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O Mundo Privado na UTI: Análise da Internação de Pacientes Oncológicos

The Private World in the ICU: Analysis of the Hospitalization of Oncology Patientes

El Mundo Privado en la UCI: Análisis de la Hospitalización de Pacientes Oncológicos

Resumo

O presente estudo buscou investigar a percepção que pacientes adultos de uma unidade de terapia intensiva (UTI) oncológica têm acerca da experiência de internação nesse setor. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa e de compreensão. Sete pacientes de um hospital de câncer na região Sul do país foram pesquisados. Eles responderam a uma entrevista semiestruturada, a qual foi gravada e posteriormente transcrita, o que possibilitou o acesso às concepções prévias desses sujeitos acerca da UTI, aspectos psicológicos presentes durante a internação e concepções posteriores à experiência de internamento na unidade. Tais informações foram interpretadas por meio da análise de conteúdo. A partir dos resultados, foi possível verificar que a experiência de internação em contextos de terapia intensiva pode ser afetada, favorável ou desfavoravelmente, pelo conjunto de regras que o paciente traz consigo acerca do que é a UTI. Além disso, foi possível compreender também que os estímulos aversivos existentes nesse ambiente podem ser atenuados pela presença da família e por uma relação acolhedora e sensível com a equipe de saúde, favorecendo, assim, o repertório de enfrentamento do paciente frente a esse momento crítico de saúde.

Palavras-chave:
Psicologia Hospitalar; Psico-Oncologia; Psicologia da Saúde; Unidade de Terapia Intensiva

Abstract

This study aims to investigate the perception of adult patients in an oncology intensive care unit (ICU) regarding the experience of hospitalization in this sector. This is a research with a qualitative approach and understanding. Seven patients from a cancer hospital in the southern region of the country were surveyed. They answered a semi-structured interview, which was recorded and later transcribed, on the subjects’ previous conceptions about the ICU, psychological aspects present during hospitalization, and conceptions subsequent to the hospitalization experience in the Unit. Such information was interpreted through content analysis. From the results, it was possible to verify that the experience of hospitalization in intensive care contexts can be affected, favorably or unfavorably, by the set of rules that the patient brings with them about what the ICU is. In addition, it was also possible to understand that the aversive stimulus existing in this environment can be attenuated by the presence of the family and by a welcoming and sensitive relationship with the health team, thus favoring the patient’s coping repertoire when facing a critical moment of health.

Keywords:
Hospital Psychology; Psycho-Oncology; Health Psychology; Intensive Care Unit

Resumen

Este estudio pretendió investigar la percepción que tienen los pacientes adultos sobre la experiencia de hospitalización en una Unidad de Cuidados Intensivos (UCI) de oncología. Se trata de una investigación con enfoque cualitativo y de comprensión. Participaron siete pacientes de un hospital oncológico en la región Sur de Brasil. Se aplicó una entrevista semiestructurada, que fue grabada y, posteriormente, transcrita, lo que permitió acceder a las concepciones previas de los sujetos sobre la UCI, los aspectos psicológicos presentes durante la hospitalización y las concepciones posteriores a la experiencia de internación en la Unidad. Dicha información se interpretó mediante análisis de contenido. A partir de los resultados, fue posible constatar que la experiencia de hospitalización en cuidados intensivos puede ser afectada favorable o desfavorablemente por el conjunto de normas que el paciente trae consigo sobre qué es la UTI. Además, se constató que los estímulos adversos existentes en este ambiente pueden mitigarse mediante la presencia de la familia y la relación acogedora y sensible con el equipo de salud, lo que favorece así el repertorio de afrontamiento del paciente ante este momento crítico de salud.

Palabras clave:
Psicología Hospitalaria; Psicooncología; Salud Psicológica; Unidad de Terapia Intensiva

Skinner (1945Skinner, B. F. (1945). The operational analysis of psychological terms. Psychological Review, 52(5), 270.) desenvolveu o conceito de evento privado para se referir a uma parte do universo que ocorre “sob a pele”, buscando diferenciar os estímulos e respostas inacessíveis a uma observação pública direta, daqueles estímulos e respostas que são diretamente observáveis por qualquer pessoa. Neste estudo, tais eventos serão tratados como uma variável dependente de contingências existentes em uma unidade de terapia intensiva (UTI) oncológica.

Atualmente, as UTIs são caracterizadas como uma área do hospital destinada à prestação de assistência especializada de uma equipe multiprofissional a pacientes potencialmente graves ou com descompensação de um ou mais sistemas orgânicos, que necessitam de monitoração constante e cuidados complexos. Para tais cuidados, são utilizados mecanismos tecnológicos avançados e de alta precisão (Camponogara et al., 2013Camponogara, S., Santos, T. M., Rodrigues, I. L., Frota, L., Amaro, D., & Turra, M. (2013). Percepções e necessidades de familiares de pacientes internados em unidade de terapia intensiva. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, 5(4), 622-634.).

Todo esse arsenal tecnológico, indispensável para o tratamento e para a manutenção da vida, relaciona-se também a alguns fatores que podem interferir na qualidade de vida do paciente, como a ocorrência de barulhos gerados por aparelhos, que muitas vezes estão atrelados às frequentes intercorrências clínicas, iluminação constante e condições ambientais desfavoráveis ao sono e ao descanso (Nogueira, Ferreira, Albuquerque, & Agra, 2017Nogueira, J. J. D. Q., Ferreira, J. D. A., Albuquerque, A. M. D., & Agra, G. (2017). Fatores agravantes e atenuantes à percepção de morte em UTI: A visão dos pacientes. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, 9(1), 51-56.).

Isso possibilita que as UTIs também sejam classificadas como um setor gerador de estresse e de difícil adaptação tanto para os pacientes quanto para os familiares e profissionais. Além disso, há fatores relacionados ao próprio paciente, como sua condição física, crenças e medos frente ao processo de adoecimento e o risco de morte que também interferem desfavoravelmente na estadia do mesmo na UTI (Nogueira et al., 2017Nogueira, J. J. D. Q., Ferreira, J. D. A., Albuquerque, A. M. D., & Agra, G. (2017). Fatores agravantes e atenuantes à percepção de morte em UTI: A visão dos pacientes. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, 9(1), 51-56.).

Nessas unidades hospitalares, é possível ainda que o paciente perca seu contato direto com familiares e amigos, sendo privado, mesmo que temporariamente, da sociedade, de suas atividades e rotinas, tendo que se relacionar com pessoas estranhas e expor-se a situações potencialmente constrangedoras e ameaçadoras em um ambiente nem sempre acolhedor (Boleta & Jericó, 2006Bolela, F., & Carvalho Jericó, M. (2006). Unidades de terapia intensiva: Considerações da literatura acerca das dificuldades e estratégias para sua humanização. Escola Anna Nery Revista de Enfermagem, 10(2), 301-308.).

Ainda segundo os autores supracitados, é necessário garantir o respeito e atenção às necessidades e direitos do paciente, levando em consideração sua individualidade, privacidade, presença da família e de profissionais que o acolham e o façam se sentir o mais confortável possível, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, respeitando suas crenças, culturas e opiniões acerca de seu tratamento e esclarecendo suas dúvidas de modo a proporcionar um cuidado mais rico e humanizado.

Nesse sentido, o presente estudo se faz pertinente na medida em que possibilita compreender a maneira como o indivíduo percebe o seu processo de hospitalização em contextos de terapia intensiva, favorecendo não apenas o aprimoramento da qualidade do cuidado, mas também a autonomia e a dignidade do paciente em um momento de alta vulnerabilidade, o que pode possibilitar a instalação e manutenção de contingências produtoras de sentimentos de acolhimento, confiança e segurança, trazendo repercussões favoráveis a todos os atores envolvidos nesse contexto: paciente, família e equipe de saúde.

Objetivos

Diante do exposto e na busca de acrescentar informações para melhorar a qualidade da assistência e o cuidado dos pacientes que necessitam de intervenções intensivas, a proposta deste estudo foi investigar as percepções que os pacientes de uma UTI oncológica adulto têm acerca da experiência de internação nesse setor. Além disso, buscou-se caracterizar os pacientes segundo questões sociodemográficas e clínicas; averiguar a presença de possíveis fontes de reforçadores positivos na UTI; verificar possíveis fontes de estimulação aversiva nesse setor; e levantar informações a respeito das concepções prévias ao internamento na UTI e possíveis mudanças após tal experiência.

Metodologia

Os participantes selecionados para este estudo foram pacientes de um hospital oncológico da região Sul do país, cujo caráter é filantrópico e 80% dos pacientes são atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Tal hospital conta com uma UTI de dez leitos. Foram considerados como critérios de inclusão para participar da pesquisa: pessoas com idade entre 20 e 70 anos; conscientes, com as funções cognitivas preservadas e capazes de usar a fala ou escrita como meio de comunicação; ter ficado internado na UTI por, no mínimo, 72 horas; ter recebido alta da UTI e estarem na enfermaria por, no máximo, 72 horas. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e foram respeitadas as orientações da Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisa com seres humanos.

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa e de compreensão. Para a interpretação e discussão dos dados foi utilizada a análise de conteúdo (Bardin, 1994Bardin, L. (1994). Análise de conteúdo. Edições 70.), em que as respostas das entrevistas foram transcritas, analisadas, categorizadas e discutidas. Para a coleta de dados, foram realizadas sete entrevistas, que ocorreram nas enfermarias do hospital após a alta dos pacientes da UTI. Tais entrevistas foram gravadas por meio de aparelho eletrônico e posteriormente transcritas. A duração média das gravações foi de aproximadamente 5 minutos. A coleta cessou após a ocorrência de saturação teórica, isto é, quando os dados obtidos se tornaram repetitivos ou redundantes. Ressalta-se que desde o início do processo, foi realizada uma categorização contínua dos discursos, até que nenhuma nova categoria fosse constatada (Fontanella, Ricas, & Turato, 2008Fontanella, B. J. B., Ricas, J., & Turato, E. R. (2008). Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: Contribuições teóricas. Cadernos de Saúde Pública, 24, 17-27.).

Os instrumentos utilizados foram produzidos pelos próprios autores com base nos objetivos do estudo e abrangeram um check-list fechado para coleta de informações relevantes acerca das características sociodemográficas da amostra e perfil clínico. Uma entrevista semiestruturada foi elaborada e direcionada por um roteiro que possibilitou acesso a informações sobre as concepções prévias do paciente acerca da UTI, aspectos psicológicos presentes durante a internação e concepções posteriores à experiência de internamento na Unidade.

Resultados e discussão

Foram entrevistados sete pacientes oncológicos, os quais encontravam-se internados na enfermaria do hospital após alta médica da UTI. As idades variaram entre 27 e 70 anos, de modo que a idade média foi de 51 anos. A maioria dos participantes era do sexo feminino (quatro mulheres e três homens). O nível de escolaridade variou entre primário e nível superior completo, com predominância do primeiro grau completo (4), atual ensino fundamental. Em relação ao estado civil, três dos entrevistados eram casados, um solteiro, um divorciado, um viúvo e um em concubinato. A maioria da amostra era de religião católica (6).

O tempo de internamento na UTI dos participantes variou de três a dezesseis dias, sendo a média de seis dias. Do total de entrevistados, quatro já haviam sido internados em uma UTI antes por pelo menos uma vez. O motivo do internamento na UTI mostrou-se variado: três dos participantes foram internados por conta de procedimentos cirúrgicos (pós-operatório), dois por insuficiência renal aguda, um por sepse e um por dispnéia.

Levando em consideração os objetivos do estudo e baseado nos conteúdos encontrados a partir das falas dos entrevistados, foram criadas três categorias temáticas com base nos aspectos psicológicos relativos ao antes, durante e depois do internamento na UTI. Suas descrições e análises são apresentadas a seguir.

Categoria 1: considerações prévias à internação na UTI

Nesta categoria, os participantes puderam relatar sobre as regras e autorregras que controlavam seus comportamentos mesmo antes de terem sido internados em uma UTI. Skinner (1984Skinner, B. F. (1984). Uma análise operante da resolução de problemas. In R. Moreno, Contingências de reforço. Abril Cultural.) afirma que as regras são estímulos discriminativos verbais que descrevem ou especificam uma contingência. Elas descrevem as relações entre o comportamento e suas consequências, muitas vezes na forma de instruções ou conselhos: se uma ação ocorrer em um determinado contexto, então uma dada consequência é provável.

Ainda segundo o autor acima, os seres humanos são capazes de exercer a função de falante e ouvinte ao mesmo tempo, o que possibilita a emissão de comportamentos controlados por regras estabelecidas por si mesmo (autorregras).

Duas subcategorias foram formadas: alguns relatos mostraram que uma parcela dos entrevistados não estava sob controle de regras ou autorregras acerca da internação na UTI. Outras falas evidenciaram que alguns dos participantes, antes mesmo de serem internados na UTI, já estavam sob controle de autorregras que relacionavam esse setor hospitalar à morte.

Ausência de autorregras acerca do internamento na UTI

Algumas falas dos participantes sugeriram que, embora a maioria de nós já tenha sido submetida a algumas regras acerca do que vem a ser a UTI e a própria experiência de internação, estando sensíveis a tal controle antecedente, algumas pessoas não trazem em seu repertório autorregras relativas a tal ambiente ou contexto de vida. Nesse sentido, destacam-se os seguintes trechos que expressam essa percepção:

Não, nunca imaginei, nunca esperava por isso. Eu com 63 anos nunca tive dor de cabeça, nunca tive problema de dor de estômago, nunca tive problema de dor de azia, mal-estar, indigestão. Eu sempre tive uma vida, assim… Gosto de comer bem, comida saudável, como muito verde… Então eu nunca imaginei isso. E o pior é que isso acontece sem a gente ter uma preparação pra isso. Eu não tive preparação nenhuma, simplesmente fui internado no hospital, algo súbito, sabe? (P1).

Não, nunca na vida eu pensei sobre como seria uma UTI (P3).

Embora em tais discursos seja possível identificar um certo grau de surpresa, indignação e até de revolta acerca do internamento na UTI, entende-se que tais respostas são condizentes à sensibilidade dos participantes às contingências em vigor, que sinalizaram a suspensão abrupta de fontes de reforçadores importantes (rotina de vida, papéis sociais, controle da própria vida, relação com a família etc.).

Lugar para se morrer

Outro fenômeno comportamental importante averiguado foi a formulação e o seguimento de autorregras que relacionavam a UTI à morte, ao fim, a um lugar onde o pior pode acontecer. Em outras palavras, seria uma unidade hospitalar em que pessoas em estado crítico de saúde eram levadas para morrer, com poucas possibilidades de recuperação.

Sabe-se que a aprendizagem das relações de contingências pode ocorrer, basicamente, por meio de regras e por exposição direta. A principal diferença desses dois tipos de aprendizagem consiste em que, no caso das regras, a aprendizagem é mais rápida e produz menos contato com estímulos aversivos (Skinner, 1988Skinner, B. F. (1988). The fable. The Analysis of Verbal Behavior, 6(1), 1-2.).

No entanto, o comportamento aprendido por exposição direta é mais sensível às mudanças nas contingências do que o aprendido por regras. Isso quer dizer que, muitas vezes, nossas suposições se interpõem na situação de tal forma que fazem nosso comportamento tornar-se insensível a algumas contingências que, de outra forma, instalaria ou manteria novos comportamentos compatíveis às exigências do meio (Catania, 1998Catania, A. C. (1998). Aprendizagem: Comportamento, linguagem e cognição. Artmed.).

Dessa forma, a elaboração de autorregras pode se tornar um problema quando elas são incompatíveis e rígidas, capazes de potencializar o sofrimento humano. “Eu achava que era uma situação bem terrível, achava que era o fim. Eu achava que eu não sairia de uma UTI viva. Eu sempre imaginei isso, entendeu? Quem ia pra UTI, ia pra morrer, era isso” (P4). Percebe-se nesse breve relato uma autorregra que relaciona a UTI a um ambiente ameaçador da integridade do indivíduo, fortemente reiterado na sociedade e nas mídias atuais, o que pode acentuar a intensidade e duração da vivência de emoções como a ansiedade, o medo e o estresse.

Nesse sentido, Proença e Dell’Agnolo (2011Proença, M. D. O., & Dell’Agnolo, C. M. (2011). Internação em unidade de terapia intensiva: Percepção de pacientes. Revista Gaúcha de Enfermagem, 32(2), 279-286.), ao abordarem a função da UTI na nossa sociedade enquanto um ambiente que recebe pacientes graves e que necessitam de atendimento ininterrupto, destacam que ela acaba sendo vista por muitas pessoas como um lugar estigmatizado, ligado ao sofrimento e morte, o que faz com que o internamento seja um processo ainda mais estressante, como revelam as falas a seguir:

Quando eles me falaram que eu teria que ir porque meus exames estavam alterados, que eu não poderia sair do hospital, na minha cabeça, a UTI, né?… Porque a gente fala assim, aí as pessoas já pensam: “meu Deus, UTI? É porque a pessoa já tá quase morrendo (P2).

Como eu falei, eu cheguei aqui para uma consulta, e nessa consulta o médico me explicou a gravidade do meu quadro e disse que eu tinha que ser transferido direto para a UTI. Ou seja, como que fica nossa cabeça nessas horas né? Eu achei que o pior fosse acontecer (P7).

Em um estudo realizado por Lemos e Lopes (2002Lemos, R. C. A., & Rossi, L. A. (2002). O significado cultural atribuído ao centro de terapia intensiva por clientes e seus familiares: Um elo entre a beira do abismo e a liberdade. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 10(3), 345-357.) acerca do significado cultural atribuído às UTIs, os autores entrevistaram pacientes e familiares e identificaram que no próprio nome UTI há um estigma, demonstrando como a finitude permeia culturalmente a noção pré-concebida de estar internado nessas unidades, ou seja, de como culturalmente as pessoas atribuem ao internamento na UTI o significado de se estar entre a vida e a morte, uma espécie de caminho sem volta.

Severo & Girardon-Perlini (2005Severo, G. C., & Girardon-Perlini, N. M. (2005). Estar internado em unidade de terapia intensiva: Percepção de pacientes. Scientia Medica, 15(1), 21-30.) comentam que a mera sinalização da necessidade de internamento na UTI faz com que o paciente se sinta desconfortável, de modo a muitas vezes sentir-se mais doente do que realmente está, como se estivesse próximo à morte. Tais constatações podem nos fazer refletir sobre como esses antecedentes privados (na forma de pensamentos) e culturais (na forma de regras difundidas socialmente) influenciam a resposta dos indivíduos em contextos de terapia intensiva.

Categoria 2: a relação com a UTI durante o internamento

Trata-se de uma categoria surgida a partir das falas do paciente que descreveram a experiência de internamento propriamente dita, dando ênfase às repercussões emocionais decorrentes da relação com a UTI. Quatro subcategorias foram criadas: incômodo relacionado a equipamentos, procedimentos e/ou orientações médicas; estresse e enfrentamento; cuidado, segurança e proteção; o papel da família.

Incômodo relacionado a equipamentos, procedimentos e/ou ou orientações médicas

Nessa subcategoria, alguns dos entrevistados relataram os incômodos sentidos em relação a alguns procedimentos comuns na UTI, ficando evidente os desafios a serem enfrentados pelos profissionais de saúde no manejo de tais situações, tendo em vista a importância de tais procedimentos à recuperação da saúde e/ou manutenção da vida, apesar do seu caráter aversivo a curto prazo.

Segundo Bitencourt et al. (2007Bitencourt, A. G. V., Neves, F. B. C. S., Dantas, M. P., Albuquerque, L. C., Melo, R. M. V. D., Almeida, A. D. M., Agareno, S., Teles, J. M. M., Farias, A. M. C., & Messeder, O. H. (2007). Análise de estressores para o paciente em unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 19(1), 53-59.), com o intuito de melhorar a qualidade do cuidado dos pacientes internados em UTI, é indispensável que os incômodos apontados relacionados à rotina do serviço sejam levados em consideração e discutidos.

Os tubos, incluindo sondas, catéteres e cânulas, fazem parte do grupo de instrumentos utilizados em determinadas medidas invasivas, os quais costumam ser desconfortáveis e limitadores da comunicação e da alimentação dos pacientes, o que aumenta o estresse na UTI juntamente com as demais privações que eles já experimentam neste ambiente (Bitencourt et al., 2007Bitencourt, A. G. V., Neves, F. B. C. S., Dantas, M. P., Albuquerque, L. C., Melo, R. M. V. D., Almeida, A. D. M., Agareno, S., Teles, J. M. M., Farias, A. M. C., & Messeder, O. H. (2007). Análise de estressores para o paciente em unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 19(1), 53-59.).

Mais o tubo, a intubação. Tanto é que teve um padre, amigo nosso, que veio nos visitar bem no horário lá… Eu devo ter ouvido tudo dele, mas eu não lembro de nada… Eu sei que me entubaram na quarta-feira, depois do almoço, e foram tirar o tubo no sábado, quase 11 horas da manhã. Então no sábado, quando a doutora chegou cedo, ela disse: “Já vamos tirar”. Poxa! Aí passa dez minutos, passa vinte, passa quarenta, passa uma hora, passa duas horas, três… é quase meio dia e o negócio não saiu! A gente acaba ficando agoniado (P1).

Eles colocaram uma mangueira no meu nariz pra entrar na boca, porque eles falaram que eu tava vomitando. Você vê como tá minha voz agora? Fiquei quatro dias sem abrir o olho, sem conversar com ninguém, sem água… Então, eles falaram que eu tava vomitando, mas eu não sabia. Então, quando eu fui acordado, eu disse: “Não, não, tira isso”, entendeu? Aí eles falaram:“Não, tem que deixar, é isso que te ajuda”. Mas eu preferia vomitar, do que ficar com a mangueira… Eu tenho coragem de fazer cirurgia, mas mangueira de novo? Não! Isso que foi ruim pra mim (P3).

Ainda segundo Bitencourt et. al. (2007Bitencourt, A. G. V., Neves, F. B. C. S., Dantas, M. P., Albuquerque, L. C., Melo, R. M. V. D., Almeida, A. D. M., Agareno, S., Teles, J. M. M., Farias, A. M. C., & Messeder, O. H. (2007). Análise de estressores para o paciente em unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, 19(1), 53-59.), como estes dispositivos são fundamentais na UTI, sugere-se a utilização de check-lists para reavaliações frequentes da necessidade de permanência dos tubos, a fim de que estes sejam retirados o mais precocemente possível, diminuindo, assim, as chances do paciente ficar em contato com uma fonte de incômodo por mais tempo do que deveria.

O barulho é bem incômodo… Mas é só isso mesmo (P6).

É que a gente a partir desses momentos começa a sentir muita sede… Senti muito problema de água e como meu problema era pulmão, eles davam um limite de água, mas não podia tomar muito, porque vai que o pulmão absorva tudo e vira… São muitas restrições (P1).

As falas supracitadas vão ao encontro do que Pereira, Toledo, Amaral e Guilherme (2003Pereira, R. P., Toledo, R. N., Amaral, J. D., & Guilherme, A. (2003). Qualificação e quantificação da exposição sonora ambiental em uma unidade de terapia intensiva geral. Revista Brasileira de Otorrinolaringologia, 69(6), 766-771.) apontam, isto é, que um ambiente ruidoso e repleto de restrições pode dificultar o conforto e a adaptação, causando nos internados perturbações do sono, alterações psicológicas e perda dos referenciais. Dessa forma, um ambiente que deveria ser silencioso e tranqüilo, torna-se ruidoso, o que, somado a uma rotina rígida, muitas vezes acaba transformando-se em um grande fator de estresse, podendo gerar distúrbios no organismo.

Estresse e enfretamento

Conceitualmente, o estresse é considerado como um processo multidimensional e multifatorial em que atuam estímulos estressores agudos ou crônicos, criando um estado de excitação emocional, agradável ou desagradável que, ao perturbarem a homeostase do organismo, disparam um processo de adaptação que produz diversas reações sistêmicas (Arantes & Vieira, 2002Arantes, M. A. A. C. & Vieira, M. J. F. (2002). Estresse. Casa do Psicólogo.; Lipp, 2000Lipp, M. E. N. (2000). Manual do inventário de sintomas de stress para adultos. Casa do Psicólogo.).

Todo contexto da doença propriamente dita e do tratamento podem gerar estresse. Diante disso, o que pode fazer a diferença no resultado de adaptação do indivíduo é o enfrentamento. Realizar estratégias de enfrentamento significa que o indivíduo está tentando superar o que lhe está causando estresse (Costa & Leite, 2009Costa, P., & Leite, R. C. B. O. (2009). Estratégias de enfrentamento utilizadas pelos pacientes oncológicos submetidos a cirurgias mutiladoras. Revista Brasileira de Cancerologia, 55(4), 355-364.), como demonstra as falas dos entrevistados:

Então eu não tinha muito o que fazer, só aceitar mesmo… Mas ser internado lá era sinal de que não estava nada bem né? Então é isso (P7).

Foi muito difícil, totalmente complicado… Mas a gente foi se acostumando dentro do padrão deles. Se tem um padrão, né? A gente não vai querer entrar lá na UTI e querer tomar cerveja e comer churrasco, né? Daí não tem jeito (P1).

De acordo com Costa & Leite (2009Costa, P., & Leite, R. C. B. O. (2009). Estratégias de enfrentamento utilizadas pelos pacientes oncológicos submetidos a cirurgias mutiladoras. Revista Brasileira de Cancerologia, 55(4), 355-364.), o enfrentamento pode ser definido como um processo por meio do qual o indivíduo administra as demandas do meio percebidas como estressantes e as emoções que são geradas. Pode ser classificado em duas principais formas: enfrentamento centrado no problema e centrado na emoção, embora muitas vezes ocorram simultaneamente, podendo ser mutuamente facilitadores. O primeiro busca modificar a relação da pessoa com o meio, enfatizando o contato com o estímulo estressor. Já o segundo, enfatiza a resposta emocional ao estressor, visando reduzir a sensação desagradável do estresse.

Então, no primeiro dia eu olhei tudo aquilo e era uma coisa estranha, porque eu nunca havia passado por aquilo? Mas aí eu fiquei pensando no meu bem estar, pensei assim: eu tô aqui, porque eu preciso ser curada, pra ir pra casa, independente de quanto tempo eu vou ficar aqui (P2).

Não tem jeito. A gente não pode escolher… Então eu sempre procurei manter a calma, pensar que aquilo era passageiro (P1).

Quando o estímulo estressor se mostra como algo passível de mudança ou superação, geralmente o foco no problema é mais utilizado. Por outro lado, quando a situação já foi avaliada pelo indivíduo e, mesmo assim, é considerado como tendo poucas possibilidades de mudança, o foco na emoção é o mais provável de ser mobilizado, trazendo um menor desgaste para o indivíduo durante o tempo em que permanecer em contato com o estressor incontrolável (Lazarus, 1999Lazarus, R.S. (1999). Stress and emotion. Springer.).

O relato dos participantes nesta categoria mostra que, tendo discriminado que a fonte estressora presente (doença, tratamento invasivo, privações etc.) não era passível de ser suprimida em determinado momento, buscaram enfrentar tal situação regulando as emoções apresentadas, de modo a não transformar estas em uma nova fonte de estresse.

Cuidado, segurança e proteção

Nesta subcategoria, percebe-se que todos os participantes, ao falarem sobre o tempo de internação na UTI, referiram sentimentos de cuidado, de segurança e de proteção, sendo possível observar uma forte relação entre tais sentimentos com as ações da equipe de saúde. Não houve, nesta pesquisa, nenhuma fala que apontasse para um cuidado desumanizado ou iatrogênico.

Tavares e Pawlowytsch (2013Tavares, A. T., & Pawlowytsch, P. W. M. (2013). Percepção dos pacientes sobre sua permanência em uma unidade de terapia intensiva. Saúde e Meio Ambiente: Revista Interdisciplinar, 2(2), 32-43.) afirmam que o relacionamento interpessoal empático e respeitoso, pautado em ações que potencializam o cuidado e amenizam o sofrimento do paciente é parte do tratamento humanizado. Quando o indivíduo sente que está sendo cuidado por pessoas que realmente se importam com ele, para além dos aspectos da doença, isto atua sobre a própria saúde da pessoa, amenizando a dificuldade do paciente em lidar com seu processo de adoecimento.

Graças a Deus eu conheci uma médica que cuidou de mim lá, que é muito boa… Dra. B., que me ajudou, orientou e cuidou muito bem de mim (P1).

Eu tive dores, mas elas estavam sempre correndo atrás das medicações, pra eu não sentir. Então são enfermeiras nota dez, muito dez (P2).

Conforme apontado por Backes (2011Backes, M. T. S. (2011). A sustentação da vida no ambiente complexo de cuidados em Unidade de Terapia Intensiva [Tese de doutorado não publicada]. Universidade Federal de Santa Catarina.), é fundamental que os profissionais de saúde estejam atentos à qualidade da sua relação com o paciente, buscando, sempre que possível, conversar com ele, situá-lo quanto ao tempo e espaço, avaliar com agilidade sinais de desconforto, esclarecer dúvidas, tratá-lo com respeito e comunicar sempre o que vai ser realizado e por qual motivo. Percebe-se, a partir das duas falas anteriores, que a comunicação clara e a eficiência da equipe no manejo da dor foram traduzidas como sinais de cuidado e de preocupação pelos entrevistados.

Acho que a equipe eram pessoas fortes, que te colocavam pra cima, te davam carinho, meia pra dormir… Eles eram preocupados, perguntavam como tinha sido minha noite, se eu dormi bem, se eu tava com dor, com saudade de casa… Essas coisas, sabe? Pode parecer besteira, mas isso me ajudou muito minha recuperação (P3).

Todo mundo te atende muito bem, com muito carinho, com muito respeito. Isso aí eu acho que me ajudou muito. Quando você é tratado com respeito, isso te ajuda. Ter a sensação de que você não é só mais um número lá… Eles te tratam como paciente, como pessoa, como ser humano. Isso ajuda e muito! Se não fosse isso, teria sido bem mais complicado… E eu acho que isso cura mais que os medicamentos (P4).

A fala da P4 mostra a importância de uma relação entre o profissional e paciente que seja baseada no respeito e atenção. Além disso, ressalta o quanto o cuidado personalizado e humanizado reverbera de forma favorável no processo adaptativo do indivíduo, resgatando a autonomia e a dignidade humanas.

De acordo com Orlando (2001Orlando, J. M. D. C. (2001). UTI: Muito além da técnica a humanização e a arte do intensivismo (6a ed.). Atheneu.), resgatar a humanidade no contexto intensivo talvez seja voltar a refletir, sempre mais conscientemente, sobre o que é o ser humano. A UTI precisa e deve utilizar-se dos recursos tecnológicos cada vez mais avançados, mas os profissionais desta unidade jamais devem esquecer que a tecnologia em suas múltiplas faces não substituirá os reforçadores provenientes do cuidado humano.

A cirurgia que eu fiz foi muito grande. Daí as pessoas lá de dentro, os médicos, os enfermeiros… Do jeito que eles cuidaram de mim, com carinho, respeito… Isso que ajudou… Se fosse diferente eu não sei se eu teria me recuperado assim, logo (P5).

Mas eu fui bem tratada pela dra. B. Fui bem tratada por ela… Ela parece um anjinho até. Sempre vinha me dar uma olhadinha, perguntar se tava tudo bem… Então isso me fez se sentir bem, protegida… Importante até (P6).

Deixa eu ver… Acho que o carinho do pessoal de lá. As palavras que eles diziam para mim, a conversa, o apoio, as brincadeiras que eles faziam comigo… Parece que eles queriam que a gente se sentisse em casa… Então, querendo ou não, isso faz a diferença (P7).

O cuidado, conforme aponta Gamboa (1997Gamboa, N. S. G. (1997). Cuidar para enfermeiros da UTI Neonatal: Descrição das categorias significantes [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de São Paulo.), não é um ato único, nem mesmo a soma de procedimentos técnicos ou qualidades humanas. Trata-se do resultado de um processo em que se conjugam sentimentos, valores, atitudes e princípios científicos, realizado por seres humanos, com a finalidade de favorecer os indivíduos que dele necessitam. Nesse sentido, as falas acima mostram que quando o cuidado é assegurado a essas pessoas, que muitas vezes têm suas vidas e identidades desestruturadas por conta da doença, permite-se a elas um ponto de referência, um lugar seguro em meio a um contexto de tantas incertezas.

O papel da família

Outro aspecto significativo apontado por alguns entrevistados acerca do período de internamento foi a presença dos familiares, que, conforme demonstram os relatos, facilitaram a recuperação e favoreceram o enfrentamento do tratamento intensivo e da própria doença. Ressalta-se que, no cenário do presente estudo, a UTI estava passando por um processo de significativa flexibilização do tempo de permanência de visita dos familiares.

O paciente, enquanto permanece internado na UTI, tende a ter o seu convívio social e familiar desestruturado, de modo a ser separado de uma série de reforçadores sociais de alta magnitude que são responsáveis, muitas vezes, pela manutenção de sentimentos de confiança, segurança e do senso de pertencimento.

Longe de tudo e de todos, sendo cuidado por pessoas até então desconhecidas, em um ambiente desprovido dos seus referenciais, pode sofrer pela distância, pela falta de apoio, carinho e aconchego em horas tão difíceis, bem como pela radical mudança em seus hábitos. O somatório de todos esses fatores pode levar a alterações desfavoráveis em seu estado de saúde (Moreira & Castro, 2006Moreira, M. L., & Castro, M. E. (2006). Percepção dos pacientes em unidade de terapia intensiva frente à internação. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 7(1), 75-83.).

Pina, Lapchinsk & Pupulim (2008Pina, R. Z., Lapchinsk, L. F., & Pupulim, J. S. L. (2008). Percepção de pacientes sobre o período de internação em unidade de terapia intensiva. Ciência, Cuidado, & Saúde, 7(4), 503-508.), ao pesquisarem sobre as percepções que pacientes críticos tiveram sobre o tempo de internamento na UTI, observaram que a presença dos familiares durante esse período foi um importante recurso de enfrentamento utilizado pelos pacientes, pois geralmente a família representa uma unidade de solidariedade e sua presença atua como um incentivo à reabilitação. Desse modo, ao voltar-se para ela, o paciente pode receber apoio, carinho e proteção, que irão se refletir diretamente na sua recuperação, como demonstra a seguinte fala:

Eu lembro que em alguns momentos eu ouvia a voz da minha família. Isso me passava segurança… Era como se eu soubesse que as coisas iam dar certo, porque eles tavam ali, comigo, falando com os médicos… Isso me ajudou a enfrentar (P1).

Embora se saiba que historicamente o paciente que é internado na UTI tende a ser separado do seu grupo familiar, hoje, estratégias que ganharam força na década passada, como a Política Nacional de Humanização, visam alterar tal realidade ao colocar o familiar acompanhante nos diferentes níveis de atenção, o que demonstra o reconhecimento de que a família se constitui uma forte aliada no processo de recuperação do paciente (Ministério da Saúde, 2007Ministério da Saúde. (2007). Humaniza SUS: Visita aberta e direito ao acompanhante.).

Eu achei um tratamento muito bom, as enfermeiras eram todas muito educadas, o horário de visita elas deixavam certinho meus familiares virem… O tempo foi suficiente, inclusive elas deixavam minha família ficar um pouco a mais quando os outros leitos estavam vazios (P2).

A fala da P2 nos faz refletir, dessa forma, que a flexibilização de normas, sensibilização e conscientização por parte da equipe acerca das estratégias de humanização é passo indispensável para garantia de um cuidado integral e humanizado para com o paciente.

Quando eu tava lá, é como se passasse pela minha mente toda a história da minha vida, e eu pude perceber o quanto a minha família era importante pra mim… Quando eles entravam, na hora da visita, era como se tudo aquilo que eu tava vivendo fizesse algum sentindo… Como se tivesse um significado… Me dava um ânimo, uma força, uma vontade de continuar lutando (P6).

Em suma, entende-se que as falas acima expostas reiteram o já exposto por uma série de pesquisas realizadas em cenário nacional, não deixando dúvidas de que a inserção dos familiares/acompanhantes em UTIs pode contribuir para minimizar a instabilidade emocional do paciente e da própria família, atenuar o estresse vivenciado durante a internação, auxiliar no próprio processo de recuperação da saúde do paciente, além de ser uma medida de prevenção dos problemas relacionados à integridade psicossocial do paciente (Farias, Vidal, Farias & Jesus., 2013Farias, F. B. B., Vidal, L. L., Farias, R. A. R., & Jesus, A. C. P. (2013). Cuidado humanizado em UTI: Desafios na visão dos profissionais de saúde. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, 5(4), 635-642.; Moreira & Castro, 2006Moreira, M. L., & Castro, M. E. (2006). Percepção dos pacientes em unidade de terapia intensiva frente à internação. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 7(1), 75-83.; Pina et al., 2008Pina, R. Z., Lapchinsk, L. F., & Pupulim, J. S. L. (2008). Percepção de pacientes sobre o período de internação em unidade de terapia intensiva. Ciência, Cuidado, & Saúde, 7(4), 503-508.; Franco & Jorge, 2002Franco, M. C., Jorge, M. S. B. (2002). Sofrimento do familiar frente à hospitalização. In I. Elsen, S. S. Marcon, & M. R. Santos, O viver em família e sua interface com a saúde e a doença (pp. 181-198). Eduem.).

Categoria 3: considerações sobre a UTI após o internamento

Nesta categoria, analisa-se o relato dos participantes acerca do significado atribuído à UTI após a experiência de internação neste setor. Dois subtópicos foram criados, permitindo a observação de uma série de relatos que apontam para a presença de contingências de reforçamento positivo em um cenário histórico e socialmente relacionado à dor, solidão e morte.

Segurança e cuidado

Muitos entrevistados, ao refletirem sobre as impressões deixadas pela UTI, descreveram-na como um lugar seguro e acolhedor, onde se é possível atenuar o sofrimento humano decorrente da doença e do próprio tratamento por meio de uma relação de cuidado e sensibilidade.

Embora autores como Sousa & Souza Filho (2008) ressaltem dados que sugerem o papel da equipe como um dos possíveis fatores de estresse para o paciente internado, outros estudos destacam o papel da equipe como um interessante fator amenizador do sofrimento, capaz de apaziguar o medo e a solidão incitados pelos estímulos desconhecidos presentes nesse setor. Nesse sentido, a equipe estabelece-se como o elo com a vida fora da UTI e surge como apoio emocional e como mediador no contato com familiares e ambiente externo (Proença & Dell’Agnolo, 2011Proença, M. D. O., & Dell’Agnolo, C. M. (2011). Internação em unidade de terapia intensiva: Percepção de pacientes. Revista Gaúcha de Enfermagem, 32(2), 279-286.; Pina et al., 2008Pina, R. Z., Lapchinsk, L. F., & Pupulim, J. S. L. (2008). Percepção de pacientes sobre o período de internação em unidade de terapia intensiva. Ciência, Cuidado, & Saúde, 7(4), 503-508.).

Me lembra coisas boas… Não só coisas boas, claro, porque eu fui pra lá porque as coisas não tavam indo bem. Mas o que eu quero dizer é que dentro da minha situação, levando em conta a gravidade do meu caso naquele momento, eu tive um bom tratamento lá, a equipe me passou confiança, amor, carinho… E isso passa segurança pra gente. Então representa coisas boas (P2).

Representa um lugar de cuidado eu acho. É um lugar difícil porque a gente perde um monte de coisas… Mas pra ganhar outras mais lá na frente (P1).

O P1 nos mostra que, apesar da UTI ser um ambiente naturalmente aversivo, onde se convive diariamente com uma série de perdas e com importantes fontes de estimulação aversiva, o cuidado humano é fator decisivo na amenização dos efeitos emocionais decorrentes da internação e na instalação de sentimentos de confiança, segurança e calma por parte do internado.

Conforme observado por Castro e Rosero (2015Castro, E. S., & Rosero, E. V. (2015) Experiencia de estar hospitalizado en una unidad de cuidado intensivo coronario de Barranquilla. Avances en Enfermería, 33(3), 381-390.), mesmo quando o contato inicial com a UTI desperta emoções e sentimentos desagradáveis, uma recepção acolhedora e respeitosa por parte da equipe é capaz de diminuir os níveis de ansiedade do paciente, alterando, assim, a função potencialmente aversiva deste ambiente. A competência dos profissionais, o cuidado, a assistência prestada e a atenção dispensada foram citadas por pacientes como essenciais para a manutenção do conforto na internação e para a recuperação (Nogueira et al., 2017Nogueira, J. J. D. Q., Ferreira, J. D. A., Albuquerque, A. M. D., & Agra, G. (2017). Fatores agravantes e atenuantes à percepção de morte em UTI: A visão dos pacientes. Revista de Pesquisa: Cuidado é Fundamental, 9(1), 51-56.).

O meu irmão ficou numa UTI uma vez… Mas parece que não era igual essa daqui… Aqui eles cuidam mais da gente, fazem a gente se sentir… sei lá… Eles se importam mais com a gente (P5).

Mas o curioso é que lá, eu fechava os olhos e sabia que tinham pessoas cuidando de mim… Eu me sentia mais segura lá do que aqui [na ala]. Então pra mim, hoje, representa segurança (P6).

Aqui eles cuidam de nós. Cuidam de verdade… Nem minha mãe cuidava tão bem de mim assim… Acho que toda UTI tem que ter aqueles aparelhos, aquele barulho, gente passando mal… Mas aqui parece que eles tentam tranquilizar a gente, passar paz. É isso (P7).

Observa-se que mesmo que a UTI seja considerada um ambiente inicialmente hostil, os pacientes percebem nela um lugar em que há tecnologia humana avançada, equipe dedicada, a qual lhes presta assistência a toda hora, proporcionando-lhes segurança, cuidado e conforto, bem como lhes transmitindo confiança por estarem ao seu lado durante 24 horas por dia, oferecendo momentos agradáveis por meio de atitudes de atenção, carinho e afeto.

Desse modo, as boas ou más recordações que o paciente levará para sua vida após o período de internamento na UTI dependerá em grande parte da forma como os profissionais interagiram com ele durante a experiência nesse setor (Moreira & Castro, 2006Moreira, M. L., & Castro, M. E. (2006). Percepção dos pacientes em unidade de terapia intensiva frente à internação. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 7(1), 75-83.).

Cura e recuperação

Nessa subcategoria pode-se perceber uma mudança no relato de alguns dos entrevistados (P4 e P7) acerca da UTI, que antes referenciada como um lugar para se morrer e após a internação, passou a ser vista como um lugar de cura e recuperação, conforme demonstram as falas:

Pra mim, hoje, representa recuperação. Não é o fim, como eu achava. É um processo que leva à recuperação (P4).

Eles me devolveram a saúde de volta, me trouxeram à vida (P5).

É um lugar para a gente se recuperar, quando não tá tão bem… Quando tá grave… A gente se assusta no começo, mas imagina o que seria dos doentes se não tivesse um lugar assim para a gente se recuperar… Voltar a viver… Seria difícil (P7).

Os dados presentes nessa subcategoria convergem para a compreensão de que a internação na UTI pode ser relacionada à possibilidade de vida e cura, desde que essa vivência esteja associada a uma percepção de dedicação dos profissionais, familiares e à possibilidade de um tratamento humanizado. A partir disso, o local pode ser sentido como um espaço de tratamento e recuperação, levando o paciente a perceber que os sentimentos de satisfação superam os de insatisfação no enfrentamento da doença e dos estressores ocasionais (Pina et al., 2008Pina, R. Z., Lapchinsk, L. F., & Pupulim, J. S. L. (2008). Percepção de pacientes sobre o período de internação em unidade de terapia intensiva. Ciência, Cuidado, & Saúde, 7(4), 503-508.; Proença & Dell’Agnolo, 2011Proença, M. D. O., & Dell’Agnolo, C. M. (2011). Internação em unidade de terapia intensiva: Percepção de pacientes. Revista Gaúcha de Enfermagem, 32(2), 279-286.).

Considerações finais

Por meio desta pesquisa, pôde-se observar o quanto fatores antecedentes à internação, expressos por meio de regras e autorregras, podem influenciar a vivência dessa experiência, atuando de forma favorável ou desfavorável no enfrentamento das adversidades decorrentes da doença e do próprio tratamento.

A partir dos dados obtidos, foi possível constatar também que os estímulos aversivos, presentes muitas vezes de forma frequente nesses contextos - como dor, desconforto físico, ruídos, privações etc., embora exerçam forte influência sobre a resposta dos indivíduos, causando-lhes sofrimento, não são os únicos determinantes do comportamento dessas pessoas, tendo em vista o repertório de enfrentamento previamente adquirido por elas e os demais estímulos sociais potencialmente reforçadores que podem estar presentes nesse ambiente.

Por fim, conclui-se que foi possível observar a importância de se levar em consideração a avaliação do uso programado de reforçadores sociais como uma importante tecnologia comportamental para o manejo dos estímulos aversivos típicos da UTI. Pois pôde-se perceber o quão determinante para o bem-estar dos indivíduos é estar perto da família e ser cuidado por uma equipe acolhedora, cuidadosa e sensível.

Como limitação deste estudo, destaca-se a exclusão de participantes com limitações de fala e/ou cognitivas, podendo ser ampliada a amostra em futuros trabalhos. Sugere-se também que mais investigações nessa área sejam realizadas, inclusive de forma contínua, a fim de ampliar a compreensão acerca do impacto que variáveis sociais e individuais têm sobre o comportamento humano nos contextos de terapia intensiva.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    13 Maio 2022
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