefa neste ponto torna-se lidar com aquilo que não pode ser removido cirurgicamente, com os resquícios de tamanha invasão de seu espaço íntimo. É comum que emerjam diversas questões ligadas ao próprio núcleo familiar ou social, que pode ter sido fonte de apoio ou de intensa frustração durante todo o processo. É importante destacar que, ao contrário do que se poderia suspeitar levando em consideração o senso comum a respeito do aborto, a literatura científica descreve respostas emocionais satisfatórias ao abortamento induzido legalmente, com a maioria das mulheres relatando sentir alívio após o aborto (Drezett et al., 2012Drezett, J., Pedroso, D., Vertamatti, M. A., Macedo Junior, H., Blake, M. T., Gebrim, L. H., Valenti, V. E., & Abreu, L. C. (2012). Pregnancy resulting from sexual abuse: Reasons alleged by Brazilian women for carrying out the abortion: pregnancy and violence. HealthMED, 6(3), 819-825. http://clacaidigital.info/bitstream/handle/123456789/278/HealthMED2012%286%293_p819_825.pdf?sequence=5&isAllowed=y
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; Rocca et al., 2020Rocca, C. H., Samari, G., Foster, D. G., Gould, H., & Kimport, K. (2020, janeiro). Emotions and decision rightness following an abortion: An examination of decision difficulty and abortion stigma. Social Science & Medicine, 248. https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2019.112704
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).

Considerações finais

Neste estudo, refletimos sobre a prática e o papel da psicologia no contexto de atendimento de saúde a pessoas que demandam pelo abortamento em gestações decorrentes de violência sexual.

Partindo para as conclusões, apontamos que o intuito deste artigo foi convidar os(as) leitores(as) e profissionais da psicologia a debruçarem-se sobre alguns aspectos que envolvem o cenário estudado, sem esgotar as possibilidades de reflexão sobre o tema. Isto implica dizer que, embora tenhamos elencado pontos norteadores, não se excluem tantos outros relevantes, como os marcadores sociais ou a violência institucional, sendo possível apontarmos para a importância de novos estudos sobre o tema. Além disso, no tocante à atuação psicológica neste cenário, destacamos poucos estudos encontrados, sendo fundamental a necessidade de mais pesquisas.

Consideramos essencial, como ponto de partida para esta atuação, que a(o) psicóloga(o) aproxime-se dos temas da violência e do aborto, observando seus impactos, magnitudes e consequências para a saúde, compreendendo os atravessamentos implicados neste campo de atuação, sejam jurídicos, de ordem institucional, sociocultural ou aqueles que encontram-se presentificados nos atendimentos, mesmo que implicitamente, como são os aspectos de gênero, sexualidade, dinâmica familiar e o trauma psicológico propriamente dito.

Além disso, cabe à(ao) profissional da psicologia estar atenta(o) a seus próprios questionamentos e valores que não devem influenciar o pedido da solicitante: nossa escuta é para suas demandas manifestas e latentes, em consonância com a perspectiva de direitos sexuais e reprodutivos e a defesa de políticas públicas dignas, ao que aqui também chamamos de atuação política.

É essencial que a(o) profissional da saúde leve tais fatores em consideração, buscando assim encontrar formas de atuação clínica e política que visem aperfeiçoar a oferta de serviços voltados à atenção de pessoas em situação tão delicada de sofrimento e abandono, além de almejar que o testemunho aqui realizado sirva de inspiração para novas reflexões.

Por fim, enfatizamos o caráter de cuidado para o momento inicial de atendimento psicológico que configura a avaliação psicológica para o abortamento legal, adotando uma posição eticamente comprometida com a subjetividade e as demandas das pessoas atendidas. Atravessar momentos de intenso sofrimento junto com esta clientela, é produzir saúde mental, e é, afinal, o nosso objetivo, a despeito de tantos desafios.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    30 Nov 2022
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