Acessibilidade / Reportar erro

Sobre Dias em Que me Senti sem Ar: Desassossegos do Pesquisar

On Days when I Felt Breathless: Unrest of Search

Sobre Días Que me Sentí sin Aliento: Disurbios de Investigación

Resumo

Conceitos como o de alteridade, encontro de saberes, polifasia cognitiva, o princípio de familiaridade e de representações sociais operaram na complexa tarefa de compreender como os encontros entre profissionais e usuários sustentavam e/ou transformavam as práticas de acolhimento. Entretanto, a experiência da minha pesquisa de doutorado me levou a questionar os próprios conceitos utilizados da Teoria das Representações Sociais. Ao final do ensaio, após discutir aspectos teórico-metodológicos, o princípio de familiaridade e a questão da tensão e dos afetos nas representações sociais, espero evidenciar como o movimento provocado pelo encontro com usuários e profissionais de uma Rede de Atenção Psicossocial levou-me a questionar pontos essenciais da teoria: o papel domesticador das representações, a forma ainda estática de evidenciar os fenômenos, a separação entre um sujeito que representa e o objeto representado e a dificuldade em usar suas ferramentas conceituais para acompanhar processos me fazem repensar meu lugar e minha função de pesquisador.

Palavras-chave:
Pesquisa qualitativa; Pesquisa participante; Representação social; Psicologia social

Abstract

Concepts such as alterity, encounter of knowledge, cognitive polyphasia, the principle of familiarity and the very concept of social representations operated in the complex task of understanding how the encounters between professionals and users supported and / or transformed user embracement practices. However, the experience of my doctoral research led me to question the very concepts used in the Theory of Social Representations. At the end of the essay, after discussing theoretical and methodological aspects, the principle of familiarity and the issue of tension and affects in social representations, I hope to show how the movement caused by the encounter with users and professionals of a Psychosocial Care Network, led me to question essential points of the theory: the domesticating role of representations, the still static way of showing phenomena, the separation between a subject that represents and the object represented and the difficulty in using their conceptual tools to accompany processes makes me rethink my place and role as a researcher.

Keywords:
Qualitative research; Participant research; Social representation; Social psychology

Resumen

Conceptos como la alteridad, el encuentro de saberes, la polifasia cognitiva, el principio de familiaridad y el concepto mismo de representaciones sociales operaron en la compleja tarea de comprender cómo los encuentros entre profesionales y usuarios apoyaron y / o transformaron las prácticas de acogimiento. Sin embargo, la experiencia de mi investigación doctoral me llevó a cuestionar los propios conceptos utilizados en la Teoría de las Representaciones Sociales. Al final del ensayo, después de discutir aspectos teóricos y metodológicos, el principio de familiaridad y el tema de tensión y afectos en las representaciones sociales, Espero mostrar cómo el movimiento provocado por el encuentro con usuarios y profesionales de una Red de Atención Psicosocial, me llevó a cuestionar puntos esenciales de la teoría: el rol domesticador de las representaciones, la forma todavía estática de mostrar los fenómenos, la separación entre un sujeto que representa y el objeto representado y la dificultad para utilizar sus herramientas conceptuales para acompañar procesos, me hace repensar mi lugar y rol como investigador.

Palabras-clave:
Investigación cualitativa; Investigación participante; Representación social; Psicología social

Introdução: Sobre dias em que me senti sem ar

No percurso de uma pesquisa, desde sua concepção, vivências no campo, até a escrita do relatório final, o(a) pesquisador(a) delimita uma área e vai construindo seu objeto de estudo a partir de escolhas teóricas, metodológicas e ético-políticas. Por aproximadamente um ano, estive com profissionais e usuários da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) de Porto Alegre (RS) para compreender como as práticas de acolhimento a pessoas que usam drogas eram construídas em serviços como os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPS AD) e Equipes de Consultório na Rua (CnR)1 1 A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada junto à Área Técnica de Saúde Mental, de um CAPS AD e de uma equipe de Consultório na Rua de uma rede de saúde na região sul do Brasil. Foram realizadas observações no cotidiano dos serviços, escrita de diários de campo, entrevistas narrativas com usuários e profissionais e grupos de discussão com profissionais. No período de aproximadamente um ano, foram concluídas 298 horas de observação participante em 86 imersões no campo de estudo. Além das observações, foram realizados três grupos de discussão e 34 entrevistas narrativas com usuários e profissionais dos serviços. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (RS). . Diversas situações, no encontro com os usuários e profissionais, fizeram-me repensar minhas escolhas teóricas para o que eu havia me proposto pesquisar. Entretanto, mais do que questionar a teoria, as histórias vividas e construídas no cotidiano das ruas e dos serviços me fizeram calar, emudecer diante da dor, do sofrimento e do estranhamento diante de determinadas situações. Por muitas vezes, senti-me sem ar.

Lembro-me de um momento muito difícil, que me provocou os mais variados sentimentos. Eu estava acompanhando a equipe do CnR em uma busca ativa de um usuário para tratamento da tuberculose e HIV, em uma praça na região central da cidade, quando escutamos uma mulher gritando desesperadamente: “Doutora Sílvia L.! Doutora Sílvia L.!2 2 Na escrita da tese, a utilização de heterônimos foi uma estratégia, ao mesmo tempo, teórico-metodológica e ética, a fim de preservar o anonimato dos interlocutores. Assim como o título da tese da qual resulta este manuscrito, o uso dos heterônimos teve como fonte inspiradora o poeta Fernando Pessoa, conhecido, também, por utilizá-los amplamente - entre os mais conhecidos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares. Tanto no caso da obra de Fernando Pessoa quanto deste trabalho, os heterônimos fazem emergir uma concepção de sujeito cujas identidades são múltiplas, um sujeito que é atravessado por diversas e, muitas vezes, paradoxais identificações, resultando no desdobramento do “eu”, em seu descentramento em direção ao outro. O heterônimo foi apresentado com o nome e a primeira letra do sobrenome, seguido de ponto final. . Olhamos para trás e vimos a mulher correndo em nossa direção. Sílvia L., um tanto perplexa, não a reconheceu. Quando ela parou diante de nós, vimos que estava toda queimada. Muito agitada e nervosa, falava rápido, tremia e chorava. Logo depois, Sílvia L. reconheceu a pessoa - ela estava mais emagrecida, com os cabelos cortados bem curtos (de forma irregular), muito suja, lábios rachados e partes do corpo queimadas. Ela nos contou que estava internada na ala de queimados de um hospital na região central da cidade e que havia recebido alta hospitalar na noite anterior. Entretanto, um homem que a acompanhava nos disse que a mulher fugiu do hospital, pois estava “na fissura pela pedra3 3 Segundo Informações Colhidas - são trechos transcritos do diário de campo do pesquisador. Quando uso o heterônimo após uma transcrição literal, são trechos das entrevistas realizadas. .

Unindo as partes da história contada por ambos, percebemos a gravidade da situação. Em um local próximo de onde estávamos, há aproximadamente um mês e meio, essa mulher se negou a ter uma relação sexual com um homem, também em situação de rua, em troca de crack. À noite, enquanto ela dormia, foi amarrada por ele e outro homem, tendo, ambos, ateado fogo ao corpo da mulher. Quem a salvou do fogo foi esse homem que a estava acompanhando e que ajudou a contar a história. Segundo informações deles, a mulher ficou internada um pouco mais de um mês no hospital, tendo fugido da internação e passado a última noite toda usando crack. Quando a convencemos a ir conosco na Kombi do CnR, para fazer exames e tratar das queimaduras (que pareciam ser mais recentes do que o que haviam nos contado), ela tentou fugir. Na tentativa de fuga não fomos atrás dela, mas assistimos uma cena de cuidado: o homem, aos gritos, muito bravo, dizia que a mulher precisava de tratamento, senão ela iria morrer em função das queimaduras.

Ela, que estava muito agitada, paralisou diante do homem. Ele segurou seu rosto com as mãos e, olhando intensamente nos olhos dela, disse: “Vai te tratar mulher! Nós vamos cuidar daqueles dois que fizeram isso contigo”. Ela voltou para o veículo e deitou no banco de trás. Eu, sentado à frente dela, olhava para essa mulher. Ela estava deitada, encolhida, em posição fetal, tremendo, chorando e repetindo incessantemente a frase: “Aquela foi a pior noite da minha vida!”. Quando a mulher olhava nos meus olhos, meu coração disparava, sentia dificuldade em respirar, o corpo tremia, e eu apenas me concentrava para não chorar diante dela. Não sabia o que fazer ou o que dizer para ela. Faltavam-me palavras. Esse encontro me provocou algo tão profundo, uma dor e um sofrimento diante daquela mulher, que o simbólico escapou. Emudeci.

Vários aspectos dessa história mereceriam nossa atenção, como o cuidado em ato daquele morador de rua com a mulher e nossas representações sobre a população de rua. Nas interações e no cotidiano das ruas, as pessoas acabam acessando ou sendo acessados por serviços de saúde, assistência social e de caridade, geralmente vinculados a instituições religiosas, e a construção de um cuidado entre as pessoas que estão na rua, como foi a situação narrada acima.

Mas para manter o foco deste trabalho, o ponto que me chama atenção nessa história foi o meu sentimento de vazio, impotência. Esta talvez se refira melhor a situações nas quais compreendemos e temos uma ideia do que deveria ser feito, mesmo que em um nível ideal, mas não conseguimos sozinhos, apenas com nossa vontade. O vazio é a falta de significados, do plano simbólico, como disse antes. Não havia uma representação, uma ideia, um preconceito, ou qualquer outro “instrumento cognitivo” que me auxiliasse a pensar e agir naquela situação. Foi um encontro que me transformou e me jogou num lugar de não saber. Foi uma situação nova, diferente. Para a Teoria das Representações Sociais, quando nos deparamos com algo novo, desconhecido, buscamos em nosso aparato simbólico algo que se assemelhe para, minimamente, compreender o fenômeno, objeto - os processos de objetivação e ancoragem. Por um tempo, senti-me sem “ancoragem” alguma.

Foi a partir da Teoria das Representações Sociais (TRS)4 4 Diante da difusão e amplitude da TRS, Pereira de Sá (1998) identifica três linhas principais de desenvolvimento da teoria. A primeira, desenvolvida principalmente a partir da obra publicada por Jodelet (2005)Folies et représentations sociales, que parte da complexidade das representações sociais, propondo uma aproximação processual, mais centrada no aspecto constituinte que no aspecto constituído das representações. A segunda, centrada nos processos cognitivos e na estrutura das representações sociais, foi desenvolvida principalmente por Jean Claude Abric por meio de sua teoria do Núcleo Central. E a terceira, mais sociológica, desenvolvida em Genebra por Willem Doise, centra-se mais nas condições de produção e circulação das representações sociais (Sá, 1998). É importante destacar que o aporte teórico desta pesquisa veio do enfoque processual das representações sociais. Entendemos que as representações são, ao mesmo tempo, processo e produto. Seguindo Moscovici (2012), Jodelet (2005) e Jovchelovitch (2008), as representações sociais devem ser analisadas em relação aos processos da dinâmica social e da psíquica dos sujeitos. que iniciei os estudos para ir delineando o problema e as questões que nortearam a pesquisa e a escrita da minha tese de doutorado (Romanini, 2016Romanini, M. (2016). Narrativas do Desassossego: do re-en-colhimento às práticas de acolhimento aos usuários de drogas na Rede de Atenção Psicossocial de Porto Alegre/RS (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.). Ao final do longo percurso compreendido entre a escrita do projeto e a escrita da tese, retornei à teoria para discutir um conjunto denso de dados construídos no campo. Ao reler a tese para a escrita deste manuscrito, percebi melhor que as trajetórias coletivas que apresentei representam não apenas os consensos construídos cotidianamente entre profissionais, usuários e gestores da Raps, mas os dissensos, as tensões. Tanto os consensos quanto as tensões sinalizam para os desafios da construção do comum nas políticas públicas de saúde, especificamente nas políticas sobre drogas.

No decorrer desta escrita, embora não de forma explícita em alguns momentos, conceitos como o de alteridade, encontro de saberes, polifasia cognitiva, o princípio de familiaridade e o próprio conceito de representações sociais operaram na complexa tarefa de compreender como os encontros entre profissionais e usuários sustentavam e/ou transformavam as práticas de acolhimento. Além de funcionar como operadores teórico-conceituais, esses conceitos foram utilizados como “plataformas para ver o mundo”, são “lentes”, uma forma de olhar para os saberes construídos. Entretanto, esses saberes não apenas se tornaram possíveis em função da utilização desta ou de outra teoria, eles são possíveis porque também fazem o movimento oposto - são gerados a partir de um ponto de vista teórico, mas geram, também, implicações para a teoria, que de uma forma ou outra deu-lhe sustentação.

Esse movimento inverso, de repensar alguns aspectos da teoria, é o que constitui este ensaio. Inspirado em alguns autores da TRS e nas experiências vividas ao longo do campo da pesquisa mencionada, buscarei trazer reflexões e inquietações, algumas ainda incipientes. As noções de afeto, tensão, familiaridade, utilizadas ao longo da tese, serão fundamentais nessas reflexões, entendendo-as como um efeito do desassossego provocado pelos inúmeros encontros vividos neste percurso. Ao final do ensaio, após discutir aspectos teórico-metodológicos, o princípio de familiaridade e a questão da tensão e dos afetos nas representações sociais, espero evidenciar como o movimento provocado pelo e no campo de pesquisa me fez, mais uma vez, sentir-me sufocado.

Algumas inquietações teórico-metodológicas

À medida em que eu me aprofundava nas leituras e estudos sobre a TRS, as disciplinas que cursava no meu percurso de doutoramento foram produzindo inquietações irreversíveis em mim. As(os) professoras(es) de um programa de pós-graduação que sustenta uma psicologia social mais “pós-estruturalista” me (re)apresentavam autores como Judith Butler, Michel Foucault, Félix Guattari, Gilles Deleuze, Henri Bergson, Humberto Maturana, dentre outros. Estes, embora não constituíssem o escopo teórico e epistemológico do meu projeto de pesquisa, me ajudaram a explicitar as inquietações que eu vinha sentindo ao ler os relatos de pesquisas no campo das representações sociais. E foi com Ângela Arruda que encontrei um caminho para tais questionamentos dentro da própria teoria. Arruda (2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.) discute alguns hábitos metodológicos no campo das Representações Sociais que limitam a teoria na análise de fenômenos sociais acelerados, fragmentados, que envolvem processos de inovação.

Desses abordados pela autora, três hábitos nos interessam neste trabalho. O primeiro é a “objetificação” do grupo, ou dos grupos estudados. Uma das fortes críticas que se faz aos estudos em representações sociais é que se naturalizam os sujeitos nas pesquisas, tomando o grupo como algo garantido, olhando para ele como algo estável e com uma tendência para a homogeneização - como uma entidade em si mesma (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.). Estudos como “representações sociais de professores sobre o uso de drogas” recebem críticas por definirem a priori um grupo - o dos professores - como estável, homogêneo. Quando são apresentados os resultados, as representações também parecem estáticas, sendo produtos e produtoras dessa homogeneidade do grupo estudado.

Alguns autores da TRS já vêm trabalhando com a ideia de grupos fluidos, ainda de forma tímida (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.). O que se está começando a reconhecer, neste campo, é que os indivíduos parecem ter crenças contraditórias como reflexo das suas relações múltiplas, com múltiplos grupos, e que, por isso, já não podemos mais defender a ideia de que as crenças, atitudes e valores serão partilhados da mesma forma e com a mesma intensidade pelos membros de um “mesmo” grupo (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.). No decorrer da minha pesquisa, busquei evidenciar a heterogeneidade dos grupos pesquisados. As denominações “usuários” e “profissionais”, amplamente empregadas nos textos das políticas ministeriais, podem parecer uma tentativa de tratar esses grupos como uma entidade homogênea. Da mesma maneira, quando nos referimos à equipe da área técnica de saúde mental, ao CAPS AD e ao CnR. A utilização de heterônimos, confundindo papéis e lugares preestabelecidos, a interlocução constante entre entrevistas, registros de observações, materiais de leitura e midiáticos, teve também como objetivo evidenciar a heterogeneidade e fluidez da constituição de tais grupos. Portanto, acredito que as escolhas metodológicas dessa pesquisa buscaram superar esse primeiro hábito.

O segundo, intimamente relacionado com o primeiro, refere-se ao método da observação participante, que foi o “carro-chefe” desta pesquisa. Segundo Arruda (2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.), quando a observação participante ocorre nos estudos em representações sociais, ela tende a servir como ponto de apoio àquilo que será investigado nas entrevistas ou questionários. Nesta pesquisa, as observações participantes, registradas em diário de campo, conduziram a escrita da tese, sendo apoiadas por saberes formalmente elaborados por meio das entrevistas narrativas e grupos de discussão. As representações sociais sobre drogas e práticas de acolhimento eram um dos elementos que compunham o campo problemático estudado, mas não era o foco. Talvez por isso os saberes construídos por meio das diversas estratégias metodológicas não tenham perdido a dinamicidade que lhes são inerentes. Embora tenham sofrido um processo analítico, as entrevistas, com seus elementos indexados e não indexados (análise narrativa das entrevistas), expressaram consensos e também tensões, sendo utilizadas não como estruturantes do texto, mas em seus meandros. Muito tempo depois, percebi que tanto o acolhimento quanto as práticas de acolhimento não podem ser objetos de estudo em representações sociais (RS).

Por fim, o terceiro hábito apontado por Arruda (2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.) é o fato de as ferramentas da TRS tornarem-se mais adequadas para a confirmação ex-post, identificando os processos quando (e se) as RS já estão estruturadas. Nesse sentido, “apesar de sua natureza e história dinâmicas, as RS têm dificuldade em captar os processos da preparação em progresso” (p. 121). Esse problema me parece ser uma consequência do primeiro: a definição a priori de grupos homogêneos, fixos, para estudar “quem” representa “o que”, acaba diluindo ou negligenciando o processo, o “como”. Esse hábito ou problema é ainda mais questionado diante da crítica da modernidade, das grandes narrativas e do retorno ao sujeito por meio dos estudos no campo da subjetividade e processos de subjetivação (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.; Jodelet, 2009Jodelet, D. (2009). O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado, 24(3), 679-712 https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000300004
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, 2015Jodelet, D. (2015). Problemáticas psicossociais da abordagem da noção de sujeito. Cadernos de Pesquisa, 45(156), 314-327. http://dx.doi.org/10.1590/198053143203
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
).

Arruda (2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.) nos chama a atenção para o retorno e a redefinição da noção de sujeito nas ciências sociais, na filosofia e nos estudos culturais, em fins do século XX e início do século XXI. Conforme a autora, estamos, talvez, enfrentando um campo de estudos sobre a subjetividade muito vasto, cuja fundação é a figura do sujeito múltiplo e fragmentado, opondo-se radicalmente à visão essencialista e estática de sujeito. Questionando a construção binária ocidental, tendo como base a estrutura e a ordem, o sujeito contemporâneo não é unificado nem constantemente idêntico (igual a si mesmo, como referia o conceito mais clássico de identidade), tendo como um dos efeitos a afirmação da diferença.

Uma primeira (r)evolução na forma de conceber o sujeito é compreendida por duas perspectivas. A primeira centra-se nos sujeitos e identidades nômades, transversal a diversas possibilidades no tempo e no espaço: mudanças na profissão, nas crenças, nos espaços habitados, dentre outros. Esse nomadismo tem como principal consequência a fragilidade de qualquer definição baseada na identidade - o sujeito nômade é caracterizado pela mobilidade, pela capacidade de mudança. A segunda perspectiva, tributária dos Estudos Culturais, concebe o “sujeito pós-colonial” e os “sujeitos subordinados”, que, em busca de visibilidade e respeito, disseminam ideias dissidentes na sociedade, podendo vir a funcionar como fatores de transformação das representações (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.).

A segunda (r)evolução abarca definições mais radicais e estão inscritas em um paradigma pós-estruturalista, concebendo uma subjetividade sem o sujeito e um sujeito pós-humanista, sendo tributária a autores como Foucault, Deleuze, Guattari e Latour (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.). Deleuze e Guattari (1995)Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Editora 34., por exemplo, concebem uma produção coletiva da subjetividade, na qual o sujeito é um terminal, uma interseção de forças, e, portanto, uma mera circunstância. Para os autores, a subjetividade, no devir histórico, assume traços que são territorializados e desterritorializados conforme as condições políticas, históricas, econômicas e culturais.

O estudo dessa forma de conceber as subjetividades e os processos de subjetivação, que se territorializam e se desterritorializam, parece ser mais apropriado para compreendermos as práticas de acolhimento, que, enquanto práticas, são processos nunca acabados. Cartografia? Pesquisa-intervenção? Análise Institucional? Um curto-circuito teórico-metodológico gestado no início da pesquisa. Observação participante e atenção de um cartógrafo. Deparo-me com o princípio de familiaridade da TRS.

Tensão, resistência e o estranhamento do familiar

Geralmente, toma-se como consenso que uma das principais funções das representações sociais é a de tornar familiar o não familiar. Aquilo que não nos é familiar soa estranho, incompatível com nossos saberes cotidianos e, para ser incorporado ao nosso arcabouço de saberes, sofre transformações por meio dos processos de ancoragem e objetivação. A explicitação desses processos, iniciada com a obra de Moscovici (2012Moscovici, S. (2012). A Psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes., 2010Moscovici, S. (2010). Representações sociais: Investigações em psicologia social . Vozes.), nos ajuda a entender que existe uma história e uma trajetória relacionadas às questões que nos engajamos e aos objetos e fenômenos que buscamos apreender, e que outras pessoas, antes de nós, também o fizeram. Essa história ou memória social compõe um ambiente que nos constitui (e que também é constituído por nós) e introduz em nossa autointerpretação a solidez dos fatos sociais.

Moscovici (2012Moscovici, S. (2012). A Psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes.), ao revelar alguns dos mecanismos mentais a partir dos quais as pessoas se apropriam do desconhecido, acomodando-o ao que já se conhece, propõe a ancoragem, cujo processo consiste em fundar formas cotidianas de saber amparadas em conteúdos prévios, ligando o objeto ou fenômeno com o passado e suas significações. O processo de ancoragem expressa uma tendência que temos de recuperar e manter sentidos instituídos, por isso que Arruda (1998Arruda, A. (1998). O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In A. Arruda (Org.), Representando a alteridade (pp. 17-46). Vozes.) indica que esse processo confirma sua longevidade na abordagem da diferença e seu lugar na construção das representações hegemônicas.

A familiarização ou o princípio de familiaridade, como função resultante dos processos de ancoragem e objetivação, é amplamente aceito na TRS, mas tem sido questionado por alguns autores. Ama De-Graft Aikins (2012Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
), por exemplo, revisita o princípio de familiaridade e aponta algumas limitações conceituais no mesmo. A autora destaca que existem duas dimensões interdependentes no princípio de familiaridade. A primeira é que indivíduos e comunidades têm grande tendência e preferência pelo que é familiar. A segunda se refere à resistência de indivíduos e grupos à intrusão de estrangeiros em suas comunidades. O não familiar atrai e intriga as pessoas, ao mesmo tempo em que as coloca em situação de alerta.

Nessa direção, Aikins (2012Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
) destaca e analisa duas funções do medo na tese de familiaridade de Moscovici. Primeiro, o medo exerce uma função de distanciamento em relação ao outro, que nos é estranho. Esse distanciamento possibilitaria às pessoas e comunidades um senso de continuidade, de entendimento mútuo e preservação das tradições e práticas cotidianas. Em segundo, o medo proporcionaria uma motivação para a domesticação do não familiar, trazendo-o para dentro do nosso universo, tornando-o próximo, por meio dos processos de ancoragem e objetivação. Aikins (2012)Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
observa, entretanto, que o familiar nunca é algo “quieto”, desprovido de tensão. Com Joffe (1996Joffe, H. (1996). AIDS research and prevention: a social representation approach. British Journal of Medical Psychology, 69, 169-190. http://doi.org/10.1111/j.2044-8341.1996.tb01863.x
https://doi.org/http://doi.org/10.1111/j...
) e Morant (1995Morant, N. (1995). What is mental illness? Social representations of mental illness among British and French mental health professionals. Papers on Social Representations , 4(1), 1-12. https://bit.ly/3WHO72M
https://bit.ly/3WHO72M...
) temos a indicação de que o não familiar pode coexistir com o familiar no coração das representações.

Morant (1995Morant, N. (1995). What is mental illness? Social representations of mental illness among British and French mental health professionals. Papers on Social Representations , 4(1), 1-12. https://bit.ly/3WHO72M
https://bit.ly/3WHO72M...
) enfatiza a importância de distinguir entre dois tipos de objetos estranhos ou não familiares: o não familiar derivado de posições sociais marginalizadas, percebido como ameaça e amedrontador, e o não familiar porque é considerado uma novidade. Quando se trata de novidade, a autora pondera que essa alteridade pode não ser considerada ameaçadora. Além disso, Aikins (2012Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
), ao revisar alguns estudos, como os de Jahoda, Duveen e do próprio Moscovici, destaca o papel de diferentes emoções nos processos que envolvem a construção de representações sociais. Inúmeras são as emoções que mediam nossa vida social cotidiana, a comunicação e nossas relações. Para além do medo em relação ao não familiar, Aikins (2012)Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
enfatiza a motivação despertada pela curiosidade referente à novidade e ao não familiar, a solidariedade, a hospitalidade, interesse e atração e a esperança como mediadores legítimos da produção de saber social.

Nessa proposta de revisitar o princípio de familiaridade, a noção de tensão é fundamental (Aikins, 2012Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
; Marková, 2006Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: As dinâmicas da mente. Vozes.), pois ela expressa ímpeto a uma ação (de familiarizar, por exemplo) ou a uma mudança. A tensão está implícita em todas as situações da vida, apesar de não ser reconhecida como tal. Portanto, a tensão é inerente na relação Alter-Ego e, por implicação, na Teoria das Representações Sociais e na comunicação, pois, como diz Marková (2006)Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: As dinâmicas da mente. Vozes., “não pode haver comunicação alguma, a menos que os participantes se juntem pela tensão. Não pode haver ação social alguma - a menos que as oposições em tensão se confrontem, sejam negociadas, avaliadas e julgadas” (p. 212).

Ao incluirmos a noção de tensão na TRS, podemos pensar que as representações sociais não apenas familiarizam o desconhecido, mas também permitem o estranhamento do familiar. A proposta de revisitar o princípio de familiaridade (Aikins, 2012Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
https://bit.ly/3WHu6tc...
) expõe lacunas da teoria abertas à discussão. Se concordamos com a afirmação da autora de que as representações não servem apenas à integração do estranho, mas ao estranhamento do familiar, construir representações significa também transformar o familiar, transpondo-o a novos quadros, readequando-o ao presente. Dessa maneira, o processo de ancoragem não se limitaria a uma reação ou adequação do novo, mas, como afirma Arruda (1998Arruda, A. (1998). O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In A. Arruda (Org.), Representando a alteridade (pp. 17-46). Vozes.), a busca do novo que reordenará o familiar, mesmo que num primeiro momento isso signifique desordená-lo.

Essa discussão se mostrou muito atual e pertinente no campo desta pesquisa. Principalmente a partir da experiência com o Consultório na Rua, passo a pensar na potencialidade do cotidiano que faz estranhar o familiar, fazendo-me ao mesmo tempo questionar a função das representações sociais enquanto possíveis “domesticadoras” daquilo que se apresenta como novo, estranho, e pode nos provocar medo. O trabalho com a população de rua e com os usuários de drogas nos coloca na posição apontada por Morant (1995Morant, N. (1995). What is mental illness? Social representations of mental illness among British and French mental health professionals. Papers on Social Representations , 4(1), 1-12. https://bit.ly/3WHO72M
https://bit.ly/3WHO72M...
), do não familiar derivado de posições sociais marginalizadas, percebido como ameaça e amedrontador. A seguir apresento um trecho do diário de campo, que traz reflexões sobre mais um dia de observações com o CR:

Ao olhar com atenção aos locais em que essas pessoas moram, uma atitude era quase inevitável: a classificação entre os mais organizados e os menos desorganizados. O que concebíamos como organização? Ao lado de um viaduto da cidade de Porto Alegre, chamava nossa atenção [minha e de alguns profissionais da equipe] a “organização” de uma moradora de rua. Sua “casa” bem “estruturada”, muito semelhante àquilo que concebemos ser uma casa, com peças separadas, móveis dispostos. Considerávamos essa organização como um sinal de saúde mental, em meio a todo o caos em que ela vivia. Mas, baseados em quê pensamos assim? Nas nossas representações do que é viver em sociedade e de como devemos habitar os espaços, públicos e privados. Quanto mais semelhante ao nosso modo de viver, menos estranhamento nos causava. Sem perceber, acaba se criando uma hierarquia entre os próprios moradores de rua - dos mais organizados aos menos organizados. Se não tivéssemos tido consciência desse olhar classificatório, para que ou para quem serviriam nossas representações sobre os modos de viver nas cidades? Qual função desempenhariam? De libertação ou de dominação? Representar, pois, pode se tornar sinônimo apenas de classificar, julgar, segregar, dominar. Representações ideológicas… o olhar sobre o Parque da Redenção pode ainda ganhar outros contornos, desde que estejamos abertos ao estranhamento.

Mesmo olhando agora para os cantos do Parque da Redenção, de espaços “marginalizados” que antes não compunham meu “território existencial”, continuo admirando a beleza do parque e das antigas árvores; mas porque não incluir nessa beleza a heterogeneidade e a pluralidade de territórios existenciais dentro de um mesmo espaço? Nesses questionamentos parece-me clara a função da tensão na constituição e dinâmica das representações sociais. Se uma das funções das representações sociais fosse a de tornar familiar o não familiar, não seria possível cogitar a coexistência dessa pluralidade de territórios existenciais - mas esse é um dos pilares conceituais fundantes da teoria! O familiar e o estranho coabitando o mesmo espaço. O estranho desorganizando o familiar, como bem pontuou Arruda (1998Arruda, A. (1998). O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In A. Arruda (Org.), Representando a alteridade (pp. 17-46). Vozes.). Do medo inicial ao estranho, outros sentimentos compuseram essa “geografia existencial” e esses encontros com os moradores de rua: angústia, empatia, solidariedade, tristeza, alegria. Acredito que somente com essa variedade de sentimentos é que é possível se aproximar do outro, estar com o outro, seja nos bancos do parque, seja embaixo de um viaduto. Portanto, acredito que a reflexão crítica sobre as nossas próprias representações sociais pode ser uma forma de resistência que mantém a tensão constante na forma como concebemos e tratamos o outro. Por isso, nunca de maneira acabada, e sim um processo contínuo de reflexões e inquietações.

Embora poucos estudos tenham demonstrado empiricamente o potencial crítico da teoria, Howarth (2006Howarth, C. (2006). A social representation is not a quiet thing: Exploring the critical potential of social representations theory. British Journal of Social Psychology, 45(1), 65-86. https://doi.org/10.1348/014466605X43777
https://doi.org/https://doi.org/10.1348/...
) enfatiza que as ferramentas conceituais da teoria têm potencial de crítica da ordem social, principalmente a partir de três áreas de análise: a que estuda a relação entre os processos psicológicos e as práticas sociais; a que se dedica à análise da reificação e legitimação de diferentes sistemas de saber; e aquela que investiga a agência ou organização e resistência na coconstrução do self e das identidades.

Howarth (2006Howarth, C. (2006). A social representation is not a quiet thing: Exploring the critical potential of social representations theory. British Journal of Social Psychology, 45(1), 65-86. https://doi.org/10.1348/014466605X43777
https://doi.org/https://doi.org/10.1348/...
) destaca que as representações sociais são vivas e dinâmicas, e que elas existem apenas nas relações, por isso a pluralidade e o hibridismo das representações estão no centro da teoria. Ao questionar-se sobre o que as RS fazem, a autora pondera que a multiplicidade e a tensão nas representações sociais possibilitam a comunicação, a negociação, resistência, inovação e transformação. Ela busca, em diferentes estudos, o que as RS fazem no cotidiano, como no estudo de Jodelet (2005Jodelet, D. (2005). Loucuras e representações sociais. Vozes.), quando a autora mostra que as representações sociais sobre a loucura atuam como protetoras da identidade da comunidade que “hospeda” os “loucos”, atuando, por meio de rituais e práticas cotidianos, na exclusão da loucura. Ou no estudo de Duveen (2010Duveen, G. (2010). Introdução: O poder das ideias. In S. Moscovici, Representações sociais: Investigações em psicologia social (pp. 7-28). Vozes.), que salienta como as representações sociais sobre gênero reproduzem relações e identidades de gênero, servindo para manter e defender as diferenças consideradas “naturais” entre os gêneros.

Seguindo o pensamento de Howarth, dar-se conta do que as RS fazem é um passo importante para reconstruir o potencial crítico da teoria. Ela ainda nos fornece outras indicações para tornar a teoria mais crítica, num processo reflexivo sobre a própria teoria. Uma delas é a necessidade do aprofundamento da análise das relações entre representações e práticas sociais, bem como entre as representações sociais e as relações de poder. Para isso, precisamos entender que as representações sociais são mais que ferramentas sociais e psicológicas que orientam nossa compreensão do mundo em que vivemos (Howarth, 2006Howarth, C. (2006). A social representation is not a quiet thing: Exploring the critical potential of social representations theory. British Journal of Social Psychology, 45(1), 65-86. https://doi.org/10.1348/014466605X43777
https://doi.org/https://doi.org/10.1348/...
). Cabe destacar, entretanto, que parte significativa das pesquisas mapeia as RS de um determinado objeto ou fenômeno como saberes socialmente construídos e compartilhados.

Aproximando-nos do final desta seção do manuscrito, gostaria de compartilhar um outro trecho do meu diário de campo:

Após uma tarde conversando com moradores de rua, pelos bancos da redenção e ao lado de um viaduto, o que restou foi um forte aperto no peito e uma vontade de chorar. Desses dez meses de campo, talvez esse tenha sido um dos dias mais impactantes. Sinto como se tivesse levado um soco no estômago... enquanto converso com eles, chegam transeuntes curiosos com seus belos cachorros, e sentem medo que os seus peguem pulgas dos cães que acompanham os moradores. O olhar para os cães é de ternura, cuidado. Para as pessoas que ali estavam comigo, era de nojo, medo, desconfiança. Um senhor me olhou e disse: “viu, somos piores que lixo. O crack que eu uso ou a cachaça que bebo não definem a pessoa que sou”. Outro me conta sua vida e, lacrimejando, mostra os hematomas no corpo, resultado de um espancamento na noite anterior. Esse mesmo senhor me diz que toda moeda tem dois lados, o ruim e o bom. E que seu problema é desejar demais. Outra, fuma crack ao meu lado, bebe sua cachaça e agride e é agredida pelo namorado. Disse-me que somos sozinhos mesmo, inclusive eu, mesmo com “minha vida normal”. Mas antes de tudo isso, um homem me olha profundamente e diz: “tu é só mais um! Tu é um cara legal, de boa, mas tu é só mais um! Não me faça falar da minha vida, porque nada vai mudar”. Como falava hoje pela manhã com uma profissional, para mim é muito cômodo ir na redenção, almoçar num bom restaurante e depois escutar histórias. Meu almoço nunca foi tão indigesto. Para que ou para quem serve o que fazemos? Pensativo e, sim, melancólico.

Em primeiro lugar, parece-me evidente que, no caso dos moradores de rua, as representações sociais produzem e/ou reforçam a exclusão que sofrem cotidianamente. Soma-se aí a questão do uso de drogas, outra prática socialmente condenável e alvo de preconceitos e estereótipos. Além disso, o questionamento feito por um dos moradores de rua - “tu é só mais um!” - provocou uma tensão e um estranhamento na forma como nos concebemos enquanto pesquisadores. Para que serve esse estudo? Quais consequência terá? Serão “mapeadas” as representações sociais, e depois? O “tu só é mais um” nos convoca a um lugar desconfortável, porém necessário, e que nos remete inevitavelmente à dimensão ética e política das nossas escolhas teórico-metodológicas.

A partir de todas essas considerações, Arruda (2011Arruda, A. (2011). Representações sociais: dinâmicas e redes. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das representações sociais: 50 anos (pp. 335-369). Technopolitik.) nos desafia a entender as representações como uma rede de significados - assim como funciona o pensamento social, em rede e em relação direta com a ação. Os processos representacionais acontecem na teia do social, na qual a linguagem e a comunicação são fundamentais, já que a comunicação é o suporte que possibilita a criação das representações sociais. Essa teia ou rede de significados não separa os fenômenos uns dos outros nem de seu contexto, pelo contrário, “as ramificações de todos os lados são o que compõe o quadro da representação. A representação social é um rizoma que cresce, urdida na tessitura da sociedade, uma rede sem fim, sempre em produção, sempre acolhendo novidades” (Arruda, 2011Arruda, A. (2011). Representações sociais: dinâmicas e redes. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das representações sociais: 50 anos (pp. 335-369). Technopolitik., p. 362).

Para isso, é preciso retomar noções como as de resistência e relações de poder (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Ditos e Escritos V: A ética do cuidado de si como prática da liberdade. Forense Universitária.). Mas, para além da resistência dos grupos a que nos dedicamos compreender, o processo de implicação do pesquisador me parece igualmente fundamental. Implicação que pode ir além dos já apontados por Jovchelovitch (2008Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do saber: Representações, comunidade e cultura. Vozes.)5 5 Jovchelovitch (2008) já vem destacando a análise de implicação como uma ferramenta importante nos estudos em RS, evidenciando dois níveis: o reconhecimento da pertença, que se refere a esses lugares ocupados nas relações sociais, e o processual, que se refere à natureza da relação do pesquisador com o campo. ; referenciando-se em autores como René Lourau. Estar em uma situação-limite, como a narrada no início deste manuscrito, pode ser uma boa oportunidade para o pesquisador se rever enquanto ser humano.

O cotidiano do campo da pesquisa que, em alguns momentos, colocou-me num “vazio simbólico”, sem ponto de ancoragem, sem palavras e sem ar, fez-me apostar nessas ferramentas para elucidar o movimento, a dinamicidade das representações sociais, para além dos mapas categorizados e estáticos. Mas, para além disso, faz-me acreditar que uma das funções do estudo das representações sociais pode ser justamente o de observar as nossas próprias mudanças, como as representações que construímos ao longo de nossas vidas se desestabilizam ou se modificam a cada encontro com o outro.

Afetos e desassossegos

Na concepção de subjetividade do filósofo Emmanuel Lévinas (2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes.), a alteridade está inscrita em sua própria estrutura como transcendência que se movimenta em direção ao outro. A relação entre o eu e o outro não pode ser definida por um conceito a priori, pois o outro é infinitamente transcendente e estranho, avesso a essencialismos. O outro é inteiramente outro, é uma exterioridade metafísica, por isso que em Lévinas considerar o outro como alter ego é o mesmo que aniquilar a alteridade do outro.

Pensar o outro dessa maneira traz uma consequência importante: o eu sai de si mesmo, de seu egocentrismo, e vai na direção do outro. O encontro entre o mesmo e o outro, entre o eu e o outro, implica em uma relação dialógica que “obriga” ambos a entrarem no diálogo. A busca do outro, portanto, representa uma volta ao sujeito, um sujeito ético. Ética, entendida por Lévinas, como uma relação concreta com o rosto do outro. O rosto, para o filósofo, é a maneira como o outro se apresenta e ultrapassa a ideia que se possa ter sobre ele - o rosto possui uma estrutura ética porque está além do fenomênico, além do ser. A dimensão ética da relação começa com a significação do rosto, pois a relação com o outro pode ser dominada pela percepção, mas o rosto não se reduz a ela, este é o primeiro discurso, um modo de aparecer por detrás da aparência, da forma, uma abertura na abertura (Lévinas, 2010Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes.) - a diferença como valor, assim como fazem os autores pós-estruturalistas que inspiraram as reflexões de Arruda (2011Arruda, A. (2011). Representações sociais: dinâmicas e redes. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das representações sociais: 50 anos (pp. 335-369). Technopolitik., 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.) e Jodelet (2009Jodelet, D. (2009). O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado, 24(3), 679-712 https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000300004
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, 2015Jodelet, D. (2015). Problemáticas psicossociais da abordagem da noção de sujeito. Cadernos de Pesquisa, 45(156), 314-327. http://dx.doi.org/10.1590/198053143203
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
).

Quando os profissionais se referem à alegria de encontrar o sujeito atrás da doença, parece-me que estão falando dessa dimensão ética do rosto, já que o encontro, no sentido atribuído por Lévinas, faz falar ao invés de tematizar, representar, classificar - pensar, significa antes de qualquer coisa, escutar. Reconhecer a alteridade do outro, então, é acolher a sua expressão, não matar o outro. Essa noção de alteridade rompe com a dicotomia clássica eu-outro e a noção mais essencialista de identidade, ainda presente no debate sobre alteridade. Essa noção rompe com o primado do eu sobre o outro, pois o rosto desestabiliza o eu, provoca desassossego. O outro me afeta, como diria Spinoza (2013Spinoza, B. (2013). Ética. Autêntica.).

Arruda (2011Arruda, A. (2011). Representações sociais: dinâmicas e redes. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das representações sociais: 50 anos (pp. 335-369). Technopolitik.), Jodelet (2009Jodelet, D. (2009). O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado, 24(3), 679-712 https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000300004
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, 2015Jodelet, D. (2015). Problemáticas psicossociais da abordagem da noção de sujeito. Cadernos de Pesquisa, 45(156), 314-327. http://dx.doi.org/10.1590/198053143203
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
), Jovchelovitch (2008Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do saber: Representações, comunidade e cultura. Vozes.) e Pombo-de-Barros e Arruda (2010Pombo-de-Barros, C. F. & Arruda, A. M. S. (2010). Afetos e representações sociais: Contribuições de um diálogo transdisciplinar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(2), 351-360. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000200017
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) já vêm apontando que os saberes construídos trazem, consigo, uma dimensão afetiva, que é impossível separar a razão da emoção, dos afetos. Pombo-de-Barros e Arruda (2010)Pombo-de-Barros, C. F. & Arruda, A. M. S. (2010). Afetos e representações sociais: Contribuições de um diálogo transdisciplinar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(2), 351-360. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000200017
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
encontraram pontos de afinidade entre a TRS e a Teoria do Desenvolvimento Emocional, de Donald Winnicott, apontando o papel da afetividade na construção das representações.

Questiono-me, entretanto, sobre como os afetos podem desconstruir as representações. Quando estou diante de alguém que não partilha as mesmas representações comigo, o que faço? Torno familiar o não-familiar? Os afetos servem apenas para manter o sentimento de pertença a vínculos sociais anteriormente estabelecidos, ou podem construir outros vínculos a partir do encontro com o novo? O desassossego que senti em vários momentos da pesquisa me levaram a pensar que as representações sociais, às vezes, capturam e enquadram a novidade, o “outro estranho”, em noções preestabelecidas por mim, por meio das minhas relações e dos lugares que ocupo no mundo.

Tomando como pressuposto que o encontro com o outro está inscrito num fluxo de afetos (o encontro como produto e produtor de afetos), que esse encontro é dialógico, de escuta e acolhimento da expressão do outro em sua radical diferença (rosto) e que, por isso, me desestabiliza e desassossega, podemos pensar em uma dimensão afetiva das representações sociais. Esse processo, sempre situado em um contexto concreto, acontece no encontro e, portanto, na condição humana da pluralidade (Arendt, 2010Arendt, H. (2010). A condição humana. Forense Universitária.). A ação, para Arendt, é a atividade humana condicionada por essa pluralidade. É no âmbito da ação e da pluralidade que encontramos a noção de política para a autora. Dessa forma, essa dimensão afetiva da TRS é, antes de mais nada, uma dimensão política.

A individualização do fracasso e a primazia de uma clínica da abstinência, atribuídas comumente às pessoas que usam drogas, dificultam a construção de uma política efetivamente pública, porque sustenta dicotomias como indivíduo e sociedade, bem e mal, certo e errado, o abstinente e o “fracassado”. Dicotomias essas presentes nos processos de construção de representações sociais sobre o uso de drogas. Por isso, a aposta na construção do comum é fundamental, enfatizando a dimensão pública de uma política - o que, apesar de todos esforços e críticas dos próprios autores da teoria, a TRS não consegue dar conta. O comum implica a abertura ao Outro - a questão da alteridade, a composição de singularidades, o acolhimento à multiplicidade, a capacidade de diferir - a pluralidade que constitui o plano político em Hannah Arendt (2010Arendt, H. (2010). A condição humana. Forense Universitária.).

O comum sempre advém da experiência, é heterogêneo, acompanha práticas concretas e cria efeito de pertencimento - desestabilizam-se as fronteiras entre saberes e atores, ocorrendo o atravessamento de diferentes semióticas por meio da experiência da dimensão do coletivo (Barros & Pimentel, 2012Barros, M. E. B. & Pimentel, E. H. C. (2012). Políticas públicas e a construção do comum: interrogando práticas PSI. Revista Polis e Psique, 2(2), 3-22. https://doi.org/10.22456/2238-152X.35746
https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
). Coletivo como experiência do comum, potencializando saberes até então excluídos. É justamente essa desestabilização das fronteiras e a experiência do comum que não consegui nomear, classificar e/ou representar - os tantos desassossegos que senti e que fui tentando entender ao longo do processo de escrita da tese.

Em duas passagens do “Livro do Desassossego”, Fernando Pessoa (1986Pessoa, F. (1986). Livro do desassossego: Por Bernardo Soares. Brasiliense.), por meio do seu heterônimo Bernardo Soares, brinda-nos com sua bela poesia:

Nuvens… Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também [ênfase adicionada]. Nuvens… Que desassossego se sinto, que desconforto se penso, que inutilidade se quero! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo, porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão a tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas, parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias (p. 166).

Preciso explicar-lhe que viajei realmente. Mas tudo me sabe a constar-me que viajei, mas não vivi. Levei de um lado para outro, de norte para sul... de leste para oeste o cansaço de ter tido um passado, o tédio de viver o presente, e o desassossego de ter que ter um futuro [ênfase adicionada]. Mas tanto me esforço que fico todo no presente matando dentro de mim o passado e o futuro (p. 292).

Nessas duas passagens, deparo-me duas vezes com a palavra desassossego. Na segunda, ele fala no “desassossego de ter que ter um futuro”. Desassossego como um sentimento do incerto, do imprevisível. Nossas ações nos levam à ideia de imprevisibilidade (Arendt, 2010Arendt, H. (2010). A condição humana. Forense Universitária.)6 6 Segundo Hannah Arendt (2010), a atividade humana da ação condiciona o homem à política, à vida em sociedade, aos debates sobre decisões importantes da vida pública. Portanto, a ação é a atividade que faz o homem escapar de sua condição de animal laborans (prisioneiro do ciclo interminável do processo vital) e de homo faber (que perde os significados das coisas em sua incessante produção de instrumentos e objetos de uso num mundo determinado pela categoria de meios e fins). Por meio da ação e do discurso as pessoas produzem histórias significativas e trazem consigo duas potencialidades: a irreversibilidade e a imprevisibilidade. Ou seja, quando agimos, é impossível desfazer o que se fez (irreversibilidade) e descobrir aonde essa ação vai nos levar, a incerteza do futuro (imprevisibilidade). . Mesmo que não saibamos as consequências de nossas ações, o desassossego não pode paralisar. A ação, para Hannah Arendt, é a atividade que condiciona o homem à pluralidade. Vivemos a pluralidade humana no encontro com o outro. Encontrar o outro é desassossegar-se. Encontrar o outro é, como nos diz Fernando Pessoa na primeira passagem, desassossegar-se porque nos damos conta de que somos “o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também” (p. 292). Dessa forma, se desassossegar é dar-se conta da nossa incompletude e tem como efeito o borramento da fronteira entre o que sou e o que não sou. O desassossego é um sentimento, provocado nos encontros, que possibilita a construção do comum.

Considerações Finais: retomando a respiração

Emudeci. O encontro com aquela mulher com o corpo queimado, olhando-me com sofrimento e dor, despiu-me. Eu, que tanto queria compreender a construção das práticas de acolhimento, não consegui acolhê-la. Com dificuldade de respirar e com o corpo trêmulo, só pensava no momento em que eu ficaria a sós, comigo mesmo, no conforto da minha casa. Ao chegar em casa, chorei. E um tempo depois, deparei-me com a necessidade imposta pelo calendário de concluir a escrita da minha tese, agora me sentindo estrangulado pelas minhas escolhas teóricas. Sem conseguir nomear o que eu havia sentido com esse e com tantos outros encontros, compartilhei com uma grande amiga e, na época, colega de grupo de pesquisa, as cenas extraídas do meu diário de campo transcritas neste artigo. Ela, sem me dizer muita coisa, emprestou-me o “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa.

O que eu sentia eram desassossegos! Inspirado no poeta português, tanto o desassossego quanto os heterônimos acabaram se constituindo, no decorrer da escrita, em operadores teórico-metodológicos. O desassossego operou no sentido de contribuir no processo de desconstrução e reconstrução de saberes, num movimento ininterrupto. A noção-sentimento deste me levou a repensar, por exemplo, a própria teoria, por meio da qual fui construindo o campo problemático, ainda na elaboração do projeto. O heterônimo, enquanto ferramenta teórico-metodológica, deu visibilidade ao pressuposto de que somos sujeitos polifásicos, constituídos por relações e identificações múltiplas e singulares. A heteronímia me possibilitou um deslocamento de mim mesmo em direção ao outro, que não precisa de mim para legitimar e compartilhar seus saberes.

Como toda pesquisa, esta construiu um conjunto de saberes parciais, transitórios, formados em tempos e espaços concretos e determinados. Como nos diz Todorov, a história vai se fazendo e se reconstruindo em movimentos imperceptíveis, por isso, por mais que se conheça a história, nunca é possível prevê-la. Busquei, nesta pesquisa, acompanhar como o encontro de saberes entre profissionais e usuários sustenta e/ou transforma as práticas de acolhimento. Ao longo da pesquisa, contudo, percebi que esse objetivo não é unidirecional, pois também acabei acompanhando como determinadas formas de conceber e praticar o acolhimento transformam os saberes de usuários e profissionais. Exaustivamente busquei discutir, elucidar, refletir sobre essa complexa interrelação entre saberes e práticas.

A partir da noção de desassossego e de tensão, questionando o princípio da familiaridade, resgato e acompanho o pensamento de autoras como Denise Jodelet, Ama De-Graft Aikins, Caroline Howarth, Sandra Jovchelovitch e Ângela Arruda para trazer à tona o debate sobre a familiaridade, resistência, dinamicidade das representações sociais. Buscando uma articulação dessas autoras com o pensamento de filósofos como Lévinas, Arendt e Spinoza, problematizo pontos iniciais de uma dimensão afetiva e política da teoria. Afetos, que surgem no encontro entre as pessoas e, portanto, diretamente relacionadas à condição da pluralidade humana e do ser político, que nos ajudam a pensar na desconstrução das representações sociais, e não apenas em sua construção.

Em relação à Teoria das Representações Sociais, considero-me um iniciante, com muito ainda a estudar e aprofundar. Talvez, por falta de entendimento de minha parte, alguns aspectos da teoria e dos estudos dela derivados me incomodam. Ressalto esse aspecto porque, apesar das críticas produzidas dentro da própria TRS, toda teoria produz um “estrangulamento”. No caso da TRS, o papel domesticador das representações, a forma ainda estática de evidenciar os fenômenos, a separação entre um sujeito que representa e o objeto representado e a dificuldade em usar suas ferramentas conceituais para acompanhar processos me fazem repensar o meu lugar e função de pesquisador. Ando transitando por outros caminhos, com muitos desassossegos, mas reafirmando, sempre, a importância de que pesquisas em psicologia social não se transformem em fast research - é o encontro com os outros que faz o pesquisador questionar a si mesmo e suas escolhas teórico-metodológicas e éticas. E isso requer tempo. Tempo de outros devires e outros pesquisares.

Referências

  • Aikins, A. D.-G. (2012). Familiarising the unfamiliar: Cognitive polyphasia, emotions and the creation of social representations. Papers on Social Representations, 21(7), 1-28. https://bit.ly/3WHu6tc
    » https://bit.ly/3WHu6tc
  • Arendt, H. (2010). A condição humana. Forense Universitária.
  • Arruda, A. (2015). Modernidade & cia.: Repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes, & M. J. Lopes (Orgs.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.
  • Arruda, A. (2011). Representações sociais: dinâmicas e redes. In A. M. O. Almeida, M. F. S. Santos, & Z. A. Trindade (Orgs.), Teoria das representações sociais: 50 anos (pp. 335-369). Technopolitik.
  • Arruda, A. (1998). O ambiente natural e seus habitantes no imaginário brasileiro. In A. Arruda (Org.), Representando a alteridade (pp. 17-46). Vozes.
  • Barros, M. E. B. & Pimentel, E. H. C. (2012). Políticas públicas e a construção do comum: interrogando práticas PSI. Revista Polis e Psique, 2(2), 3-22. https://doi.org/10.22456/2238-152X.35746
    » https://doi.org/https://doi.org/10.22456/2238-152X.35746
  • Deleuze, G. & Guattari, F. (1995). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Editora 34.
  • Duveen, G. (2010). Introdução: O poder das ideias. In S. Moscovici, Representações sociais: Investigações em psicologia social (pp. 7-28). Vozes.
  • Foucault, M. (1984). Ditos e Escritos V: A ética do cuidado de si como prática da liberdade. Forense Universitária.
  • Howarth, C. (2006). A social representation is not a quiet thing: Exploring the critical potential of social representations theory. British Journal of Social Psychology, 45(1), 65-86. https://doi.org/10.1348/014466605X43777
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1348/014466605X43777
  • Jodelet, D. (2015). Problemáticas psicossociais da abordagem da noção de sujeito. Cadernos de Pesquisa, 45(156), 314-327. http://dx.doi.org/10.1590/198053143203
    » https://doi.org/http://dx.doi.org/10.1590/198053143203
  • Jodelet, D. (2009). O movimento de retorno ao sujeito e a abordagem das representações sociais. Sociedade e Estado, 24(3), 679-712 https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000300004
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0102-69922009000300004
  • Jodelet, D. (2005). Loucuras e representações sociais. Vozes.
  • Joffe, H. (1996). AIDS research and prevention: a social representation approach. British Journal of Medical Psychology, 69, 169-190. http://doi.org/10.1111/j.2044-8341.1996.tb01863.x
    » https://doi.org/http://doi.org/10.1111/j.2044-8341.1996.tb01863.x
  • Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do saber: Representações, comunidade e cultura. Vozes.
  • Lévinas, E. (2010). Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes.
  • Marková, I. (2006). Dialogicidade e representações sociais: As dinâmicas da mente. Vozes.
  • Morant, N. (1995). What is mental illness? Social representations of mental illness among British and French mental health professionals. Papers on Social Representations , 4(1), 1-12. https://bit.ly/3WHO72M
    » https://bit.ly/3WHO72M
  • Moscovici, S. (2012). A Psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes.
  • Moscovici, S. (2010). Representações sociais: Investigações em psicologia social . Vozes.
  • Pessoa, F. (1986). Livro do desassossego: Por Bernardo Soares. Brasiliense.
  • Pombo-de-Barros, C. F. & Arruda, A. M. S. (2010). Afetos e representações sociais: Contribuições de um diálogo transdisciplinar. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(2), 351-360. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000200017
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000200017
  • Romanini, M. (2016). Narrativas do Desassossego: do re-en-colhimento às práticas de acolhimento aos usuários de drogas na Rede de Atenção Psicossocial de Porto Alegre/RS (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.
  • Sá, C. P. (1998). A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. UERJ.
  • Spinoza, B. (2013). Ética. Autêntica.
  • 1
    A pesquisa, de caráter qualitativo, foi realizada junto à Área Técnica de Saúde Mental, de um CAPS AD e de uma equipe de Consultório na Rua de uma rede de saúde na região sul do Brasil. Foram realizadas observações no cotidiano dos serviços, escrita de diários de campo, entrevistas narrativas com usuários e profissionais e grupos de discussão com profissionais. No período de aproximadamente um ano, foram concluídas 298 horas de observação participante em 86 imersões no campo de estudo. Além das observações, foram realizados três grupos de discussão e 34 entrevistas narrativas com usuários e profissionais dos serviços. A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre (RS).
  • 2
    Na escrita da tese, a utilização de heterônimos foi uma estratégia, ao mesmo tempo, teórico-metodológica e ética, a fim de preservar o anonimato dos interlocutores. Assim como o título da tese da qual resulta este manuscrito, o uso dos heterônimos teve como fonte inspiradora o poeta Fernando Pessoa, conhecido, também, por utilizá-los amplamente - entre os mais conhecidos, Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares. Tanto no caso da obra de Fernando Pessoa quanto deste trabalho, os heterônimos fazem emergir uma concepção de sujeito cujas identidades são múltiplas, um sujeito que é atravessado por diversas e, muitas vezes, paradoxais identificações, resultando no desdobramento do “eu”, em seu descentramento em direção ao outro. O heterônimo foi apresentado com o nome e a primeira letra do sobrenome, seguido de ponto final.
  • 3
    Segundo Informações Colhidas - são trechos transcritos do diário de campo do pesquisador. Quando uso o heterônimo após uma transcrição literal, são trechos das entrevistas realizadas.
  • 4
    Diante da difusão e amplitude da TRS, Pereira de Sá (1998)Sá, C. P. (1998). A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. UERJ. identifica três linhas principais de desenvolvimento da teoria. A primeira, desenvolvida principalmente a partir da obra publicada por Jodelet (2005)Jodelet, D. (2005). Loucuras e representações sociais. Vozes.Folies et représentations sociales, que parte da complexidade das representações sociais, propondo uma aproximação processual, mais centrada no aspecto constituinte que no aspecto constituído das representações. A segunda, centrada nos processos cognitivos e na estrutura das representações sociais, foi desenvolvida principalmente por Jean Claude Abric por meio de sua teoria do Núcleo Central. E a terceira, mais sociológica, desenvolvida em Genebra por Willem Doise, centra-se mais nas condições de produção e circulação das representações sociais (Sá, 1998Sá, C. P. (1998). A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. UERJ.). É importante destacar que o aporte teórico desta pesquisa veio do enfoque processual das representações sociais. Entendemos que as representações são, ao mesmo tempo, processo e produto. Seguindo Moscovici (2012)Moscovici, S. (2012). A Psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes., Jodelet (2005)Jodelet, D. (2005). Loucuras e representações sociais. Vozes. e Jovchelovitch (2008)Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do saber: Representações, comunidade e cultura. Vozes., as representações sociais devem ser analisadas em relação aos processos da dinâmica social e da psíquica dos sujeitos.
  • 5
    Jovchelovitch (2008)Jovchelovitch, S. (2008). Os contextos do saber: Representações, comunidade e cultura. Vozes. já vem destacando a análise de implicação como uma ferramenta importante nos estudos em RS, evidenciando dois níveis: o reconhecimento da pertença, que se refere a esses lugares ocupados nas relações sociais, e o processual, que se refere à natureza da relação do pesquisador com o campo.
  • 6
    Segundo Hannah Arendt (2010)Arendt, H. (2010). A condição humana. Forense Universitária., a atividade humana da ação condiciona o homem à política, à vida em sociedade, aos debates sobre decisões importantes da vida pública. Portanto, a ação é a atividade que faz o homem escapar de sua condição de animal laborans (prisioneiro do ciclo interminável do processo vital) e de homo faber (que perde os significados das coisas em sua incessante produção de instrumentos e objetos de uso num mundo determinado pela categoria de meios e fins). Por meio da ação e do discurso as pessoas produzem histórias significativas e trazem consigo duas potencialidades: a irreversibilidade e a imprevisibilidade. Ou seja, quando agimos, é impossível desfazer o que se fez (irreversibilidade) e descobrir aonde essa ação vai nos levar, a incerteza do futuro (imprevisibilidade).
  • Financiamento: Bolsa de Doutorado Capes - Programa de Demanda Social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2021
  • Aceito
    18 Out 2021
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br