Acessibilidade / Reportar erro

Butler e a Psicanálise: Do Fracasso das Normas à Estranheza do Gozo

Butler and Psychoanalysis: From the Failure of Norms to the Uncanniness of Jouissance

Butler y el Psicoanálisis: Del Fracaso de las Normas a la Rareza del Goce

Resumo

O objetivo deste artigo é fazer avançar o debate entre a psicanálise e os estudos queer, em especial a partir da interlocução traçada por Judith Butler com os trabalhos de Freud e Lacan. Retomando o modo como Butler articula Foucault, Derrida e a psicanálise para pensar os problemas de gênero, evidenciamos que a teoria psicanalítica permite à filósofa situar, a partir de sua concepção da melancolia de gênero, os pontos de fracasso da norma em função da vida psíquica do poder. Ainda que a cisheterossexualidade normativa imponha um roteiro de identificações e escolhas de objeto a seus sujeitos, há uma imprevisibilidade na maneira pela qual cada um responderá às injunções normativas da cultura, o que aponta para uma falha das normas em determinar completamente a subjetividade. A melancolia de gênero se torna, assim, uma marca da importância da psicanálise no percurso de Butler. Em seguida, discutimos as interpelações da filósofa ao simbólico lacaniano, bem como as nuances progressivamente introduzidas em sua leitura da diferença sexual. Ao longo do percurso de Butler, a diferença sexual deixa de ser considerada uma teoria da heterossexualidade e passa a ser apresentada como um conceito-borda, uma fronteira vacilante, que tomamos aqui como um convite para produzirmos uma releitura não normativa da diferença sexual na psicanálise a partir da teoria lacaniana da sexuação. Finalmente, localizamos a estranheza do gozo e o caráter irredutível da sexualidade às normas sociais como um importante eixo partilhado entre Butler e a psicanálise.

Palavras-chave:
Gênero; Sexualidade; Diferença Sexual; Normas Sociais; Gozo

Abstract

The aim of this article is to branch out the debate between psychoanalysis and queer studies, focusing on the interlocution drawn by Judith Butler with the works of Freud and Lacan. Returning to the way Butler articulates Foucault, Derrida and psychoanalysis to think about gender trouble, we show that psychoanalytic theory allows the philosopher to situate, from her conception of gender melancholy, the points of failure of the norm in function of the psychic life of power. After all, even though normative cis-heterosexuality imposes a script of identifications and object-choices on its subjects, there is an unpredictability to the way in which each one will respond to the normative injunctions of culture, so that norms fail to fully determine subjectivity. Gender melancholy thus becomes a mark of the importance of psychoanalysis in Butler’s path. Then, we discuss the philosopher’s interpellations to the Lacanian symbolic order, as well as the nuances progressively introduced in her reading of sexual difference. Along Butler’s path, sexual difference is no longer considered a theory of heterosexuality and is presented as a border-concept, a vacillating frontier, which we take here as an invitation to produce a non-normative rereading of sexual difference in psychoanalysis, resorting to the Lacanian theory of sexuation. Finally, we locate the uncanniness of jouissance and the irreducible character of sexuality to social norms as an important shared axis between Butler and psychoanalysis.

Keywords:
Gender; Sexuality; Sexual Difference; Social Norms; Enjoyment

Resumen

El objetivo de este artículo es hacer avanzar el debate entre el psicoanálisis y los estudios queer, enfatizando la interlocución trazada por Judith Butler con los trabajos de Freud y Lacan. Volviendo a la forma en que Butler articula a Foucault, Derrida y el psicoanálisis para pensar los problemas de género, mostramos que la teoría psicoanalítica permite a la filósofa ubicar, desde su concepción de la melancolía de género, los puntos de falla de la norma en función de la vida psíquica del poder. Aunque la cis-heterosexualidad normativa imponga identificaciones y elecciones de objeto a sus sujetos, hay una imprevisibilidad en la forma en que cada uno responderá a los mandatos normativos de la cultura, lo que apunta a un fracaso de las normas para determinar completamente la subjetividad. La melancolía de género se convierte, entonces, en una marca de la importancia del psicoanálisis en la trayectoria de Butler. En seguida, discutimos las interpelaciones de la filósofa a lo simbólico lacaniano, así como los matices progresivamente introducidos en su lectura de la diferencia sexual. A lo largo de la trayectoria de Butler, la diferencia sexual deja de ser considerada una teoría de la heterosexualidad y pasa a ser presentada como un concepto-borde, um límite vacilante, que tomamos aquí como una invitación para producirmos una relectura no normativa de la diferencia sexual en psicoanálisis a partir de la teoría lacaniana de la sexuación. Finalmente, ubicamos la rareza del goce y el carácter irreductible de la sexualidad a las normas sociales como un importante eje compartido entre Butler y el psicoanálisis.

Palabras-clave:
Género; Sexualidad; Diferencia Sexual; Normas Sociales; Goce

Em meio a tantos mal-entendidos que permeiam o debate entre a psicanálise e os estudos queer, as questões colocadas por Judith Butler - que será aqui a autora privilegiada para esse diálogo - convocam as/os psicanalistas a fazerem trabalhar sua teoria e sua prática, ao interpelá-los/as acerca de seu comprometimento com a reiteração de normatividades de gênero e sexualidade. Neste trabalho, partimos do pressuposto de que, a despeito de não haver uma complementaridade entre esses campos, há um debate não apenas possível, como também necessário - e que, como mostram Cavalheiro e Rodrigues (2021Cavalheiro, R., & Rodrigues, C. (2021). Para além do embate Butler-Lacan. Cult, 270, 24-28.), está posto desde o princípio dos estudos queer -, por meio de uma série de tensionamentos em que cada campo convoca o outro a avançar a partir de seus pontos de contribuição.

Nesse contexto, elencamos algumas perguntas que mobilizarão nossa argumentação ao longo deste trabalho: quais são os lugares conferidos à psicanálise nos estudos queer e, mais particularmente, na obra de Judith Butler? Quais ferramentas Butler encontra na teoria psicanalítica que lhe permitem pensar o sujeito e o desejo para além da identidade e da cisheterossexualidade? E de que forma a psicanálise lacaniana pode contribuir para pensar as formas contemporâneas de apresentação subjetiva no que diz respeito ao sexo, ao gênero e à sexualidade? De que modo as transformações nos campos de gênero e sexualidade - e sua materialização nos estudos queer - afetam a teoria e a prática da psicanálise?

Psicanálise e estudos queer: atravessamentos contemporâneos

Na década de 1990, vimos emergir nos Estados Unidos da América (EUA) um conjunto heterogêneo de ideias que ficou conhecido como “teoria queer”. Ainda que essa nomeação seja controversa, por pressupor um trabalho teórico unitário e homogêneo (Sáez, 2004Sáez, J. (2004). Teoría queer y psicoanálisis. Síntesis.), bem como por implicar uma bagagem epistemológica do Norte, com efeitos coloniais em sua exportação para o Sul (Pereira, 2015Pereira, P. P. G. (2015). Queer decolonial: Quando as teorias viajam. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, 5(2), 411-437.), ela serviu para localizar a produção de diversas autoras que trabalhavam, a princípio, a partir de um marco comum, que seria a crítica a uma heterossexualidade presumida na tradição de pensamento ocidental (Sáez, 2004Sáez, J. (2004). Teoría queer y psicoanálisis. Síntesis.). É nessa direção que podemos situar, entre tantos outros, os nomes de Eve K. Sedgwick, Teresa de Lauretis e Judith Butler, autoras cujos trabalhos são considerados fundadores desse campo.

Mas esse recorte inicial, centrado em questões de gênero e sexualidade, logo se expandiu para questões mais amplas, relacionadas aos atravessamentos de raça, classe, religião, etnia, deficiência, entre outros, mas cujo denominador coletivo pode ser considerado uma crítica aos processos de normalização social (Spargo, 2017Spargo, T. (2017). Foucault e a teoria queer. Autêntica.), que produzem tanto a pretensa normalidade quanto seu espectro de abjeção. É o que encontramos, por exemplo, nos trabalhos de Paul B. Preciado, Jack Halberstam, Jasbir Puar e José Esteban Muñoz, bem como, no Brasil, nos trabalhos de Larissa Pelúcio, Pedro Paulo Pereira, Berenice Bento, Richard Miskolci, entre tantos nomes que têm pensado a empreitada queer em solo latino-americano.

Nos EUA, ao menos no período mais inicial de formação desse campo - a saber, na década de 1990 -, a teoria queer, explicitamente filiada a autores como Foucault e Derrida, era também marcada por um recurso constante à psicanálise para interrogar a constituição do sujeito. É o que podemos ver, por exemplo, na coletânea Inside/out: lesbian theories, gay theories, livro editado por Diana Fuss (1991Fuss, D. (1991). Inside/out. In D. Fuss (Ed.), Inside/out: Lesbian theories, gay theories (pp. 1-10). Routledge.), cujos capítulos, escritos por autores das mais diversas áreas de formação, são atravessados pelo uso da teoria psicanalítica. Em sua capa, encontramos uma imagem que faz referência explícita ao nó borromeano de Lacan, como forma de evocar a indecidibilidade entre o dentro e o fora que a própria topologia vem figurar, na medida em que, por entrelaçar “muitos orifícios, muitos lugares de prazer, muitas economias libidinais”, o nó permite visualizar as “contorções e convoluções de qualquer formação de identidade sexual” (Fuss, 1991Fuss, D. (1991). Inside/out. In D. Fuss (Ed.), Inside/out: Lesbian theories, gay theories (pp. 1-10). Routledge., p. 7, tradução nossa).

Ainda que nem todas as autoras e autores desse campo se interessem dessa forma pela psicanálise, a obra da filósofa Judith Butler - que é uma das principais autoras que fizeram parte do cenário de surgimento da teoria queer, mesmo sem ter desejado explicitamente se vincular a esse rótulo - é marcada por um debate tenso e contínuo com a teoria psicanalítica, desde seus primeiros livros, a exemplo de Gender trouble: feminism and the subversion of identity (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.), até seus trabalhos mais recentes, como The force of non-violence: an ethico-political bind (Butler, 2020Butler, J. (2020). The force of non-violence: An ethico-political bind. Verso.).

Em alguns momentos de Gender trouble, traduzido no Brasil como Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (Butler, 2015dButler, J. (2015d). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (9a ed.). Civilização Brasileira.), a filósofa denuncia a psicanálise como uma teoria que tacitamente reitera as normas de uma “heterossexualidade compulsória”, isto é, uma espécie de heterossexualidade presumida ao teorizar sobre o sujeito e o desejo, como nas noções de complexo de Édipo e tabu do incesto encontradas na obra lacaniana, em diálogo com a antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Em outros momentos desse mesmo livro, Butler se serve de conceitos psicanalíticos como a melancolia, a identificação e a introjeção, a fim de pensar as estratégias de constituição e regulação dos gêneros e das “identidades” por meio da formulação da noção de “melancolia de gênero”.

Do outro lado do debate, diante das interpelações dos estudos queer - nomeação que, seguindo Cavalheiro e Rodrigues (2021Cavalheiro, R., & Rodrigues, C. (2021). Para além do embate Butler-Lacan. Cult, 270, 24-28.), privilegia a heterogeneidade desse campo em detrimento da ideia mais unitária de uma “teoria” -, a resposta de uma parte considerável das/dos psicanalistas - em especial, dos analistas lacanianos - frequentemente assume o tom de uma rivalidade imaginária, sob a alegação de que os pensadores queer buscam, por exemplo, “acabar” com a diferença sexual ou “negar o real”, em favor de uma proliferação de identidades e performances sexuadas que desconheceria a castração (Cavalheiro, 2019Cavalheiro, R. (2019). Caos, norma e possibilidades de subversão: psicanálise nas encruzilhadas do gênero. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume. http://hdl.handle.net/10183/200814
http://hdl.handle.net/10183/200814...
; Cunha, 2013Cunha, E. L. (2013). Sexualidade e perversão entre o homossexual e o transgênero: Notas sobre psicanálise e teoria queer. Epos, 4(2), 1-13. ). Nessa direção, muitos dos esforços dos psicanalistas têm sido voltados para desqualificar apressadamente seus pretensos oponentes ao buscarem encerrar o debate com Butler meramente por apontar suas falhas em compreender a teoria psicanalítica - a filósofa não teria lido o “último Lacan”, como se esse fato deslegitimasse as questões que ela coloca.

No entanto, ao responderem a esse debate no nível teórico ou no nível do saber, como se se tratasse de realizar uma leitura supostamente mais correta da psicanálise, esses analistas muitas vezes desativam a dimensão política do debate e deixam em segundo plano o que nos parece ser o ponto mais importante: que, para Butler, bem como para muitas das autoras dos estudos queer, o que está em jogo é como situar e combater um modo de funcionamento social que determina e segrega um espectro de abjeção, de vidas que não podem ser vividas como tais, a exemplo das vidas negras, periféricas e LGBTQIAP+. Se observamos esse ponto, parece ficar mais explícita a possibilidade e a importância de articulação entre ambos os campos, na medida em que também a psicanálise se caracteriza por uma direção ética contrária à segregação (Iannini & Lima, 2021Iannini, G., & Lima, V. M. (2021). Encontros à beira do abismo: Psicanálise, gênero e estudos queer. Cult, 270, 16-18.; Lima, 2021aLima, V. M. (2021a). A subversão pelos dejetos. Cult, 270, 19-23.).

No entanto, uma vez que a psicanálise não é isenta da incidência das normas sociais, isso significa que “o analista está tão exposto quanto qualquer outro a um preconceito relativo ao sexo, a despeito do que lhe revela o inconsciente” (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. In J. Lacan, Escritos (pp. 734-745). Zahar., p. 740). Assim, mesmo que a psicanálise, desde sua invenção, busque se colocar como um “saber subversivo” (Ambra, 2016Ambra, P. (2016). A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. Periódicus, 1(5), 101-120. https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17179
https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17179...
, p. 106) em relação à norma, ela também pode, por vezes, ser utilizada em proveito de posições reacionárias, conservadoras ou reprodutoras de arranjos normativos da tradição - como de fato já se deu ao longo da história e eventualmente se dá ainda hoje, a exemplo das discussões patologizantes sobre as transidentidades que encontramos em uma parcela importante da psicanálise lacaniana (Almeida, Castro, & Ribeiro, 2020Almeida, P. T.; Castro, M. F., & Ribeiro, S. D. (2020). Teorizar, repetir e patologizar: A leitura psicanalítica sobre as homossexualidades e transexualidades. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, 23(1), 77-98. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p77.6
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v2...
; Cunha, 2021Cunha, E. L. (2021). O que aprender com as transidentidades: Psicanálise, gênero e política. Criação Humana.; Pombo, 2020Pombo, M. (2020). Discursos contemporâneos sobre as transexualidades: Poder, verdade e subjetivação. Estudos e pesquisas em psicologia, 20(3), 770-789. https://doi.org/10.12957/epp.2020.54348
https://doi.org/10.12957/epp.2020.54348...
; Stona & Ferrari, 2020Stona, J., & Ferrari, A. G. (2020. Transfobias psicanalíticas. Subjetividades, 20(1), 1-12. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9778
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i...
).

Mas, a despeito disso, diversas autoras e autores dos estudos queer frequentemente convocam a psicanálise para o debate por apostarem, de alguma maneira, que esse campo tem contribuições a oferecer para as questões contemporâneas de gênero e sexualidade - ainda que apontem também a necessidade de reformulações em diversos pontos de seu edifício teórico-clínico. Sustentando esse endereçamento, e na impossibilidade de abarcar toda a complexidade dos estudos queer, proporemos investigar aqui o lugar da psicanálise de Freud e Lacan na obra de Butler, buscando situar quais elementos a filósofa encontra na teoria psicanalítica para formular suas concepções de gênero e sexualidade.

Butler leitora de Freud: da crítica do Édipo à formulação da melancolia de gênero

A performatividade de gênero talvez seja hoje a noção principal que utilizamos para situar a contribuição de Butler para os estudos queer. Articulando o “poder produtivo” de Michel Foucault à releitura de Jacques Derrida sobre a teoria dos performativos linguísticos em John Austin (Porchat, 2014Porchat, P. (2014). Ato performativo e desconstrução: O gênero em Judith Butler. In P. E. S. Ambra & N. Silva Jr. (Orgs.), Histeria e gênero: O sexo como desencontro (pp. 31-52). nVersos.), a concepção de gênero da filósofa envolve o reconhecimento de que as normas binárias da cisheterossexualidade produzem aquilo que nomeiam a partir da citação performativa de um modelo prévio do que seriam “homens” e “mulheres”, segundo uma perspectiva heterocentrada e naturalizada.

Fazendo um movimento decisivo de drenar as identidades de sua pretensa substância, o gênero em Butler passa a se constituir performativamente, isto é, pela repetição citacional de uma série de atos, gestos, estilizações corporais e outros elementos do discurso que engendram a ilusão de estabilidade que nos faz crer em uma identidade como “homem” ou “mulher”. Mas o que diferencia a filósofa do mero construcionismo social é sua preocupação com aquilo que precisa ser excluído do próprio binário normativo para que ele possa se constituir, ao pensar o gênero a partir das figuras da abjeção - como as homossexualidades e as transidentidades - que se situam no avesso dos ideais de homem e mulher, ou seja, mais além da construção social desses ideais (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge., 1993Butler, J. (1993). Bodies that matter: On the discursive limits of “sex”. Routledge.; Porchat, 2014Porchat, P. (2014). Ato performativo e desconstrução: O gênero em Judith Butler. In P. E. S. Ambra & N. Silva Jr. (Orgs.), Histeria e gênero: O sexo como desencontro (pp. 31-52). nVersos.).

O ponto que gostaríamos de salientar é que esse arranjo não se dá sem o recurso à teoria psicanalítica, na medida em que a própria performatividade de gênero se articula também ao modo como os roteiros normativos da cultura são singularmente apropriados por um sujeito em sua vida psíquica, a qual não necessariamente se submete de maneira completa às determinações da norma cisheterossexual (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., 2012Butler, J. (2012). Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s “Psychoanalysis and Feminism”. differences, 23(2), 1-19. https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
https://doi.org/10.1215/10407391-1629794...
). A consideração desse ponto conduziu Butler a formular a ideia de performatividade articulando-a à noção original de uma “melancolia de gênero” (Butler, 1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.), fruto de seu interesse pela psicanálise.

Afinal, para pensar o fracasso das normas em materializar um sujeito conforme suas atribuições normativas, é preciso não apenas uma concepção linguística dos performativos de gênero, mas também uma teoria do sujeito que leve em conta os desvios da norma inerentes à vida psíquica do poder (Butler, 1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.). Ainda que a cisheterossexualidade normativa imponha um roteiro de identificações e escolhas de objeto a seus sujeitos, há uma imprevisibilidade na maneira pela qual cada um responderá às injunções normativas da cultura, o que aponta para uma falha das normas em determinar completamente a subjetividade (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., 2012Butler, J. (2012). Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s “Psychoanalysis and Feminism”. differences, 23(2), 1-19. https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
https://doi.org/10.1215/10407391-1629794...
).

É essa dimensão de uma falha inerente à sexualidade que Butler encontra formulada na teoria psicanalítica e que mobiliza seu interesse pela psicanálise. Não somente, tal dimensão lhe permitirá formular a noção de “melancolia de gênero”, evidenciando a importância da psicanálise para sua trajetória - uma importância que é frequentemente deixada em segundo plano em sua recepção no Brasil, em favor da ênfase na interface de sua obra com Foucault e a desconstrução. Diante disso, buscaremos resgatar, a seguir, alguns dos elementos do debate de Butler com Freud e Lacan que atravessam seu percurso.

O complexo de Édipo é um dos principais alvos de Butler (1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.) em seu debate com a psicanálise e é lido como uma teoria que presume uma disposição inicial da criança de desejar o genitor do sexo/gênero “oposto” e identificar-se com o genitor do “mesmo” sexo/gênero. Essa perspectiva toma a cisheterossexualidade como base pressuposta e não problematizada de seu raciocínio para pensar a entrada do sujeito na cultura:

O menino se tornará um menino ao reconhecer que não pode ter sua mãe, e que deve encontrar uma mulher para substituí-la; a menina se tornará uma menina ao reconhecer que não pode ter sua mãe, substitui essa perda pela identificação com a mãe e então reconhece que não pode ter o pai e o substitui por um objeto masculino. De acordo com um esquema um tanto esquemático do complexo de Édipo, o gênero é adquirido através da satisfação do desejo heterossexual (Butler, 2003Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, (21), 219-260. https://doi.org/10.1590/S0104-83332003000200010
https://doi.org/10.1590/S0104-8333200300...
, p. 247).

No argumento de Butler (1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.), o temor da castração - elemento chave para o Édipo no menino, segundo Freud - poderia ser desdobrado em um medo da feminização, que só poderia ser temida numa cultura que aborda a feminilidade como hierarquicamente inferior à masculinidade. A filósofa ainda critica a reificação do tabu do incesto como proibição central na constituição do sujeito por ocultar um outro tabu que viria primeiramente: o tabu da homossexualidade. Nesse sentido, por exemplo, não haveria homossexualidade na teoria freudiana da disposição à bissexualidade, pois, nesta, apenas os opostos se atraem - o masculino só se dirige ao feminino e vice-versa -, de modo que essa teoria implica, no fundo, a coincidência de duas tendências heterossexuais dentro de um mesmo sujeito (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.).

Ao mesmo tempo, vale observar o modo como o reconhecimento - ainda que tardio, por parte de Freud - da presença da bissexualidade em todo complexo de Édipo permite relativizar a dimensão heteronormativa do próprio Édipo na obra freudiana, especialmente após O Eu e o Isso, de 1923. O caráter tardio desse reconhecimento, por sua vez, assume um caráter paradoxal, uma vez que essa noção de bissexualidade já fazia parte de seu pensamento desde as cartas a Fliess no fim dos anos 1890, mas as abordagens iniciais do Édipo em Freud - mesmo nos primeiros casos clínicos - pareciam não levá-la em conta. Um exemplo disso seria a chave de leitura heterossexual que orienta a condução freudiana do caso Dora (Lima, 2019Lima, V. M. (2019). Do mestre ao analista: Prescindir do exercício de seu poder. Reverso, 41(78), 63-70. ), da qual apenas mais tarde Freud pôde fazer uma autocrítica.

De todo modo, na dimensão mais radical de sua empreitada, ao contrário de conferir ao sujeito uma identidade de gênero e uma orientação sexual definitivas, Freud encontra na noção de bissexualidade um recurso para sustentar o atravessamento de cada um por identificações e escolhas de objeto que são incoerentes em relação às exigências normativas da cultura, de modo que podem conviver, num mesmo sujeito, identificações masculinas e femininas, bem como escolhas de objeto hetero e homossexuais - em que pesem aí as restrições binárias do vocabulário freudiano, devidamente apontadas por Butler (1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.).

Mas, mesmo preservando em diversos momentos uma terminologia médico-moral, herdada das produções psiquiátricas do século XIX (Foucault, 2015Foucault, M. (2015). História da sexualidade 1: A vontade de saber (3a ed.). Paz & Terra.), e com implicações de uma matriz binária da cisheterossexualidade (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.), o trabalho de Freud contém um ponto de ruptura fundamental em relação a essa herança normativa, uma vez que, na concepção freudiana, a sexualidade humana se torna “um desvio enigmático-paradoxal [paradox-ridden] de uma norma que não existe” (Zupančič, 2008Zupančič, A. (2008). Sexualidade e ontologia. Revista Estudos Lacanianos, 1(2), 311-328., p. 313).

Se o psicanalista fala de pulsão (Trieb) em vez de instinto (Instinkt), é para frisar que não há um objeto natural ligado à pulsão. Pelo contrário, a disposição para as perversões não é algo anormal, mas sim a “disposição originária universal da pulsão sexual humana” (Freud, 1905/1996Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 117-229). Imago. Trabalho original publicado em 1905., p. 218), culminando na afirmação de que, entre pulsão e objeto, existe apenas “uma solda” (p. 140), que depende dos pontos de fixação da satisfação pulsional na história do sujeito. Nesse sentido, a sexualidade humana não estaria guiada por um instinto genital reprodutivo, na medida em que aquilo a que visa a pulsão é a sua própria satisfação, de maneira desviante tanto em relação ao ideal cultural da heterossexualidade quanto em relação à pretensa finalidade biológica da reprodução, fato que levou Butler a se interessar por aquilo que chamou de um “movimento queer da pulsão” (Butler, 2015aButler, J. (2015a, 9 Setembro). Conferência magna com Judith Butler | I Seminário Queer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOVjSY
https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOV...
).

Assim, mesmo estando historicamente marcada por formulações que eventualmente recaem no biológico, no inato ou numa heterossexualidade presumida, a herança que a psicanálise nos deixou é, via de regra, um processo de desnaturalização da sexualidade, além de uma despatologização radical de formas sexuais ditas “desviantes”, bem como uma escuta da singularidade. No entanto, em outros momentos de sua obra, Freud também deu margem a uma teoria normativa do desenvolvimento ligada a fases de maturação: das fases pré-edípicas (oral, anal) da sexualidade infantil perversa-polimorfa à fase adulta (genital). Tal perspectiva serviu muitas vezes para alimentar a esperança de levar um sujeito a alcançar uma sexualidade tida como “normal”, isto é, centrada na genitalidade cisgênera e heterossexual, pela superação das fixações infantis perversas que contrariam os ideais edípicos - tensão que, ao longo de um século de movimento psicanalítico, sabemos ainda se reproduzir em alguma medida, particularmente no debate entre psicanálise e estudos queer (Cunha, 2013Cunha, E. L. (2013). Sexualidade e perversão entre o homossexual e o transgênero: Notas sobre psicanálise e teoria queer. Epos, 4(2), 1-13. ).

Diante disso, o complexo de Édipo freudiano talvez possa hoje ser relido como um operador que articula, por um lado, a convivência entre esses elementos heterogêneos da sexualidade infantil na subjetividade - identificações e escolhas de objeto pautadas pela disposição à bissexualidade e pela perversão polimorfa das pulsões - e, por outro, a incidência das exigências culturais de unificação subjetiva que visam recalcar esses elementos heterogêneos à norma cisheterossexual - não sem deixar restos que insistem e perturbam os ideais que orientam um sujeito. Nesse cenário, a direção ética de uma análise envolve dar lugar a esses restos que caem dos processos normativos de subjetivação, interpelando o caráter normativo, mas também falho, de seus ideais (Lima, 2021aLima, V. M. (2021a). A subversão pelos dejetos. Cult, 270, 19-23.).

Por sua vez, ao mesmo tempo que Butler sustenta suas críticas à psicanálise, há também, por parte da filósofa, a operacionalização de conceitos freudianos para compreender os processos hegemônicos de constituição e regulação dos gêneros. Formulando a hipótese de que o gênero tem uma estrutura melancólica, Butler (1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.) considera que os objetos de amor que tiveram de ser primitivamente abandonados pelo sujeito - privilegiadamente, na cultura ocidental, os amores homossexuais - recairiam sobre o Eu pela forma de uma identificação com esse objeto perdido. Assim, o amor homossexual que teve de ser negado seria preservado sob a forma da identificação: resta ao sujeito ser esse objeto que ele nunca pôde ter, pela via de uma introjeção melancólica no Eu pela qual ele desconhece a perda amorosa que sofreu. Nesse sentido, a própria performance de gênero, longe de ser um ato livre ou volitivo, é mobilizada por uma perda que o sujeito desconhece (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge., 1993Butler, J. (1993). Bodies that matter: On the discursive limits of “sex”. Routledge., 1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.).

Tal perspectiva serve à filósofa para pensar não apenas o modo como a heterossexualidade normativa é, ela mesma, fraturada pela permanência inconsciente de vínculos homossexuais num sujeito, parcial e precariamente convertidos em identificações de gênero (“eu me torno o homem que nunca amei”), mas também o modo como a vida psíquica se constitui como uma dimensão da subjetividade que é desviante em relação aos imperativos da norma cisheterossexual. Ainda que os imperativos da norma possam exigir de um sujeito a coerência e a integridade da cisgeneridade e da heterossexualidade, nada assegura que esses serão os desdobramentos de sua constituição subjetiva, pois a norma acaba por produzir não apenas seu ideal, mas também seus desvios constitutivos, a partir do modo singular pelo qual cada sujeito irá responder às injunções normativas que recebe da sua tradição.

Afinal, o fato de que uma proibição exista não significa que ela seja efetiva; pelo contrário, Butler (1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.) recorre à teoria freudiana para evidenciar que o proibido é passível de se tornar erotizado, de forma que a proibição acaba por preservar e investir libidinalmente o objeto mesmo que ela deveria apenas proscrever. É nesse sentido que encontramos, como resultado dos processos de subjetivação, não somente homens e mulheres pretensamente cisgêneros e heterossexuais - que serão também, no fundo, atravessados por uma série de desejos e identificações incoerentes em relação à norma -, mas também pessoas transvestigêneres, lésbicas butch, bichas afeminadas, bissexuais, pansexuais, assexuais, pessoas não bináries, agêneres, genderfuck, gênero fluido, entre outras tantas nomeações possíveis que dão corpo, cada uma à sua maneira, aos diversos desvios da norma que são franqueados pelas contingências da vida psíquica do poder.

Assim, por ser uma ferramenta construída por Butler em interface direta com a teoria psicanalítica, a melancolia de gênero é, a nosso ver, um dos elementos de seu percurso que evidenciam e materializam a importância da interface com a psicanálise para sua obra e para a especificidade de sua concepção de gênero. Não é à toa a centralidade assumida pela problemática do luto em sua obra posterior, que pode ser considerada um dos destinos de seu interesse pela temática da melancolia de gênero, reconfigurada para pensar a impossibilidade de realização de luto público por vidas que não são passíveis de serem vividas como tais e cujas perdas não são passíveis de serem pranteadas em nossa cultura.

Dessa forma, parece-nos que o relativo desaparecimento da noção de melancolia de gênero nos trabalhos da filósofa a partir dos anos 2000 é compensado pelo seu progressivo interesse quanto ao problema do luto (Butler, 2014Butler, J. (2014). O clamor de Antígona: Parentesco entre a vida e a morte. Editora UFSC., 2015cButler, J. (2015c). Notes toward a performative theory of assembly. Harvard University Press., 2016Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira., 2019Butler, J. (2019). Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Autêntica.; Rodrigues, 2021Rodrigues, C. (2021). O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Autêntica.). Nesse sentido, sustentamos aqui que a importância dada ao tema do luto nas obras mais recentes de Butler pode ser considerada, pelo menos em parte, como um desdobramento da presença da psicanálise em sua trajetória.

Nessa perspectiva, por um lado, Butler interpela a psicanálise em termos daquilo que ela percebe de normativo nesse campo; por outro, essa postura convive com momentos em que a filósofa compartilha com os analistas a posição de que “a opacidade do inconsciente coloca limites para a exteriorização da psique” (Butler, 1997Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press., p. 144, tradução nossa) ou, ainda, passagens em que Butler (2000Butler, J. (2000). Competing universalities. In J. Butler, E. Laclau, & S. Žižek, Contingency, hegemony, universality (pp. 136-181). Verso.) assegura que a psicanálise “tem um papel crucial a cumprir em qualquer teoria do sujeito” (p. 140, tradução nossa) ou que ela é “a melhor forma que nós temos de entender como as posições sexuais são assumidas” (Butler, 1996Butler, J. (1996). Gender as performance. In P. Osborne (Org.), A critical sense: Interviews with intellectuals (pp. 109-125). Routledge., p. 117, tradução nossa), pois não teríamos meios de relatar de que modo a sexualidade é formada sem a teoria psicanalítica. A psicanálise vem, assim, como ferramenta que permite situar os desvios singulares da sexualidade em relação às normas que tentam (con)formá-la aos ideais da cisheterossexualidade (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.).

Butler com Lacan: A estranheza do gozo e o impasse da diferença sexual

Jacques Lacan também comparece nas leituras de Butler. Em Problemas de gênero, a filósofa se dedica a estudar a produção da diferença sexual na ordem simbólica lacaniana a partir da matriz binária da cisheterossexualidade (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.). É nesse contexto que se daria a formulação do falo como significante que determina os homens na posição de “ter o falo” e as mulheres na posição de “ser o falo”, situadas como objetos de troca entre as linhagens masculinas, a partir da herança estruturalista recebida de Lévi-Strauss. Já em Bodies that matter (1993), Butler ainda propõe pensar aquilo que precisa ser excluído desse binário normativo para que ele possa se constituir como tal, a partir das figuras abjetas da bicha feminizada e da sapatão falicizada, que permanecem ausentes do simbólico lacaniano.

Essa “ordem simbólica”, frequentemente tomada de maneira transcendental e a-histórica pelos analistas lacanianos, diria respeito a uma sedimentação performativa de práticas sociais contingentes (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.) que instituiria uma idealização religiosa da norma fálica (Butler, 1990Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.). O que Butler denuncia nesse arranjo é a reificação de uma forma específica de subjetivação que seria dita incontornável: aquela que obriga os sujeitos a se conformarem a uma matriz binária, cisgênera e heterossexual, sob a ameaça de recaírem no campo das psicoses caso essa versão da lei simbólica não seja aceita.

Mesmo que essas pontuações partam da leitura de trabalhos lacanianos com os quais Butler se encontrou cerca de 30 anos atrás - ou seja, mesmo que possamos, hoje, fazer uma apresentação bastante diferente daquilo que entendemos como sendo a psicanálise lacaniana -, essas críticas da filósofa conservam sua importância na medida em que continuam a ressoar sobre os eventuais (des)usos normativos da teoria lacaniana em questões de gênero e sexualidade. Esse debate, inclusive, se reacendeu em 2021 com a publicação do texto de Jacques-Alain Miller, Dócil ao trans, cujas ressonâncias evidenciam a ainda frequente reabsorção da diferença sexual na psicanálise em termos da cisheterossexualidade normativa, a despeito dos esforços de vários analistas lacanianos em dissociar a diferença sexual do binário normativo de gênero (Cossi, 2019Cossi, R. K. (2019). Psicanálise e binaridade de gênero: Um debate à luz da sexuação lacaniana. Ágora, 22(3), 309-318. https://doi.org/10.1590/1809-44142019003006
https://doi.org/10.1590/1809-44142019003...
).

Nesse sentido, um dos desafios que enfrentamos hoje é o de pensar a psicanálise para além da diferença sexual, tal como tem sido feito de maneira instigante por analistas como Pombo (2018Pombo, M. (2018). Diferença sexual, psicanálise e contemporaneidade: Novos dispositivos e apostas teóricas. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental , 21(3), 545-567. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p545.8
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018...
) e Cavalheiro e Silva (2020Cavalheiro, R., & Silva, M. R. (2020). Psicanálise e dissidências de gênero: Questões para além da diferença sexual. Subjetividades, 20(3), 1-13. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9793
https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i...
), a fim de dar lugar a formas de subjetivação que não necessariamente se enquadram no binário de gênero - questão colocada atualmente pela existência das pessoas não bináries, a exemplo da própria Butler, que recentemente passou a se servir dessa categoria para se autodenominar. A esse respeito, Patricia Porchat lança uma instigante pergunta: “Em que medida demandar e obter um reconhecimento legal como pessoa não binária é mais uma provocação queer à psicanálise?” (Knudsen, 2021Knudsen, P. P. (2021). Três respostas aos gêneros “não binários”. Cult, 24(270), 31-35., p. 34).

Mas, paralelamente a essa empreitada, temos também o desafio de pensar a própria diferença sexual fora do enquadramento normativo da cisheterossexualidade, como sugerido por Butler em suas produções mais recentes. Fazendo uma leitura a posteriori de seu próprio percurso, a filósofa observa que, na época de Problemas de gênero, no começo dos anos 1990, ela identificava a diferença sexual com uma “teoria da heterossexualidade”, isto é, um regime epistemológico exclusivamente a serviço das normas da cisheterossexualidade (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.). Em seus trabalhos posteriores, por sua vez, encontramos tentativas de nuançar essa posição (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., 2012Butler, J. (2012). Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s “Psychoanalysis and Feminism”. differences, 23(2), 1-19. https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
https://doi.org/10.1215/10407391-1629794...
; Butler & McManus, 2020Butler, J., & McManus, M. (2020). Matt McManus interviews Judith Butler [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0nm1k
https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0n...
).

Ao contrário de decretar o fim da diferença sexual, como alegado por muitos de seus opositores, Butler afirma, em uma entrevista concedida em 2020, a importância do binário para muitas das - embora não todas - pessoas trans, que eventualmente encontram, no binário da diferença sexual, um modo de se localizar no mundo como homem ou mulher, gesto que lhes franqueia um reconhecimento de sua própria humanidade (Butler & McManus, 2020Butler, J., & McManus, M. (2020). Matt McManus interviews Judith Butler [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0nm1k
https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0n...
). Desse modo, não se trata de “eliminar” a diferença sexual, mas de pensá-la fora da cisheterossexualidade normativa (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.) e sem restringi-la à cisgeneridade naturalizada e à organização heterossexual do parentesco (Butler, 2012Butler, J. (2012). Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s “Psychoanalysis and Feminism”. differences, 23(2), 1-19. https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
https://doi.org/10.1215/10407391-1629794...
). Partindo dessa direção dada pela filósofa, buscaremos aqui esboçar alguns elementos que permitem uma leitura não normativa da diferença sexual em psicanálise, a partir dos modos de gozo na sexuação lacaniana.

Em Undoing gender, a filósofa sustenta que a diferença sexual não é um mero fato ou um fundamento último para a subjetividade, mas tampouco uma pura construção linguística que poderia ser simplesmente abandonada. Antes, ela é uma questão para o nosso tempo, que deve permanecer inquieta, em aberto, sem uma resposta definitiva, na medida em que sua presença persiste para nós como um enigma não inteiramente explicável (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., p. 177). O desafio que Butler (2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.) propõe é o de sustentar esse ponto de abertura, em que essa diferença não seja finalmente reconduzida às formas tradicionais da heterossexualidade normativa, uma vez que masculino e feminino podem, inclusive, circular mais além de corpos marcados respectivamente como de homens ou de mulheres.

A diferença sexual nos coloca, assim, diante de uma dificuldade permanente em determinar onde começam e terminam o biológico, o psíquico, o discursivo e o social (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.). Por isso, seu estatuto ontológico é difícil de determinar: ela não é nem inteiramente dada, nem inteiramente construída, mas parcialmente ambas. Nesse sentido, tal diferença é o lugar em que se coloca uma questão sobre a ligação entre o biológico e o cultural, sem que essa questão possa ser respondida: ela se torna, então, um “conceito-borda” (border concept) ou uma “fronteira vacilante” (vacillating border), de modo que seus termos permanecem abertos para renegociação (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., p. 186).

Propor que a diferença sexual seja pensada fora da heteronormatividade significa, então, desvinculá-la de toda idealização do dimorfismo anatômico ou generificado, de modo que ela não tenha nenhuma consequência natural ou necessária para a organização social da sexualidade (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.). Dessa forma, talvez seja possível considerar essa diferença como aquilo que “corrompe a coerência de qualquer postulação de identidade” (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., p. 203, tradução nossa), na medida em que o sujeito, nomádico por estrutura, seria sempre passível de atravessar as fronteiras dessa diferença, de um lado para o outro e vice-versa, sem estar confinado a uma identidade particular como “homem” ou “mulher”, tampouco a uma performance de gênero exclusivamente “masculina” ou “feminina”.

Diante disso, gostaríamos de sugerir aqui que a diferença sexual na psicanálise, tal como concebida a partir da tábua da sexuação, pode ser relida, hoje, em função dessa direção apontada por Butler. Afinal, ao levarmos em conta os trânsitos e a circulação dos seres falantes na sexuação, podemos considerar que a tábua não possui, por si só, uma fronteira rígida separando seus dois lados.

Se quisermos nos servir da definição lacaniana que encontramos em Lituraterra, a fronteira diz respeito a um esforço falhado de delimitar e separar territórios, esforço este que revelaria haver um denominador comum entre os campos que se busca diferenciar (Lacan, 2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 15-25). Zahar.). Assim, quando traçamos uma fronteira, buscamos demarcar territórios que são, no fundo, homogêneos, como o limite entre dois países - ou entre dois gêneros -, operação que, por sua arbitrariedade, sempre assume um estatuto ficcional.

Paralelamente à noção de fronteira, Lacan (2003Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 15-25). Zahar.) também desenvolve a noção de litoral, no qual encontramos elementos distintos - como a água e a areia, o mar e o céu - que se fazem fronteiras por serem heterogêneos entre si, mas cujo limite é impossível de ser localizado - ou só pode ser localizado de maneira contingente, não necessária. Um litoral envolve a aproximação de dois elementos heterogêneos que, no entanto, não se misturam, não se dissolvem um no outro, sendo diferentes por estrutura.

Servindo-nos dessa diferença entre fronteira e litoral, gostaríamos de sugerir aqui que a própria tábua da sexuação pode ser lida tanto de maneira fronteiriça quanto de maneira litorânea - decisões de leitura que produzem diferentes consequências para cada direção assumida. Tomar a tábua de maneira fronteiriça significa assumir que seus dois lados, “homem” e “mulher” - respectivamente, lados esquerdo e direito da tábua -, teriam de ser sustentados por uma fronteira rígida e excludente, ao passo que tomá-la de maneira litorânea envolve indicar que a própria linha traçada em seu centro já é uma operação que busca produzir uma delimitação binária - fronteiriça - entre os lados “masculino” e “feminino”, correndo o risco de deixar em segundo plano a circulação dos seres falantes entre esses lados.

Figura 1
Tábua da sexuação reconstruída a partir de Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar., p. 84)

Nessa perspectiva, abordar os dois lados da sexuação como uma separação rígida - encarando “homem” e mulher” como duas posições estáveis e bem definidas - já seria uma operação de leitura orientada pela lógica do todo fálico, que, mesmo de maneira falha, busca delimitar uma fronteira que seria necessária para localizar seu gozo, desconsiderando o que sustentamos aqui como o caráter potencialmente litorâneo da própria sexuação. O uso do termo “potencialmente” não é gratuito, afinal, diversos psicanalistas leem a tábua fazendo dela uma fronteira - fato que deu margem a importantes críticas por parte de autoras/es com circulação pelo feminismo e pelos estudos queer, que enxergam na teoria da sexuação uma demarcação rígida/binária entre “homens” e “mulheres” (Arán, 2003Arán, M. (2003). Lacan e o feminino: Algumas considerações críticas. Natureza humana, 5(2), 293-327.; Pombo, 2018Pombo, M. (2018). Diferença sexual, psicanálise e contemporaneidade: Novos dispositivos e apostas teóricas. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental , 21(3), 545-567. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p545.8
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018...
).

Muitas vezes, essa perspectiva de leitura fronteiriça por parte dos psicanalistas - e que se reflete nas críticas queer e feministas ao que entendem como a preservação do binarismo de gênero na sexuação - tem como efeito a reificação de homens cisgênero colados ao todo fálico e de mulheres cisgênero coladas ao não-todo fálico - partição à qual a experiência clínica cotidiana faz objeção. Pois, diferentemente dessa restrição binária, o que a escuta analítica permite constatar é precisamente o movimento e a circulação dos sujeitos pela tábua, tal como indicado também pela própria obra lacaniana, como veremos adiante.

Nesse sentido, podemos considerar que a tentativa de tomar a sexuação de maneira rígida, como se se tratasse de dois lados estáticos e isolados, já decorre de uma posição de leitura - e/ou de um funcionamento subjetivo - bastante afim à dimensão fronteiriça da lógica do todo fálico, que depende da exclusão de todo elemento de alteridade para se configurar como uma totalidade pretensamente fechada - e que, no entanto, está a todo instante ameaçada de ser invadida, perfurada, atravessada por aquilo mesmo que se pretende excluir.

Assim, por mais que haja uma linha no centro da tábua - a “divisão vertical do que chamamos impropriamente a humanidade” (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar., p. 86) - separando os lados masculino e feminino da sexuação, somos remetidos ao caráter ficcional dessa linha - bem como de toda fronteira - justamente no momento em que ela é cortada, atravessada pelas setas que levam de um lado para o outro da própria tábua, indicando tanto a não relação quanto as interações e os câmbios entre seus lados e nos lembrando dos trajetos possíveis de serem percorridos por cada ser falante na sexuação. Desse modo, argumentamos aqui que a tábua da sexuação pode ser tomada como uma escrita litorânea, que dá margem ao movimento dos seres falantes, abrindo para deslocamentos, avanços e recuos de um lado para o outro, sem permitir ao sujeito se estabilizar numa identidade.

Essa maneira de ler a própria tábua da sexuação como não-toda, isto é, como um litoral entre modos de gozo heterogêneos que atravessam cada ser falante, e não como duas posições a serem rigidamente distinguidas pelas fronteiras normativas do gênero, parece-nos se aproximar da abordagem da diferença sexual por Butler (2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.) como um “conceito-borda” ou uma “fronteira vacilante”. Nesse ponto, um sujeito seria passível de atravessar as fronteiras dessa diferença de maneira correlata ao modo como irá se haver com o finito e o infinito do gozo, como veremos adiante. Cabe salientar, ainda, que encontramos em Lacan essas duas vertentes de leitura da sexuação, momentos tanto mais fronteiriços quanto mais litorâneos em sua forma de apresentar a tábua. Buscaremos, então, extrair algumas consequências dessas duas abordagens da sexuação à luz das questões contemporâneas de gênero e sexualidade que afetam a teoria e a prática da psicanálise.

Partiremos, assim, do fato de que os dois lados da tábua da sexuação são nomeados por Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar.) como “homem” e “mulher” - termos que ele anuncia como uma “abreviatura” (p. 70). Gostaríamos de sublinhar, neste ponto, que o psicanalista afirma retirar esses termos do “discurso corrente” (p. 40), do uso corriqueiro que esses significantes assumem no discurso. Ao fazê-lo, entendemos que Lacan está atento, à sua maneira, à dimensão performativa desses significantes, bem como ao fato de que o discurso convoca os seres falantes a assumirem uma posição sexuada, de um lado ou de outro, como homem ou mulher. Nesse sentido, essa maneira fronteiriça de ler a tábua talvez nos permita cernir o modo como as normas binárias de gênero buscaram, ao longo da história, distribuir os seres falantes entre os modos de gozo “todo fálico” e “não-todo fálico”.

Nessa perspectiva, seguindo as fronteiras normativas do gênero, deveria se posicionar do lado dito “masculino” da sexuação todo aquele - e tão somente aquele - que nasce dotado de um órgão no corpo que podemos situar discursivamente como um pênis; sua posição, presumidamente viril, portadora do falo simbólico, deve envolver a objetificação da alteridade, reduzindo-a a um objeto de seu fantasma. Ao passo que, do lado dito “feminino”, deveria estar cada um que nasce desprovido desse atributo fálico, desde que reduzindo esses seres ao lugar de objeto da fantasia masculina, pretensamente sem acesso a um Outro gozo - que, no entanto, acessam de maneira contingente - e devendo reencontrar o falo no corpo de um homem (Lima & Vorcaro, 2020Lima, V. M., & Vorcaro, A. M. R. (2020). O pioneirismo subversivo da psicanálise nos debates de gênero e sexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003192180
https://doi.org/10.1590/1982-37030031921...
). Na tradição cisheteronormativa ocidental, esses limites não deveriam ser transpostos: quaisquer trânsitos nesse campo - a exemplo dos dissidentes de gênero e sexualidade, que recusam as designações advindas dessa tradição discursiva - são punidos com violência e mesmo com a morte, numa tentativa sempre falha de resguardar a fronteira binária entre os sexos (Lima, 2021bLima, V. M. (2021b). Psicanálise e homofobia: O infamiliar na sexuação. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental , 24(2), 397-420. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021...
).

Em um texto originalmente publicado em 1998, Butler (2015Butler, J. (2015a, 9 Setembro). Conferência magna com Judith Butler | I Seminário Queer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOVjSY
https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOV...
) também interrogou a estabilidade da linha que demarcaria a fronteira entre os sexos como algo rígido: dizer que essa linha é traçada ou traçável é também sugerir implicitamente que ela não está dada de antemão. Nesse sentido, é a partir de certas convenções que somos compelidos a traçar essa linha em determinado ponto e não em outro e, na medida em que está sempre em negociação, em suas diversas mutações históricas e subjetivas, a constituição desse traçado é frequentemente acompanhada de uma sensação de “angústia” (anxiety) e “desconhecimento” (unknowingness) (Butler, 2015Butler, J. (2015a, 9 Setembro). Conferência magna com Judith Butler | I Seminário Queer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOVjSY
https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOV...
), mediante aquilo que contará ou não como um “sexo” a partir de seus ideais regulatórios.

Nessa direção, poderíamos considerar que a própria tentativa de traçar essa linha na tábua da sexuação de maneira rígida e fronteiriça já é uma estratégia centrada na lógica do todo fálico, que busca, por meio de uma experiência do gozo pautada por um limite, afastar a angústia diante da indeterminação produzida pelo encontro com aquilo que há de não-todo na própria experiência do sexual. Assim, entre os lados da tábua, tentamos traçar uma fronteira, mas, ao que tudo indica, esses lados funcionam como um litoral. Seus elementos - $, Ф, LȺ, a e S(Ⱥ) - são heterogêneos entre si, diferenciam-se por estrutura e permitem trajetórias contingentes na sexuação entre o todo fálico e o não-todo, de modo que é apenas por uma operação normativa da cultura que somos convocados a traçar a linha que os distingue formalmente entre “homem” e “mulher”.

Nesse sentido, os seres falantes transitam na sexuação, podendo ocupar tanto a vertente fálica como a não-toda fálica do gozo, as quais, por se apresentarem como modos inconscientes de satisfação, não conferem ao sujeito uma identidade, embora o universo do todo fálico possa fornecer uma ilusão de consistência à qual muitos sujeitos - das mais diversas identificações de gênero - se apegam. Lacan (2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar.) mesmo afirma que as mulheres seriam livres para se colocarem ali, se isso lhes agrada; e considera tanto a mãe quanto a histérica como duas figuras paradigmáticas da posição masculina na sexuação. Paralelamente, também não se é forçado, quando se é designado pelo discurso biológico como macho, a se colocar como todo fálico; contingentemente, pode-se também deslizar para o lado do não-todo, a despeito da presença corporal do pênis, a exemplo do místico São João da Cruz (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar.).

Assim, os termos “homem” e “mulher” na sexuação talvez correspondam menos a um pretenso dado biológico do sexo do que às formas historicamente constituídas de tentar distribuir os gêneros entre os modos de gozo (Lima & Vorcaro, 2020Lima, V. M., & Vorcaro, A. M. R. (2020). O pioneirismo subversivo da psicanálise nos debates de gênero e sexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003192180
https://doi.org/10.1590/1982-37030031921...
), fazendo existir entre eles uma fronteira - cuja função no discurso parece ser a de ocultar um litoral radicalmente permeável ao trânsito e à invenção. Uma vez que esses modos de gozo, todo e não-todo fálico, não estão necessariamente vinculados a “homens” e “mulheres”, trata-se, na sexuação, de uma “masculinidade sem homens”, como diria Jack Halberstam (2018Halberstam, J. (2018). Female masculinity. Duke University Press.), e de um “feminino de ninguém”, como escreve Maria Gabriela Llansol (1994Llansol, M. G. (1994). Lisboaleipzig 2 - o ensaio de música. Rolim.).

Nessa direção, tomamos aqui os modos de gozo não tanto como duas identidades de gênero, naturalizadas ou reificadas como “homens” e “mulheres” - colados ao todo e ao não-todo fálicos -, mas antes como duas maneiras de habitar um corpo pelas quais um sujeito pode transitar contingentemente, com a consequência de que a trajetória que cada um constrói na sua própria sexuação afetará o modo como esse sujeito abordará a linha que separa os sexos. Assim, a adesão ao gozo fálico e/ou a frequentação do não-todo fálico atravessam o modo como um sujeito busca fazer do gozo uma experiência fronteiriça e localizada de maneira necessária em determinado semblante, no caso do gozo fálico, ou uma experiência litorânea em que os limites - corporais, identitários etc. - não se estabelecem de maneira rígida, mas sim de modo contingente, no caso do gozo não-todo fálico.

O que está em jogo, então, é o modo como cada ser falante irá inventar artesanalmente uma maneira de coordenar um semblante ao seu modo singular de gozo, seja buscando fazer do seu corpo um todo que se fecha - sustentando uma relação rígida ao semblante, mais afim ao funcionamento da fronteira (gozo fálico) -, seja permanecendo atravessado pelo elemento de alteridade que faz desconsistir as tentativas de encerrar o corpo numa totalidade fechada, abrindo-se ao encontro entre o finito da areia e o ilimitado do mar, que permite um uso mais maleável dos semblantes (não-todo fálico).

Nos seres falantes que se apegam ao gozo fálico, então, temos uma maneira de armar um corpo a partir da extração de um elemento de exceção - um falo, um dildo, um objeto a - que limita e orienta o gozo e permite ao corpo a ilusão de se fechar em uma totalidade, produzindo um embrutecimento fálico que faz barreira aos elementos da alteridade. Ao passo que, nos seres falantes que se deixam atravessar pelo não-todo, encontramos um uso do corpo mais permeável a essa alteridade que habita cada ser falante à sua revelia e que, se com ela consentimos, permite acessar uma dimensão do gozo que escapa à circunscrição fálica e abre o corpo para uma experiência do infinito.

Ainda que o embrutecimento corporal e o fechamento fálico sejam tradicionalmente articulados aos semblantes da virilidade em nossa cultura - tal como a abertura à alteridade também se conecta frequentemente com os semblantes do feminino -, o que nos interessa sublinhar aqui é a dimensão da singularidade da sexuação mais além do binário normativo do gênero. Trata-se, assim, de dar lugar ao uso que cada ser falante faz do seu corpo, a partir da forma como cada um se nomeia e busca, por esse ato de nomeação, cernir algo da opacidade da sua experiência subjetiva com o gozo. Nesse sentido, torna-se tarefa de cada ser falante inventar sua maneira de vincular um semblante ao seu modo de gozo, seja recorrendo à tradição, seja subvertendo suas designações e produzindo uma nomeação própria.

Salientamos, ainda, a imprevisibilidade e a contingência dos desdobramentos que cada ser falante irá extrair de seus trânsitos na sexuação. Nesse sentido, pensamos no percurso de um homem trans que, no decurso de sua transição em direção aos semblantes da masculinidade - com os quais busca uma inserção no universo do todo fálico -, acaba por experimentar efeitos de abertura a algo do não-todo, bem como no percurso de um homem cis gay que, ao relatar sua maneira de montar sua personagem drag e construir com ela performances de feminilidade, percebe que faz ali um uso do corpo mais rígido - para sustentar seu semblante fálico diante das outras drags - do que em seu cotidiano como uma bicha afeminada.

É nesse ponto que sustentar a radicalidade ética de uma experiência de análise envolve acompanhar o modo singular como um sujeito se nomeará e fará seu trânsito entre os modos de gozo a fim de traçar destinos contingentes para sua posição sexuada. Nesse sentido, a aposta da psicanálise talvez consista em escutar e contribuir para o tratamento da narrativa e dos afetos por meio dos quais todo sujeito fracassa - e se afirma simultaneamente - em suas tentativas de, fazendo e desfazendo gênero, abordar a alteridade constitutiva de sua sexualidade.

Considerações finais

Ao longo de seu percurso, Butler tem buscado cernir o modo como as normas sociais falham em produzir uma determinação completa da subjetividade, dando margem não apenas ao registro dos ideais, mas também aos seus campos de abjeção. Em diálogo com a obra freudiana, a filósofa se interessou por aquilo que nomeou como a melancolia de gênero e a vida psíquica do poder, ferramentas que lhe permitem situar os desvios constitutivos do sexual em relação à norma. Nessa perspectiva, a sexualidade “nunca é inteiramente capturada por nenhuma regulação” (Butler, 2004Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge., p. 15, tradução nossa), com a consequência de que o sexual não é totalmente redutível a uma operação específica do poder regulatório.

Talvez a psicanálise lacaniana tenha ferramentas para investigar essa dimensão a partir do aforismo de que não há relação sexual. Ainda que esse aforismo não seja um foco de investigação da filósofa, ele vem indicar a inexistência de uma lei universal para a atração entre os seres humanos, bem como a ausência de uma garantia ou de uma segurança ontológica para as nossas identificações. Desse modo, não há nenhuma proporção ou complementaridade que determine o encontro com o Outro sexo, qualquer que seja ele, na medida em que cada ser falante estará intimamente atravessado pelas marcas singulares de gozo que produzem seu exílio da relação sexual (Lacan, 2008Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar.).

Assim, o que não permite que a relação exista é o fato de que o que se escreve do gozo é marcado pelo desencontro, pelo fracasso, uma vez que não há uma programação simbólica, a priori, que ordene naturalmente os modos de satisfação do ser falante. A estranheza do gozo em cada um, correlata do fato de que não há relação sexual, corrompe qualquer esperança na estabilidade de uma identidade. O gozo é algo parasitário, algo que nos chateia: ninguém goza “como se deveria”. Na dimensão mais radical da experiência do erotismo, presenciamos o desmoronamento de nossas insígnias identitárias, esbarrando na impotência da norma em garantir a relação sexual, um encontro harmonioso com o objeto.

Despossuído pelo sexual, o sujeito já não sabe bem quem é ou onde está (Butler, 1992Butler, J. (1992). The body you want: Liz Kotz interviews Judith Butler. Artforum, 31(3), 82-89.): essa estranheza do íntimo anuncia a sexualidade como refratária a toda mestria, impondo uma desarmonia que bloqueia a plena realização de nossos ideais - alinhados ou não à cisheterossexualidade, pois as tentativas de normatização ou de normalização da sexualidade e do gênero muitas vezes participam também de diversas outras formas de vida sexual. Diante disso, a despossessão subjetiva produzida pelo sexual comparece como um efeito - evanescente, talvez - que assinala um elemento que resiste às operações cada vez mais complexas das mestrias do erotismo. No seio de toda identidade, mas cada uma à sua maneira, há algo que não funciona: o gozo aparece como problema, trouble, troumatisme, para o ser falante, ponto de opacidade corporal que divide o sujeito. Afinal, “é essa relação perturbada com o próprio corpo que se chama gozo” (Lacan, 2011Lacan, J. (2011). O seminário, livro 19: … ou pior. Zahar., p. 41).

Assim, à estranheza do gozo corresponde a singularidade da sexuação: para cada ser falante, trata-se de amarrar um modo próprio de satisfação pulsional a algum semblante capaz de cernir, ao menos parcialmente, a opacidade de sua experiência com o gozo. Tal gesto pressupõe dar lugar às nomeações de cada um, seja se servindo do binário homem-mulher, seja prescindindo dele - ou mesmo se servindo do binário para poder eventualmente dele prescindir, buscando se afirmar em um ponto para, de repente, descobrir-se em outro.

Nesse sentido, tal como os estudos queer buscam tornar viáveis vidas que não se encaixam nas condições de inteligibilidade da hegemonia cisheterossexual, também a psicanálise se interessa pela forma como cada sujeito porta algo de estranho à norma. Afinal, sua operação visa fazer caber no coletivo um ponto do singular, rebelde à universalização, convocando cada um a se haver com aquilo em que tropeça, isto é, com a estranheza de sua satisfação pulsional. No limite, talvez seja na incompletude mesma desses campos que reside o espaço para a diferença, ponto de respiração a partir do qual a psicanálise e os estudos queer podem simultaneamente avançar ao suportarem a continuidade de sua tensão produtiva.

Referências

  • Almeida, P. T.; Castro, M. F., & Ribeiro, S. D. (2020). Teorizar, repetir e patologizar: A leitura psicanalítica sobre as homossexualidades e transexualidades. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental, 23(1), 77-98. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p77.6
    » https://doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p77.6
  • Ambra, P. (2016). A psicanálise é cisnormativa? Palavra política, ética da fala e a questão do patológico. Periódicus, 1(5), 101-120. https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17179
    » https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17179
  • Arán, M. (2003). Lacan e o feminino: Algumas considerações críticas. Natureza humana, 5(2), 293-327.
  • Butler, J. (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. Routledge.
  • Butler, J. (1992). The body you want: Liz Kotz interviews Judith Butler. Artforum, 31(3), 82-89.
  • Butler, J. (1993). Bodies that matter: On the discursive limits of “sex”. Routledge.
  • Butler, J. (1996). Gender as performance. In P. Osborne (Org.), A critical sense: Interviews with intellectuals (pp. 109-125). Routledge.
  • Butler, J. (1997). The psychic life of power: Theories in subjection. Stanford University Press.
  • Butler, J. (2000). Competing universalities. In J. Butler, E. Laclau, & S. Žižek, Contingency, hegemony, universality (pp. 136-181). Verso.
  • Butler, J. (2003). O parentesco é sempre tido como heterossexual? Cadernos Pagu, (21), 219-260. https://doi.org/10.1590/S0104-83332003000200010
    » https://doi.org/10.1590/S0104-83332003000200010
  • Butler, J. (2004). Undoing gender. Routledge.
  • Butler, J. (2012). Rethinking sexual difference and kinship in Juliet Mitchell’s “Psychoanalysis and Feminism”. differences, 23(2), 1-19. https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
    » https://doi.org/10.1215/10407391-1629794
  • Butler, J. (2014). O clamor de Antígona: Parentesco entre a vida e a morte. Editora UFSC.
  • Butler, J. (2015a, 9 Setembro). Conferência magna com Judith Butler | I Seminário Queer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOVjSY
    » https://www.youtube.com/watch?v=TNXxRsOVjSY
  • Butler, J. (2015b). “How can I deny that these hands and this body are mine?”. In J. Butler, Senses of the subject (pp. 17-35). Fordham University Press.
  • Butler, J. (2015c). Notes toward a performative theory of assembly. Harvard University Press.
  • Butler, J. (2015d). Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade (9a ed.). Civilização Brasileira.
  • Butler, J. (2016). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (2a ed.). Civilização Brasileira.
  • Butler, J. (2019). Vida precária: Os poderes do luto e da violência. Autêntica.
  • Butler, J. (2020). The force of non-violence: An ethico-political bind. Verso.
  • Butler, J., & McManus, M. (2020). Matt McManus interviews Judith Butler [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0nm1k
    » https://www.youtube.com/watch?v=0A1uuD0nm1k
  • Cavalheiro, R. (2019). Caos, norma e possibilidades de subversão: psicanálise nas encruzilhadas do gênero. [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume. http://hdl.handle.net/10183/200814
    » http://hdl.handle.net/10183/200814
  • Cavalheiro, R., & Silva, M. R. (2020). Psicanálise e dissidências de gênero: Questões para além da diferença sexual. Subjetividades, 20(3), 1-13. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9793
    » https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i3.e9793
  • Cavalheiro, R., & Rodrigues, C. (2021). Para além do embate Butler-Lacan. Cult, 270, 24-28.
  • Cossi, R. K. (2019). Psicanálise e binaridade de gênero: Um debate à luz da sexuação lacaniana. Ágora, 22(3), 309-318. https://doi.org/10.1590/1809-44142019003006
    » https://doi.org/10.1590/1809-44142019003006
  • Cunha, E. L. (2013). Sexualidade e perversão entre o homossexual e o transgênero: Notas sobre psicanálise e teoria queer. Epos, 4(2), 1-13.
  • Cunha, E. L. (2021). O que aprender com as transidentidades: Psicanálise, gênero e política. Criação Humana.
  • Foucault, M. (2015). História da sexualidade 1: A vontade de saber (3a ed.). Paz & Terra.
  • Freud, S. (1996). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 117-229). Imago. Trabalho original publicado em 1905.
  • Fuss, D. (1991). Inside/out. In D. Fuss (Ed.), Inside/out: Lesbian theories, gay theories (pp. 1-10). Routledge.
  • Halberstam, J. (2018). Female masculinity. Duke University Press.
  • Iannini, G., & Lima, V. M. (2021). Encontros à beira do abismo: Psicanálise, gênero e estudos queer. Cult, 270, 16-18.
  • Knudsen, P. P. (2021). Três respostas aos gêneros “não binários”. Cult, 24(270), 31-35.
  • Lacan, J. (1998). Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina. In J. Lacan, Escritos (pp. 734-745). Zahar.
  • Lacan, J. (2003). Lituraterra. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 15-25). Zahar.
  • Lacan, J. (2008). O seminário, livro 20: mais, ainda. Zahar.
  • Lacan, J. (2011). O seminário, livro 19: … ou pior. Zahar.
  • Lima, V. M. (2019). Do mestre ao analista: Prescindir do exercício de seu poder. Reverso, 41(78), 63-70.
  • Lima, V. M. (2020). Lacan, as normas de parentesco e a castração masculina. Tempo psicanalítico, 52(2), 6-27.
  • Lima, V. M., & Vorcaro, A. M. R. (2020). O pioneirismo subversivo da psicanálise nos debates de gênero e sexualidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003192180
    » https://doi.org/10.1590/1982-3703003192180
  • Lima, V. M. (2021a). A subversão pelos dejetos. Cult, 270, 19-23.
  • Lima, V. M. (2021b). Psicanálise e homofobia: O infamiliar na sexuação. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental , 24(2), 397-420. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9
    » http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p397.9
  • Llansol, M. G. (1994). Lisboaleipzig 2 - o ensaio de música. Rolim.
  • Pereira, P. P. G. (2015). Queer decolonial: Quando as teorias viajam. Contemporânea: Revista de Sociologia da UFSCar, 5(2), 411-437.
  • Pombo, M. (2018). Diferença sexual, psicanálise e contemporaneidade: Novos dispositivos e apostas teóricas. Revista latino-americana de psicopatologia fundamental , 21(3), 545-567. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p545.8
    » http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n3p545.8
  • Pombo, M. (2020). Discursos contemporâneos sobre as transexualidades: Poder, verdade e subjetivação. Estudos e pesquisas em psicologia, 20(3), 770-789. https://doi.org/10.12957/epp.2020.54348
    » https://doi.org/10.12957/epp.2020.54348
  • Porchat, P. (2014). Ato performativo e desconstrução: O gênero em Judith Butler. In P. E. S. Ambra & N. Silva Jr. (Orgs.), Histeria e gênero: O sexo como desencontro (pp. 31-52). nVersos.
  • Rodrigues, C. (2021). O luto entre clínica e política: Judith Butler para além do gênero. Autêntica.
  • Sáez, J. (2004). Teoría queer y psicoanálisis. Síntesis.
  • Spargo, T. (2017). Foucault e a teoria queer. Autêntica.
  • Stona, J., & Ferrari, A. G. (2020. Transfobias psicanalíticas. Subjetividades, 20(1), 1-12. https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9778
    » https://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i1.e9778
  • Zupančič, A. (2008). Sexualidade e ontologia. Revista Estudos Lacanianos, 1(2), 311-328.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2021
  • Aceito
    03 Nov 2021
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br