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Práticas Psicológicas nos Creas do Interior do RS: O Olhar de Trabalhadoras(es)

Psychological Practices on CREAS in the Countryside of the State of Rio Grande do Sul: Perspectives of Workers

Prácticas Psicológicas en CREAS en el interior de Rio Grande do Sul: Perspectiva de Trabajadoras/es

Resumo

O presente texto tem o objetivo de explanar ações desempenhadas por psicólogas(os) trabalhadoras(es) dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), em situações de violência intrafamiliar, identificadas a partir do estude empírico realizado por mim, psicóloga pesquisadora, também trabalhadora de um Creas. Participaram da pesquisa doze psicólogas(os), trabalhadoras(es) destes centros, em sete municípios do interior do Rio Grande do Sul, onde foram realizadas, presencialmente, as entrevistas. A análise dos dados apontou para uma compreensão metodológica a partir de três dimensões já apontadas na bibliografia, sendo elas: a) Acolhida Inicial, que demonstra que esses profissionais geralmente iniciam suas práticas com uma família ou indivíduo indo ao encontro destes, buscando a vinculação dos mesmos com o serviço; b) Acompanhamento Especializado, onde essas(es) trabalhadoras(es) desenvolvem suas práticas com diversidade e criatividade, a partir de visitas domiciliares, trabalhos com grupos, indivíduos ou famílias, geralmente em conjunto com outros profissionais, principalmente assistentes sociais; c) Articulação com a Rede, onde se identificou um importante movimento para o trabalho em conjunto com outros serviços disponíveis no território. Por fim, as considerações finais indicam que ainda há um caminho a ser trilhado com relação à definição das práticas dos psicólogos no Creas. Porém, há muito que se falar a respeito de práticas que já estão ocorrendo. Assim, tornam-se relevantes as pesquisas acadêmicas nesse contexto, pois ao inserir os profissionais psicólogos trabalhadores da política, eles podem promover uma articulação entre a produção do fazer cotidiano e a reflexão teórica e acadêmica sustentada pelas pesquisas.

Palavras-chave:
Práticas Psicológicas; Creas; Assistência Social; Política Pública; Psicologia

Abstract

This study aims to explore the activities developed by psychologists from the Centros de Referência de Atenção Especializada (CREAS - Brazilian Specialized Social Assistance Reference Centers), regarding situations of intrafamily violence identified by me, the author, a research psychologist and, CREAS worker. Participants include 12 psychologists who work on such centers from 7 cities in the countryside of Rio Grande do Sul, Brazil, where the interviews were conducted in person. The data analysis pointed toward a methodological comprehension based on 3 dimensions that have already been mentioned in the literature: the Initial Approach, which shows that these workers usually initiate their practices with a family or an individual by going after them, seeking bond development with the service. The Specialized Follow-up, in which these workers develop their practices with diversity and creativity, through home visits and activities with group, family or individual, often with other workers, such as social assistance workers. And the Network Articulation, in which a significant movement toward working with the public services available on each territory is identified. Finally, there is still a path to be taken regarding the definition of psychological practices on CREAS, however, there is much to be noticed of what has already been occurring. Thus, academic research on such context is relevant since the inclusion of psychologists who work in this policy may promote an articulation between daily activity and the theoretical and academic reflection, supported by the research.

Keywords:
Psychological Practices; Creas; Social Assistance; Public Policy; Psychology

Resumen

Este texto tuvo por objetivo explicar las acciones desarrolladas por psicólogas/os trabajadoras/es en los “Centros de Referência Especializados de Assistência Social” (CREAS) (Centros de Referencia Especializados en Asistencia Social), respecto a las situaciones de violencia intrafamiliar, identificadas por un estudio empírico hecho por una psicóloga-investigadora que actúa en un CREAS. Participaron 12 psicólogas/os que trabajan en estos centros, en siete ciudades del interior de Rio Grande do Sul (Brasil), donde se llevó a cabo las entrevistas en persona. El análisis de datos apuntó a una comprensión metodológica de tres dimensiones ya destacadas en la bibliografía: la Acogida Inicial, que enseña que estos profesionales generalmente empiezan sus prácticas con una familia o individuo buscando el encuentro para la promoción de la vinculación con el servicio; El Seguimiento Especializado, en el que desarrollan sus prácticas con diversidad y creatividad desde visitas domiciliarias, trabajos con grupos, individuos o familias, generalmente junto a otros profesionales, sobre todo con trabajadores sociales; y Articulación con la Red de Servicios, en la cual se identificó un importante movimiento para el trabajo con otros servicios disponibles en el territorio. Por fin, se observa que todavía hay un camino por recorrer en relación a la definición de las prácticas de psicólogos en CREAS, aunque hay mucho que decir respecto a las prácticas que ya están ocurriendo. Así, se vuelven relevantes las investigaciones académicas en ese contexto por introducir a los profesionales psicólogos trabajadores de la política, las cuales pueden promover una articulación entre la producción del hacer cotidiano y la reflexión teórica y académica sustentada por las investigaciones.

Palabras clave:
Prácticas Psicológicas; CREAS; Asistencia Social; Política Pública; Psicología

O texto que se segue apresenta o relato de uma pesquisa sobre o trabalho dos psicólogos na Proteção Social Especial de Média Complexidade (PSE/MC) do Sistema Único de Assistência Social (Suas), especificamente em Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) em situações de violência intrafamiliar. O interesse pela temática surgiu a partir da minha trajetória, autora deste trabalho, nas políticas públicas, especialmente no Creas. Como trabalhadora do Suas, deparei-me com a necessidade de uma atuação relativamente diferente da conhecida na graduação, e cotidianamente desafiadora, tanto no que se refere à relação com os usuários, quanto no que diz respeito às interlocuções com outras profissões, serviços e instituições.

Assim, através da pós-graduação, incluindo esta pesquisa realizada com psicólogos, também trabalhadores desses centros, procurou-se compreender os significados atribuídos pelos psicólogos(as) ao atendimento psicossocial preconizado a famílias em situação de violência intrafamiliar nos Creas. Mais especificamente, o presente texto busca discutir as ações identificadas na pesquisa, que foram retratadas pelos psicólogos e psicólogas que participaram do estudo. A partir disso, buscou-se refletir com base nas normativas e legislações relacionando-as com a práxis.

O trabalho na Assistência Social é organizado a partir dos níveis de proteção social, consistindo o Creas no serviço público estatal responsável por coordenar e articular o trabalho da PSE/MC (MDS, 2009Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009, 25 de novembro). Resolução nº 109, de 11 de novembro de 2009. Aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Diário Oficial da União, (225). https://bit.ly/3tnfjKJ
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, 2012Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2012). Resolução nº 33, de 12 de dezembro de 2012. Aprova a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social - NOB/SUAS. https://encurtador.com.br/chsQV
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). As ações desempenhadas pelos profissionais nesses centros devem considerar os cinco princípios presentes no Suas: a) equidade, uma estratégia de viabilização do princípio da igualdade, pois considera que os sujeitos têm necessidades diferentes e que, portanto, haverá soluções e esforços diferentes de acordo com o contexto em questão; b) integralidade, por meio do qual se reconhecerá o sujeito e a família em seu contexto, direcionando um olhar ampliado para o conjunto de suas necessidades, buscando superar a fragmentação da atenção por meio da articulação entre serviços e benefícios e entre níveis de complexidade do Suas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.); c) interdisciplinaridade, que consiste na construção do conhecimento a partir da cooperação e diálogo entre os saberes de diferentes profissões, convergindo para a qualificação da ação junto aos usuários; d) intersetorialidade, que busca, por meio do compartilhamento de responsabilidades e ações concretas, de forma integrada e complementar em setores diversos das políticas públicas, superar a fragmentação presente no setor público; e) interinstitucionalidade, que considera a existência de um conjunto de instituições, principalmente dos poderes Executivo e Judiciário, que interagem no processo de garantia de direitos. Assim, a relação entre as instituições deve se basear no reconhecimento das competências e responsabilidades de cada uma e no estabelecimento de fluxos e protocolos entre elas, buscando a completude das coberturas necessárias às situações das famílias e sujeitos que ingressam no Suas (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.).

Além disso, a partir da institucionalização do Suas, em 2005, passou-se a definir o público-alvo da Assistência Social como “usuário”, com a concepção de “sujeito de direito”, num movimento que busca romper com concepções e práticas de “objeto de caridade” e “objeto de intervenção” (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.), como era apresentado em documentos das políticas anteriores ao Suas. No entanto, até mesmo sobre a denominação “usuário” há alguns pontos de desapreço, no sentido de que o termo poderia remeter à dependência em relação à política ou, ainda, trazer elementos que remetam à culpabilização dos sujeitos por sua condição de usuário, contrariando a noção de busca por direitos. Portanto, um dos pontos fundamentais desse processo é o entendimento, especialmente por parte dos trabalhadores, de que os “usuários” são sujeitos políticos, que estão em busca de políticas públicas efetivas, ainda que isso não esteja expresso naquilo que eles estão buscando, pois, muitas vezes, a simplicidade com que vivem em seu cotidiano, não lhes permite essa percepção de sujeito político, de cidadão de direitos (Silva, 2016Silva, M. B. (2016). Usuário. In R. M. C. Fernandes & A. Hellmann (Orgs.), Dicionário Crítico: Política de assistência social no Brasil (pp. 293-295). UFRGS. https://www.ufrgs.br/cegov/files/pub_70.pdf
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).

O público-alvo dos Creas são famílias e indivíduos que se encontram em situação de risco pessoal e social, por violação de direitos, cujos vínculos familiares e comunitários não foram rompidos (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Ressalta-se que é considerada violação ou transgressão dos direitos aquilo que viola a vida e a liberdade de vivê-la em sua plenitude e pode ainda gerar prejuízos e causar sofrimento, uma vez que atinge o direito de ser diferente, de ter liberdade, de ter suas próprias crenças, de não sofrer discriminação em virtude de cor, condição etária ou orientação sexual, entre outras (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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).

Os referidos centros devem ofertar orientação e apoio especializados e contínuos, direcionando o foco das ações para a família, na perspectiva de potencializar e fortalecer sua função protetiva, isso deve se dar por intermédio dos serviços de PSE/MC (Fiorotti & Maia, 2016Fiorotti, M. R. O., & Maia, M. (2016). Centro de Referência Especializado de Assistência Social: Creas. In R. M. C. Fernandes & A. Hellmann (Orgs.), Dicionário crítico: Política de assistência social no Brasil (pp. 47-50). UFRGS. https://www.ufrgs.br/cegov/files/pub_70.pdf
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). Dentre eles, o serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), o qual recebe maior ênfase neste texto.

Todo o trabalho desenvolvido no Suas deve contribuir para a aquisição e fortalecimento de direitos. Destaca-se que na Proteção Social Especial (PSE), tanto na média quanto na alta complexidade, tem-se como foco o desenvolvimento de ações especializadas e contínuas, realizadas em grupo ou individualmente, que favoreçam o estímulo à autonomia, à reconstrução ou construção de novos vínculos familiares e comunitários e à reinserção social, na perspectiva de apoiar as famílias e indivíduos no enfrentamento das situações de violação de direitos vivenciadas (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Tem-se, ademais, como objetivos a redução das violações dos direitos socioassistenciais, seus agravamentos ou reincidências, orientação e proteção social a famílias e indivíduos, acesso a serviços socioassistenciais e a políticas públicas setoriais, identificação de situações de violação de direitos socioassistenciais e melhoria da qualidade de vida das famílias (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Para tal fim, o psicólogo deverá desempenhar suas ações com interdisciplinaridade e intersetorialidade, buscando desenvolver as potencialidades dos usuários (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.).

Nesse sentido, apesar do esforço já dispensado pelo CFP em construir parâmetros de referência para o exercício da psicologia no Suas (Oliveira, 2019Oliveira, I. F. (2019). Os desafios e limites para a atuação do psicólogo no Suas. In L. R. da Cruz & N. Guareschi (Eds.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social (2a ed., pp. 35-51). Vozes.), a forma como o psicólogo deve realizar este trabalho ainda parece ter uma descrição vaga, pois as referências técnicas parecem limitadas e com poucas orientações claras de como deve ser o atendimento psicossocial realizado pelo profissional. Entretanto, embora se demonstre a fragilidade da psicologia quanto ao embasamento teórico das práticas no Suas (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.; Nascimento & Moraes, 2020Nascimento, I. L., & Moraes, T. D. (2020). Atividade de trabalho e saúde de psicólogos do suas: Aproximações. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(2000), Artigo e1595. https://abre.ai/gMa4
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), sua inserção nessa política é crescente (Battistelli & Cruz, 2019Battistelli, B. M., & Cruz, L. R. (2019). Cartas à assistência social. In L. R. Cruz, N. Guareschi, & B. M. Battistelli (Eds.), Psicologia e assistência social: Encontros possíveis no contemporâneo. (pp. 15-35). Vozes.) em relação a outros profissionais. Fazendo-se um comparativo com relação aos Creas, em 2017 estavam inseridos nestes centros um total de 4.443 psicólogos; em contrapartida, 1.271 pedagogos e 1.661 advogados (MDS, 2018bMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018b). Censo Suas 2017: Resultados nacionais: Creas. https://abre.ai/gMaM
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), que também fazem parte das equipes mínimas do Creas (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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).

Assim, considerando-se essa crescente inserção profissional, e sabendo-se que não há uma normativa ou documento que defina com clareza e detalhes o que é o atendimento psicossocial, tampouco esse trabalho no Creas, reconhece-se necessária a contribuição que profissionais que atuam nas políticas de assistência social podem trazer. Isso ocorre no momento em que os profissionais expõem sobre o trabalho e a forma como têm realizado o atendimento psicossocial, a partir de sua compreensão sobre este. Por isso, este estudo buscou conhecer quais as ações que estão sendo desempenhadas pelos psicólogos inseridos nos Creas em seu trabalho.

Metodologia

Este estudo consiste em uma pesquisa de caráter qualitativo, possibilitando assim o estudo da história, das relações, das representações, crenças, percepções, opiniões, além das interpretações dos sujeitos acerca do tema investigado (Gil, 2002Gil, A. C. (2002). Como elaborar projetos de pesquisa (4a ed.). Atlas.; Minayo, 2014Minayo, M. C. S. (2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (13a ed.). Hucitec.; Minayo, 2001Minayo, M. C. S. (2001). Pesquisa social: Teoria, método e criatividade (18a ed.). Vozes.). Como perspectiva epistemológica, foi utilizado o Paradigma da Complexidade, uma vez que este preconiza o senso do caráter multidimensional de toda a realidade (Morin, 2011Morin, E. (2011). Introdução ao pensamento complexo (4a ed.). Sulina.), pois considera-se que a prática dos psicólogos inseridos na Política de Assistência Social está conectada com outras áreas do saber, o que demanda um olhar além e através das disciplinas.

Considerando o caráter qualitativo do estudo, utilizou-se como instrumento para a coleta dos dados a entrevista semiestruturada, a qual possibilita uma troca dinâmica entre o entrevistador e o entrevistado, promovendo a coleta de informações baseada no livre discurso deste (Bleger, 1998Bleger, J. (1998). Temas de psicologia: Entrevista e grupos (2a ed.). Martins Fontes.). O estudo foi realizado em sete unidades de Creas de diferentes municípios do interior do estado do Rio Grande do Sul, que foram selecionados considerando a distância física entre eles, num raio de 200 km, tendo como parâmetro o município no qual eu atuava, garantindo a viabilidade da realização presencial das entrevistas. Nestes centros foram entrevistados doze psicólogos vinculados ao serviço, os quais estão apresentados no quadro a seguir:

Quadro 1
Informações gerais sobre os participantes.

Após a seleção dos municípios que compuseram o estudo, foi realizado contato telefônico com a secretaria à qual estava vinculado o Creas em cada um deles. A pesquisa foi brevemente explicada e posteriormente foi encaminhado e-mail com o projeto e o modelo do Termo de Autorização Institucional. A partir disso, esta foi encaminhada ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade em que foi realizada, sendo aprovada sob o número CAEE: 10773219.0.0000.5346. Foi, então, realizado contato telefônico com as unidades de Creas a fim de se estabelecer contato com os profissionais para convidá-los a participar da pesquisa.

Ao longo do ano de 2019, foram agendados encontros nos locais de trabalho dos profissionais, em ambiente adequado e resguardado o sigilo. Realizou-se a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi assinado por cada participante, pela professora orientadora e pela pesquisadora, sendo que uma cópia foi entregue ao participante e outra arquivada com os demais dados da pesquisa.

Em seguida, realizaram-se as entrevistas, que tiveram duração aproximada de uma hora, sendo que o roteiro construído por mim e pela minha orientadora continha 24 questões, subdivididas em três blocos, sendo eles: a) participante, sua formação acadêmica e inserção no Creas; b) concepção de família e violência intrafamiliar por parte dos profissionais; c) compreensão do atendimento psicossocial e o dia a dia do trabalho. Esse, possibilitou flexibilidade na sua condução, uma vez que os participantes tinham papel ativo no processo. Buscou-se manter uma postura de abertura durante a interação, a fim de possibilitar que o profissional pudesse refletir acerca do seu trabalho. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas. Ressalta-se que foram atendidas as exigências da ética em pesquisa e as diretrizes e normas regulamentadoras envolvendo seres humanos (Conselho Nacional de Saúde [CNS], 2016Conselho Nacional de Saúde. (2016, 7 de abril). Resolução CNS 510, de 7 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisa em ciências humanas e sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores dos que os existentes na vida cotidiana. Diário Oficial da União, 24 maio 2016. https://abre.ai/gMa7
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). Buscando preservar a identidade dos participantes, todos os nomes apresentados são fictícios.

A análise qualitativa do material foi realizada a partir da proposta de Minayo (2012Minayo, M. C. S. (2012). Análise qualitativa: Teoria, passos e fidedignidade. Ciência e Saúde Coletiva, 17(3), 621-626. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232012000300007
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). Foi feita a leitura atenta e detalhada da transcrição de cada entrevista individualmente e, posteriormente, procedeu-se à análise do conjunto do material. No momento em que se fazia a análise, identificou-se que o material produzido pelos participantes se conectava com as três dimensões já descritas nas Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Assim, os resultados e discussão deste artigo foram organizados a partir destas categorias: “Acolhida Inicial”, “Acompanhamento Especializado” e “Articulação em Rede”.

Resultados e discussões

Acolhida inicial

Em relação à Acolhida Inicial, convém, primeiramente, compreender a forma de acesso ao Creas, que pode ocorrer por demanda espontânea, embora a maior parte das situações chegue por meio de encaminhamentos de diversos órgãos que compõem a rede de serviços e de garantia de direitos dos municípios (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Espera-se, a partir do ponto de vista dos participantes, que o encaminhamento contenha algumas informações que possam dar subsídios à equipe para discutir qual será a abordagem mais adequada para o acolhimento da situação no serviço, conforme explica a participante.

É o dia da nossa reunião [referindo-se à um turno e dia fixo na semana] pra um estudo de caso, toda a equipe se reúne e é o dia que o caso entra, exceto casos muito graves, que eles entram antes.... Nessa reunião a gente discute o caso, a gente vê o que já teve porque já tem muito “repeteco”.... Essa situação já foi acompanhada pelo Creas em outro momento, essa situação já foi trabalhada.... Se discute no geral algumas coisas, depois a dupla [psicólogo e assistente social] que é responsável pelo caso vai discutir qual é a melhor forma de intervenção, se é a situação de primeiro fazer visita, se é a situação de ligar e chamar aqui (Ísis).

Após essa discussão se procede com a acolhida inicial, que é uma etapa do trabalho, o primeiro contato da família ou indivíduo com o serviço. Trata-se de um momento importante e estratégico para o início do estabelecimento do vínculo e, por conseguinte, a possibilidade de as pessoas atendidas conhecerem o serviço e a ele aderirem. Por esse motivo, o procedimento requer das/dos profissionais uma postura empática (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Além do estabelecimento de vínculo com a família, pode-se buscar compreender a questão: quem é essa família? Busca-se, assim, inteirar-se de algumas características que possibilitarão uma aproximação com seus membros. Alguns aspectos que podem ser conhecidos são a localização do domicílio, sua composição, a idade dos membros da família e escolaridade. São essas informações que normalmente compõem o prontuário, e que possibilitam identificar, por exemplo, se se está diante de um grupo familiar extenso ou de uma família monoparental e quais necessidades se apresentam, considerando a idade de seus componentes (MDS, 2016Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. https://abre.ai/gMaL
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).

Um instrumento técnico-operativo utilizado no Suas, especialmente para este momento, são as entrevistas, que podem ser entendidas como conversas, neste caso entre profissional e usuário, e podem ser utilizadas também com outros agentes institucionais. Pode ser utilizada de forma individualizada ou conjunta, com um grupo familiar, por exemplo, quando possibilitará aos profissionais a compreensão da dinâmica e da estrutura das relações da família (MDS, 2016Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. https://abre.ai/gMaL
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). O participante a seguir menciona o uso de uma ficha, um formulário que guia a entrevista.

No primeiro momento eu faço o preenchimento de uma ficha que é a nossa ficha com informações psicossociais aqui. Enquanto eu estou fazendo esse preenchimento, pegando dados, como por exemplo quantas pessoas têm na casa, quem mora na casa, então é um momento inicial para a pessoa não chegar, por exemplo, aqui e eu já começar a perguntar coisas [referindo-se à demanda pela qual chegou]. A gente começa a conversar e a partir disso vão surgindo situações.... Aí a gente começa a conversar sobre os aspectos psicossociais e aí posteriormente a gente conversa sobre o motivo do encaminhamento para o serviço (Moacir).

Os participantes referem que no primeiro contato com a família ou indivíduo, costumam ir ao encontro dos usuários, seja por meio de visita domiciliar, utilizada como instrumento de observação, para conhecer o contexto e aproximar-se da família, contato telefônico ou por meio de visita em outra instituição de acesso do usuário. Os participantes referem que é no primeiro contato que usualmente se fará o convite para a família conhecer o espaço onde funciona o serviço do Creas. Na Política de Assistência Social é necessário um papel ativo durante todo o acompanhamento, mas especialmente nos primeiros contatos, objetivando-se construir vínculo com estes. Nessa perspectiva, a participante aponta: “Então sempre a gente tá.... É muito mais nós indo ao encontro do usuário.... Do que o usuário vindo ao nosso encontro” (Marta).

Nesta atitude, de ir ao encontro do outro de forma ativa, o assistente social comumente tem maior experiência e habilidade desenvolvidas. Por esse motivo, acompanhar esses profissionais pode ser uma fonte de apoio e aprendizado, especialmente no início do trabalho (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Relatam os participantes que, na maior parte das vezes, a acolhida inicial é realizada por meio da visita domiciliar, em conjunto entre psicólogo e assistente social, buscando-se conhecer brevemente o contexto, como menciona a participante Juliane: “Tentamos trabalhar sempre em conjunto, em dupla... a gente faz uma visita para conhecer a família, e a partir daí vê as necessidades”. E estabelecer vínculo com a família, como refere a participante Tábata: “Faz uma visita de mobilização e criação de vínculo”.

Na sequência, uma participante relata que não conseguiu realizar a acolhida inicial por meio de visita domiciliar pois não localizou a família. A equipe, então, foi até a escola buscar informações e conversar com a equipe daquele local. Ocorre que, naquele momento a responsável pela criança estava na escola, o que viabilizou uma acolhida inicial naquele espaço, exemplificando que não existe uma regra quanto ao local para se realizar a acolhida inicial.

Então fomos até a escola. Chegando lá, a mãe da menina estava lá. Daí a profe disse “Vocês querem conversar aqui?” Eu já levei junto meu prontuário, a gente já fez algumas questões... mas já demos uma pincelada na entrevista na própria escola... já marcamos para ela vir no grupo (Antonella).

É também no momento da acolhida inicial que o serviço é apresentado, oferecendo-se informações sobre o que é ofertado e esclarecendo possíveis dúvidas (CFP, 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para prática de psicólogas(os) no centro de referência especializado da assistência social: Creas. Centro de Referências em Políticas Públicas. https://abre.ai/gMaQ
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). Esse primeiro momento norteará as ações profissionais iniciais e poderá ser realizado por meio de diversas metodologias e se utilizar de diferentes técnicas. Além disso, os procedimentos para a acolhida inicial poderão demandar mais de um encontro com a família/indivíduo (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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).

Nesse sentido, destaca-se a importância da flexibilidade e iniciativa por parte dos profissionais que atuam no Creas, na medida em que não há um caminho único a ser seguido. Contudo, cabe destacar que os participantes demonstram estar em sintonia com as premissas apontadas pelo Crepop. Assim, uma vez que a família esteja vinculada ao serviço, por meio da das estratégias utilizadas na acolhida inicial, o passo a seguir é fazer o Acompanhamento Especializado, o qual será explorado a seguir.

Acompanhamento especializado

O Acompanhamento Especializado compreende atendimentos continuados desenvolvidos de diversas formas: atendimentos familiares, individuais e em grupo, visitas domiciliares, orientação jurídico-social etc. Nesse momento, deve ser oferecido um espaço de escuta qualificada e reflexão, além de suporte social, emocional e jurídico-social, visando ao empoderamento, enfrentamento e construção de novas possibilidades de interação familiar e com o contexto social. A frequência desses atendimentos será avaliada pela equipe em conjunto com os usuários (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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).

O planejamento das ações realizadas no Acompanhamento Especializado implica um contínuo processo de construção e reconstrução destinado a ofertar respostas mais condizentes às necessidades identificadas em conjunto com as famílias. Desta forma, o conhecimento das situações familiares constitui a pedra angular do trabalho social com famílias, à medida que é este conhecimento que oferta insumos para a tomada de decisões em torno das ações a serem empreendidas pelos trabalhadores do Suas (MDS, 2016Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. https://abre.ai/gMaL
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). Nesse sentido, a participante refere os constantes ajustes nas formulações das propostas de trabalho.

Não tá dando certo, a gente tenta de outro jeito. Até porque, na realidade, os próprios usuários acabam com o serviço, quando não dá mais certo, acaba, eles não vêm mais.... Então coisas que a gente vai percebendo, vai identificando e vai mudando.... A gente tá sempre mudando, sempre: “Não, isso tá funcionando, isso não tá” (Marta).

Posteriormente, os atendimentos buscarão conhecer a família, incluindo a família ampliada. Em alguns casos, é necessário avaliar a necessidade de novos encaminhamentos e a forma como serão realizados os próximos atendimentos pela equipe do Creas. Os atendimentos em grupo são uma das estratégias para o trabalho, sendo que as participantes a seguir referem trabalhar, nesses espaços, temas específicos ou envolver os participantes em atividades, como artesanato, proporcionando a formação de vínculos entre eles.

A gente tem um cronograma de atividade de assuntos do interesse deles.... E a gente pergunta “o que que vocês querem saber”.... “Ah, a gente quer saber de sexualidade, a gente quer saber de HIV, a gente quer saber de higiene, a gente quer saber de primeiros socorros”, a gente convida profissionais parceiros de outras áreas, de outras instituições, e a galera vem pra cá e faz o grupo com eles (Marta).

Os temas trabalhados em grupo parecem ser disparadores que, em alguns momentos, podem mobilizar assuntos que não se queiram compartilhar no coletivo. Então, o atendimento individualizado com algum profissional da equipe (com quem o usuário sentir-se mais à vontade), pode ser realizado.

Se vocês precisam, que não querem compartilhar no grupo, tem a [assistente social], tem a [psicóloga], tem a [outra componente da equipe], pedem para conversar separado, então, que a gente vai para nossa sala, conversa, e depois a gente volta para o grupo, não na hora do grupo, depois, na hora do artesanato (Antonella).

Além disso, a interação com o outro pode ser o ponto de partida para o reconhecimento da violência (muitas vezes naturalizada). Desse modo, por meio desse espaço de expressão é que se pode abrir a possibilidade de ressignificações, nas quais a experiência de cada um pode ser recriada, repensada, ou seja, as relações que se estabelecem a partir da troca e da comunicação podem levar à superação de situações vivenciadas (Crepop, 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para prática de psicólogas(os) no centro de referência especializado da assistência social: Creas. Centro de Referências em Políticas Públicas. https://abre.ai/gMaQ
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).

Percebe-se que, para cada família ou indivíduo, a forma de atendimento pode variar, pois estará relacionada com as singularidades do território e as necessidades de cada família. Com efeito, é positiva a forma como as normativas referem-se ao trabalho no Creas, sem apontá-lo de forma pré-definida e rígida, mas dando espaço para a criatividade dos trabalhadores (Rosa & Amador, 2019Rosa, H. R., & Amador, F. S. (2019). O trabalho na política de Assistência Social: Contribuições da análise do trabalho como atividade. In L. R. Cruz, N. Guareschi, & B. M. Battistelli (Eds.), Psicologia e Assistência Social: Encontros possíveis no contemporâneo (pp. 66-87). Vozes.), como menciona a participante a seguir.

Não tem um protocolo, assim, ah, vamos ouvir só a criança.... É muito avaliado na situação da família.... Às vezes têm muitos atendimentos que eles dão muito mais ênfase e resultado, tu indo até a família, às vezes fazendo atendimento a domicílio mesmo. Então.... É verificado muito a situação específica de cada família (Tábata).

No trabalho com as famílias no Creas, a visita domiciliar mostra-se uma importante ferramenta para compreender o contexto mais amplo da situação, como exemplifica a participante: “Às vezes a gente percebe que aqui [referindo-se ao prédio do Creas] a gente não consegue informações que a gente consegue lá na família” (Tábata). A visita domiciliar é uma ferramenta de aproximação às famílias, é quando a equipe de referência vai até a residência para conhecer melhor suas condições de vida (residência, território) e os aspectos do cotidiano das relações desses usuários, que geralmente escapam às entrevistas realizadas na instituição. Deve-se, no entanto, tomar o cuidado de que elas não tenham caráter policialesco ou disciplinador, destacando-se que devem preservar a privacidade e o respeito à individualidade e aos modos de vida das famílias. Isso implica consentimento da família para a realização das visitas (MDS, 2016Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. https://abre.ai/gMaL
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).

A participante a seguir retrata o respeito e a forma como solicita a permissão ao usuário para adentrar em seu espaço, tanto o físico quanto com relação à demanda a ser trabalhada. “Eu pergunto se tá tranquilo para gente conversar ali, se quer ir para outro lugar.... Então é respeitar muito, também, o espaço daquela pessoa” (Marta). Ela ainda menciona a importância de se estar atento a outros sinais, uma vez que nem sempre a permissão ou a recusa serão explicitadas pela fala.

E às vezes a gente percebe que em algumas visitas... as pessoas, elas nos falam com o olhar.... Aí a gente deixa algum telefone, alguma coisa, elas vêm nos procurar depois, porque naquele momento... com determinadas pessoas da família, não é interessante falar sobre aquilo (Marta).

Nesse sentido, cabe ao profissional compreender que o fato de uma família assentir com a realização de visitas domiciliares não significa que sempre estará disposta, ou que será pertinente receber a equipe. Nesse contexto, recomenda-se que seja realizado, sempre que possível, o agendamento das mesmas (MDS, 2016Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Fundamentos ético-políticos e rumos teórico-metodológicos para fortalecer o Trabalho Social com Famílias na Política Nacional de Assistência Social. https://abre.ai/gMaL
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).

Compreende-se, entretanto, que no contexto dos Creas, em que atuam os profissionais que participaram da pesquisa, o carro disponibilizado ao serviço, na maior parte das equipes, é compartilhado com outras demandas e serviços, conforme explicam as participantes: “Nem sempre a gente tem carro... às vezes um cede o carro para o outro” (Carina). “Às vezes não tem gasolina, e o mesmo carro é para os plantões à noite” (Penélope). Nesse cenário, é preciso por vezes abrir mão do momento em que se teria o veículo disponível por atravessamentos que surgem, o que dificulta aos profissionais no dia a dia o agendamento prévio de visitas.

As visitas domiciliares, já mencionadas anteriormente, são um recurso importante, pois permitem um momento de atenção para visualizar a família e sua dinâmica em seu espaço de convivência e socialização, além de aproximar-se de sua realidade (Crepop, 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para prática de psicólogas(os) no centro de referência especializado da assistência social: Creas. Centro de Referências em Políticas Públicas. https://abre.ai/gMaQ
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). Isto posto, podem ser utilizadas para atender a diferentes demandas que emergem no decorrer do acompanhamento. Como exemplo, o encontro com a família que anteriormente estava vinculada ao serviço e em algum momento afastou-se, viabilizando a compreensão do que aconteceu, como refere a participante:

Quando a família vem para atendimento e depois não aparece, a gente faz uma visita para ver como é que tá a situação, porque que não tá vindo... é estar lá na família vendo, como é que é a realidade (Tábata).

Outrossim, na prática da visita domiciliar, ao acessar o território dos usuários, o profissional se depara com aquilo que não prevê. As famílias podem ter dinâmicas muito distintas e incluírem diversas pessoas que por vezes não são mencionadas nos atendimentos na instituição. A participante a seguir refere receber e incluir na abordagem as pessoas que estiverem no contexto e desejarem participar.

Quando a gente faz VD, também, a gente entra nas casas, é cachorro, papagaio, vó, vô, vizinho.... Ontem a gente fez uma que foi muito interessante, assim, veio a vizinha, veio a outra, veio o fulano, porque cada uma tinha uma informação para dar em relação àquilo, então tinha um núcleo muito extenso.... E quem estiver à vontade para participar (Marta).

Cabe, ainda, aos trabalhadores do Creas empenhar-se para promover o resgate de vínculos familiares e sociais rompidos, das famílias ou indivíduos referenciados no serviço (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome [MDS], 2005Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política Nacional de Assistência Social PNAS/2004 Norma Operacional Básica - NOB/SUAS. https://encurtador.com.br/sEQT7
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, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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, 2018bMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018b). Censo Suas 2017: Resultados nacionais: Creas. https://abre.ai/gMaM
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). Nesta perspectiva, a postura do profissional de buscar entender o contexto e as relações existentes viabiliza intervenções nessa realidade dinâmica, que se altera em razão das relações existentes e daquelas criadas e intermediadas pelos profissionais, gerando transformação. Os participantes referem ainda chamar familiares ao Creas para, juntamente com eles, buscar estratégias para dar conta das necessidades de um dos membros do grupo familiar, como menciona a participante: “Às vezes a gente faz umas reuniões que parecem sistêmicas.... Vários irmãos para tratar da situação de uma senhorinha idosa” (Marta).

Saliente-se que os participantes mencionam a frequente ausência dos homens nos atendimentos, expressando resistência ao seu comparecimento, o que dificulta que as relações como um todo possam ser trabalhadas. Como explana a participante: “Muito difícil a gente conseguir ter a figura paterna junto, o quanto, muitas vezes, a gente vê que é importante no desenvolvimento e na configuração familiar” (Tábata).

Nesse sentido, destaca-se que cabe aos psicólogos estarem atentos à reprodução social do gênero feminino como único responsável pela função de proteção e cuidados da família. Assim, envolver outros adultos, especialmente os homens nos atendimentos e demais atividades previstas no acompanhamento sociofamiliar do Creas pode auxiliar no rompimento com a reprodução acrítica do padrão social (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.). Busca-se, com isso, desconstruir a naturalização da ausência de um homem-pai e, sobretudo, sua desresponsabilização pela vida das crianças nesse contexto (Romagnoli, 2018Romagnoli, R. C. (2018). As relações entre as famílias e a equipe do Cras. Fractal: Revista de Psicologia, 30(2), 214-222. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v30i2/5516
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).

Desse modo, o participante a seguir reflete sobre a questão e sua naturalização:

O homem nunca aparece.... A gente chama, e acho que é aí que tá.... alguma naturalização sabe.... Então acho que a gente também falha nisso sabe, falha em de fato ir atrás, de fato colocar na responsabilidade sabe, em dar esse empoderamento para as pessoas também (Jairo).

O participante traz à baila um ponto que se faz importante lançar como questionamento: será que está havendo o devido empenho em envolver os homens nos atendimentos, ou naturalmente acolhe-se a ideia de que este é o papel das mulheres?. E, nesse sentido, cabe refletir que, quando na assistência social temos majoritariamente as mulheres-mães como parceiras, isso acaba por contribuir com o imaginário de que o pai é incapaz ou inapto para cuidar das crianças e/ou adolescente, além de não favorecer ao seu envolvimento (Romagnoli, 2018Romagnoli, R. C. (2018). As relações entre as famílias e a equipe do Cras. Fractal: Revista de Psicologia, 30(2), 214-222. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v30i2/5516
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). Com isso, é de se considerar que um dos motivos para a ausência masculina talvez resida na falta de empoderamento destes, a consciência de que eles podem, sim, participar da vida familiar e da construção positiva das relações dentro desse contexto. Afinal de contas, por vezes, aos homens cabe o papel de poder, e através desse, o de agressor, e simplesmente isso. Nessa perspectiva, segue o exemplo de uma situação relatada por uma das participantes.

Olha, teve um caso.... Chegou inicialmente aqui como violência contra a mulher, essa mulher estava sendo atendida [em outro serviço da rede]. A queixa era que o menino [filho] estava em sofrimento por causa da violência exercida do pai contra a mãe. Essa criança vem para o atendimento e se percebe que ela não vê o pai como agressor. [O serviço que atende a mãe] tem um perfil assim, então, da verdade da vítima, porque é como eles trabalham. E isso gerou impasses. [O outro serviço] de certa forma cobrava: “Mas olha, esse pai não pode chegar perto”.... Esse menino, ele sofria muito por não ver o pai. Esse pai tentava ir para o lado de onde morava essa família para ver esse filho.... A mãe fazia novo boletim de ocorrência dizendo que ele estava perseguindo ela.... Ficava difícil de demonstrar que não era atrás dela que o pai estava, mas era atrás dele...Mas foi se trabalhando com esse menino, então a escola também percebia, a gente se fortaleceu com a escola para poder a escola também estar falando para essa mãe, que esse pai ia lá na escola e que não tinha nada judicial que dizia que o pai não podia ver o filho.... E isso, isso foi um trabalho, vai escola, redes, conversando.... E isso foi melhorando. Eu chamava esse pai para tentar entender umas situações, esse pai tinha situações de alcoolismo.... E essa mãe, então, ela começa a entender algumas coisas.... que ela não era a única coisa no qual esse homem se interessava.... Esse menino deslancha na escola porque ele começou a visitar o pai no fim de semana (Ísis).

Destaca-se a importância de um olhar ampliado. Nessa situação, em especial, parece ter sido importante o fato de a mãe da criança ter seu atendimento em outro serviço que não o Creas. De tal modo, a equipe parece ter conseguido desvincular-se da visão simplista que identifica apenas vítima e agressor, tendo a possibilidade de compreender melhor as situações vivenciadas por esta família (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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), em especial com relação à criança. Dessa forma, a interlocução com a rede, mobilização de outros vínculos familiares protetivos e o constante empenho dos trabalhadores do Creas em conhecer os homens, mesmo quando apontados somente como agressores, oferecendo-lhes cuidados, fortalecendo suas potencialidades ou realizando encaminhamentos para a rede de serviços, aponta um caminho para viabilizar o enfrentamento das violações de direito e possibilita a mudança de padrões de comportamento (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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).

Ainda, uma das funções da PSE é a de compartilhar cuidados com as famílias nas situações de dependência das pessoas idosas e pessoas com deficiência, ampliando redes de proteção e cuidados e a função protetiva da família (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Nesse sentido, o fortalecimento ou criação de vínculos pode ser dirigido a conhecidos, vizinhos ou amigos, pessoas que não possuem vínculo consanguíneo, mas que podem auxiliar no amparo a alguma necessidade.

Na comunidade, muitas vezes a gente consegue pessoas assim, por exemplo, no caso de idosos, assumir uma curatela, uma tutoria. O trabalho da gente averiguar quem são as pessoas que ele tem vínculo, conseguir uma pessoa para ir no hospital, ficar com aquela pessoa. Então esse trabalho comunitário às vezes funciona bem.... De resgate de vínculos, que nem sempre são da família, às vezes são conhecidos (Jairo).

Adicionalmente, a comunidade pode exercer um papel importante para o fortalecimento do sujeito e das políticas públicas, pois elas não darão conta de tudo sozinhas:

Nesse sentido também de algum mutirão: “Ah, fulano precisa ali, a gente consegue o material aqui, mas não tem mão de obra, será que a gente consegue alguém para ajudar? Fazer um aumento na peça da casa?” Esse trabalho, mais de campo, acho que ele tem dado resultados. Porque aí é justamente isso, tu tem o acesso às pessoas, para contar com as pessoas, e dar responsabilidades a elas (Jairo).

Conforme menciona o participante, o trabalho “de campo” referido por ele é justamente o de se encontrar com o sujeito no seu contexto. Por vezes, significa deparar-se com vizinhos ou amigos, em uma visita domiciliar, que demonstram vínculos que a equipe ainda não conhecia. Ferramentas como esta possibilitam ao profissional favorecer ao usuário o processo de reflexão-ação, oferecendo-lhe formas de participação e ação nas transformações das condições sociais vivenciadas por ele (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.). Além disso, as interferências dos profissionais para auxiliar o usuário a reconhecer a si e ao seu território podem favorecer à construção de um sentimento de maior valor pessoal, de autoconfiança, de potência, de empoderamento (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Isso é percebido na situação referida pelo participante, uma vez que o próprio sujeito pôde mobilizar forças que já existiam em seus vínculos e no seu território, as quais, inclusive, se mobilizam para o enfrentamento de uma situação que emergiu no próprio território, expressando a potência das forças que ali circulam.

O trabalho de reconstrução de vínculos de pertencimentos fragilizados ou rompidos geralmente exigirá dos profissionais também o acionamento de outros serviços da rede pública intersetorial na provisão das necessidades sociais desses indivíduos e famílias (MDS, 2018aMinistério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018a). Proteção social no SUAS a indivíduos e famílias em situação de violência e outras violações de direitos: fortalecimento da rede socioassistencial (S. G. de Assis, T. M. A. da Fonseca, & V. de S. Ferro, Eds.). Fundação Oswaldo Cruz. https://encurtador.com.br/fqz04
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). Para tanto, é esperado dos trabalhadores do Creas conhecimento da rede socioassistencial, das políticas públicas e órgãos de defesa de direitos e que desenvolvam trabalho em equipe interdisciplinar e em rede (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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).

A partir desse conhecimento, ao identificar demandas que ultrapassem as competências do Creas, o trabalhador acionará a rede com encaminhamentos, visando o acesso a serviços, programas e benefícios da rede socioassistencial, das demais políticas públicas e órgãos de defesa de direitos, buscando contribuir para a superação da situação vivida pelos usuários. Ainda, há a recomendação de que estes encaminhamentos sejam monitorados, no sentido de verificar seus desdobramentos (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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), aspecto que pode ser observado no excerto a seguir: “Então a pessoa vai para o atendimento clínico, continua vinculado ao Creas, com visitas.... Mas aquelas questões íntimas, subjetivas, inconscientes, vai trabalhar num outro espaço” (Ísis). Assim, na categoria a seguir abordaremos a articulação com a rede e suas especificidades.

Articulação com a rede

Parece ser importante diferenciar ainda a atividade de realizar encaminhamento da Articulação com a Rede. A primeira diz respeito a uma das práticas realizadas dentro do Acompanhamento Especializado, esses encaminhamentos podem ser realizados para outros setores da rede ou mesmo para outras instituições, e não presume a interação entre os profissionais dos serviços. Já a Articulação com a Rede refere-se a algo mais amplo, exigindo a interlocução entre os diferentes atores da rede. Assim, considerando-se as peculiaridades das situações de violência, geralmente irá exigir diálogo entre os profissionais de diferentes setores e instituições (intersetorialidade e interinstitucionalidade), os quais buscarão em conjunto alternativas para melhor atender às necessidades de um indivíduo ou família.

Nesse sentido, o CFP orienta aos psicólogos trabalhadores do Suas que observem o princípio da integralidade, buscando a superação da fragmentação da atenção ao usuário. Norteia-se, ainda, que dediquem especial atenção à articulação com as demais equipes e serviços e, neste caso, que somente uma delas seja referência para aquele usuário e/ou familiar, de forma que esta equipe tome frente na articulação dos demais serviços e atendimentos, buscando-se, nesse ínterim, a coordenação das ações e inocorrência de sobreposição e fragmentação (CFP, 2016Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação das e dos profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (Suas). Conselho Federal de Psicologia.). Deste modo, percebe-se a importância da atuação dos profissionais para além do encaminhamento de demanda que excede ao trabalho do Creas, tendo o cuidado de manter a família vinculada ao serviço dentro dos seus objetivos, viabilizando assim a articulação.

Sendo assim, para que o Creas tenha condições de desempenhar o seu papel na articulação externa ao serviço, é relevante que possa estabelecer, primeiramente, essa articulação internamente, a partir do trabalho em conjunto dos membros de sua equipe. Neste sentido, os participantes mencionam, sobretudo, os colegas da área do serviço social como aqueles com quem trabalham em conjunto ou com os quais acreditam que deveriam trabalhar. Outras profissões são eventualmente mencionadas. A seguir, o excerto exemplifica essa ação conjunta.

Então a gente sempre procura fazer essa escuta juntas, uma visita domiciliar juntas também.... para poder ter essa troca, porque eu escuto mais pela questão do lado psicológico.... e a [assistente social] já entende mais dos encaminhamentos.... Cada um vai escutar de uma forma. Então... tem a sua importância no trocar com o teu colega (Carina).

Esta ação conjunta vai ao encontro da orientação do Crepop para o atendimento psicossocial, o qual deve, a partir do olhar das diferentes profissões, buscar desenvolver percepções que se integrem e se complementem por meio de diálogo, sendo que a psicologia pode contribuir com aspectos do campo subjetivo, ou seja, quanto às relações que se estabelecem entre pessoas e espaços e à repercussão na família e sociedade (Crepop, 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Referências técnicas para prática de psicólogas(os) no centro de referência especializado da assistência social: Creas. Centro de Referências em Políticas Públicas. https://abre.ai/gMaQ
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). Ressalte-se, entretanto, que apesar da psicologia contribuir, em sua maior parte, com a subjetividade das necessidades das famílias, no trabalho da dupla psicossocial no Suas o ideal seria que psicólogos e assistentes sociais buscassem apropriar-se das especificidades da outra formação, sem perder as distinções do próprio núcleo, possibilitando a visão integral do usuário e suas necessidades, e não cindido em demandas objetivas e subjetivas (Carreto, 2018Carreto, G. H. (2018). Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos científicos. O Social em Questão, 22(43), 143-167. https://abre.ai/gMaO
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). Neste sentido, observou-se a atuação conjunta e complementar da psicologia e da assistência social, como expõe a participante: “Quando uma tá envolvida, às vezes, numa entrevista, numa fala, a outra tá mais como observadora. Então eu acho que isso é muito importante. E a gente também tem um respaldo melhor de forma técnica” (Tábata).

Essa articulação interna da equipe do Creas gera sustentação às articulações externas ao serviço, pois prepara os trabalhadores para lidar com as diferenças, primeiramente a partir dos olhares de cada profissão, para depois viabilizar esse processo com serviços, setores e instituições que possam compor a rede. Desse modo, a prática de exercer a discussão de ideias, que por vezes são divergentes e em outras tornam-se amparo e sustento, irá fortalecer os trabalhadores, alicerçando o exercício de discussão com a rede como um todo. Trabalho este que tem grande dificuldade de ser estabelecido, entretanto quando efetivado possibilita corresponsabilização entre os serviços no trabalho com as famílias, além de definir os limites e responsabilidades de cada um favorecendo que o território possa ser concebido como um todo, com suas potencialidades e vulnerabilidades (Carreto, 2018Carreto, G. H. (2018). Concepções de trabalho social com famílias por parte de psicólogos em artigos científicos. O Social em Questão, 22(43), 143-167. https://abre.ai/gMaO
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).

Acrescenta-se que, no processo de articulação com a rede, buscam-se alternativas que nem sempre serão óbvias, com o direcionamento para a atividade principal do outro serviço. Na situação que segue, a escola foi acionada não somente com o objetivo de providenciar inclusão e vaga para o aluno, mas sim a articulação com um professor específico, buscando-se viabilizar a vinculação de um menino com este.

A gente conseguiu também vincular ele a um professor que é mais aberto, mais próximo da juventude, daí ele se sentiu mais acolhido.... A gente consegue também dar algumas orientações [aos professores] para atender melhor uma determinada criança” (Jairo).

Teve então o propósito de ampliar a rede de apoio do usuário e o sentimento de acolhida e pertencimento ao território. Isso se torna possível na medida em que há empenho em articular o trabalho com a rede, através do diálogo entre os seus atores.

Assim, para viabilizar a articulação da rede mediante a intersetorialidade, é importante que a equipe conheça a rede disponível no seu território, o que pode ser feito por meio de visitas para conhecer os serviços e unidades ou mesmo por outras formas de contato que permitam estabelecer e fortalecer o desenvolvimento de ações articuladas e complementares (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Foram apontadas, aliás, campanhas e eventos que podem ser realizados no espaço do Creas ou fora dele, incluindo a articulação com o que está disponível no território, sejam outros serviços, empresas, igrejas, escolas, pessoas etc. Como aponta a participante: “Quando a gente fez campanha de Natal, eles escreveram cartas solicitando empregos, oportunidades.... Nosso arraial a gente fez pelo direito de ter direitos, porque eles confeccionavam bandeiras e a gente discutia tudo em cima dos direitos” (Marta).

Nessa direção, considera-se que podem ser propostas pelo Creas as ações de intervenção no território, voltadas à prevenção e ao enfrentamento de situações de risco pessoal e social, por violação de direitos. Estas podem se materializar na forma de campanhas, como mencionado pelos participantes, e devem considerar os temas relevantes, de acordo com as situações presentes nos territórios. Estas ações poderão incluir a participação dos profissionais do Creas em atividades diversas (eventos, encontros, palestras, exposições de vídeos, debates, entre outras estratégias que envolvam a rede, a comunidade e/ou grupos) (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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).

Entretanto, convém destacar que, quando se refere à articulação em rede, especialmente com outros setores ou instituições, o órgão gestor da Assistência Social tem a responsabilidade maior de tomar a iniciativa, uma vez que ele é o responsável, na localidade, pela organização e gestão do Suas, sendo composto por uma pessoa ou equipe que responderá pela Proteção Social Especial. Também há reconhecimento mútuo da missão e respeito ao trabalho de cada componente da rede e respeito ao ritmo e ao tempo histórico de cada instituição e da rede (MDS, 2011Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2011). Orientações técnicas: Centro de Referência Especializado de Assistência Social: CREAS. https://encurtador.com.br/qtCM2
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). Para viabilizar esse processo são necessários espaços que facilitem a conexão entre os serviços e pessoas, tais como reuniões, encontros, contatos periódicos, fluxos e protocolos pactuados.

Nesse sentido, buscando também considerar o proposto por Dimenstein e Cirilo Neto (2020Dimenstein, M., & Cirilo Neto, M. (2020). Abordagens conceituais da vulnerabilidade no âmbito da saúde e assistência social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(1), 1-17. https://abre.ai/gMaW
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), ao afirmarem que os estudos devem incluir não apenas as suscetibilidades, mas também as potencialidades e recursos existentes para o seu enfrentamento, podemos depreender que possivelmente algo novo esteja em construção, apontando uma perspectiva diferente do que observado até então por Oliveira (2019Oliveira, I. F. (2019). Os desafios e limites para a atuação do psicólogo no Suas. In L. R. da Cruz & N. Guareschi (Eds.), O psicólogo e as políticas públicas de assistência social (2a ed., pp. 35-51). Vozes.), que menciona que ações como territorialização, estudo social, busca ativa e visita domiciliar ainda seriam vistas pelos psicólogos como de responsabilidade do assistente social, não sendo necessário saber sobre elas, tampouco, realizá-las. Os participantes, em sua maioria, parecem estar relacionando-se de forma mais próxima com essas atividades. Apesar de reconhecerem que não as conheciam quando de sua inserção no serviço, demonstram estar procurando aprender, especialmente através da proximidade com os colegas assistentes sociais.

Considerações finais

Este estudo teve como inspiração a busca por respostas, uma trabalhadora buscando como deveria desempenhar seu trabalho. Ao final, considera-se que muitas foram as respostas encontradas, não foram todas iguais, mas todas criativas, buscando interpretações de diferentes referenciais teóricos e documentos normativos. Além disso, a descrição da prática profissional dos participantes evidencia que a psicologia tem proporcionado o entendimento crítico ao profissional, possibilitando a ele crescer na compreensão das demandas e necessidades sociais do público com o qual está trabalhando. Dessa forma, o estudo explorou as normativas e legislações, mas entende que as pesquisas e a literatura decorrente delas são fundamentais para auxiliar as práticas psicológicas trazendo respostas, contrapondo aspectos do próprio fazer da psicologia de modo a clarificar cada vez mais a atuação das(os) psicólogas(os) neste campo de atuação.

Identificamos que na prática da Acolhida Inicial há a compreensão por parte dos profissionais de que as formas de acesso ao serviço do Creas são variadas, no entanto o mais comum são os encaminhamentos. Isto demanda do profissional flexibilidade, iniciativa e prontidão para ir ao encontro dos usuários, tendo como objetivos conhecer o indivíduo e sua família, principalmente buscando as melhores estratégias para vinculá-los ao serviço, para assim poder dar seguimento ao trabalho.

No que se refere ao Atendimento Especializado, foi possível observar práticas criativas por parte dos participantes, compreendendo-se que a complexidade das situações de violação de direitos exigem dos profissionais constante reflexão de suas práticas, buscando continuamente o objetivo de empoderamento e construção de novas possibilidades de interação entre as pessoas sem o uso da violência, ou pelo menos com a diminuição desta.

Acerca da Articulação em Rede, percebemos a importância da interação entre a rede, a qual pode ser fortalecida iniciando-se pela articulação interna da equipe do Creas. Além disso, para relacionar-se com a rede é fundamental o conhecimento do que está disponível no território de atuação do Creas. Notamos ainda a necessidade de considerar que a maior responsabilidade pela articulação em rede compete ao órgão gestor de assistência social.

Compreendemos que há ainda um percurso a percorrer no que se refere à definição das atividades dos psicólogos no Creas, porém há muito que se falar a respeito de práticas que já estão ocorrendo. Podemos apontar com este estudo que, ainda que não se tenham todas as respostas, e jamais as teremos, os psicólogos que estão atuando nos Creas têm em sua bagagem um percurso válido de ser compartilhado. Assim, tornam-se relevantes as pesquisas acadêmicas nesse contexto, bem como o incentivo das gestões municipais e mobilização dos profissionais em atividades nas quais possam compartilhar com o coletivo profissional suas práticas. Pensando nesse sentido, a pesquisa acadêmica ao inserir os profissionais psicólogos trabalhadores da política pode provocar uma articulação entre a produção do fazer cotidiano e a reflexão teórica e acadêmica que sustenta a pesquisa. Esse estudo, realizado no interior do RS, apresenta singularidades desse contexto. Contudo, acredita-se que as reflexões apresentadas possam contribuir com profissionais inseridos em outros territórios do contexto nacional.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Aceito
    10 Fev 2022
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