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Implicações da Prática Profissional no Acolhimento Institucional de Crianças: Perspectiva de Cuidadoras

Implications of Professional Practice in Children’s Institutional Sheltering: Caregivers’ Perspective

Implicaciones de la Práctica Profesional en el Alojamiento Institucional de Niños: Perspectiva de Cuidadoras

Resumo

Este estudo qualitativo teve como objetivo compreender, a partir da teoria de bioecológica de desenvolvimento, as implicações da prática profissional no processo de acolhimento de crianças em uma casa-abrigo, na perspectiva de cuidadoras. As participantes foram 10 profissionais de uma casa-abrigo localizada na região sul do Brasil. Utilizou-se a entrevista semiestruturada e a organização e análise dos dados sustentou-se na Grounded Theory, com auxílio do software Atlas.ti 8.4.14. Os resultados evidenciaram uma centralização das ações de acolhimento e atenção em torno dos cuidados físicos das crianças. As ações para promover suporte e cuidados emocionais dentro da casa-abrigo eram delegadas às profissionais da equipe técnica da instituição. Observou-se que as dificuldades encontradas pelas cuidadoras diziam respeito à falta de segurança e preparação para responder e acolher as demandas emocionais das crianças, as quais estão presentes em diversos momentos do processo de acolhimento. Percebeu-se que as práticas institucionais afetaram decisivamente tanto as ações de acolhimento das participantes e o suporte emocional oferecido às crianças na passagem pela casa-abrigo quanto as cuidadoras, no sentido de vivenciarem no trabalho sentimentos de insegurança. Os resultados tensionam ecologicamente a interação nos processos proximais presentes no desenvolvimento humano. Advoga-se pela reflexão sobre as implicações das práticas institucionais de uma casa-abrigo e o desenvolvimento infantil, visando o cuidado integral dos acolhidos.

Palavras-chave:
Práticas Profissionais; Acolhimento Institucional; Cuidadoras; Crianças; Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano

Abstract

Based on the developmental bioecological theory, this study analyzes the implications of professional practice in children’s user embracement at a shelter from the caregivers’ perspective. Semi-structured interviews were conducted with 10 professionals from a shelter located in southern Brazil. Data organization and analysis was performed based on Grounded Theory using the Atlas.ti 8.4.14 software. Results showed that embracement and attention focus on the physical care of children. Support and emotional care activities were delegated to the institution’s technical team. Caregivers faced difficulties regarding the lack of security and preparation to respond to and accept the children’s emotional demands, which arise at different moments in the embracement process. The institutional practices decisively affected both user embracement actions and the emotional support offered to the children, as well as the caregivers, in the sense of experiencing feelings of insecurity. These findings ecologically tension the interaction in the proximal processes present in human development. Further reflections on the implications of institutional shelter-based practices for child development are needed to provide comprehensive care.

Keywords:
Professional Practices; Institucional Sheltering; Caregivers; Children; Bioecological Theory of Human Development

Resumen

Este estudio cualitativo tuvo como objetivo comprender, desde la perspectiva de la teoría bioecológica del desarrollo, las implicaciones de la práctica profesional en el proceso de acogida de niños en una institución infantil desde la perspectiva de las cuidadoras. Las participantes fueron 10 profesionales de una institución de acogida infantil ubicada en la región Sur de Brasil. Se utilizó la entrevista semiestructurada, y para la organización y análisis de datos se aplicó Grounded Theory, con el uso del software Atlas.ti 8.4.14. Los resultados mostraron que las acciones de recepción y atención se centran en el cuidado físico de los niños. Las acciones de promoción de apoyo y cuidado emocional dentro del alojamiento se asignaron a los profesionales del equipo técnico de la institución. Se observó que las dificultades encontradas por las cuidadoras estaban relacionadas con la falta de seguridad y preparación para responder y aceptar las demandas emocionales de los niños, las cuales se encuentran presentes en diferentes momentos del proceso de acogida. Se notó que las prácticas institucionales afectaron decisivamente tanto las acciones de acogida de las participantes como el apoyo emocional que la institución brinda a los niños durante su paso, así como a las cuidadoras en el sentido de experimentar sentimientos de inseguridad en el trabajo. Estos resultados tensan ecológicamente la interacción en los procesos proximales presentes en el desarrollo humano. Se aboga por reflexionar sobre las implicaciones de las prácticas institucionales en los alojamientos institucionales y el desarrollo infantil, apuntando a la atención integral de los acogidos.

Palabras clave:
Prácticas Profesionales; Acogida Institucional; Cuidadoras; Niños; Teoría Bioecológica del Desarrollo Humano

Introdução

Com a promulgação da Constituição Federal (1988)Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (2001). (21a ed.). Saraiva., a temática de defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes ganhou visibilidade no Brasil ao promover discussões a respeito da concepção de infância e dos direitos dessa população. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) fundamenta-se nos princípios da proteção integral e prioridade absoluta da criança e do adolescente, garantindo os direitos à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à cultura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (Lei nº 8.069, 1990Lei nº 8.069, de 13 julho de 1990. (1990, 16 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Ministério da Justiça. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm
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).

Existem situações em que a garantia desses direitos pode ser ameaçada devido à presença de possíveis fatores de risco no contexto familiar. Nesses casos, o acolhimento institucional configura-se como parte dos Serviços de Alta Complexidade da Assistência Social, sendo uma das medidas de proteção destinadas à criança e ao adolescente cujos direitos foram ameaçados ou violados. Fatores como a violência, abandono, negligência, abuso de álcool ou outras drogas pelos cuidadores, doença mental dos pais, entre outros, foram apontados como principais problemáticas vivenciadas pelas famílias que têm seus filhos afastados do convívio familiar (Lemos & Silva, 2018Lemos, I. C., & Silva, R. B. F. (2018). Cuidado de crianças em acolhimento institucional: relações afetivas e dimensão temporal. PSI UNISC, 3(1), 174-191. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v1i3.11892
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; Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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; Siqueira et al., 2006Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell’Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 40(2), 149-158.; Tomás & Vectore, 2012Tomás, D. N., & Vectore, C. (2012). Perfil mediacional de mães sociais que atuam em instituições de acolhimento. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(3), 576-587. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000300005
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).

Quando ocorre o afastamento do convívio familiar, as crianças e adolescentes são encaminhados para as instituições de acolhimento, ambientes de apoio psicossocial, acolhimento e proteção, que operam a partir de princípios sistematizados e apresentados no documento das “Orientações técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes” (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2009Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009). Orientações técnicas: Serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (2a ed.). Conselho Nacional de Assistência Social. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes-tecnicas-servicos-de-alcolhimento.pdf.
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). Os princípios essenciais são: excepcionalidade do afastamento do convívio familiar; provisoriedade do afastamento do convívio familiar; preservação e fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários; garantia de acesso e respeito à diversidade e não discriminação; oferta de atendimento personalizado e individualizado; garantia de liberdade de crença e religião; e respeito à autonomia da criança, do adolescente e do jovem (MDS, 2009; Tomás & Vectore, 2012Tomás, D. N., & Vectore, C. (2012). Perfil mediacional de mães sociais que atuam em instituições de acolhimento. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(3), 576-587. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000300005
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; Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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).

Mesmo o caráter temporário do afastamento tendo sido previsto por lei, muitas crianças e adolescentes passam parte considerável da sua infância e adolescência, se não toda, morando em casas-abrigo e privados da convivência familiar. Dessa forma, são as instituições de acolhimento e todas as relações produzidas nesse meio que passam a ocupar o papel formativo e de desenvolvimento da criança e do adolescente, em substituição à família (Rosa et al., 2012Rosa, E. M., Nascimento, C. R. R., Matos, J. R., & Santos, J. R. (2012). O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, 17(3), 361-368. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300003
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). Levando em consideração essa dificuldade identificada em relação à permanência prolongada em instituições de acolhimento e a importância que esta adquire por consequência disso, tem-se pensado em modalidades e práticas profissionais que preservem os vínculos e promovam um desenvolvimento saudável durante a permanência das crianças e adolescentes na instituição (Siqueira et al., 2006Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell’Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 40(2), 149-158.).

A medida do acolhimento institucional pode ser ofertada em diferentes modalidades: abrigos institucionais (casa-abrigo), casas-lares e repúblicas, diferindo entre si quanto às formas de organização, principalmente no que diz respeito à idade e quantidade de crianças/adolescentes (Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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). Neste estudo, destaca-se a modalidade de casa-abrigo, a qual conta com uma equipe técnica, formada por coordenadora e psicóloga, e por uma equipe de cuidadoras, com formação mínima de nível médio, experiência em atendimento a crianças e adolescentes, noções sobre desenvolvimento infanto-juvenil, noções sobre ECA, Sistema Único de Assistência Social; Sistema de Justiça e Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária (MDS, 2009). As profissionais que assumem a função de cuidadoras são responsáveis pela organização da rotina, das atividades domésticas, dos cuidados básicos com as crianças, como alimentação, higiene e proteção, além do estabelecimento de relação afetiva com os acolhidos (Lemos & Silva, 2018Lemos, I. C., & Silva, R. B. F. (2018). Cuidado de crianças em acolhimento institucional: relações afetivas e dimensão temporal. PSI UNISC, 3(1), 174-191. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v1i3.11892
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; Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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).

No contexto da produção científica, foram encontrados estudos de referência sobre o papel das cuidadoras dessas instituições, cabendo mencionar o estudo de Heumann e Cavalcante (2018Heumann, S., & Cavalcante, L. I. C. (2018). Rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional: estudo descritivo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 22-37.), que buscou conhecer as rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional e identificou que grande parte das atividades relatadas pelas cuidadoras esteve relacionada à categoria que envolve os cuidados básicos, como alimentação, sono e higiene pessoal. Já a pesquisa de Nogueira e Costa (2005Nogueira, P. C., & Costa, L. F. (2005). Mãe social: Profissão? Função materna? Estilos da Clínica, 10(19), 162-181.) buscou compreender a função do cuidador, tecendo reflexões acerca da realidade das crianças que se encontram em situação de acolhimento. Os autores destacaram que os cuidados excessivos com a limpeza e com a rotina são questões típicas institucionais que precisam ser pensadas de modo a não perder de vista o atendimento individual e personalizado que esse ambiente se propõe a oferecer. Outra pesquisa também relacionou a dificuldade de interação com as crianças com a sobrecarga de atividades domésticas e uma ênfase excessiva nos cuidados físicos, em detrimento dos cuidados afetivos (Lemos et al., 2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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).

As práticas das profissionais, além das atividades relatadas nas pesquisas supracitadas, envolvem cuidados com as particularidades do desenvolvimento, estabelecimento de relações estáveis e suporte diante das possíveis implicações geradas pela vivência do afastamento/rompimento familiar e pelo processo de institucionalização (Diniz & Koller, 2010Diniz, E., & Koller, S. H. (2010). O afeto como um processo de desenvolvimento ecológico. Educar UFPR, (36), 65-76. https://doi.org/10.1590/S0104-40602010000100006.
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). Estudos que buscaram compreender o contexto ecológico de desenvolvimento presente nas instituições de acolhimento para crianças e adolescentes reforçam que são as relações interpessoais existentes na transição dos microssistemas que podem agregar pessoas à rede e fornecer apoio social e afetivo às crianças, sendo o envolvimento afetivo um dos determinantes para os processos de desenvolvimento (Rosa et al., 2010Rosa, E. M., Santos, A. P., Melo, C. R. S., & Souza, M. R. (2010). Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças. Estudos de Psicologia , 15(3), 233-241. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2010000300002
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; Rosa et al., 2012).

Estudo de campo realizado em quatro casas-lares, com o objetivo de estudar os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional, destacou a particularidade da profissão de cuidadora devido à necessidade de envolvimento afetivo (Lemos et al., 2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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). A pesquisa retratou a exigência de investimento direcionado a uma relação temporária como possibilidade de fonte de resistências na criação de vínculos afetivos com os acolhidos, a fim de evitar o sofrimento da separação. Gabatz et al. (2018Gabatz, R. I. B., Schwartz, E., Milbrath, V. M., Carvalho, H. C. W., Lange, C., & Soares, M. C. (2018). Formação e rompimento de vínculos entre cuidadores e crianças institucionalizadas. Revista Brasileira de Enfermagem, 71(6), 2808-2816. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0844
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) também identificaram a busca por interações mais superficiais que não suscitem o apego como ferramentas de proteção utilizadas pelas cuidadoras, visando amenizar seu sofrimento frente à perda.

Considerando as implicações dos vínculos relacionais construídos pelos indivíduos ao longo de seu desenvolvimento, este estudo se coaduna com a proposta da Teoria Bioecológica de Bronfenbrenner do Desenvolvimento Humano - TBDH (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.). De acordo com essa teoria, as relações afetivas são recursos de superação de mudança, assim, a vinculação pode auxiliar no enfrentamento da transição ecológica família-instituição, diante da vivência da qualidade relacional entre crianças e cuidadoras. Por qualidade relacional, entende-se a possibilidade de estabelecimento de relações com os múltiplos sistemas interativos os quais o indivíduo tem acesso, na presença de figuras estáveis que estimulem uma relação recíproca ao longo do tempo (Bronfenbrenner & Morris, 2006Bronfenbrenner, U., & Morris, P. A. (2006). The bioecological model of human development. In W. Damon & R. M. Lerner (Orgs.), Handbook of child psychology: Theoretical models of human developmental (pp. 793-828). John Wiley.).

A essa dimensão relacional, Bronfenbrenner e Morris (2006Bronfenbrenner, U., & Morris, P. A. (2006). The bioecological model of human development. In W. Damon & R. M. Lerner (Orgs.), Handbook of child psychology: Theoretical models of human developmental (pp. 793-828). John Wiley.) denominam processos proximais aqueles estabelecidos quando ocorrem interações ativas, recíprocas e mútuas entre a pessoa em desenvolvimento e seu contexto mais imediato, com engajamento em atividades com níveis crescentes de complexidade. No âmbito institucional, os processos proximais podem ocorrer quando são estabelecidas interações entre as crianças acolhidas e suas cuidadoras. Podem ser encontrados exemplos de processos proximais no cotidiano da casa-abrigo, na medida em que as crianças são envolvidas em atividades como alimentação, higiene pessoal, tarefas ou em momentos de brincadeira e jogos.

Nessa direção, compreende-se o desenvolvimento como um processo interativo entre a pessoa e o contexto no qual ela está inserida em um determinado momento. A TBDH reconhece os processos desenvolvimentais relacionados a esses quatro aspectos, que constituem o modelo PPCT: pessoa, processo, contexto e tempo. Os processos ocorrem a partir da interação entre a pessoa e os contextos nos quais ela é inserida no decorrer da sua vida (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.).

O contexto é dividido em quatro níveis distintos que se influenciam mutuamente: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. Omicrossistema é o ambiente mais próximo à pessoa, meio onde se estabelecem as relações mais diretas. Quando uma criança ou adolescente é afastado do convívio familiar, este deixa de ser o contato mais próximo, alterando não só o microssistema do ambiente familiar para o institucional, mas todas as relações e redes de apoio que coexistiam naquele ambiente (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.).

Quando inserida em um novo microssistema, a criança passa a se relacionar e a interagir em outros contextos: muda de casa, de escola, e com isso altera também sua rede social e afetiva, entrando em contato com novos cuidadores, professores e grupo de amigos. A associação entre os diferentes contextos e relações produzidas origina o mesossistema, que consiste no conjunto dos microssistemas em que a criança vai sendo inserida. No caso de acolhimento institucional, o mesossistema consistirá nas interações estabelecidas entre a instituição, a família de origem, a escola e a comunidade (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.).

O exossistema se configura pelos contextos nos quais a criança não participa, mas que exerce influência sobre ela, como o trabalho dos pais, a direção da escola e da instituição, por exemplo. O conjunto de leis e regras presentes em determinada sociedade/cultura que perpassam todos os demais contextos é chamado de macrossistema. As políticas de proteção à criança e ao adolescente são exemplos de macrossistemas que influenciam o processo de acolhimento (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.).

A concepção de infância e desenvolvimento infantil faz parte de um conjunto de valores que diz respeito à sociedade contemporânea e que atravessa todas as formas de cuidado produzidas em contextos de acolhimento institucional para crianças e adolescentes (Diniz & Koller, 2010Diniz, E., & Koller, S. H. (2010). O afeto como um processo de desenvolvimento ecológico. Educar UFPR, (36), 65-76. https://doi.org/10.1590/S0104-40602010000100006.
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). A interrelação de todos os contextos, pessoa, processos proximais e relações desenvolvidas ao longo do tempo (modelo PPCT), organiza a concepção de desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.). Cabe apontar também que os processos proximais estão presentes de forma transversal através das zonas proximais entre os sistemas e que determinarão a qualidade dos vínculos e das possibilidades relacionais do indivíduo, mais especificamente neste estudo, a criança e seu desenvolvimento.

Diante do exposto e considerando a importância da prática profissional de cuidadoras para o desenvolvimento de crianças e adolescentes abrigados, foi realizada uma revisão de literatura com busca de artigos publicados entre os anos de 2009 e 2019 nas bases de dados SciELO, Social Service Abstract, PsycINFO e BVS-Psi. Foram encontrados 10 artigos que respondiam ao objetivo proposto, evidenciando dificuldades e dilemas profissionais vivenciados no cotidiano, como elevado número de crianças por cuidadora, crenças estigmatizantes dos profissionais em relação às famílias de origem, ausência de apoio institucional e conflito de definição das funções das cuidadoras na instituição.

Tendo em vista o papel das relações estabelecidas com as crianças e adolescentes acolhidos e das práticas profissionais no contexto institucional para estabelecer apoio e suporte no processo de transição ecológica e nos processos de desenvolvimento infantil, surgiram questionamentos em torno das práticas profissionais realizadas nesse contexto, cabendo mencionar: Como as profissionais percebem a importância de suas funções no processo de acolhimento? Quais as implicações das práticas profissionais durante a permanência das crianças na casa-abrigo? Quais ações de suporte são realizadas para apoiar o desenvolvimento do trabalho das cuidadoras?

Diante do exposto, o presente artigo teve como objetivo compreender, a partir da teoria bioecológica de desenvolvimento, as implicações da prática profissional no acolhimento de crianças em uma casa-abrigo, na perspectiva de cuidadoras. O referido processo de acolhimento envolve a entrada, a permanência e o desligamento das crianças, bem como a trama relacional que se expressa nesse contexto.

Esta pesquisa se propõe a contribuir com a produção científica sobre o tema ao fomentar reflexões que sustentem o aperfeiçoamento das estratégias de intervenções profissionais no contexto de casas-abrigo. As intervenções podem contribuir com ações integrais de cuidado no atendimento às crianças em situação de acolhimento, para que as instituições sejam não só o espaço de afastamento familiar, mas também um contexto promotor de desenvolvimento, garantindo os direitos e possibilitando a reinserção familiar e social.

Quanto à relevância social da pesquisa, esta se assenta na possibilidade de gerar subsídios tanto para os processos de acolhimento institucional de crianças como para o melhor planejamento de ações de sensibilização. Ações para apoiar a prática institucional e profissional dentro dos serviços de acolhimento contribuem para superar a fragmentação dos cuidados oferecidos aos acolhidos e o melhor suporte aos profissionais envolvidos no contexto de uma casa-abrigo.

Método

Participantes

Este foi um estudo qualitativo, do qual participaram 10 profissionais cuidadoras que trabalhavam em um serviço de acolhimento institucional para crianças e adolescentes. Com relação às características sociodemográficas das participantes, todas eram do sexo feminino, com idade entre 27 e 51 anos. Quanto ao estado civil, uma participante era casada, quatro solteiras, quatro divorciadas e uma vivia em união estável. Todas as profissionais entrevistadas tinham filhos. Em relação à crença espiritual/religiosa, cinco das participantes declararam não ter nenhuma, três seguiam o catolicismo, uma o candomblé e uma era espírita kardecista.

Com relação à formação e perfil profissional, uma participante tinha ensino superior completo, com formação em psicologia (não atuante), três tinham ensino superior incompleto, quatro concluíram o ensino médio e duas concluíram o ensino fundamental. O tempo de atuação na casa-abrigo variou entre quatro meses e 30 anos.

A casa-abrigo onde as participantes atuavam recebe crianças (meninos e meninas) de zero a seis anos, localizada na região sul do Brasil, e consiste em um dos projetos de uma Organização Não Governamental. O espaço da casa-abrigo é composto por quatro quartos, sala, cozinha, biblioteca, banheiro, sala de monitoria e espaço de recreação. Os quartos são divididos entre meninos, meninas e bebês, com disposição de beliches e armários individuais. A equipe profissional da casa-abrigo é composta por coordenadora, psicóloga, 15 cuidadoras, duas cozinheiras e uma auxiliar de serviços gerais.

Técnica de coleta de dados

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semiestruturada. O roteiro da entrevista foi desenvolvido pela pesquisadora principal junto ao grupo de pesquisa do qual fazia parte, com temas centrais que guiaram a entrevista com as profissionais. Os temas centrais foram: a) dados sociodemográficos das participantes; b) rotina das participantes e atividades desenvolvidas; c) fluxos do processo de acolhimento institucional: entrada, permanência e desligamento; e d) facilidades e dificuldades encontradas na prática.

Procedimentos de coleta de dados

A aproximação com o campo ocorreu por meio do contato com a equipe técnica (coordenadora e psicóloga) para apresentar o projeto de pesquisa. Depois da abertura do campo, foram realizadas reuniões para pactuar a apresentação da pesquisadora às participantes (cuidadoras), explicações sobre os fluxos da casa-abrigo, turnos de plantões e horários. As profissionais da equipe técnica cumpriram o papel de informantes-chave do contexto, facilitando a entrada ao campo e o acesso às participantes.

Após a aproximação com o contexto e com as informantes-chave, a pesquisadora principal iniciou uma observação participante. Esta teve duração de aproximadamente quatro semanas com o objetivo de observar e compreender as dinâmicas de funcionamento da instituição, as atividades realizadas pelas cuidadoras, bem como estabelecer contato com as participantes de modo a criar alianças de confiança para facilitar a realização das entrevistas. As questões que nortearam a observação foram organizadas a fim de compreender a dinâmica institucional, com base nas práticas realizadas. Por sua vez, isso gerou condições para uma melhor organização da coleta de dados em si. As informações obtidas foram importantes para o aperfeiçoamento do roteiro de entrevista do presente estudo.

Após o período de aproximação com o campo e da observação participante, as profissionais da casa-abrigo foram convidadas pessoalmente pela pesquisadora a fazer parte do estudo, sendo que todas aceitaram o convite. As entrevistas com as 10 cuidadoras foram realizadas na própria casa-abrigo, em local reservado, de modo individual, durante o horário de trabalho, a pedido da equipe técnica. Nesse momento da coleta de dados, a pesquisadora principal ficava à disposição na instituição para realizar as entrevistas de acordo com a disponibilidade das cuidadoras. Todas as entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas e analisadas.

Organização e análise dos dados

A organização e análise dos dados foram feitas com base na Grounded Theory, proposta por Corbin e Strauss (2008Corbin, J. M., & Strauss, A. (2008). Basics of qualitative research: techniques and procedures for developing grounded theory (3rd ed.). Sage Publications.). A Grounded Theory possibilita a compreensão e explicação do fenômeno investigado, de forma indutiva, com base em informações e significados que emergem dos dados. Após a coleta de dados e transcrição do material, iniciou-se uma codificação sistemática e processual, aberta, axial e seletiva (Strauss & Corbin, 2008), estruturada da seguinte forma: 1) codificação aberta: houve a criação dos códigos de forma indutiva, com base em informações e significados que emergiram dos dados, tendo como parâmetro os objetivos do estudo; 2) codificação axial: nesta etapa ocorreu o agrupamento dos códigos de acordo com similaridades temáticas; e 3) codificação seletiva: as categorias de análise criadas e agrupadas nas etapas anteriores foram organizadas em torno de temas centrais. A organização e análise dos dados contou com o auxílio do software para análise de dados qualitativos Atlas.ti 8.4.14. Por meio desse processo, os resultados foram sistematizados e organizados em quatro categorias centrais de análise: 1) Recebendo as crianças na casa-abrigo; 2) Suporte durante o período de permanência das crianças na casa-abrigo; 3) Desligamento das crianças da casa-abrigo; e 4) Facilidades e dificuldades na prática. As categorias e subcategorias estão descritas na Tabela 1. Na apresentação dos resultados, os elementos de análise correspondentes a cada uma dessas categorias estarão destacados em itálico.

Tabela 1
Categorias centrais de análise.

Considerações éticas

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina, sob o parecer 3.582.050. Todos os preceitos éticos da profissão foram seguidos, como a garantia do sigilo das informações e anonimato das participantes.

Resultados

Recebendo as crianças na casa-abrigo

Em termos contextuais sobre a chegada da criança à casa-abrigo em questão, esta é intermediada por um profissional do Conselho Tutelar, que leva a criança até a equipe técnica: coordenadora e psicóloga. Quando estas não estão, como em momentos de chegada de crianças no período noturno, as crianças são entregues diretamente às cuidadoras da casa-abrigo. O conselheiro passa brevemente o motivo da denúncia para a pessoa que recebe a criança, existindo também um documento que relata o caso. Sempre que possível, as cuidadoras são avisadas pela equipe técnica que uma ou mais crianças estão chegando, para que seja feita uma preparação em termos de espaço físico, como arrumar o quarto para a criança com os pertences pessoais necessários.

No que tange aos Procedimentos técnicos de entrada, estes foram descritos como: recepção das crianças, apresentação da casa, das demais crianças e cuidadoras, alimentação, banho e identificação de possíveis marcas no corpo da criança. O procedimento que se segue é de adaptação e integração das crianças às rotinas da casa, que serão descritas a seguir.

Em relação ao acolhimento inicial das crianças, as profissionais relataram que acolhem e explicam que estão ali para cuidar da criança, para dar carinho até que voltem para casa, dizendo frases como: “vai passar essa fase”, “você não vai ficar aqui para sempre”. As profissionais contaram que tomam alguns cuidados nesse momento inicial, procurando acolher da melhor forma possível, visto que entendem que são pessoas estranhas para a criança. A frase “você vai ficar aqui” ou comportamentos de levar a criança para o banho logo que chega à casa são evitados pelas cuidadoras. As profissionais relataram que é necessário ter um manejo para explicar o funcionamento e a rotina da casa sem que a criança fique com a impressão de que a cuidadora está obrigando ou exigindo algo.

O acolhimento dos bebês centra-se nos cuidados básicos (banho, troca de fralda, mamadeira) e, em seguida, de procurar deixá-los em um lugar calmo e silencioso. Já com as crianças maiores, conforme relato das participantes, as conversas ocorrem no sentido de explicar de forma “amigável” a situação. Ainda que os procedimentos e cuidados citados pelas cuidadoras sejam uma forma de acolhimento, algumas cuidadoras responderam que a função de receber e realizar o acolhimento inicial da criança é da equipe técnica (coordenadora e psicóloga).

A socialização dentro da casa-abrigo ocorre no sentido de dar uma atenção maior às crianças recém-chegadas no que for preciso, dar colo, conhecer a criança, os gostos, a rotina a que ela estava habituada, assim como convites para brincar e interagir com as outras crianças. As participantes também disseram que procuram deixar a criança à vontade e não exigir muito dela na chegada à casa-abrigo, considerando o tempo e o espaço que a criança necessita para compreender a situação do acolhimento institucional.

As cuidadoras percebem que as crianças chegam à casa-abrigo abaladas, normalmente ficam recuadas, desvinculadas e com dificuldades para participar da rotina da casa. Algumas participantes relataram que a chegada de crianças novas gera mudanças na rotina da casa, como na convivência, por motivos de ciúmes, por exemplo. Outras disseram acreditar que algumas crianças não notam a chegada das outras ou que já se acostumaram com a situação. Outras respostas foram na direção de que as participantes percebem que as crianças abrigadas se sentem sem aviso e explicação sobre o que está acontecendo e que deveria ter mais preparação para o momento da entrada de novas crianças.

Suporte durante o período de permanência das crianças na casa-abrigo

Durante o período de adaptação e permanência das crianças na casa-abrigo, as cuidadoras recebem demandas em relação a dúvidas e questionamentos dos acolhidos sobre o processo pelo qual estão passando. Os suportes ofertados pelas cuidadoras às crianças nesses casos foram descritos como: ouvir as crianças, dar explicações sobre o acolhimento e tentar acalmar/distrair. Dentre as formas de dar explicações, as cuidadoras utilizavam promessas como: “logo a mamãe vem” ou “logo você vai embora”.

Algumas profissionais, ao relatarem a forma como respondem às crianças diante dos questionamentos, delegam para o outro a responsabilidade, usando respostas como: “é sigiloso”, “é só com o juiz”, “é conversa de adulto”, ou pedem para rezar para o papai do céu. Algumas participantes relataram que responder a esses questionamentos é função da psicóloga, cabendo a elas (cuidadoras) a função de cuidar das crianças. Sendo assim, muitas falas foram no sentido de fazer encaminhamentos para a psicologia como forma de suporte às crianças durante a permanência na casa-abrigo. Uma das cuidadoras relatou que quando acontecem casos em que a criança precisa de suporte, como quando estão ansiosas ou chorando demais, colocam no relatório o sofrimento das crianças para a psicóloga da instituição ter conhecimento.

Em relação às instruções recebidas de como responder às crianças quando estas perguntam sobre o acolhimento, sobre a família, quando poderão ir para casa ou sobre quando dizem que estão com saudades dos pais, as participantes relataram que, na maioria das vezes, aprendem como responder a essas questões no cotidiano da prática, de acordo com as vivências na casa-abrigo. As cuidadoras revelaram que recebem pouca ou nenhuma instrução da equipe técnica, concordando que deveriam ter mais informações do processo para saber como responder aos questionamentos das crianças. Quando mencionaram as instruções recebidas, alguns exemplos citados foram: a) ter cuidado para as falas entre as cuidadoras não serem divergentes; b) explicar que os pais estão resolvendo os problemas; c) falar para as crianças esperarem; d) dizer que um dia o pai e a mãe virão ou; e) que os familiares virão visitar. Outras respostas tenderam a orientar as crianças que, diante dessas situações, devem pedir para falar com a psicóloga, entretanto, segundo as cuidadoras, nem todas as crianças recebem suporte psicológico quando comunicam dúvidas ou dificuldades para lidar com a situação.

Desligamento das crianças da casa-abrigo

Quando questionadas sobre o processo de saída das crianças da casa-abrigo, as cuidadoras relataram receber informações da equipe técnica sobre visitas e aproximação das crianças com as famílias, processo que antecede o desligamento. Em seguida, a coordenação faz um aviso sobre uma possível adoção, para que as profissionais possam se preparar para a saída da criança. Algumas cuidadoras relataram que ficam sabendo da saída das crianças através do relatório ou em conversa com a equipe do plantão-dia, período em que as crianças recebem as visitas dos familiares. Duas cuidadoras contaram que nem sempre existe aviso e que já vivenciaram situações de chegar ao abrigo e a criança não estar mais. Uma das entrevistadas relatou que elas são avisadas, mas que o processo de preparação das cuidadoras para o desligamento é individual: “a gente é só avisada”.

As profissionais relataram que a preparação das crianças para o desligamento é função da equipe técnica, assim, a criança que vai ser desligada é preparada pela psicóloga. Segundo elas, não existe preparação com as cuidadoras nem com as crianças que continuam abrigadas. As cuidadoras, ao serem avisadas, ficam livres para fazerem a quebra de vínculo como considerarem melhor.

Sobre a preparação com as crianças, uma das cuidadoras disse que elas geralmente entendem, visto que presenciam diversas situações como essas na casa-abrigo. Algumas cuidadoras disseram não entender ou não ter informações sobre o processo de desligamento das crianças. Uma das participantes respondeu sobre a importância de pensar na preparação de saída e acompanhamento no processo de adoção, pois a ausência de ambos pode resultar em complicações no processo de reinserção familiar, como em casos de devolução de crianças.

Os procedimentos de saída realizados pelas cuidadoras referiam-se à organização dos pertences pessoais da criança e realização de uma “festinha” de despedida ou refeição coletiva para marcar a saída da criança. Nesse momento, havia uma explicação sobre a saída para as demais crianças. No momento da entrevista, as participantes relataram que esse procedimento da despedida não ocorria mais com tanta frequência, ainda que considerassem importante. Uma participante relatou como procedimento de saída escutar, conversar e apoiar a criança sobre a nova família.

Os resultados apontaram duas formas de percepção das cuidadoras em relação ao momento de saída de crianças. A primeira acreditando que as crianças entendem a situação por presenciá-la repetidas vezes ao longo do período de permanência na instituição e, por outro lado, o reconhecimento de que o desligamento afeta toda a dinâmica da casa.

Em relação às repercussões da saída das crianças na casa-abrigo, as participantes relataram que além da ruptura de vínculos que a saída causa, deixa ainda a angústia da incompreensão, tendo em vista que as saídas não respondem à lógica de idades nem de tempo de permanência, o que desencadeia sentimentos de tristeza, raiva e choro nas crianças que permanecem abrigadas. Para explicar a repercussão da saída na casa-abrigo, as cuidadoras utilizaram frases como: “as crianças contam os dias para sair, para ter uma família, para ser a vez delas”.

Facilidades e dificuldades na prática

Em relação aos cuidados com as crianças, a maioria das cuidadoras relatou ter facilidade com todas as funções, sendo a mais citada a alimentação. O fato de ter filho também foi citado como uma facilidade por uma das participantes: “como a gente tem filho, é tudo bem mais prático pra gente”. Quanto às dificuldades, sobressaíram-se as atividades e deveres escolares, cuidados em administrar corretamente a dose de medicação e cuidados para que a criança se sinta bem na casa-abrigo. Uma das participantes relatou que os cuidados com as crianças parecem simples, mas que envolvem muita responsabilidade.

As características das crianças, como idade, por exemplo, também foram citadas entre as facilidades e dificuldades na prática. Algumas cuidadoras sentem mais facilidade nos cuidados com bebês, enquanto outras, com crianças maiores. As mesmas respostas foram citadas aos serem questionadas sobre as dificuldades, variando entre cuidados com os recém-nascidos e bebês, por não saberem expressar as necessidades, e cuidados com as crianças maiores, por serem mais “rebeldes”. Foi apontada, ainda, como dificuldade da prática a demanda de lidar com crianças de diferentes idades convivendo na mesma casa, momentos em que as crianças estão muito agitadas e casos em que a criança “é difícil de lidar”, descritas como agitadas e agressivas.

Foram citadas dificuldades em relação à entrada e processo de adaptação das crianças à rotina da casa, observadas pelas participantes quando as crianças choram e nas situações em que as crianças não aceitam a ideia de uma nova família. Lidar com os questionamentos das crianças, como quando perguntam pelos pais, também foi citada como dificuldade na prática. Sobre questões institucionais, o plantão noturno esteve entre as facilidades e o plantão-dia entre as dificuldades, por demandar uma rotina mais agitada e tumultuada. Adicional a isso, foram relatadas a rotina cansativa de trabalhar em regime de plantão de 12 horas e situações de trabalho em equipe como divergências diante de posicionamentos de tomada de decisão em relação aos cuidados com as crianças.

Discussão

De acordo com os resultados expostos, a entrada das crianças na casa-abrigo representa um momento de transição ecológica, compreendido pelo movimento de afastamento familiar e inserção em um novo contexto. Essa transição ocasiona não só a mudança física, mas também uma alteração na posição e papel a ser ocupado dentro do novo ambiente (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.; Rosa et al., 2012Rosa, E. M., Nascimento, C. R. R., Matos, J. R., & Santos, J. R. (2012). O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, 17(3), 361-368. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300003
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). Isso coloca em tensão de forma decisiva os processos proximais de todos os envolvidos em uma situação de cuidado.

Nesse sentido, os cuidados relatados pelas profissionais do presente estudo, no momento de chegada das crianças, evidenciaram em certa medida a capacidade de estabelecimento de relações e criação de vínculos que promoviam a interação da criança com a casa-abrigo, a partir da prática realizada por meio do processo de aprender-fazendo no cotidiano. Ou seja, o processo de acolher as crianças evidenciava as diferentes capacidades relacionais das participantes deste estudo, de acordo com as singularidades de cada uma.

De acordo com um estudo realizado por Diniz e Koller (2010Diniz, E., & Koller, S. H. (2010). O afeto como um processo de desenvolvimento ecológico. Educar UFPR, (36), 65-76. https://doi.org/10.1590/S0104-40602010000100006.
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), a presença do afeto nas relações foi descrito como um dos fatores que asseguram a continuidade do processo desenvolvimental e um componente de superação da mudança. Coadunam-se a isso outras pesquisas sobre o tema, ao apontarem que as relações desenvolvidas na transição de contextos, se forem saudáveis, podem fornecer apoio para adaptação e superação de eventos estressores, como é o caso da chegada em um contexto de acolhimento institucional (Bronfenbrenner, 1996Bronfenbrenner, U. (1996). A ecologia do desenvolvimento humano: Experimentos naturais e planejados. Artes Médicas.; Siqueira et al., 2006Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell’Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 40(2), 149-158.).

Ainda que os procedimentos e cuidados citados pelas profissionais se traduzam em ações de receptividade, atenção e acolhimento, algumas cuidadoras responderam que essa é uma função que diz respeito à equipe técnica. Tal fato propõe uma reflexão sobre a apropriação e o reconhecimento do trabalho realizado como parte integrante do acolhimento inicial e do processo que se segue durante a permanência das crianças na casa-abrigo. A pesquisa de Lemos e Silva (2018Lemos, I. C., & Silva, R. B. F. (2018). Cuidado de crianças em acolhimento institucional: relações afetivas e dimensão temporal. PSI UNISC, 3(1), 174-191. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v1i3.11892
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), ao analisar as relações afetivas dos cuidadores de crianças de instituições de acolhimento, revelou uma dificuldade que o exercício deste trabalho impõe aos profissionais no que diz respeito à compreensão dos papéis a serem desempenhados, ora pela necessidade de ocupar papel parental, ora pela prática de requerer um distanciamento afetivo.

Ao analisar as práticas desenvolvidas pelos pais sociais em instituições de acolhimento de crianças e adolescentes, o estudo de Moré e Sperancetta (2010Moré, C. L. O. O., & Sperancetta, A. (2010). Práticas de pais sociais em instituições de acolhimento de crianças e adolescentes. Psicologia & Sociedade, 22(3), 519-528. https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300012
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) constatou que as pesquisas analisadas sugerem divergências entre as expectativas reguladoras dessa profissão e as práticas que os cuidadores demonstram na interação com as crianças e adolescentes sob sua responsabilidade de cuidado. Ao encontro disso, outra pesquisa de revisão que se propôs a discutir as relações estabelecidas em instituições de acolhimento também aponta para os conflitos e desafios da profissão de cuidadora, principalmente pela ausência de espaços de formação e escuta que auxiliem no reconhecimento das funções a serem desenvolvidas (Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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).

Outro resultado destacado pelas participantes do presente estudo refere-se à preparação para o momento da entrada de novas crianças no abrigo. Segundo elas, as crianças se sentem sem aviso e explicação sobre o que está acontecendo. De acordo com o documento das “Orientações técnicas para serviços de acolhimento” (MDS, 2009), as crianças e adolescentes desconhecem ou não compreendem o motivo pelo qual estão sendo abrigadas e podem vir a encarar esse momento como punição, desencadeando sentimentos de insegurança, rejeição, agressividade, revolta e abandono. Ao encontro disso, o referido documento salienta a importância de que a acolhida inicial realizada pela equipe técnica e cuidadoras seja afetuosa, segura e capaz de compreender as manifestações da criança no momento da chegada.

O período de permanência das crianças na casa-abrigo varia conforme os casos, a depender de decisão judicial para que a criança retorne para a família de origem ou para que seja encaminhada para uma família adotiva, tendo como tempo máximo para permanência nos abrigos o período de dois anos (MDS, 2019). Durante esse tempo, que pode ser mais curto ou mais longo, as cuidadoras relataram que continuam recebendo demandas em relação às manifestações emocionais das crianças: sobre os motivos de terem sido afastadas do convívio familiar, o tempo que precisarão ficar na casa-abrigo, quando poderão ver os pais, sentimentos de medo, insegurança, saudades, bem como outras dúvidas e emoções desencadeadas pelo acolhimento institucional.

Apesar das participantes terem relatado delegar solicitações relacionadas aos questionamentos ou necessidades emocionais das crianças como forma de suporte oferecido, principalmente devido à ausência de suporte e orientação institucional de como prosseguir diante das situações mencionadas, o estudo realizado por Lemos et al. (2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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) mostrou que esses episódios são vivenciados por cuidadoras das diferentes modalidades de abrigo para crianças e adolescentes. Dessa forma, entende-se que as manifestações emocionais das crianças estão presentes em todo o processo de acolhimento, perpassando e repercutindo nas práticas cotidianas (Lemos et al., 2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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).

Nessa perspectiva, entende-se que conferir autonomia e suporte às cuidadoras a respeito das demandas emocionais que podem surgir decorrentes da institucionalização potencializaria o repertório de trabalho, no sentido de usufruir dos espaços existentes no cotidiano para integrar os cuidados físicos e emocionais oferecidos nas casas-abrigo. As necessidades físicas, emocionais, sociais e psicológicas coexistem e emergem durante as atividades de rotina, portanto, delegar ou evitar o atendimento de uma manifestação emocional esperada dentro do contexto de acolhimento é fragmentar o cuidado, como se as inquietações, dúvidas e angústias pudessem esperar em detrimento da realização de outras atividades.

As “Orientações técnicas para serviços de acolhimento” (MDS, 2009) sobre suporte emocional são de que, ao longo do processo de acolhimento, a criança tenha possibilidade de dialogar com a equipe técnica e com os cuidadores de referência sobre suas impressões e sentimentos desencadeados pelo afastamento familiar. De acordo com o documento citado, recomenda-se que a cuidadora favoreça espaços para a livre expressão da criança em momentos de contato afetivo. De acordo com o estudo realizado por Rosa et al. (2010Rosa, E. M., Santos, A. P., Melo, C. R. S., & Souza, M. R. (2010). Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças. Estudos de Psicologia , 15(3), 233-241. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2010000300002
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), todas as interações e vivências que ocorrem dentro do contexto institucional podem influenciar no desenvolvimento psicossocial das crianças.

Ao constatar que as cuidadoras ocupam o espaço de maior contato e vivências diárias no ambiente institucional, entende-se a importância de refletir sobre as interações que partem desta relação, sobretudo a forma como as relações entre cuidadoras e crianças estão sendo construídas. O trabalho da equipe técnica pode auxiliar nesse sentido, contribuindo com informações sobre condições emocionais, história de vida, impacto da violência ou do afastamento do convívio familiar, situação familiar, vinculações significativas e outras interações estabelecidas, possibilitando assim a oferta de um cuidado individualizado para cada criança (MDS, 2009).

Pesquisas realizadas em serviços de acolhimento institucional encontraram resultados similares apontando que, no cotidiano das crianças e adolescentes, essa orientação não é seguida de maneira efetiva dentro das rotinas, alertando para a função da formação e orientação direta no desenvolvimento das atividades das cuidadoras, a fim de evitar episódios de atendimentos sem qualidade, com rapidez de contato, insensibilidade e inabilidade ao lidar com as situações de manifestações emocionais e demandas individuais dos acolhidos (Nogueira & Costa, 2005Nogueira, P. C., & Costa, L. F. (2005). Mãe social: Profissão? Função materna? Estilos da Clínica, 10(19), 162-181.; Lemos et al., 2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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; Heumann & Cavalcante, 2018Heumann, S., & Cavalcante, L. I. C. (2018). Rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional: estudo descritivo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 22-37.). Nesse sentido, é mister a criação de uma rede de suporte que assegure que os espaços de acolhimento institucional sejam contextos de proteção, compreensão e carinho, enquanto as crianças encontram-se afastadas, temporariamente, do convívio familiar de origem (Rosa et al., 2010Rosa, E. M., Santos, A. P., Melo, C. R. S., & Souza, M. R. (2010). Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças. Estudos de Psicologia , 15(3), 233-241. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2010000300002
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; Nogueira & Costa, 2005; Lemos et al., 2017Lemos, S. C. A., Gechele, H. H. L., & Andrade, J. V. A. (2017). Os vínculos afetivos no contexto de acolhimento institucional: um estudo de campo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 33, 1-10. https://doi.org/10.1590/0102.3772e3334
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; Heumann & Cavalcante, 2018Heumann, S., & Cavalcante, L. I. C. (2018). Rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional: estudo descritivo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 22-37.).

Outro aspecto evidenciado na prática foi que não havia preparação para o desligamento das crianças no contexto da casa-abrigo, nem com os acolhidos, nem com as cuidadoras. Consoante a isso, os resultados do estudo de Siqueira et al. (2006Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell’Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 40(2), 149-158.) constataram que nos serviços de acolhimento existem poucas iniciativas com finalidade de promover o acompanhamento dos processos de desligamento. Em contrapartida, segundo as “Orientações técnicas para serviços de acolhimento de crianças e adolescentes” (MDS, 2019), o desligamento deve ocorrer com preparo tanto com as crianças quanto com as cuidadoras, de maneira gradativa, a fim de promover uma despedida necessária do ambiente e dos vínculos estabelecidos.

De acordo com as participantes, o momento em que alguém deixa a casa-abrigo para ser reinserido no contexto familiar pode evocar sentimentos de tristeza e raiva nas crianças que continuam acolhidas, por não compreenderem o funcionamento e a lógica do processo de desligamento. Outras entrevistadas, no entanto, relataram que as crianças nem percebem esses processos, pois já estão habituadas com as entradas e saídas que ocorrem frequentemente. Indo ao encontro desse resultado, observa-se a pesquisa realizada por Rosa et al. (2010Rosa, E. M., Santos, A. P., Melo, C. R. S., & Souza, M. R. (2010). Contextos ecológicos em uma instituição de acolhimento para crianças. Estudos de Psicologia , 15(3), 233-241. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2010000300002
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), que aponta que as crianças que ficam na instituição demonstram sentir falta das que são desligadas.

Em relação ao sentimento das crianças sobre o desligamento, podem ser estabelecidos programas envolvendo as profissionais para trabalhar questões de adaptação e revinculação à família, por meio de dinâmicas e/ou atividades educativas que facilitem o processo. Destaca-se a importância da qualificação profissional, a fim de que se sintam preparadas, podendo, desta forma, cumprir os objetivos do trabalho com as crianças (Siqueira et al., 2006Siqueira, A. C., Betts, M. K., & Dell’Aglio, D. D. (2006). A rede de apoio social e afetivo de adolescentes institucionalizados no Sul do Brasil. Revista Interamericana de Psicologia, 40(2), 149-158.). Além disso, destacam-se outros pontos que compõem o processo de desligamento e reinserção familiar, como o fortalecimento da rede de apoio às famílias durante a permanência das crianças na instituição e políticas públicas que permitam repensar as situações e condições que têm levado crianças e adolescentes ao acolhimento institucional (Rosa et al., 2012Rosa, E. M., Nascimento, C. R. R., Matos, J. R., & Santos, J. R. (2012). O processo de desligamento de adolescentes em acolhimento institucional. Estudos de Psicologia, 17(3), 361-368. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2012000300003
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).

Quando as cuidadoras foram questionadas sobre o que consideravam as facilidades da prática, destacaram-se as atividades relacionadas aos cuidados básicos das crianças. Esse resultado pode estar ligado ao fato de que esse tipo de cuidado é ofertado frequentemente, estando as cuidadoras habituadas com a prática, pois faz parte da rotina de crianças e adolescentes em acolhimento institucional (Heumann & Cavalcante, 2018Heumann, S., & Cavalcante, L. I. C. (2018). Rotinas de crianças e adolescentes em acolhimento institucional: estudo descritivo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 22-37.). As dificuldades mais citadas pelas participantes deste estudo, em contrapartida, referiram-se às questões de cuidados e demandas emocionais das crianças, como o momento de chegada/saída e suas consequências na dinâmica da casa, processos de adaptação das crianças à nova rotina, situações de questionamentos e manifestações de sentimentos das crianças.

O impasse relatado pelas cuidadoras deste estudo foi identificado em outras pesquisas (Medeiros & Martins, 2018Medeiros, B. C. D., & Martins, J. B. (2018). O estabelecimento de vínculos entre cuidadores e crianças no contexto das instituições de acolhimento: Um estudo teórico. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(1), 74-87. https://doi.org/10.1590/1982-3703002882017
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; Tomás & Vectore, 2012Tomás, D. N., & Vectore, C. (2012). Perfil mediacional de mães sociais que atuam em instituições de acolhimento. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(3), 576-587. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000300005
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), que sinalizaram sentimento de insegurança, despreparo e sofrimento psíquico frente às condições de atuação profissional. Gabatz et al. (2018Gabatz, R. I. B., Schwartz, E., Milbrath, V. M., Carvalho, H. C. W., Lange, C., & Soares, M. C. (2018). Formação e rompimento de vínculos entre cuidadores e crianças institucionalizadas. Revista Brasileira de Enfermagem, 71(6), 2808-2816. http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0844
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) também constataram como uma das principais dificuldades do trabalho o processo de vincular-se e desvincular-se, que gera sofrimento, ansiedade e tristeza nas profissionais. De acordo com os estudos supramencionados, tal fato está relacionado à inexistência de preparação, orientação e/ou capacitação para o manejo dessas situações, bem como suporte para minimizar os impactos nos profissionais e nas crianças e auxiliar no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento.

Os resultados evidenciaram um conjunto de atividades realizadas pelas cuidadoras que podem ser caracterizadas como práticas de acolhimento, tanto no período da chegada quanto em situações em que as crianças demandam algum tipo de suporte emocional durante a passagem pelo local. Entre elas, respeito ao tempo e espaço da criança no momento da chegada, auxílio na socialização e adaptação às novas rotinas e respostas às dúvidas e emoções das crianças decorrentes do processo.

Os resultados demonstraram que tais exemplos, mesmo representando ações de acolhimento, cuidado, promoção de vínculos e relações afetivas realizadas pelas cuidadoras, não são ações reconhecidas como parte de suas funções. Pôde-se notar que a forma de organização do trabalho divide o cuidado das crianças entre as equipes, sendo que as cuidadoras se sentem responsáveis apenas pelo cuidado físico e a equipe técnica fica responsável pelo cuidado emocional. Essa organização provoca uma fragmentação no cuidado e, consequentemente, fragmenta as necessidades dos acolhidos, como se certas demandas que surgem tivessem pesos maiores em detrimento de outras, que não encontram espaço para serem trabalhadas no cotidiano da casa.

Assim, a forma como são planejadas as ações e os fluxos de cuidado institucional repercutem tanto no desenvolvimento das práticas profissionais realizadas como nos processos que envolvem a passagem das crianças pela casa-abrigo. Destaca-se o planejamento de ações visando oferecer cuidados emocionais não só disponibilizados pela equipe técnica em momentos específicos do processo de acolhimento, mas enquanto possibilidade de ser incorporado às rotinas e ao cotidiano, oferecido pelas cuidadoras, que são as profissionais referências de cuidado das crianças dentro da casa-abrigo.

As cuidadoras, ao fazerem parte do contexto mais imediato das crianças acolhidas, representam as figuras de contato que mais estabelecem interações no cotidiano da casa-abrigo. Com a transição ecológica família-instituição, são elas que passam a ocupar um lugar estável de vinculação. Ocupar esse lugar, físico e ecológico, implica na necessidade de segurança sobre suas funções, bem como no reconhecimento da importância do papel a ser desempenhado. Nesse sentido, cabe destacar as questões ético-profissionais que envolvem a profissão de cuidadora, a fim de garantir a efetividade dos processos proximais, motores dos processos desenvolvimentais que ocorrem no contexto institucional (Bronfenbrenner & Morris, 2006Bronfenbrenner, U., & Morris, P. A. (2006). The bioecological model of human development. In W. Damon & R. M. Lerner (Orgs.), Handbook of child psychology: Theoretical models of human developmental (pp. 793-828). John Wiley.).

Considerações finais

Este estudo buscou caracterizar as implicações da prática profissional no acolhimento de crianças em uma casa-abrigo, na perspectiva de cuidadoras. Por meio dos resultados apresentados, foi possível observar que as práticas profissionais repercutem em todo o processo de acolhimento, envolvendo procedimentos realizados na chegada das crianças, suporte emocional fornecido para ajudá-las no entendimento da situação e preparação/acompanhamento para o momento de saída da casa-abrigo, podendo, a partir disso, serem reintegradas às famílias de origem ou encaminhadas para famílias adotivas.

Em termos de aporte para a produção do conhecimento, o presente estudo destaca a importância da Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano, na medida em que ela permite olhar para o processo de desenvolvimento da criança em sua interação com os demais protagonistas envolvidos. A partir disso, pôde-se gerar possibilidades de reflexões e subsídios diante dos resultados encontrados, buscando incentivar o trabalho em equipe e alinhar as atividades das cuidadoras e equipe técnica, a fim de potencializar as ações desenvolvidas e a qualidade do acolhimento em função dos processos de desenvolvimento que cada criança estava vivenciando.

As limitações desta pesquisa referem-se ao fato de ter sido realizada com parte do quadro profissional da instituição: a equipe de cuidadoras. Como a equipe técnica foi quem recebeu a pesquisadora, proporcionando a abertura de campo e informações essenciais para possibilitar o acesso à instituição, optou-se pela não inclusão destas profissionais como participantes do estudo. Outras pesquisas poderiam trabalhar com todo o quadro profissional, no sentido de integrar os resultados dos profissionais que compõem as equipes das casas-abrigo.

Cumpre apontar a singularidade do contexto pesquisado, visto que há uma diversidade de características regionais que interferem na composição das equipes e propostas de acolhimento. Por isso, considera-se importante que outros estudos possam serem realizados a fim de identificar práticas específicas de cada casa-abrigo e de sua equipe profissional. O intuito é buscar subsídios, em termos de políticas públicas, para o aperfeiçoamento de diretrizes locais e regionais que sustentam essas práticas institucionais, tendo sempre como base os princípios do desenvolvimento humano, em uma perspectiva ampliada e contextualizada, com a finalidade de proteger e apoiar crianças e adolescentes em situação de risco. Indo ao encontro disso, considera-se que futuras pesquisas possam ser direcionadas à aplicação de estratégias de matriciamento das equipes para que, conjuntamente, construa-se uma prática integral, em todos os níveis de cuidado, sendo isto garantido pelas políticas públicas, no sentido da constante preocupação com a sensibilização dos profissionais que realizam acolhimento de crianças e adolescentes.

Afirma-se, por meio dos resultados do presente estudo, que a trama relacional determina os rumos da qualidade do acolhimento e seus efeitos nos processos de desenvolvimento das crianças envolvidas. Reconhece-se, assim, que o fenômeno em questão é constituído por múltiplos fatores que se afetam recursivamente, como produto e produtor interagindo no contexto. Ao considerar as instituições de acolhimento para crianças e adolescentes como um contexto ecológico de desenvolvimento, evidenciam-se as relações presentes em todos os sistemas: criança - família - cuidadoras, que interagem dentro de um macrossistema, organizado a partir de questões institucionais e de políticas públicas.

Nesse sentido, as práticas da Psicologia, enquanto Ciência e Profissão, devem estar ancoradas na busca constante do protagonismo dos envolvidos na situação de acolhimento, principalmente à luz de seus contextos de atuação profissional e, também, socioculturais, sob a premissa de uma escuta que se sustente na clínica ampliada.

Os resultados discutidos neste estudo, ao aproximarem-se da realidade trazida em outras pesquisas sobre as questões que perpassam o contexto de acolhimento institucional, contribuíram para refletir sobre a forma como são reconhecidas e desenvolvidas as práticas profissionais, que podem favorecer a passagem das crianças pelos processos que envolvem o acolhimento, garantindo o cuidado e o suporte fornecidos. Assim, em termos de conclusão, salienta-se a importância de refletir sobre o processo de acolhimento institucional de crianças e adolescentes à luz das implicações do desenvolvimento humano e das políticas públicas existentes, garantindo a continuidade da formação e/ou sensibilização dos envolvidos nos processos de acolhimento, para assegurar que este se configure como garantia de direitos e promoção do desenvolvimento infanto-juvenil saudável.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2021
  • Aceito
    03 Mar 2022
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