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Notas Sobre o Pesquisar em Cena(s)

Notes on Researching in Scenes

Notas sobre la investigación en escena(s)

Resumo

O presente artigo tem como objetivo apresentar a construção metodológica desenvolvida em uma pesquisa de mestrado, na qual sustentamos a escrita de cenas como método de pesquisa da escuta clínica. As cenas do trabalho em questão foram recolhidas ao longo do tempo, no contorno da experiência de um projeto de extensão universitária de atenção à infância e adolescência em situação de vulnerabilidade social, situado em uma comunidade periférica. Apresentamos, neste texto, as interrogações que se elaboraram em torno da escolha pelo trabalho com cenas, e compartilhamos o resgate histórico dessas como um método de escrever a clínica, bem como a retomada de sua análise a partir da tradição psicanalítica. Amparadas nesta teoria e em leituras e contribuições do filósofo francês Jacques Derrida, embasamos a noção de que a cena se constitui como um lugar de produção, ao engendrar a configuração particular de elementos significantes nos processos de subjetivação e de construção social. A cena não é, então, compreendida aqui como uma representação do que acontece na clínica, mas como um modo de produzir a escuta e os seus processos de investigação.

Palavras-chave:
Psicanálise e Metodologia; Cena; Dispositivos Clínicos; Infância; Vulnerbailidades

Abstract

This article aims to present the methodological construction developed in a master’s research, in which the writing of scenes as a method of clinical listening research was endorsed. The scenes from the study in question were collected over time, from the experience gained in a project conducted within a university extension program on care in childhood and adolescence in social vulnerability, in a peripheral community. In this study, we present some questions that were elaborated surrounding the choices of working with scenes; and we share the historical rescue of this work as a method of writing on clinic practices and resuming their analysis from the psychoanalytic tradition. Based on the psychoanalytic theory and on the readings and contributions of the French philosopher Jacques Derrida, we corroborate the notion that the scene is constituted as a place of production, engendering the particular configuration of significant elements in the processes of subjectivation and social construction. Here, the scene is not a representation of clinical practice but one mode of producing listening and its research processes.

Keywords:
Psychoanalysis and Methodology; Scene; Clinical Devices; Childhood; Vulnerabilities

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar la construcción metodológica desarrollada en una investigación de maestría, en la que sostenemos la escritura de escenas como método de investigación de la escucha clínica. Las escenas del trabajo en cuestión se recogieron a lo largo del tiempo desde la experiencia en un proyecto de extensión universitario de atención a la niñez y adolescencia en situación de vulnerabilidad social aplicado en una comunidad periférica. En este texto, presentamos los interrogantes que se elaboraron en torno a la elección por el trabajo con escenas y compartimos el rescate histórico de las mismas como un método de escribir la clínica y la reanudación del análisis a partir de la tradición psicoanalítica. Amparadas en el psicoanálisis y en lecturas y contribuciones del filósofo francés Jacques Derrida, nos basaremos en la noción de que la escena se constituye como un lugar de producción, engendrando la configuración particular de elementos significantes en los procesos de subjetivación y de construcción social. La escena no es aquí una representación de lo que pasa en la clínica, sino un modo de producir escucha y sus procesos de investigación.

Palabras clave:
Psicoanálisis y Metodología; Escena; Dispositivos Clinicos; Infancia; Vulnerabilidades

O presente artigo é produto de uma pesquisa desenvolvida durante um curso de mestrado e tem como objetivo compartilhar a construção metodológica desenvolvida ao longo desse percurso. Na pesquisa em questão, sustentamos a escrita de cenas como método de pesquisa clínica. As cenas foram recolhidas ao longo do tempo no contorno da experiência de um projeto de extensão de atenção à infância e adolescência situado em uma comunidade periférica. No decorrer do percurso, identificamos que as cenas escolhidas carregavam elementos que passaram a interrogar as trabalhadoras pesquisadoras até decantarem em questões de pesquisa. Desse modo, o caminho da pesquisa não se produziu da academia em direção a um campo de pesquisa, mas se operou de forma diversa: do campo da experiência para a academia, constituindo então o recorte de um objeto de pesquisa.

No escopo deste artigo tomamos as reflexões produzidas a partir das interrogações do trabalho com cenas, bem como do resgate histórico e da retomada da análise destas na tradição psicanalítica. Posteriormente, amparadas na teoria psicanalítica e nas contribuições do filósofo francês Jacques Derrida, embasamos a noção de que a cena se constitui como um lugar de produção, engendrando a configuração particular de elementos significantes nos processos de subjetivação e de construção social, e sustentamos a escrita de cenas como método de escrita da clínica.

Cena 1

Em uma tarde de trabalho do projeto, fico responsável “pelo caderno e pelo portão”. Em nosso cotidiano, isso significa que, naquele dia, eu1 1 As cenas são escritas na primeira pessoa do singular por tratar-se de recortes da memória de uma das pesquisadoras. ocuparia a função de receber as crianças na entrada da casa, registrar o nome e a idade de cada uma no caderno, retomar os combinados sobre a atividade do dia, ou mesmo apresentar o projeto e suas regras caso houvesse algum estreante no espaço naquele momento.

Nossa proposta de registrar os nomes e idades de cada criança, em cada turno de trabalho, é parte da herança que tomamos do modelo da Maison Verte - uma de nossas inspirações. Independentemente de quantas vezes a criança já tenha nos visitado, esse é um ritual e um combinado que mantemos desde o início do projeto, e que tem por função (re)afirmar a marca de cada um e cada uma que esteve ali naquele momento, constituindo o grupo de trabalho daquele dia.

Então, lá estava eu, em uma tarde ensolarada, munida de caderno, caneta e chaves, encontrando-me com muitas crianças pequenas, e outras nem tão pequenas assim, que aguardavam para entrar pátio adentro e iniciar nossa tarde de conversas, histórias e brincadeiras. Anotava os nomes e idades de várias crianças já conhecidas, tentando dar as boas-vindas a cada uma, até que me deparo com uma pequenina que, do alto de seus dois anos de idade, não consegue me dizer seu nome. Pergunto então às crianças em volta se a conheciam e se saberiam me dizer qual o seu nome. E a resposta que recebo de várias delas causa-me uma perplexidade e um mal-estar difíceis de (d)escrever. “Cocô”, dizem-me, em um coro desencontrado. Eu, surpresa e inconformada, peço novamente: “Não, gente, eu preciso saber o nome dela pra registrar aqui no caderno”. “Sim, sora, mas é Cocô o nome dela!”. Perguntas e respostas vão e vêm - nenhuma delas vindas da pequena em questão -, até que um de seus irmãos consegue nos dizer enfim que seu nome é Estrela2 2 Nome fictício. .

A escrita das cenas e as cenas de escrita: um lugar de produção

Com o objetivo de sustentar a escolha de cenas como perspectiva metodológica, partimos da “Interpretação dos sonhos”, texto no qual Freud (1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos e sobre os sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira (J. Salomão, Dir. de Trad.; Vol. 5, pp. 564-579). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)) apresenta o inconsciente como um lugar denominado “uma outra cena”. Para tanto, o autor resgata a afirmação de Fechner (1889 citado por Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos e sobre os sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira (J. Salomão, Dir. de Trad.; Vol. 5, pp. 564-579). Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 566) de que a cena de ação dos sonhos não é a mesma que a cena da vida representacional de vigília.

Em um primeiro momento, Freud elabora a hipótese de que as três instâncias ou sistemas psíquicos - Inconsciente, Pré-consciente e Consciente - manteriam entre si uma relação espacial constante, tal como as lentes de um telescópio ficam dispostas, uma atrás da outra. O autor, no entanto, não demora a indicar que tal hipótese poderia ser substituída pela suposição de uma sequência temporal fixa, segundo a qual a excitação atravessaria os sistemas em um determinado processo psíquico.

Além das hipóteses e construções teóricas mencionadas, nessa obra vemos também o autor operar com outras noções que nos interessam e que vêm ao encontro da proposta metodológica de nossa pesquisa. Ao conferir um lugar de destaque para a noção de cena no desenvolvimento da teoria psicanalítica, Freud relaciona ainda a cena do sonho à cena infantil, e atribui papel central às experiências e desejos infantis ao afirmar que “o sonho poderia ser descrito como substituto de uma cena infantil” (Freud, 1900/1996Freud, S. (1996). A interpretação dos sonhos e sobre os sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira (J. Salomão, Dir. de Trad.; Vol. 5, pp. 564-579). Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 576).

Posteriormente, no caso do “Homem dos lobos”, escrito em 1914 e publicado apenas em 1918, Freud (1918/2010aFreud, S. (2010a). História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”). In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 13-160). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)) apresenta o conceito de cena primária, e o articula aos postulados desenvolvidos em sua obra de 1900 a respeito da construção do sonho e do conceito de realidade psíquica, antecipando a elaboração teórica que seria, então, aprofundada no texto de 1937, “Construções na análise” (Freud, 1937/2018Freud, S. (2018). Construções na análise. In: Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 327-344). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1937)). Assim, ao tratar das lembranças infantis que surgem no decorrer de um percurso de análise, Freud (1918/2010aFreud, S. (2010a). História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”). In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 13-160). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)) assinala: “Tais cenas infantis não são, no tratamento - até onde vai minha experiência -, reproduzidas como lembranças, são resultado da construção [ênfase adicionada]” (p. 70). Ele prossegue, e afirma que essas recordações, antes inconscientes, não têm sequer de ser reais - embora possam sê-lo -, estando, com mais frequência, impregnadas de elementos da fantasia, tal como ocorre nas lembranças encobridoras.

A articulação entre as obras e os conceitos acima mencionados nos leva à segunda noção encontrada na “Interpretação dos sonhos” e que interessa à nossa proposta de método de pesquisa. Trata-se, especificamente, dos momentos em que podemos ler as operações de produção que Freud (1900/1996aFreud, S. (1996). A interpretação dos sonhos e sobre os sonhos. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira (J. Salomão, Dir. de Trad.; Vol. 5, pp. 564-579). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)) reconhece no processo de constituição dos sonhos. Tal leitura dá-se, por exemplo, quando o autor afirma que durante o sono o processo de pensamento transforma-se num sonho, ou que restos diurnos (ideias, preocupações, cadeias lógicas interrompidas, entre outros) transmudam-se em imagens visuais e em fala nas cenas dos sonhos. Assim, mais do que a ideia de que um pensamento ou um desejo é reproduzido ou representado na cena do sonho, nos interessa aqui a noção de que nessa cena ocorre também a produção de algo diferente.

Jacques Derrida (1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)), ao debruçar-se sobre essa mesma obra freudiana, interroga os recursos de encenação que entram em jogo no processo de fabricação das imagens oníricas. Conforme o autor, tal qual Antonin Artaud, “Freud visava menos a ausência do que a subordinação da palavra na cena do sonho. Longe de desaparecer, o discurso muda então [ênfase adicionada] de função e de dignidade” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 319). O filósofo lança mão, nesse ponto, da metáfora das histórias em quadrinho, ao relacionar o lugar da palavra e da escrita fonética nos sonhos às legendas inseridas nessas histórias, numa combinação em que o texto fonético passa a ser “o complemento e não o senhor da narrativa” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 319).

Derrida aprofunda, ainda, as suas reflexões a respeito das cenas dos sonhos e daquilo que nomeia como a aptidão cênica das palavras, e retoma o trabalho freudiano com a proposição das sequências temporais e espaciais que operam no aparelho psíquico, já mencionadas anteriormente. Indica-nos, assim, que a diferença se produz especialmente na articulação do espaço e do tempo - remetendo-se às palavras do próprio Freud, quando afirma que o sonho “restitui um encadeamento lógico sob a forma da simultaneidade” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 319), procedendo tal como um pintor ao reunir, num mesmo quadro, todos os filósofos e poetas que jamais se encontrariam juntos de outro modo.

A noção de produção a partir da cena do sonho pode ser resgatada, ainda, em outro escrito já mencionado. No caso do “Homem dos lobos”, Freud (1918/2010aFreud, S. (2010a). História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”). In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 13-160). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)) ressalta que a cena primária foi ativada pelo sonho que o paciente teve aos quatro anos de idade. Destaca-se a observação do autor na escolha do verbo ativar, ao situar que evitou intencionalmente o uso da palavra “recordação” nesse momento; a indicar assim uma produção ativa que se opera a partir do sonho com os lobos. Nas palavras de Freud (1918/2010aFreud, S. (2010a). História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”). In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 13-160). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)): “A cena atua posteriormente, e nesse ínterim, no intervalo entre um ano e meio e quatro, nada perdeu do seu frescor” (p. 62).

Jacques Lacan (1962/2005Lacan, J. (2005). Seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962)) retomará a noção do inconsciente freudiano como uma outra cena (eine anderer Schauplatz), logo no início de seu seminário sobre a angústia, ao propor um jogo com a palavra que, no francês, scène, serve para designar também o palco ou mesmo o próprio teatro. Ao dar continuidade à elaboração de tal proposição, o autor enuncia três tempos.

No primeiro, apresenta o enunciado: o mundo existe; e afirma que esse mundo, tal como é, concerne à razão analítica, a qual Claude Lévi-Strauss teria dado primazia em sua obra O pensamento selvagem. O psicanalista faz uma crítica a essa perspectiva, que considera extremada, articulando-a ao materialismo primário, herdeiro do século XVIII. Em contrapartida à posição do antropólogo, Lacan concebe que é justamente a dimensão da cena que coloca uma separação, uma distinção radical, entre o mundo e o lugar onde as coisas vêm a se dizer - ainda que sejam as coisas do próprio mundo. Para o autor, “todas as coisas do mundo vêm colocar-se em cena segundo as leis do significante”, referindo-se, assim, à lógica inconsciente, e segue: “leis que de modo algum podemos tomar de imediato como homogêneas às do mundo” (Lacan, 1962/2005Lacan, J. (2005). Seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962), p. 42-43).

No segundo tempo, Lacan situa o palco onde fazemos a montagem desse mundo, ao associá-lo à dimensão da história e afirmar que esta possui sempre um caráter de encenação. Nesse ponto, recorre mais uma vez a Lévi-Strauss, para dessa vez concordar com as considerações tecidas por ele a respeito do alcance limitado do funcionamento histórico. Em sua obra, o antropólogo distingue o tempo da história do tempo cósmico, destacando que as próprias datas adquirem, na dimensão da história, valores e sentidos diferentes. Isso porque podem ser reevocadas em qualquer outro dia do calendário, demonstrando a possibilidade de imprimirmos nele as marcas singulares e os estilos de diferença ou de repetição que concernem a cada um.

Por fim, para apresentar o terceiro tempo do que vem desenvolvendo, Lacan retoma a peça de Shakespeare, Hamlet, e a análise feita por Otto Rank ao destacar a função da cena dentro da cena. Tal função nomeará esse terceiro tempo da proposição lacaniana quanto à outra cena inconsciente. Nesse ponto, em que examina mais uma vez as relações de identificação que se operam entre Hamlet e os demais personagens da peça, especialmente Luciano e Ofélia, Lacan aponta a distância existente entre a identificação com a imagem especular, i(a), e aquela com o objeto, a, suporte do desejo - esse último extensamente trabalhado ao longo de todo o seminário em questão. Parte daí, então, para levantar novamente a sua interrogação quanto ao status do objeto como objeto do desejo, e sinaliza que dará continuidade ao exame de tal status através da abordagem da angústia.

A noção de produção que nos interessa, seja na cena ou no palco, como apresentados por Lacan, pode ser pensada a partir do questionamento que ele levanta no segundo tempo de seu desenvolvimento, a respeito da relação daquilo que chamamos de mundo, inicialmente, com o que lhe é devolvido por esse palco - associado à dimensão da história e seu caráter de encenação. Nas palavras do autor, “tudo o que temos chamado de mundo ao longo da história deixa resíduos superpostos, que se acumulam sem se preocupar minimamente com as contradições. O que a cultura nos veicula como sendo o mundo é um empilhamento, um depósito de destroços de mundos que se sucederam” (Lacan, 1962/2005Lacan, J. (2005). Seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962), p. 43), indicando assim uma produção que segue operando, mas não sem deixar seus resíduos e restos. A polissemia do termo francês scène permite-nos pensar, portanto, que a operação de produção de restos que se dá no jogo e na separação “entre o mundo e o lugar onde as coisas do mundo vêm a se dizer” (Lacan, 1962/2005, p. 42) sucede-se tanto na dimensão da cena quanto no espaço do palco - ambos circunscritos, de acordo com o autor, pelas leis do significante e do inconsciente.

Ao seguir as trilhas conceituais que nos permitem compreender a cena como um lugar de produção, voltamos ao filósofo Jacques Derrida (1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)) que, em seu texto “Freud e a cena da escritura”, percorre o caminho aberto pelo psicanalista no “Projeto para uma psicologia científica”, passando pela “Interpretação dos sonhos”, até chegar ao ensaio “Notas sobre o bloco mágico”. O filósofo faz, assim, um retorno ao texto freudiano e opera um trabalho de desconstrução do logocentrismo vigente até então, ao destacar os momentos em que Freud recorre a elementos teóricos e textuais herdeiros da metafísica e do positivismo - e ressalta, em contraposição, os conceitos de escritura e de traço que decantam de sua leitura.

Ao retomar as construções metafóricas que Freud elabora ao longo de seus textos, Derrida sinaliza que um determinado investimento metafórico acabará por invadir a totalidade do psíquico: o seu conteúdo será representado por um texto essencialmente gráfico, enquanto a estrutura do aparelho psíquico será representada por uma máquina de escrita. A partir de tal proposição, o filósofo não questiona se o psiquismo é de fato uma espécie de texto, mas sim “o que é um texto e que deve ser o psíquico para ser representado por um texto” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 294).

Ao iniciar suas considerações pelo “Projeto”, Derrida (1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)) sinaliza o movimento de Freud ao tentar dar conta do psiquismo, ainda no âmbito da neurologia, “pelo espaçamento, por uma topografia dos traços, por um mapa das explorações” (p. 302), remetendo-se ao trabalho do autor em relação às vias de facilitação e às diferenças na produção dos traços mnêmicos. Da “Carta 52”, enviada a Fliess algumas semanas após o “Projeto”, Derrida destaca os seguintes termos utilizados na descrição do mecanismo psíquico: signo (Zeichen), inscrição (Niederschrift) e transcrição (Umschrift), indicando o momento em que o traço começa a tornar-se escritura. E afirma, por fim, que é a partir da “Interpretação dos sonhos” que a metáfora da escritura passará a abranger tanto o problema do aparelho psíquico, na sua estrutura, quanto o problema do texto psíquico, na sua textura.

Desse último texto, o filósofo retoma a passagem e a ruptura que Freud irá operar com relação aos antigos métodos de interpretação dos sonhos, que se restringiam a manuais e enciclopédias de signos oníricos, com traduções fixas e universais. Derrida afirma que Freud, diferindo disso, propõe a escritura psíquica como uma produção radicalmente originária, ao considerar que a escritura do sonho, por exemplo, não se deixa ler a partir de nenhum código previamente estabelecido. Pois, por mais que o analista trabalhe com um conjunto de elementos codificados no transcorrer de uma história individual ou coletiva, o que sublinha Derrida é que, a partir da construção freudiana, vislumbramos o sonhador inventando a sua própria gramática, isto é, sem restringir-se a um material significante ou texto prévio, ainda que não se prive dele. Aí residiria o limite dos manuais e enciclopédias, e mesmo da possibilidade de tradução, visto que “a experiência inconsciente . . . não pede emprestados, produz os seus próprios significantes, não os cria na verdade no seu próprio corpo, mas produz a sua significância” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 308).

Essa elaboração ocupa um lugar de destaque no desenvolvimento teórico de Derrida, visto que os limites da tradução (Übersetzung) e da transcrição (Umschrift) são resgatados pelo autor não apenas no trabalho de interpretação dos sonhos, mas no funcionamento psíquico em geral. Assim, o autor assinala a ressalva de Freud quanto ao uso de tais termos para se descrever a passagem dos pensamentos inconscientes pelo pré-consciente e para a consciência. E acrescenta, ainda, que o uso metafórico desses conceitos apresenta riscos não pelo fato de se remeterem à escritura, mas por levarem a supor a presença de um texto que já estaria dado, pronto - como a “presença impassível de uma estátua, de uma pedra escrita ou de um arquivo cujo conteúdo significado seria transportado sem prejuízo para o elemento de uma outra linguagem, a do pré-consciente ou do consciente” (Derrida, 1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967), p. 310).

A partir daí, Derrida apresenta considerações importantes sobre a produção da escritura psíquica. Em primeiro lugar - ao considerar que o texto consciente não se redige pela simples transcrição de um material escrito em outro lugar, na forma de inconsciência -, o autor questiona a noção de presença e sua relação com o conceito de inconsciente. Não haveria, portanto, uma verdade inconsciente a ser encontrada, como se simplesmente estivesse escrita em outro lugar; mas, sim, um texto que só se faz escrito e presente devido a um trabalho e a uma temporalização que lhe são exteriores (que pertencem à consciência, conforme a lógica freudiana). Para Derrida (1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)), então, o texto inconsciente é tecido de traços puros e de diferenças, como “depósitos de um sentido que nunca esteve presente, [mas] cujo presente significado é sempre reconstituído mais tarde, nachträglich, posteriormente, suplementarmente: nachträglich também significa suplementar” (p. 311).

Tal leitura é recolhida na esteira da produção freudiana, especialmente sobre o trabalho itinerante dos traços mnêmicos, que produzem e não apenas percorrem o seu caminho. E, também, sobre a proposição de Freud no caso do “Homem dos lobos”, ao marcar a temporalidade particular do inconsciente, e situar que, somente num momento posterior, a percepção da cena primitiva foi vivida na sua significação - articulando-se, então, aos temas do retardamento suplementar e da reconstituição do sentido mais tarde, conforme propostos por Derrida.

Apoiado na teoria psicanalítica e nas contribuições de Derrida, Ricardo Rodulfo (2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo.), em seu livro Desenhos fora do papel, retoma o valor da cena no percurso da construção teórica da psicanálise, e sustenta que ela faz parte do modo de pensar de muitos textos analíticos. Assim, o autor resgata, da história psicanalítica, o estabelecimento e a análise de cenas que acabaram por guiar determinadas interpretações, desde a cena originária até as cenas trabalhadas por Freud (1919/2010bFreud, S. (2010b). “Batem numa criança”: Contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais. In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 293-327). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)) em “Batem numa criança”, e por Lacan (1966/1998) na cena do júbilo em “O estádio do espelho”.

Ao partir de tal resgate e do diálogo que tece com as proposições de Derrida (1967/2014Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)) a respeito do espaçamento e da sequência na trama psíquica, o autor sublinha claramente a noção da cena como um lugar de produção, e afirma que:

Se a cena (e a sequência que lhe é inerente) espaça, à sua maneira, um conjunto de termos, destaquemos que espaçar também é fazer existir, dar lugar para existir [ênfase adicionada] . Não é que existam “sujeitos” que governem a cena de escrita, cercando-a a partir de seu exterior: é no campo de força de uma cena de escrita que se torna discernível o que podemos chamar de um ou mais “sujeitos”. A cena não é, então, expressiva; nela, coisas se fabricam e acontecem - pela primeira vez, inclusive (Rodulfo, 2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo., p. 64).

Seguindo na esteira da filosofia derridiana, Rodulfo reitera ainda que nada se escreve fora de uma cena de escrita, e que tal princípio pode ser de grande ajuda para os desdobramentos de um trabalho clínico. Dando corpo a tal proposição, o autor lança luz a um fato cotidiano, facilmente tomado como algo banal: o movimento adolescente de transformar o ambiente de seu quarto (ou de outro espaço que possa habitar), ao remover as insígnias da infância e substituí-las por outras, mais próximas de seu gosto em transformação (marcas que, em geral, vêm recheadas por elementos da arte e da cultura, como pôsteres ou citações de artistas, músicas, filmes, entre outros).

Por um lado, podemos testemunhar nesse movimento a contribuição de Donald Winnicott (1975Winnicott, D. (1975) O brincar e a realidade. Imago.) ao dimensionar a experiência cultural como uma ampliação dos fenômenos transicionais que se operam desde o brincar infantil: “O lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio ambiente (originalmente, o objeto). O mesmo se pode dizer do brincar. A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiramente na brincadeira” (Winnicott, 1975Winnicott, D. (1975) O brincar e a realidade. Imago., p. 139). Por outro, a partir da leitura de Rodulfo (atravessada, também, pela obra do psicanalista inglês), podemos vislumbrar a distinção radical que se opera quando tal movimento é tomado sob a perspectiva de uma simples mudança de comportamento ou quando pode ser lido, desde a concepção proposta, como uma legítima operação de escrita, ao tomar as paredes do quarto e de outros ambientes como verdadeiras superfícies de inscrição a funcionarem como folhas ou lousas - que permitem ao adolescente reescrever-se enquanto subjetividade desejante. Segundo Rodulfo (2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo.): “Neste pôr e tirar jogam-se operações de escrita, de apagamento e de nova escrita - tanto ou mais importantes, como tais, do que aquilo que as definições convencionais de escrita conotam sob este nome. Se procedermos assim, libera-se uma força teórica incalculável” (p. 65).

Por apostarmos, também, nessa força teórica, escolhemos operar com a leitura e a escrita das cenas recolhidas no transcurso de nosso fazer clínico, e sustentar que o próprio ato de escrevê-las desdobra outros efeitos e amplia as possibilidades de leituras e de olhares a emergirem nesse processo.

Cena 2

Embora nossa proposta de trabalho contemple o livre brincar, sustentado pelo desejo dos envolvidos, pequenos e grandes, e contornado pela palavra - seja a palavra falada, em conversas com as crianças, seja a palavra escrita e narrada, pelo fio das histórias e contos de fadas -, mantemos alguns combinados e regras que norteiam a nossa intervenção e possibilitam a convivência no espaço-tempo do projeto. Assim, costumamos dizer que nesse espaço sustentamos um lugar de brincar, conversar e contar histórias; que, nesse lugar de brincadeiras e conversas, não podemos nos machucar, nem machucar os outros; e que ali nos chamamos todos pelos nossos nomes.

Regras são regras, mas nunca estão dadas de pronto. Demandam muita conversa, entre os grandes, entre os grandes e os pequenos, entre os pequenos. Muitas vezes, apesar delas, sobram chutes e xingamentos, faltam palavras e nomes, fura-se a entrada, deixando-se para trás caderno, registro, boas-vindas e tudo o mais. E, então, volta e meia precisamos parar, ler e acolher o caos que nos invade e refrescar a memória uns dos outros, resgatando os nossos combinados.

Assim sucederam-se inúmeras vezes quanto ao combinado de nos chamarmos sempre pelos nomes, por exemplo, desde que Estrela começou a habitar o espaço do projeto. Frequentemente escutávamos um “cocô”, dirigido a ela como nome. A cada vez que isso acontecia, parávamos e retomávamos o combinado de não nos chamarmos por apelidos, sempre pelo nome. Não era raro recebermos como resposta um olhar perplexo, como que um ponto de interrogação em cada pupila, acompanhado da explicação que conheciam até ali: “Mas é esse o nome dela”. E então, junto com a nova habitante do espaço - lá pelas tantas, já nem mais tão nova assim - e com o novo aprendiz dos nomes, contávamos que o nome dela não era Cocô: “É Estrela, e é assim que a chamamos aqui; assim como chamamos você pelo seu nome”.

As cenas interrogam

Retomamos as duas cenas apresentadas, recortes do percurso de Estrela. Considerando as questões que se produziram e se desdobraram ao longo do tempo de acompanhamento, alguns elementos que se repetem, ou que se destacam, foram tomados como pistas para a escolha da direção deste estudo.

De saída, tomamos o significante “cocô”, inicialmente enunciado como o nome próprio de nossa protagonista. Em pouco tempo, descobrimos que esse era o nome que circulava não apenas entre as crianças da comunidade, mas também entre os adultos e na própria família de Estrela. O que se dizia para justificar a substituição de um nome tão bonito por aquele era que ela andava sempre com as fraldas sujas.

Nesse ponto, uma parada já se faz necessária; pois, de uma criança de dois anos, até podemos esperar que ela esteja se encaminhando para a transição das fraldas ao penico, por exemplo, e que não viva, assim, sempre com as fraldas sujas. No entanto, sabemos que isso não se dá sem a entrada efetiva de um outro que ocupe o lugar de cuidador - ou de um “grande”, como nomeia Rodulfo (2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo.) - e que possa lhe dirigir tal demanda e inscrever tais possibilidades de cuidado. No caso da pequenina em questão, nos deparamos com o fato de que, muitas vezes, quem se ocupa da função de cuidado dos pequenos na comunidade são irmãos ou primos, ainda crianças. Assim, tal diferença de idade pode ser muito pequena para que tais operações possam ir se desdobrando, ou para que uma criança chegue a ocupar o lugar de Outro real para a outra.

Esse fato produziu alguns desencontros na comunicação entre os grandes e pequenos que circulavam pelo projeto em seus tempos iniciais. Por um lado, tentávamos transmitir que ali era um espaço de cuidado e que, portanto, não se permitiriam agressões físicas e machucados reais nas brincadeiras e, ainda, que estávamos, ali, em uma posição de cuidado em relação a todas as crianças e jovens que acolhíamos. Por outro, entrementes, fomos escutando aos poucos que, para aquelas crianças, o significante “cuidado” portava outra dimensão e significação, remetendo-as diretamente ao fardo que muitas vezes precisavam carregar em relação ao zelo e à responsabilidade de irmãos ou primos menores. Além do fato de que, na comunidade, as concepções de educação e de cuidado eram bastante atravessadas pelos atos de xingar e de bater, por exemplo, conforme escutávamos nos relatos de familiares que nos diziam que, de outro modo, a ação corretiva não funcionava.

No caso de Estrela, era comum ela estar acompanhada pelos irmãos que tinham quatro ou seis anos a mais, apenas. Mas ainda assim, no discurso familiar e comunitário, não apareciam a implicação e a responsabilidade dos grandes pelo fato de ela andar sempre com as fraldas sujas - como se isso fosse algo que pudesse dizer respeito somente a ela, desconsiderando, ali, a sua condição de criança pequena, que ainda não tem como dar conta do próprio cuidado e da higiene corporal, sozinha. Dessa forma, algo da ordem da organização familiar e social parecia recair sobre a pequena como uma marca bastante crua e esmagadora.

Além das fraldas sujas, nos primeiros tempos de sua participação no projeto, Estrela trazia muitos silêncios, poucos olhares e uma dificuldade considerável de brincar. Em equipe, associávamos tamanha ausência ao nome do objeto sujo que lhe impunham no lugar de seu bonito nome de batismo. No cotidiano do trabalho, isso produziu um movimento incansável de afirmarmos e reafirmarmos, a cada vez que se fazia necessário, que seu nome era Estrela, e não cocô. No entanto, no escopo de nosso estudo, coube desdobrarmos os efeitos testemunhados em perguntas, antes de se tecerem afirmações ou relações diretas. Começamos pela primeira delas: Que relações entre nome, corpo e sujeito se tramavam ali?

Elsa Coriat (1997Coriat, E. (1997). A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas (J. Jersusalinsky, Trad.). Artes e Ofícios.) afirma que, no início da vida, a aprendizagem está relacionada ao corte que estabelece o simbólico, pelas pautas culturais que operam na figura materna para cuidar e criar os filhos. Assim, retomando o percurso das primeiras experiências de prazer e desprazer que ordenam as aprendizagens e o desenvolvimento do aparelho psíquico (conforme já articulado por Freud (1895/1996bFreud, S. (1996b). Projeto para uma psicologia científica. In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standard brasileira (J. Salomão, Dir. de Trad.; Vol. 1, pp. 333-454). Imago. (Trabalho original publicado em 1895)) em seu “Projeto para uma psicologia científica”), a autora afirma que a perda do objeto é a condição para a vida humana, e que impedir a criança de experimentar a ausência do objeto nos tempos que lhe correspondem equivale a privá-la do principal atributo do que é humano - a falta.

Se, por um lado, concordamos com Dolto (2005Dolto, F. (2005). A causa das crianças. Ideias e Letras.) ao afirmar que tanto o discurso científico como o literário tendem a reduzir demasiadamente o universo da criança à relação com seus pais; por outro, não desconsideramos as operações subjetivas que precisam se dar para que possam ser inscritas as marcas fundantes que possibilitarão a emergência do sujeito. Nesse sentido, ainda que tal operação de corte não se restrinja à figura materna e demais cuidadores - especialmente em uma comunidade onde o cuidado das crianças costuma ser compartilhado entre muitos, inclusive com adultos de outras famílias vizinhas -, é necessário que ela ocorra para que a criança possa seguir seu curso de descobertas e aprendizagens.

No caso de Estrela, justo no momento de passagem, em que ela poderia adquirir o controle dos esfíncteres e aprender a deixar as fraldas, parecia não lhe ser permitido concretizar a queda do objeto real que era preciso poder perder nesse momento. O cocô, que precisava ir-se embora, e que Estrela poderia aprender a deixar ir, pareceu tomar conta da existência da menina, tornando-se seu nome. Podemos testemunhar, por um lado, o quão necessário é o suporte de um grande que ampare a criança nesse momento em que a perda do objeto pode confundir-se assustadoramente com a possibilidade da perda de si (como na imagem da criança que, ao ver suas fezes indo por água abaixo, assusta-se com a possibilidade de que ela inteira se vá também). Por outro lado, no caso de Estrela, vemos que a impossibilidade da queda do objeto concretiza de alguma forma a perda de si, ao obturar o espaço vazio onde um sujeito poderia emergir.

Assim, em sua constelação, muitas vezes Estrela parecia vagar sem rumo e sem direção, lançada aos ecos de palavras nebulosas que não lhe serviam de referência ou ponto de amparo. Nesse sentido, tanto Coriat (1997Coriat, E. (1997). A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas (J. Jersusalinsky, Trad.). Artes e Ofícios.) como Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Artes Médicas., 2004) seguem nos auxiliando a iluminar os percursos de nossa pequena viajante.

Coriat (1997Coriat, E. (1997). A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas (J. Jersusalinsky, Trad.). Artes e Ofícios.) afirma que, sendo o sujeito efeito da marca do significante no real, faz-se necessário considerar que “não qualquer constelação de marcas produz necessariamente efeito de sujeito” (p. 96), pois há marcas que não produzem o efeito de corte, gerando consequências que podem ser muito mais graves que o real das patologias orgânicas. A marca do nome, que em geral carrega uma potência humanizadora - como demonstra Freud (1912-1913/2012Freud, S. (2012) Totem e tabu. In Totem e tabu, contribuição à história do movimento psicanalítico e outros textos (1912-1914) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 13-244). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912)) em “Totem e tabu”, ao tratar sobre o tabu dos nomes -, no caso de Estrela, ficou inicialmente apagada sob a presença do objeto real. Assim, ao não comparecer um grande que possa operar o corte e sustentar o holding nesse momento - como propõe Rodulfo (2004Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo.) ao articular as operações fundamentais propostas por Lacan e por Winnicott -, fica a criança colada ao objeto, sem a possibilidade de que se inscreva a marca do significante no real do corpo.

Ao seguir o percurso de nossas questões, podemos aprofundar, ainda, a primeira afirmação trazida por Elsa Coriat a respeito do registro das pautas culturais que operam na figura materna e nos cuidadores para o cuidado e a criação dos filhos. Tal ponto nos interessa, visto que a própria família de Estrela ocupava, muitas vezes, um lugar de resto dentro da comunidade. Embora também inseridos no contexto geral de vulnerabilidade social do território, era como se fossem os mais pobres entre os pobres. Trabalhando com a catação e reciclagem de lixo, moravam em condições extremamente precárias, que se destacavam entre a vizinhança mais próxima. O significante “cocô” parecia condensar, então, tanto o estado das fraldas de Estrela, como também o lugar de dejeto ocupado pela família e pela comunidade no discurso social.

Aqui vemos condensar-se também o que Jessé Souza (2009Souza, J. (2009). Ralé brasileira: Quem é e como vive. UFMG.), sociólogo brasileiro, nomeia como a transmissão dos valores imateriais na reprodução e manutenção das classes sociais. Ao assumir uma perspectiva diferente da visão estritamente econômica, que associa apenas a herança material (pensada em termos econômicos de transferência de propriedade e dinheiro) como causa das desigualdades sociais, o que o autor sublinha é a noção das diferenças de classe social, bem como os vários mecanismos invisíveis que operam para naturalizar e legitimar as diferenças entre as classes, ao negar outras desigualdades que não apenas a econômica. Nessa via, um dos aspectos fundamentais por ele assinalado é o que corresponde às heranças imateriais, ou seja, a tudo aquilo que os pais e cuidadores transmitem aos filhos enquanto uma visão de mundo e de “ser gente” que é peculiar à classe a que pertencem - incluindo-se aí todas as heranças simbólicas, valorativas, morais e existenciais que se passam de pais a filhos por laços de afeto. Em suas palavras,

O processo de identificação afetiva - imitar aquilo ou quem se ama - se dá de modo “natural” e “pré-reflexivo”, sem a mediação da consciência, como quem respira ou anda, e é isso que o torna tanto invisível quanto extremamente eficaz como legitimação do privilégio. Apesar de “invisível”, esse processo de identificação emocional e afetiva já envolve uma extraordinária vantagem na competição social seja na escola, seja no mercado de trabalho em relação às classes desfavorecidas. Afinal, tanto a escola quanto o mercado de trabalho irão pressupor a “in-corporação” (tornar “corpo”, ou seja, natural e automático) das mesmas disposições para o aprendizado e para a concentração e disciplina que são “aprendidas” pelos filhos dessas classes privilegiadas (Souza, 2009Souza, J. (2009). Ralé brasileira: Quem é e como vive. UFMG., p. 19-20).

Percebemos, portanto, como aquilo que é da ordem da cultura e dos valores sociais toma corpo, de fato, no processo de constituição da criança. Assim, frente à tarefa primordial que todo bebê precisa se ocupar - de encontrar significantes que o representem, extraindo-os do seio do mito familiar -, inferimos que Estrela, apesar de tão bonito nome, não pôde encontrar, de início, muitas opções que pudessem lhe representar e lhe conferir um lugar de valor no céu de seu mundo. E, como afirma Rodulfo (1990Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Artes Médicas.), “conseguir um lugar para viver depende dos significantes que se encontra” (p. 34).

Se Dolto (2005Dolto, F. (2005). A causa das crianças. Ideias e Letras.) aponta para um denominador comum da infância, ao afirmar que a fronteira entre crianças ricas e pobres, entre mimadas e esmagadas, é arbitrária e enganosa, cabe aqui sublinharmos o que há de desigual, de diferença marcante. A autora sustenta que há um em comum entre as crianças de todas as classes e condições, que é, por um lado, o fato de que a sorte reservada às crianças depende da atitude dos adultos e, por outro, o reconhecimento generalizado da recusa dos adultos em tratar as crianças como pessoas, isto é, de tratá-las da mesma forma como gostariam de ser tratados. E segue, ao dizer que a negação de se enxergar na infância o seu potencial justifica-se pelo olhar que a sociedade dirige a essa fase e aos pequenos, partindo de um viés econômico, de rendimento e rentabilidade.

Temos aqui uma primeira diferença a ser marcada. Se concordamos que a sorte das crianças depende dos adultos - como há muito já fora sustentado e endossado por Hannah Arendt (1957/1961Arendt, H. (1961). A crise na educação. https://abre.ai/gN8E (Trabalho original publicado em 1957)
https://abre.ai/gN8E...
) em seu texto A crise na educação -, faz-se necessário assinalar uma diferença que preexiste às crianças nesse sentido: o fato de que os adultos das classes mais pobres em geral não são tratados da mesma forma, com o mesmo respeito e dignidade, que os demais adultos das classes mais abastadas. Isso é o que testemunhamos, de fato, nos tantos relatos de violência policial, ou no abandono do Estado, que se omite no cumprimento de direitos essenciais que, em outros territórios da cidade, são ofertados sem maiores dificuldades. Assim, se sustentamos a função primordial ocupada por um adulto no desenvolvimento da criança, cabe reconhecermos, também, que não é sem efeito o valor e a posição que aquele ocupa no tecido social.

Retornamos, por fim, às trilhas de Dolto (2005Dolto, F. (2005). A causa das crianças. Ideias e Letras.), a respeito do olhar que a sociedade dirige às crianças, ao afirmar que “a criança é notada em função de sua aptidão para a inserção social” (p. 131). Em nosso percurso de trabalho, testemunhamos as dificuldades de aposta e de investimento em muitas das crianças que frequentam o projeto, quando parecem ser vistas despidas da possibilidade de criar outras saídas para suas vidas que não a repetição da segregação das gerações que as precederam. Coriat (1997Coriat, E. (1997). A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas (J. Jersusalinsky, Trad.). Artes e Ofícios.) compartilha as antecipações de impossibilidades que tantas vezes se dão no encontro com crianças que sofrem de limitações do real do corpo, selando destinos de uma maneira que mais tem a ver com a falta de lugar no Outro do que com a falha orgânica. Nossa hipótese e o que viemos sustentando é que podem ocorrer processos semelhantes com as crianças que vivem em situações sociais críticas, pela via da produção de uma antecipação de fracasso que se dá pelo olhar social e pelo lugar de exclusão que facilmente lhes é atribuído.

Cena 3

O tempo passou, o ano virou, mudamos de casa. Mas carregamos junto a alma, a proposta e o que construímos até ali. Acompanhando as mudanças de tempo e de espaço, iam mudando também as brincadeiras preferidas pelas crianças. Até que, certa feita, chegamos num período de muita brincadeira de corda. Pular corda, saltar cobrinhas, amarrar coisas, construir contornos de casa, ruas, e um sem fim de invenções com fios pra tudo que é lado. Dentro de algum tempo, já eram conhecidos os maiores puladores de corda do pedaço! E haja braço e energia pra trilhar e contar, ou trilhar e cantar, conforme a preferência de cada pulador.

Em meio aos especialistas da saltitância ritmada, que chegavam a números gigantes de saltos, com dois pés no ar e no chão e três dígitos na contagem, havia também os aprendizes tímidos, que ensaiavam os primeiros pulos, enredando-se nos fios e em números mais modestos, mas não menos importantes. Em geral, os pequenos experimentavam-se entre o girar das cordas, enquanto os grandes faziam a função de trilhá-las. Até o dia em que uma das pequenas aprendizes anuncia que quer se experimentar em outro lugar da brincadeira. É Estrela - a essa altura já falando não apenas o seu nome, mas muitas outras palavras importantes - quem me surpreende ao dizer: “Sora, deixa eu trilhar!”. Aqui, uma surpresa dupla: pelo pedido e pelo chamado, já que a maioria das crianças insistia em nos chamar apenas de “sora”, enquanto ela gravava rapidamente os nomes de cada um de nós. Na fila dos que aguardavam sua vez para pular, saltavam muitos protestos em resposta ao seu pedido: “Não, sora, ela não sabe!”, “Não deixa, ela vai estragar a brincadeira!”, entre outras combinações de palavras que apontavam somente para o seu não saber e a sua impossibilidade de ocupar um outro lugar. Em meio a carinhas insatisfeitas, e algumas outras curiosas, tento sustentar que podemos ensiná-la, que ela pode tentar, que se não desse certo poderíamos repetir a tentativa - tanto de quem estivesse aprendendo a trilhar como de quem estivesse pulando ou aprendendo a pular.

Assim, passo a corda e a vez para a pequena confiante, com a dica de que ela gire seu braço “bem grandão” - e eis que nascia ali a mais jovem trilhadora! E já prenhe de muitos giros, que puderam acolher inclusive alguns dos pequenos puladores reclamões de minutos antes.

Considerações finais

O objetivo deste artigo fundamenta-se na construção de uma metodologia de pesquisa psicanalítica centrada na escrita de cenas do trabalho clínico. A partir das noções freudianas de cena onírica e cena primária, resgatamos as operações de construção que Freud destaca, tanto na elaboração das imagens dos sonhos quanto nas lembranças das cenas infantis, e que indicam a operação de uma produção que se realiza nas cenas, e não de mera reprodução. Baseamo-nos, também, na leitura que Derrida faz da obra freudiana, ao destacar a construção metafórica do aparelho psíquico como uma máquina de escrita, cuja produção é reconhecida pelo autor como radicalmente originária. Ao sublinhar que, na escritura psíquica, se produz a invenção de uma gramática própria e singular, Derrida sinaliza também o trabalho de produção e invenção que se opera nas formações inconscientes e na construção da cena psíquica.

Em nosso trabalho, a escrita de três cenas nos permitiu acompanhar o processo de construção de um nome e de outros lugares possíveis para a pequena Estrela em sua passagem pelo projeto. Ao iniciar pela interrogação dos efeitos de sua chegada ao projeto sendo apresentada como “cocô”, seguimos com a análise dos efeitos recolhidos nas intervenções sustentadas pela equipe em relação ao seu nome próprio, até testemunharmos a construção de um nome-corpo-lugar que lhe permitisse falar em nome próprio e cavar seu lugar no brincar compartilhado entre pares.

Ao colocar em análise o que foi produzido nas cenas com Estrela, observamos também os efeitos decorrentes do lugar social e do olhar comumente atribuído às crianças que vivem em situações sociais críticas. Ao identificar a antecipação de fracasso e de impossibilidade que frequentemente são atribuídos a elas, a equipe toma como direção de trabalho a sustentação da aposta e do investimento em possibilidades de construção e de criação de lugares diferentes dos usualmente imaginados ou antecipados. Assim, no caso de Estrela, as intervenções sustentadas coletivamente foram permitindo que outras saídas pudessem ser escritas em suas cenas, possibilitando à protagonista inscrever uma marca de diferença em relação ao olhar de seus próprios pares quanto às suas possibilidades.

Referências

  • Arendt, H. (1961). A crise na educação. https://abre.ai/gN8E (Trabalho original publicado em 1957)
    » https://abre.ai/gN8E
  • Coriat, E. (1997). A psicanálise na clínica de bebês e crianças pequenas (J. Jersusalinsky, Trad.). Artes e Ofícios.
  • Derrida, J. (2014). A escritura e a diferença. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)
  • Derrida, J. (2017). Gramatologia. Perspectiva. (Trabalho original publicado em 1967)
  • Dolto, F. (2005). A causa das crianças. Ideias e Letras.
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  • Freud, S. (2010b). “Batem numa criança”: Contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais. In História de uma neurose infantil: (“O homem dos lobos”), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 293-327). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado 1918)
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  • Freud, S. (2018). Construções na análise. In: Moisés e o monoteísmo, Compêndio de psicanálise e outros textos (1937-1939) (P. C. de Souza, Trad.; pp. 327-344). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1937)
  • Lacan, J. (2005). Seminário, livro 10: A angústia. Zahar. (Trabalho original publicado em 1962)
  • Rodulfo, R. (1990). O brincar e o significante: Um estudo psicanalítico sobre a constituição precoce. Artes Médicas.
  • Rodulfo, R. (2004). Desenhos fora do papel: Da carícia à leitura-escrita na criança. Casa do Psicólogo.
  • Souza, J. (2009). Ralé brasileira: Quem é e como vive. UFMG.
  • Winnicott, D. (1975) O brincar e a realidade. Imago.
  • 1
    As cenas são escritas na primeira pessoa do singular por tratar-se de recortes da memória de uma das pesquisadoras.
  • 2
    Nome fictício.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2021
  • Aceito
    23 Fev 2023
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