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Prevenção do Suicídio: Esquecimento do Ser e Era da Técnica

Suicide Prevention: Forgetfulness of Being and Technical Era

Prevención del Suicidio: Olvido del Ser y la Era de la Técnica

Resumo

Martin Heidegger, em sua ontologia, destaca uma característica específica da atualidade que atravessa o comportamento humano, na filosofia, na ciência ou no senso comum: o esquecimento do ser. O filósofo diferencia a época atual das demais épocas históricas. O horizonte histórico contemporâneo se desvela por meio do desafio e da exploração, da tentativa de controle e domínio dos acontecimentos, ao modo da disponibilidade e em função da produtividade. O filósofo esclarece que todo esse desenraizamento do homem atual está atrelado ao esquecimento daquilo que é o mais essencial, qual seja, a existência. A questão que norteia este estudo é apurar, por meio das referências de Heidegger e dos estudos sobre suicídio, o quanto a interpretação da morte voluntária nos dias atuais está atravessada por tal esquecimento. Pretendemos investigar o quanto as ações de prevenção desenvolvidas pela suicidologia se encontram atravessadas por tal esquecimento do ser do homem e, dessa forma, acabam por estabelecer relações entre ser e ente em uma consequente redução ao ente como invariante e atemporal. O caminho para investigar a questão iniciará por abordar, em maiores detalhes, a analítica existencial, a questão da técnica e o movimento de esquecimento do ser apontados por Heidegger a fim de problematizar as perspectivas científicas atuais sobre o suicídio em sua prevenção para, então, estabelecer uma compreensão fenomenológica e existencial sobre o referido fenômeno.

Palavras-chaves:
Suicídio; Prevenção; Heidegger; Era da técnica

Abstract

Martin Heidegger, in his ontology, highlights a specific characteristic of the present moment that crosses human behavior, in philosophy, science, or common sense: the forgetfulness of being. The philosopher differentiates the current age from other historical ages. The contemporary historical horizon is unveiled by the challenge and the exploration, from the attempt to control and dominate events, to the mode of standing reserve and in terms of productivity. The philosopher clarifies that all this uprooting of the current man is linked to the forgetfulness of what is the most essential, namely, the existence itself. The question that guides this study is to investigate, via Heidegger’s references and studies on suicide, to what extent the interpretation of voluntary death today is crossed by such forgetfulness. We intend to investigate to what extent the prevention actions developed by suicidology are crossed by such forgetfulness of the human’s being and, in this way, they end up establishing relationships between being and entity in a consequent reduction to entity as an invariant and timeless. The path to investigate the issue will start by addressing, in greater detail, the existential analytics, the question concerning technique and the movement of forgetting the being pointed out by Heidegger to problematize the current scientific perspectives on suicide and its prevention to, then, propose a phenomenological and existential understanding about the referred phenomenon.

Keywords:
Suicide; Prevention; Heidegger; Age of technique

Resumen

Martin Heidegger en su ontología destaca una característica específica del presente que atraviesa el comportamiento humano, ya sea en la filosofía, la ciencia o el sentido común: el olvido del ser. El filósofo diferencia la época actual de otras épocas históricas. El horizonte histórico contemporáneo se devela el desafío y la exploración, el intento de controlar y dominar los eventos, en la modalidad de disponibilidad y en términos de productividad. Y así aclara que todo este desarraigo del hombre actual está involucrado en el olvido de lo más esencial, que es la existencia misma. A partir de las referencias a Heidegger y de los estudios sobre el suicidio, este estudio busca saber hasta qué punto la interpretación de la muerte voluntaria hoy está atravesada por este olvido. Pretendemos investigar en qué medida las acciones de prevención desarrolladas por la suicidología se encuentran atravesadas por el olvido del ser del hombre y, de esta manera, terminan por establecer relaciones entre el ser y el ente, en una consecuente reducción al ente como invariante y atemporal. Para investigar el tema se abordará inicialmente, con mayor detalle, la analítica existencial, la cuestión de la técnica y el movimiento del olvido del ser señalado por Heidegger para problematizar las perspectivas científicas actuales sobre el suicidio y su prevención y, luego, proponer una comprensión fenomenológica y existencial sobre el referido fenómeno.

Palabras clave:
Suicidio; Prevención; Heidegger; Era de la técnica

Introdução

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 800.000 pessoas cometem suicídio por ano, o que resulta na segunda maior causa de morte da população mundial, atrás apenas de acidentes de trânsito. Dado este quantitativo anual, é possível calcular que uma pessoa morre por suicídio a cada quarenta segundos em média. Devido a essa estimativa global, o combate e a prevenção ao suicídio pautam uma das ações do Plano de Ação Mundial de Saúde 2013-2030, que busca, entre outros objetivos, reduzir o número de mortes por suicídio (World Health Organization [WHO], 2019World Health Organization [WHO]. (2019). Suicide in the World: Global Health Estimates 2019. WHO. https://apps.who.int/iris/handle/10665/326948
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3...
).

Embora a taxa global de mortes por suicídio tenha sido reduzida em 6% no período de 2010 a 2016, algumas regiões apresentaram acréscimo em seus quantitativos, como a região das Américas (World Health Organization [WHO], 2019World Health Organization [WHO]. (2019). Suicide in the World: Global Health Estimates 2019. WHO. https://apps.who.int/iris/handle/10665/326948
https://apps.who.int/iris/handle/10665/3...
). Além disso, mesmo com a diminuição do índice global, a OMS estima que não será possível alcançar suas metas de redução até 2030 caso se mantenha essa taxa de decréscimo. Dessa forma, a OMS incentiva a adoção de estratégias nacionais para que cada país possa aumentar sua contribuição no combate global ao suicídio.

Entre as estratégias sugeridas, podemos citar a veiculação de campanhas publicitárias, a correta classificação das causas de morte (para tratamento estatístico dos dados) e a criação de núcleos de atendimento a pessoas em risco de suicídio. Sendo assim, as ações estão pautadas em dois grandes eixos: saúde pública e coletiva, por coleta e tratamento de dados epidemiológicos e divulgação de campanhas públicas; e saúde individual, via criação de núcleos de atendimento e ações voltadas para prevenção de casos específicos.

No campo da saúde coletiva, os dados epidemiológicos nos permitem conhecer informações tais como os métodos mais utilizados, a prevalência por gênero e faixa etária, a distribuição das taxas por região geográfica e por períodos temporais, bem como a presença de comorbidades (sobretudo de doenças mentais). Com base nesses dados, combinados à biografia dos indivíduos, torna-se possível construir perfis de risco baseados em fatores predisponentes e precipitantes, tais como descritos por Botega (2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida: Avaliação e manejo. Artmed.). Os fatores predisponentes são aqueles de longa duração, a saber: fatores genéticos, ambientais e biográficos, entre outros. Os fatores precipitantes dizem respeito a acontecimentos temporalmente próximos da tentativa de suicídio, e que teriam a capacidade de desencadeá-la.

Em relação à saúde individual, não obstante, ganha relevância a presença de transtornos mentais, considerados fatores de risco graves para o suicídio. Entre os transtornos mais prevalentes, pode-se citar depressão, alcoolismo, esquizofrenia e transtornos de personalidade (Bertolote, 2012Bertolote, J. M. (2012). O suicídio e sua prevenção. Editora Unesp.). Embora esses transtornos não possam ser considerados causas de suicídio, se configuram, entretanto, para a perspectiva psiquiátrica, como fatores de risco importantes, tal como citado por Botega: “Na crise suicida, há a exacerbação de uma doença mental existente, ou uma turbulência emocional que, sucedendo um acontecimento doloroso, é vivenciada como um colapso existencial” (2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida: Avaliação e manejo. Artmed., p. 13).

Para a Psiquiatria, o suicídio ocorre frequentemente em decorrência de um ato de desrazão, gestado em meio a uma situação de enfermidade mental, sendo desencadeado por um evento precipitante ao ato. Dessa maneira, a prevenção ao suicídio estaria intimamente atrelada à necessidade de tratamento das doenças mentais. Isso ocorre porque, no interior da perspectiva psiquiátrica, tratar o transtorno psicopatológico significa combater a fonte de um ato mal pensado e desprovido de razão. Em conclusão, entende-se que o ato poderia ser evitado se combatidas as suas origens, a saber, a doença mental.

As duas abordagens, a coletiva e a individual, se preocupam predominantemente em evitar a todo custo as mortes decorrentes de suicídio e, por conseguinte, reduzir as estatísticas. Em um primeiro momento, elas podem ser consideradas altruístas e boas em si mesmas, já que a vida é tomada como um bem a ser preservado. Contudo, exercer essas formas de prevenção e cuidado contra o suicídio não significa esclarecer o que está em questão quando alguém decide pôr fim à própria vida. Em consonância a isso, uma abordagem fenomenológico-existencial pode se mostrar frutífera ao situar o problema a partir de uma análise da facticidade da existência. Recorrendo ao pensamento de Martin Heidegger (1889-1976), pretendemos nos abster das quantificações e abstrações generalistas sobre o fenômeno do suicídio e abordá-lo na condição de fenômeno existencial, ou seja, preservando a relação direta de entendimento que o indivíduo estabelece consigo mesmo e com sua realidade circundante. Tal abordagem traz consequências para a compreensão da prevenção do suicídio.

Deveras, Heidegger ficou conhecido como o filósofo do ser. Se na analítica existencial de Ser e Tempo (1927; 1998Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes.) Heidegger já apontava para a objetificação do homem quando tomado como ente simplesmente dado (Vorhandenheit), em A Questão da Técnica (1953; 2010Heidegger, M. (2010). A questão da Técnica. In Heidegger, M (Org.), Ensaios e conferências. (8a ed., pp. 11-38). Vozes.) ele acentua suas críticas e expõe os perigos relacionados à essência da técnica moderna, compreendida como composição (Gestell), relacionada ao esquecimento do ser. Ao ser tomado como ente simplesmente dado, o homem se confunde com uma coisa qualquer, que pode ser manipulada e modificada de acordo objetivos específicos.

Embora a filosofia ocidental costume arrogar o progresso da metafísica em nosso tempo, a pergunta pelo sentido do ser nunca foi propriamente colocada. E é justamente essa a pergunta perseguida por toda produção filosófica heideggeriana. O caminho tomado em Ser e Tempo (1998Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes.) consistiu em desenvolver uma analítica fenomenológica da existência humana enquanto tal, como caminho para o projeto de sua ontologia fundamental, isto é, uma investigação radical sobre as condições de possibilidade para qualquer ontologia, quer seja científica, quer seja filosófica. Com relação ao problema da técnica moderna, Heidegger correlacionou o ordenamento do mundo contemporâneo ao esquecimento do ser no decurso da história do Ocidente. Seus argumentos versam sobre a emergência daquilo que nomeou como Era da técnica: um momento histórico marcado pela hegemonia de uma razão ôntica e instrumental que radicaliza a tendência metafísica de esquecimento do ser e culmina em uma forma de niilismo, um esquecimento de nosso próprio esquecimento. Com efeito, esta é, para Heidegger, a situação em que se encontra a humanidade contemporaneamente, qual seja: a de esquecermos nossa própria constituição ontológica fundamental devido à perda de um enraizamento histórico. A consequência desse desenraizamento se manifesta, portanto, na propensão em reduzir o ser de tudo a uma função instrumental e utilitária no interior do cômputo da razão humana.

No estudo sobre o fenômeno do suicídio e sua prevenção, o estorvo com o esquecimento do ser e, por conseguinte, a desconsideração sobre o modo de ser do homem, aparece sob a forma de uma inobservância ou desconsideração ao fenômeno existencial em questão. Ainda que concebido como ocorrência multifatorial e complexa a partir da perspectiva psiquiátrica, o suicídio é pensado sem que se leve em conta o caráter de abertura e liberdade inerentes à condição humana. Pretendemos, então, abordar em maiores detalhes a analítica existencial, a questão da técnica e o movimento de esquecimento do ser apontados por Heidegger a fim de problematizar as perspectivas científicas atuais sobre o suicídio e sua prevenção, propondo estabelecer uma compreensão fenomenológica e existencial sobre o referido fenômeno.

Ser e Tempo: a Pergunta pelo Sentido do Ser e o Dasein

A Psicologia é uma área de estudo que, ao pleitear ser reconhecida como ciência, precisou definir seu objeto. De modo geral, esse objeto foi definido como a consciência, que recebeu pelos estudiosos dessa área diferentes caracterizações, mas que se manteve quase predominantemente como algo passível de determinação e objetivação situada, na maioria dos sistemas teóricos, no lócus da interioridade humana. Desse modo, os fenômenos da consciência foram equiparados a fatos objetivos passíveis de serem abarcados em seus contornos particulares. A psicologia fenomenológico-existencial, por sua vez, reivindica uma apreciação diversa de entendimento filosófico tradicional e científico acerca da condição humana. Para essa modalidade de pensar, o diálogo com a filosofia da existência mostra-se fecundo na abertura de outros caminhos para que nos apropriemos do elemento fundamental ao campo de estudo psicológico: a vida anímica humana.

Recorremos então à filosofia de Martin Heidegger, primeiro à sua ontologia fundamental desenvolvida na obra Ser e Tempo. Esse filósofo inicia suas análises esclarecendo fenomenologicamente o ente que, sendo, pergunta por seu próprio ser. Para não confundir seu direcionamento com a perspectiva da tradição, Heidegger decidiu não utilizar a denominação homem, e sim o termo Dasein. A Psicologia que tomamos como referência para elaborarmos a nossa tese sobre a prevenção do suicídio compreende o homem como Dasein e, por conseguinte, aborda o suicídio como fenômeno existencial. E essas compreensões modificam radicalmente o modo como pensamos a Psicologia em seu campo de fundamentos e práticas.

Para podermos deixar claro como nos apropriamos do modo de pensar de Heidegger, é importante esclarecer o que o filósofo alemão queria designar com a expressão ontologia fundamental. A ontologia é o campo da Filosofia que estuda o ser em geral, tentando determinar as propriedades mais comuns e gerais a todos os entes. Sendo assim, a ontologia metafísica contestada por Heidegger (1998Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes.) é aquela que se nutre da pretensão de encontrar um atributo essencial ou uma substância fundamental que justifique a existência dos entes no mundo, o ser em si mesmo como algo que se dá naturalmente de modo universal, a-histórico e absoluto.

Para elaborar sua ontologia fundamental, o filósofo esboça a forma provisória de seu método no parágrafo sete de Ser e Tempo e diz que faz isso por meio da fenomenologia, quer dizer, propondo um método que o ajudasse na tarefa de superar o velamento da questão do ser. Heidegger diz, logo no início do parágrafo sete: “exporemos um conceito provisório da fenomenologia” (1998Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes., p. 57) - trata-se de uma imposição do próprio caminho de reflexão: de um método inspirado na máxima de retorno às coisas elas mesmas. Sua reflexão e análise se situam em torno da problemática da filosofia em geral - a questão do ser - esclarecendo, por fim, tratar fenomenologicamente da pergunta pelo sentido do ser.

Com efeito, Heidegger desenvolve sua ontologia fundamental retomando a história da ontologia metafísica, seguindo um caminho de três momentos ou etapas: reconstrução (retomada da história das concepções filosóficas), destruição (pergunta sobre suas bases, uma vez revelada a inconsistência de seus pressupostos iniciais) e, por fim, a construção fenomenológica. A ontologia fundamental proposta pelo filósofo busca o âmbito fenomenal mais originário, quer dizer, as condições de possibilidades para que algo apareça ou se mostre a nós. Trata-se do horizonte originário de realização da ação humana como tal, ou seja, aquilo que torna possível nossas ações e comportamentos em geral.

Se perguntarmos o porquê da necessidade de se pensar as condições das ontologias, Heidegger responde que isso se dá pela insuficiência da ontologia metafísica; pelo esquecimento de outras possibilidades de ser e pensar a que ela conduz; enfim, pelo encurtamento das nossas possibilidades existenciais de habitar o mundo, fruto das ontologias filosóficas vigentes na história do Ocidente até então.

A fenomenologia heideggeriana visa o desvelar dos fenômenos em sentido fenomenológico. Pretende-se, com isso, esclarecer o ser do ente enquanto aquilo que se manifesta a nós, seu sentido, suas modificações e derivações, no solo histórico esquecido na tradição. A caminho do esclarecimento desse sentido, ele precisa, então, descrever o modo de ser do homem - o Dasein - uma vez que este é o único ente capaz de perguntar pelo ser de alguma coisa.

Em decorrência de suas análises, a existência do Dasein se identifica com um movimento de irrupção, como ek-stase para com o mundo; onde o mundo equivale à abertura de sentido em que o Dasein desde sempre se encontra e se constitui. Em outros termos, o mundo é entendido não como uma objetividade apartada de um suposto sujeito encapsulado, senão como espaço originário de realização da própria existência humana. A existência como abertura originária para um acontecimento também originário de uma ordem incontornável e inabordável, na medida em que se constitui como o espaço mais próprio de sua realização mesma. Isso diz respeito às possibilidades existenciais daquele que existe no seu encontro co-originário com o mundo. Em vista disto, Ser e Tempo representa, portanto, todo um esforço em descrever a constituição dessa abertura ao ser, que caiu no esquecimento, mas que a todo momento se expõe e concretiza, isto é, se realiza como ser-no-mundo.

Podemos nos perguntar se há alguma diferença significativa em a Psicologia considerar a presença da consciência como objeto de estudo ou considerar que para pensar a existência humana pode-se prescindir totalmente do construto consciência. Ao tomarmos a existência como abertura originária não há mais espaço para compreender os fenômenos existenciais em uma perspectiva de causalidade nem em uma perspectiva de passividade, como se o existente fosse uma marionete que se comporta por manipulações externas ou internas. Por outro lado, não há mais possibilidade de compreendê-lo como atividade de um sujeito que determina as coisas por sua vontade. Vemos a existência como passividade-ativa e atividade-passiva, ou seja, subvertendo e abolindo as dicotomias explicativas do modo de ser do homem. Por isso, é preciso acompanhar sua existência sempre em jogo no movimento do existir mesmo.

Ao tomar o homem como se constituindo com a mediação da consciência, considerações sobre determinações biológicas, psíquicas ou sociais posicionam o homem via determinação e assim compreendem-no a partir de uma teoria que poderia prever como ele se comportará de acordo com sinais ou comportamentos. E, ainda, poderíamos prevenir suas ações futuras e agir para que ele modificasse aquilo que anteriormente conduziu sua decisão. No entanto, se nos apropriamos do modo de ser do homem partindo da ideia de sua indeterminação originária, ou seja, sua liberdade, a ideia de determinação, de previsão e prevenção imediatamente se alterariam.

Na psicologia fenomenológico-existencial reconhecemos o homem como Dasein e, enquanto tal, sua indeterminação originária na qual as tentativas de previsão e prevenção podem ser propriamente dimensionadas. Por esse motivo, não partimos em nossos estudos de prevenção do suicídio da noção de fatores de risco nem de determinações psicológicas, biológicas ou sociais. Ao apreendê-los desse modo, tomaríamos o que aparece como anúncio do que não se mostra. Ao considerar o homem em sua indeterminação, tendo que ser em seu caráter de possibilidades, sabemos que ele pode sempre escapar às nossas antecipações e tentativas de controle. Na lida clínica com o existente que guarda em sua essência essa indeterminação e carrega a tarefa de se determinar, a cada vez, na maneira como o mundo aparece em suas articulações, reconhecemos a nossa fragilidade e impotência, restando-nos apenas acolher o outro sempre em jogo em suas possibilidades.

O Acontecimento Histórico do Esquecimento do Ser e a Era da Técnica

Não é novidade o fato de o pensamento heideggeriano agir numa espécie de proteção do Dasein contra investidas totalizantes das teorias explicativas em geral. Uma teoria explicativa parte de um posicionamento ontológico prévio que já decide a natureza de seu objeto de estudo. Ao se empreender dessa forma, tal posicionamento prévio permanece, no entanto, inquestionado. Como foi visto acima, isso repercute no modo como a Psicologia tradicionalmente opera, isto é, tomando seu objeto de estudo como algo natural, descortinável em uma relação de causa e efeito. Fazer o movimento de compreensão do existir humano na indeterminação de sua constituição é exatamente o movimento de libertação das redes de causa e efeito, libertação esta que a psicologia fenomenológico-existencial intenta. Não se busca mais os contornos de uma teoria genial que revela as causas dos fenômenos humanos, mas uma aproximação compreensiva que medita em torno do sentido e da medida dos eventos humanos. Heidegger identifica exatamente essa postura - meditativa - como que passando ao largo da mirada humana no mundo contemporâneo, justamente pelo fato de a meditação em torno do sentido do ser ter sido soterrada pelo embate de posicionamentos ontológicos de vista curta, no que tange ao quantum de esquecimento que todo posicionamento ontológico reserva. Tal estado de coisas permite que se compreenda com maior clareza a interpretação heideggeriana da tradição ocidental e de sua consumação na era da técnica.

Ao longo de suas investigações, Heidegger reconhece na tradição ocidental um problema bem específico: o esquecimento da diferença ontológica. Tal esquecimento, por seu turno, repercute diretamente no modo como se nivela o Dasein à noção de um ente simplesmente dotado de propriedades permanentes inventariáveis. Desta feita, o decisivo é que, para Heidegger, o projeto filosófico da tradição metafísica estaria inelutavelmente marcado por esse esquecimento. Com efeito, a diferença ontológica aponta para a completa, total e radical diferença entre ser e ente. O problema se constitui, exatamente, no modo como a tradição compreendeu tal diferença e na maneira pela qual considerou, ou melhor, deixou de considerar o ser como diferença, recaindo no esquecimento, posto que a tradição “transpõe o ser uma vez mais para o interior do ente” (Heidegger, 2008Heidegger, M. (2008) Nietzsche II. Forense Universitária., p. 265). É assim que, a princípio, considerando a diferença entre ser e ente, a tradição ocidental tentou fixar de uma vez por todas o ser em medidas ontológicas estáticas. A consumação desse esquecimento em relação à diferença ontológica caracterizaria, portanto, a era da técnica.

Na era da técnica, a totalidade do ente e, por consequência, o Dasein, aparecem sob o pano de fundo da disponibilidade (Bestand). Compreender todo e qualquer ente como disponível significa dizer que o Dasein já precisa de antemão ser compreendido como simplesmente dado, para que a dinâmica da técnica possa assenhorar-se dele. O mundo contemporâneo da técnica equivale ao mundo onde o ser dos entes coincide com a posição ou função exercida em um sistema total concebido pela razão humana, uma vez que tudo se encontra referenciado a uma única conjuntura significativa, a disponibilidade. Desse modo, o ser do ente se mostra de antemão circunscrito à função que exerce nesse sistema concebido pelo sujeito. O ponto é que, de acordo com esse projeto moderno, o domínio do ente tem como figura central o homem como subjetividade privilegiada que por meio de si domina os demais entes. Nesse quesito, é possível identificar na era da técnica uma virada: a subjetividade incondicionada da técnica requisita o Dasein e o posiciona, e não o contrário. Nas palavras do filósofo:

Se, porém, o destino impera segundo o modo da composição ele se torna o maior perigo, o perigo que se anuncia em duas frentes. Quando o descoberto já não atinge o homem, como objeto, mas exclusivamente, como disponibilidade, quando, no domínio do não objeto, o homem se reduz apenas a dispor da disponibilidade - então é que chegou à última beira do precipício, lá onde ele mesmo só se toma por disponibilidade. E é justamente este homem assim ameaçado que se alardeia na figura de senhor da terra. Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem. Esta aparência faz prosperar uma derradeira ilusão, segundo a qual, em toda a parte, o homem só se encontra consigo mesmo. Heisenberg mostrou, com toda razão, que é assim mesmo que o real deve apresentar-se ao homem moderno. Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem já não se encontra em parte alguma, consigo mesmo, isto é, com sua essência. O homem está tão decididamente empenhado na busca do que a composição provoca e explora, que já não toma, como um apelo, e nem se sente atingido pela exploração. Com isto, não escuta nada que faça sua essência existir no espaço de um apelo e por isso nunca pode encontrar-se consigo mesmo (Heidegger, 2010Heidegger, M. (2010). A questão da Técnica. In Heidegger, M (Org.), Ensaios e conferências. (8a ed., pp. 11-38). Vozes., p. 29-30).

No que tange ao trecho citado, o termo composição (Gestell) merece destaque. No contexto do desafio imposto pela técnica e do aparecer do ente como disponível, o termo composição surge como a estrutura prévia segundo a qual o mundo da técnica precisa se dar em conformidade com um incessante desafio e disponibilização do ente, que sempre precisa aparecer dentro dessa perspectiva para a técnica se perenizar como domínio. Desse modo, a composição significa a força de reunião daquele pôr que põe, ou seja, que desafia o homem a desencobrir o real no modo da disponibilidade de forma que “Na composição, dá-se com propriedade aquele desencobrimento em cuja consonância o trabalho da técnica moderna desencobre o real, como disponibilidade” (Heidegger, 2010Heidegger, M. (2010). A questão da Técnica. In Heidegger, M (Org.), Ensaios e conferências. (8a ed., pp. 11-38). Vozes., p. 24).

A palavra Gestell indica uma relação com o verbo stellen, isto é, colocar, posicionar. O particípio passado desse verbo é gestellt, ou seja, posto, posicionado. Portanto, o uso do termo Gestell por Heidegger indica o sentido de algo que já foi posto e armado previamente para que se coloque em um posicionamento inevitável na disponibilidade. A composição posiciona o homem como ente também a ser desafiado como disponível. À medida que esse dispor do ente é posto pela composição, não é o Dasein que decide sobre a composição, mas é ela que se instala no homem como condição de possibilidade de um constante desafiar da técnica moderna. Isso significa que ele não é apenas o sujeito posicionador do objeto, mas, sobretudo, um objeto posicionado pela subjetividade incondicionada da técnica no nivelamento radical entre Dasein e coisa dotada de propriedades permanentes. O homem é paulatinamente absorvido na estrutura armada da requisição técnica e acaba por ser tomado, no final das contas, como mero ente também disponível. Há uma importante virada em jogo nesse momento, isto é, o homem agora não é mais o centro detentor do ente, mas detido pela composição técnica.

Com as considerações posicionadas por Heidegger alcançamos a ideia da indeterminação constitutiva do Dasein em seu caráter de possibilidade, ao mesmo tempo esse homem é tomado pela cadência da técnica moderna. Queremos investigar a relação entre suicídio e sua prevenção e o esquecimento do ser no mundo contemporâneo. E ainda saber o quanto esse desenraizamento pelo esquecimento do caráter existencial estabelece uma cadência em que a questão em torno da liberdade desaparece, ou melhor, é esquecida. Seria possível prevenir e evitar aquilo que é do âmbito da liberdade?

A partir disso, poderíamos compreender que o tema suicídio, bem como a figura do suicida, aparece desde uma delimitação objetiva que posiciona o sentido e o significado da ação de tirar a própria vida em determinados contornos prévios? Ao considerar a prevenção do suicídio em virtude da concepção do homem como um ente simplesmente dado, não estaríamos esquecendo de sua condição de ser, ou seja, sua liberdade? Com isso não estaríamos negligenciando o fato de que o ser do homem não se esgota em qualquer determinação e definição previamente dadas?

Prevenção do Suicídio e a Lembrança do Caráter de Possibilidades do Homem

Como vimos, a compreensão de um fenômeno está sempre articulada com o modo de pensar de uma época, o que, em nosso momento histórico, se apresenta como esquecimento da condição mais originária da existência como liberdade. Essa compreensão está, portanto, presente nos discursos de nosso tempo sobre o suicídio e sua prevenção. Para melhor explicitar o esquecimento do ser nesses discursos e darmos continuidade a nossas reflexões, abordaremos dois artigos recentes, produzidos no segundo semestre de 2020, que versam sobre a prevenção do suicídio em tempos de covid-19.

Muitos artigos (Buso, 2020Buso, M. V. (16 jul. 2020). Suicídios e covid-19: Algumas considerações. Comporte-se: Psicologia & AC., https://comportese.com/2020/07/16/suicidios-e-covid-19-algumas-consideracoes/
https://comportese.com/2020/07/16/suicid...
; Correia, 2020Correia, H. (25 set. 2020) Como a crise da covid-19 pode ter relação com aumento de suicídios. Revista Encontro BH. https://www.revistaencontro.com.br/canal/revista/2020/09/como-a-crise-da-covid-19-pode-ter-relacao-com-aumento-de-suicidios.html
https://www.revistaencontro.com.br/canal...
; Hartmann, 2020Hartmann, P. B. (9 jun. 2020). Pandemia por covid-19 e o risco de suicídio. PEBMED. https://pebmed.com.br/covid-19-e-o-risco-de-suicidio/
https://pebmed.com.br/covid-19-e-o-risco...
) têm acenado para o aumento de casos de suicídio no período de pandemia, ancorados na observação de que aumentaram os sofrimentos por solidão, depressão, pensamento obsessivo etc. Biernath (2021Biernath, A. (27 mar. 2021). Lockdown causa depressão e suicídio? O que um ano de covid-19 nos revela sobre saúde mental. BBC News Brasil. www.bbc.com/portuguese/internacional-56491463
www.bbc.com/portuguese/internacional-564...
) afirma, no entanto, que a despeito de todas suspeitas e correlações entre depressão e suicídio durante a pandemia “até agora, os cientistas não encontraram essa subida vertiginosa nos números de depressão ou suicídio. Os estudos indicam que os casos continuam estáveis, apesar de todas as privações que o mundo está vivendo” (2021Biernath, A. (27 mar. 2021). Lockdown causa depressão e suicídio? O que um ano de covid-19 nos revela sobre saúde mental. BBC News Brasil. www.bbc.com/portuguese/internacional-56491463
www.bbc.com/portuguese/internacional-564...
, p. 3). Tal cenário nos acena questões que merecem ser pensadas e que gostaríamos de considerar, uma vez que transcendem a lida com o suicídio em tempos de pandemia e dizem respeito aos fundamentos do modo como consideramos o fenômeno de sua prevenção.

Nos chama a atenção duas questões pertinentes ao suicídio e sua prevenção e que surgem em reportagens veiculadas por um mesmo jornal: Medscape. O primeiro intitula-se Covid-19: Uma oportunidade de prevenção contra o suicídio, publicado originalmente em JAMA Psychiatry em 16 de outubro de 2020. Na sua versão em português, lemos:

Embora evidências dos seis primeiros meses de pandemia revelem efeitos específicos no risco de suicídio, dados em tempo real de mortes por suicídio não estão disponíveis na maior parte das regiões do mundo. A partir de dados que emergem de vários países, ainda não há evidências de aumento das taxas de suicídio durante a pandemia, observou a Dra. Christine.

Ainda assim, diversos fatores de risco relacionados com a pandemia podem aumentar o risco de suicídio individual e populacional. Dentre os quais, deterioração ou recorrência de transtornos mentais graves; aumento do isolamento, solidão e privações; aumento do uso de álcool e drogas; perda do emprego e outros estressores financeiros; e aumento da violência doméstica. Existem estratégias para mitigar cada uma dessas “ameaças ao risco de suicídio”. A ciência é “muito clara”, disse a Dra. Christine ao Medscape. “O risco de suicídio nunca é uma situação inevitável. É dinâmico, com várias forças em jogo em cada indivíduo e na população. Vidas podem ser salvas simplesmente fazendo as pessoas se sentirem mais conectadas umas com as outras, sendo parte de uma comunidade maior”, acrescentou ela (Moutier, 2020Moutier, C. (2020). Covid-19: uma nova oportunidade de prevenção contra o suicídio. JAMA Psychiatry. 78(4), 433-438. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2020.3746
https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2...
, p. 1).

Com relação a esse primeiro artigo, queremos reter a afirmativa de que “o risco de suicídio nunca é uma situação inevitável” e a enumeração de fatores de risco que possivelmente se agravariam na situação de pandemia e que levantam um alerta quanto à possibilidade do aumento de situações de suicídio.

O segundo artigo, O suicídio é um erro do psiquiatra?, de Deborah Brauser (2020Brauser, D. (6 nov. 2020). O suicídio é um erro do psiquiatra? Medscape. https://portugues.medscape.com/verartigo/6505565
https://portugues.medscape.com/verartigo...
), nos parece colocar em questão o que é relatado no primeiro artigo, ao sugerir a falência de um projeto de risco zero para o suicídio e para os problemas enfrentados por médicos psiquiatras que viram algum de seus pacientes se suicidarem. O artigo defende uma comunicação aberta como forma de proteção e ajuda aos médicos que enfrentam processos judiciais iniciados após o suicídio de seus pacientes. Ao nosso ver, os dois artigos trazem uma tensão entre a fé na possibilidade de evitar o suicídio e a necessidade de ações que o previnam e, justamente, a impossibilidade de o fazer.

À luz do que estamos discutindo neste texto, a tensão tem seu fundamento no esquecimento da realidade da existência como liberdade, resguardado pela ilusão de previsibilidade e controle. Pensar que o suicídio pode ser mapeado em seus fatores de risco e, por meio deste mapeamento, prevenido e evitado é o contrário do que estamos tentando defender, pois significaria estabelecer uma relação causal entre um pensamento suicida, por exemplo, e o ato propriamente dito. Tratando-se de vida humana, esquecer-se que tirar a própria vida é sempre possível nos leva, justamente, em direção aos temas tratados nos dois supracitados.

Como apontado anteriormente, em Ser e Tempo, Heidegger (1998Heidegger. M. (1998). Ser e tempo. Vozes.) alertara para os riscos decorrentes do esquecimento do ser transmitido na história da tradição filosófica ocidental. O filósofo parte, então, da compreensão segundo a qual existimos no mundo como relação, que é o que ele pretende expressar ao substituir a palavra homem por Dasein. Além disso, o filósofo considera a situação hermenêutica em que nos encontramos, explicitando que existir em um mundo significa já estar sempre marcado pelo modo de ser de uma época, como ligação originária à facticidade de seu mundo histórico e social.

Em nossa existência cotidiana, podemos nos sentir familiarizados com o que chega a nós a ponto de não mais experimentarmos qualquer estranhamento, o que significa dizer que não mais nos perguntarmos sobre o sentido dos acontecimentos. Isso se passa quando queremos entender um fenômeno como a prevenção do suicídio, nosso tema neste texto, pela perspectiva daquilo que o causa. Ou seja, nos artigos supracitados, está sempre presente a ideia de uma causa que pode ser determinada e que, uma vez antecipada, poderia evitar o fluxo linear dos acontecimentos. Heidegger (2010Heidegger, M. (2010). A questão da Técnica. In Heidegger, M (Org.), Ensaios e conferências. (8a ed., pp. 11-38). Vozes.) nos oferece elementos para pensarmos essa questão. Como vimos, ele evidencia o modo como nosso tempo é marcado pela noção de subjetividade incondicionada, em seu projeto de desafio, exploração, antecipação e controle. E que esse modo de disponibilidade dá lugar frequentemente à busca por culpados, pois, se podemos controlar, quando algo foge ao esperado é preciso determinar o que ou quem provocou tal situação que não foi devidamente evitada.

Em Seminários de Zollikon, Heidegger (1987; 2017)Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes. realiza uma diferenciação entre causa e motivo. Com efeito, ele mostra que, habitualmente, causalidade é pensada como um processo de efeitos necessários e que obedece à ordem da natureza. E motivo diz respeito à razão de um movimento, razão de um agir humano na medida em que “refere-se à existência do homem no mundo como um ente que age, que tem experiências” (Heidegger, 2017Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes., p. 49). Quando pensamos em causa, estamos procurando as determinações incontestáveis que, com certeza e previsibilidade, levaram a determinado acontecimento. É certo que um vento forte empurra a porta, por exemplo. O vento é a causa da porta se fechar e, sempre que houver uma porta aberta e um vento forte, isso acontecerá.

Motivo, por outro lado, se relaciona com liberdade. Se eu quero privacidade, eu me levanto e fecho a porta. Não é possível dizer quando eu fecharei a porta e, menos ainda, o que ocasionará essa minha ação, porque depende sempre do que está acontecendo na situação em que me encontro e na qual ajo de um modo ou de outro. Com base nesses argumentos, tirar a própria vida não fala apenas de um comportamento específico, “mas refere-se também às situações em que este pode se realizar, às pessoas que o realizam, ao modo como o fazem e às circunstâncias envolvidas no ato” (Magliano, 2018Magliano, F. R. (2018). Considerações preliminares sobre a compreensão e finitude humana. In A. M. L. C. de Feijoo (Org.), Suicídio: entre o morrer e o viver (pp. 17-38). IFEN., p. 25).

Retornando os dois artigos supracitados (Brauser, 2020Brauser, D. (6 nov. 2020). O suicídio é um erro do psiquiatra? Medscape. https://portugues.medscape.com/verartigo/6505565
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; Moutier, 2020Moutier, C. (2020). Covid-19: uma nova oportunidade de prevenção contra o suicídio. JAMA Psychiatry. 78(4), 433-438. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2020.3746
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), podemos dizer que há um esforço em determinar estratégias para impedir que alguém pensando em se matar realize tal ato, o que só é possível porque o fenômeno é compreendido pela perspectiva das suas causas, as quais supostamente poderiam ser controladas para que o evento não viesse a acontecer. Nessa visada, prevenir significa intervir previamente de forma a impedir o desfecho previsto. Esse é o caso do artigo de Moutier (2020)Moutier, C. (2020). Covid-19: uma nova oportunidade de prevenção contra o suicídio. JAMA Psychiatry. 78(4), 433-438. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2020.3746
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, que lista medidas políticas, sociais e institucionais a serem adotadas de forma a “mitigar” o suicídio, considerando, inclusive, que “A covid-19 representa ‘uma oportunidade nova e urgente’ de focar a iniciativa política, os investimentos federais e a comunidade global na prevenção contra o suicídio” (2020, p. 4).

Quanto ao artigo de Brauser (2020Brauser, D. (6 nov. 2020). O suicídio é um erro do psiquiatra? Medscape. https://portugues.medscape.com/verartigo/6505565
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), que coloca em questão a determinação do suicídio como um erro médico suscetível de processo jurídico, entendemos que isso só pode ocorrer em um mundo onde se acredita que o suicídio pode e deve ser evitado e que, se um paciente decide tirar a própria vida, o médico é culpado pelo ato. Nos dois artigos o que nos salta aos olhos é que a liberdade, entendida como a própria abertura que nos constitui, está tão fora de questão que o fato de querer e poder morrer perde espaço em nome de estratégias de controle.

Lembramos, primeiro, que alguém só tira sua vida porque pode fazê-lo. Os estudos que tentam mapear as causas do suicídio esbarram nessa máxima, ao esquecerem da existência em sua indeterminação e em meio às condições históricas em que se realiza. Não estamos, com isso, ignorando o suicídio como um fenômeno que merece ser pensado ou dizendo que não há nada que possa ser feito para preveni-lo, mas sim considerando que o que leva alguém a querer tirar a própria vida se insere na ordem dos motivos, ou seja, da liberdade, de forma que prevenir ou evitar que alguém tire a própria vida pode significar demorar-se junto ao outro, não ao modo de o substituirmos em sua possibilidade de ser, mas de o acompanharmos e fornecermos “espaço para que ele articule os sentidos de suas decisões” (Queiroz, 2018Queiroz, A. S. (2018). Prevenção do suicídio, técnica e psicologia fenomenológico-existencial. In A. M. L. C. de Feijoo (Org.), Suicídio: entre o morrer e o viver (pp. 195-212). IFEN., p. 210) e, eventualmente, os rearticule em direções outras. Na clínica, essa forma de acompanhamento e de estar junto ao outro parte do caráter de indeterminação do existente em sua existência. Sabemos que suas ações não estão sujeitas a nossas antecipações e tentativas de controle. Assumindo nossa limitação, acolhemos e acompanhamos o existente na lida com suas possibilidades e, nesse gesto, resguardamos um espaço para criação de novos modos de lida.

Uma Proposta de Prevenção

Valendo-nos das contribuições heideggerianas, nosso intuito é analisar uma aproximação compreensiva e meditativa dos sentidos e motivações de ações humanas, entre as quais o comportamento suicida e sua prevenção recebem aqui especial destaque. O desafio em realizar esta aproximação se identifica com a possibilidade de abordarmos o suicídio enquanto fenômeno existencial e para além de uma perspectiva causalista e objetivante, buscando lançar luz na relação de entendimento que o Dasein estabelece consigo mesmo a partir da facticidade do mundo histórico e social em que habita.

Inicialmente absorvidos na era da técnica, não conseguimos apreender o solo histórico no qual estamos enraizados e não alcançamos, portanto, um esclarecimento de nossa situação hermenêutica. Instaurado pela filosofia moderna, como vimos, o universo no qual se instala a razão científica impõe a todos os fenômenos um único modo de presença - a objetividade - cujo traço fundamental consiste na redução de tudo à condição de objeto disponível ao sujeito cognoscente. Sendo previamente determinado pela disponibilidade (Bestand), o cálculo operado pelas ciências se realiza em conexão ao imperativo moderno de asseguramento e controle sobre a natureza, convertendo os fenômenos existenciais em objetos disponíveis ao seu método.

Contudo, uma vez que renunciamos à expectativa de determinar uma realidade objetiva subjacente aos fenômenos existenciais, podemos entender que o conhecimento produzido pelas ciências não garante o acesso direto e claro aos acontecimentos da vida humana tal como se dão, tampouco nos deixam saber da experiência singular daqueles que pensam em pôr fim à própria vida. Com efeito, os modelos e teorias explicativas orientados pelo princípio da causalidade pouco têm a oferecer no que se refere ao esclarecimento das motivações específicas para o comportamento suicida e somente permitem constatar, no melhor dos casos, a sucessão de eventos em uma sequência temporal. Por esse motivo, estabelecer uma aproximação compreensiva do fenômeno do suicídio e sua prevenção implica nos situarmos em um âmbito alheio ao universo da objetividade e causalidade com os quais os fenômenos naturais são estudados. Conforme observa Heidegger:

As ciências naturais colocam condições e verificam no que vão dar. Nós não procedemos assim. Só vimos theorein=vislumbramos os fenômenos. Causalidade é uma ideia, uma determinação ontológica, ela faz parte da determinação da estrutura do ser da natureza. Motivação refere-se à existência do homem no mundo como um ente que age, que tem experiências (Heidegger, 2017Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes., p. 49).

Transpor a causalidade para a observação dos fenômenos da vida humana equivale a romper com a tessitura significativa em meio a qual nossas ações e comportamentos acontecem. Ao nos fixarmos na objetividade e na causalidade, esquecemos então o próprio fenômeno da existência como aquilo que torna possível aos entes se mostrarem enquanto tais. Nesse sentido, o essencial consiste em discernir entre o universo objetivo onde operam as teorias e modelos explicativos em geral e a dimensão existencial em que nós mesmos primordialmente habitamos, aquela dimensão em que desde sempre nos encontramos, a saber, a de um acontecimento que se dá no espaço aberto pela compreensão do ser.

Evidentemente, não pretendemos com isto afirmar que a prevenção do suicídio por meio do cálculo científico não tenha sua importância e objetivos, principalmente no campo da saúde coletiva. Essas informações possibilitam a articulação de estratégias que visam um maior investimento direcionado àquela situação. Não há, portanto, nenhum problema em produzir teorias ou modelos explicativos sobre o comportamento humano, não obstante, devemos ter atenção para não posicionar o conhecimento objetivo em lugar daquilo que nos é mais originário, justamente por essa forma de conhecimento não ser capaz de alcançar a experiência singular que temos de nosso próprio existir.

Em uma aproximação compreensiva, em contrapartida, interessa precisamente manter em vista aquilo que é propriamente humano, apreendendo as situações existenciais em sua própria significância. Deveras, apenas podemos compreender as razões que levam alguém a considerar o suicídio em articulação com a totalidade originária de seu cenário existencial e nunca em uma razão puramente causalista e objetivista que desconsidera os fenômenos existenciais na mesma razão em que “o pensar moderno torna-se cada vez mais cego e transforma-se num calcular sem visão” (Heidegger, 2017Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes., p. 95).

Não pretendemos renunciar aos recursos técnicos e científicos no estudo da condição humana, no entanto, precisamos reconhecer que esses mesmos procedimentos não descartam a possibilidade de apreender os fenômenos em seu próprio contexto de significância. Nesse sentido, observa-se que:

Uma vez que ser não é nenhum ente, a diferenciação entre ser e ente é a mais fundamental e a mais difícil. Isto é ainda mais difícil quando o pensar é determinado pela ciência, que só trata do ente. Hoje predomina a crença de que somente a ciência proporciona a verdade objetiva. Ela é a nova religião. Em comparação com ela, a tentativa de pensar o ser parece arbitrária e “mística”. Não se pode vislumbrar o ser pela ciência. O ser exige uma identificação própria. Ela não depende da vontade do homem e não pode ser estudado por uma ciência. Como homens só podemos existir na base desta diferenciação (entre o ser e o ente).... Isto não significa o abandono da ciência, mas, ao contrário, chegar a uma relação refletida, conhecedora com a ciência e verdadeiramente meditar sobre seus limites (Heidegger, 2017Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes., p. 44, grifo do autor).

Suspendendo as orientações da era da técnica, podemos questionar se toda a possibilidade de prevenção ao suicídio se resume às intervenções técnicas interessadas em produzir efeitos ou resultados específicos. Para nós, estabelecer um diálogo com Heidegger, propondo uma aproximação compreensiva e meditativa do fenômeno do suicídio, não pode significar desenvolver uma nova técnica terapêutica, mas sim, principalmente, buscar outro modo de experimentar as determinações técnicas presentes nas ciências do campo psíquico, redimensionando as expectativas de controle e previsibilidade que lhes são endereçadas. Somos convidados, assim, a adentrar num exercício de compreensão e experimentação dos limites e possibilidades do conhecimento científico-natural, apostando em estabelecer uma relação mais livre com o objetivismo da tradição metafísica e a causalidade das ciências naturais que fornecem as medidas iniciais de nossa abertura ao mundo. Como resultado, devemos diferenciar o universo objetivo do qual provêm os modelos de teorias explicativas sobre o suicídio e a dimensão existencial ontológico-originária que nos permite compreender o Dasein como tal.

O que o existir como Dasein significa é um manter aberto de um âmbito de poder-apreender as significações daquilo que aparece e que se lhe fala em seu ser como clareira. O Dasein humano como âmbito de poder-apreender nunca é um objeto simplesmente presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma circunstância, algo passível de objetivação (Heidegger, 2017Heidegger, M. (2017). Seminários de Zollikon (3a ed.). Vozes., p. 34).

Tentar determinar objetiva e causalmente o comportamento humano implica, portanto, nos situarmos junto a uma razão estritamente técnica e significa, consequentemente, desconsiderar na gênese aquilo que é propriamente humano: a liberdade e a indeterminação do existir. Ao nos identificarmos ao modo de ser do homem como um ente simplesmente dado não conseguimos apreender o fato de que nossas possibilidades existenciais nunca estão dadas e se encontram sempre em jogo no devir da temporalidade, ignorando que são sustentadas pela maneira como nos relacionamos com o nosso existir.

Assim sendo, examinar a condição humana em termos de objetividade e causalidade representa uma forma de desenraizamento na medida em que desconsidera a conexão originária do Dasein com a dinâmica histórica de desvelamento do ser. Ao dissimular o contexto no qual se realiza o comportamento humano, não é possível considerar ou compreender em que situações existenciais o suicídio faz sentido e as condições factuais que o tornam possível.

Com a proposição de um pensar meditativo (Besinnung), Heidegger acreditou vislumbrar uma possibilidade humana essencial ao refletir sobre o que nos é mais próximo - a compreensão ontológica originária do Dasein -, retomando o âmbito originário do qual as experiências humanas provêm. Por esse motivo, uma aproximação compreensiva e meditativa não pode equivaler à simples descrição dos fatos objetivos da realidade, mas, sobretudo, visa elucidar as condições de possibilidade dos fenômenos. Considerando que os fenômenos existenciais se revelam sempre articulados em uma trama significativa que lhes fornece sustentação, podemos entender que uma consideração sobre o sentido das experiências constitui caminho necessário na compreensão de quaisquer motivações atreladas ao comportamento suicida.

Dessa forma, o pensar meditativo ao qual se refere o filósofo alemão volta-se para o horizonte do encontro entre homem e ser que ficou encoberto na história da tradição filosófica ocidental e que não pode ser revelado com a ajuda de métodos objetivos. Como Daseins, resguardamos o espaço em que acontece o encontro entre nós e as coisas, entre ser e pensar, entre sentido e real. Esse âmbito é constituído pela diferença ontológica que restou esquecida no decurso da tradição metafísica e somente pode ser acessado por um pensar meditativo de caráter fenomenológico e hermenêutico que se dá em bases existenciais. Nos referimos, portanto, a um pensar que não se ocupa com representações objetivas dos fenômenos existenciais, senão que, ao invés, tenciona compreendê-los diretamente.

Considerações Finais

Considerando o esquecimento da tradição metafísica da relação entre ser e homem que fomentou a objetificação do ente na totalidade na era da técnica, meditar sobre o suicídio e sua prevenção resguarda a possibilidade de nos deslocarmos do universo objetivista e causal em direção à compreensão da existência mesma, descaracterizando, concomitantemente, qualquer compreensão da condição humana como objeto natural, efeito de uma causa ou ente simplesmente dado.

Convém ressaltar o fato de que seria um equívoco ver na filosofia heideggeriana fundamentos para uma nova teoria sobre o funcionamento humano, apostamos somente em um pensar meditativo que nos possa indicar um caminho para o acolhimento da existência sem tratá-la como objeto. Apreendidas de maneira fenomenológica e existencial, as manifestações da angústia no contemporâneo não devem ser compreendidas isoladamente, na medida em que estão sempre vinculadas àquilo que nos é posto na facticidade do mundo.

Com a meditação, nos situamos em um domínio diverso daquele em que os entes já se revelam a priori como objetos passíveis de determinação. Somos convidados, assim, a inaugurar uma outra experiência e disponibilidade de compreensão do suicídio e os meios para preveni-lo ao conquistarmos maior liberdade ante os desígnios da técnica moderna. A meditação nos convida, por fim, a exercitar um pensar que não está interessado em reconduzir o suicídio e os fenômenos em geral a seus nexos causais primários, mas pretende elaborar as condições que os tornam possíveis, reconhecendo igualmente a importância de perguntar sobre as situações existenciais em que tais comportamentos estão inelutavelmente implicados.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2021
  • Aceito
    15 Ago 2022
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