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Abordagem de Narrativas como Método de Pesquisa em Saúde Pública: Aproximações Conceituais e Contribuições da Psicanálise

Narrative Research in Public Health: Conceptual Approximations and Contributions from Psychoanalysis

Enfoque en Narrativas como Método de Investigación en Salud Pública: Aproximaciones Conceptuales y Aportaciones del Psicoanálisis

Resumo

Este artigo refere-se à parte de uma pesquisa de doutorado, realizada em hospital de alta complexidade do Sistema Único de Saúde, cujos participantes são os profissionais de saúde. O objetivo deste artigo é analisar o potencial da abordagem das narrativas como método de pesquisa e intervenção nos serviços de saúde, traçando aproximações com a teoria psicanalítica. Sua relevância no campo da Saúde Pública está calcada no reconhecimento do papel do sujeito como agente de mudanças. O texto divide-se em duas partes: na primeira, explora as especificidades do trabalho na área da saúde, o paradigma da saúde pública no que concerne à gestão e possíveis contribuições da clínica ampliada para esse modelo. Na segunda parte, analisa o uso das narrativas como método de pesquisa nesse campo e as aproximações conceituais entre a narrativa em Walter Benjamin e a psicanálise em Freud. Busca na literatura referências sobre experiências análogas que fundamentem a proposta ora realizada e conclui pela importância de, no momento atual, apostar na força germinativa das narrativas como fonte criativa de novas formas de cuidar.

Palavras-chave:
Pesquisa Narrativa; Pesquisa Qualitativa; Psicanálise; Políticas; Planejamento e Administração em Saúde; Educação Profissional em Saúde Pública

Abstract

This article derives from a PhD research conducted with health professionals at a high-complexity public hospital from the Brazilian Unified Health System (SUS). It analyzes the potential of the narrative as a research and intervention method in health services, outlining approximations with psychoanalysis. In the field of Public Health, the narrative approach acknowledges the individual as an agent of change. The text is divided into two parts. The first presents an overview of the peculiarities involved in healthcare, the Public Health paradigm regarding service management and possible contributions from the expanded clinic to this model. The second analyzes the use of narratives as a research method in this field and the conceptual approximations between Benjamin’s narrative and Freud’s psychoanalysis. It searches the literature for references on similar experiences to support the present proposal and concludes by highlighting the importance of betting on the creative power of narratives as a source for new ways to care.

Keywords:
Narrative Research; Qualitative Research; Psychoanalysis; Health Policy; Planning and Management; Education; Public Health Professional

Resumen

Este artículo es parte de una investigación doctoral, realizada con los profesionales de la salud de un hospital de alta complejidad del Sistema Único de Salud de Brasil. Su propósito es analizar el potencial del enfoque en narrativas como método de investigación e intervención en los servicios de salud, esbozando aproximaciones entre las narrativas y la teoría del psicoanálisis. Su relevancia en el campo de la salud pública se basa en el reconocimiento del rol del sujeto como agente de cambio. El texto se divide en dos partes: La primera investiga las especificidades del trabajo en el área de la salud, el paradigma de la salud pública en la gestión de los servicios y las posibles contribuciones de la clínica ampliada a este modelo. En la segunda parte, analiza el uso de narrativas como método de investigación en este campo y las aproximaciones conceptuales entre la narrativa de Walter Benjamin y el psicoanálisis de Freud. Este estudio busca en la literatura referencias sobre experiencias similares que apoyen la propuesta ahora realizada y concluye con la importancia de, en el momento actual, apostar por el poder de las narrativas como fuente creadora de nuevas formas de cuidar.

Palabras clave:
Investigación Narrativa; Investigación Cualitativa; Psicoanálisis; Políticas; Planificación y Administración en Salud; Educación en Salud Pública Profesional

Narrar é resistir.

Guimarães Rosa (2016Rosa, G. (2016). Primeiras estórias. Nova Fronteira.)

Introdução

O trabalho em saúde possui características específicas que, por si só, são capazes de afetar o profissional mesmo à sua revelia. O objetivo deste artigo, sob a forma de um ensaio teórico, é analisar o potencial da abordagem das narrativas como método de pesquisa e intervenção nos serviços de saúde, traçando aproximações com a teoria psicanalítica. Este trabalho se refere às bases teórico-conceituais que apoiaram o desenho metodológico de uma pesquisa de doutorado, cujos participantes foram os profissionais de saúde de uma unidade de alta complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Sua relevância no campo da saúde pública está calcada no reconhecimento do papel do sujeito como agente de mudanças.

Esta escolha se faz com base na perspectiva de que a narrativa é capaz de conectar as trajetórias de quem narra e de quem recebe, numa percepção de que nossas existências não são tão separadas como a atual cultura individualista pressupõe. A abordagem de narrativas em pesquisa possibilita conjugar os relatos de forma a, partindo do singular, poder compor um coletivo e assim conhecer e analisar sua história. Para além de seu interesse na dimensão psicológica, narrar em primeira pessoa fura a impessoalidade dos discursos oficiais - no avesso de uma história lisa, como nos fala Benjamin (1940/1987cBenjamin, W. (1987c). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 222-232). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940)) - e pode ser instrumento de transformação social, cultural e político-institucional.

Para melhor organização, dividimos o texto em duas partes. Na primeira, contextualizamos o trabalho na área da saúde, os tensionamentos entre o paradigma da saúde pública versus o contexto atual e possíveis contribuições da psicanálise dentro da concepção de clínica ampliada. Na segunda parte, dissertamos sobre o uso das narrativas como ferramenta de pesquisa, analisando especificamente alguns enlaces conceituais entre a obra de Walter Benjamin e a psicanálise em Freud. Por último, falamos sobre o declínio da narrativa para, no fim, tecermos considerações sobre o caminho percorrido.

As especificidades do trabalho em saúde

A rotina do trabalho em saúde produz sintomas institucionais, isto é, produz um sofrimento capaz de gerar adoecimento em seu pessoal. O contato diário com a dor, a morte e situações de extrema vulnerabilidade - que escapam à nossa capacidade de simbolizar - torna-se solo onde germina um ambiente inóspito (Onocko Campos, 2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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).

Sá et al. (2019Sá, M. C., Miranda, L., Diniz, D. S., Savi, E. S. A., Teixeira, E. S., & Fonseca, M. L. G. (2019). Oficinas clínicas do cuidado: Efeitos da narratividade sobre o trabalho em saúde. Fiocruz.) também trazem apontamentos semelhantes. Questões como: os sentimentos contraditórios, a tarefa de manipular o corpo do outro, o lidar com o sofrimento, a dor e a morte, assim como as relações - seja entre profissional- usuário, seja entre profissionais-profissional - favorecem a criação e manutenção de um pathos. De forma que tais contextos “exigem um grande esforço, em termos de trabalho psíquico, por parte do profissional da saúde, para realizar, com um mínimo de sofrimento possível, o seu trabalho” (Sá et al., 2019Sá, M. C., Miranda, L., Diniz, D. S., Savi, E. S. A., Teixeira, E. S., & Fonseca, M. L. G. (2019). Oficinas clínicas do cuidado: Efeitos da narratividade sobre o trabalho em saúde. Fiocruz., p. 18).

Uma das concepções de trabalho psíquico é a produção de processos e formações inconscientes que uma pessoa se utiliza para suportar a intensidade daquilo que a afeta, inclusive, em seu mundo do trabalho. O caminho a que cada um recorre para lidar com as exigências de sua vida psíquica está diretamente relacionado com sua própria história, assim como à interseção feita pelo cruzamento com outras histórias em sua trajetória institucional.

Disso deriva uma importante característica da área: o caráter relacional do trabalho em saúde. Independentemente das múltiplas determinações que constituem esse campo em nosso processo sócio-histórico, a prática nos serviços de saúde acontece sempre no intervalo entre dois, decorrendo da intervenção de um sujeito sobre o outro.

Desse entendimento resultam, ao menos, três consequências importantes. A primeira, é que a dimensão subjetiva desse trabalho é indissociável de seu componente técnico. A segunda, é que a dimensão subjetiva não se encontra concernida às estratégias usuais de gestão, mormente focadas nos aspectos quantitativos e mensuráveis da assistência. Por fim, a terceira consequência do reconhecimento do viés relacional é a alta exigência psíquica que essa tarefa porta em seu âmago (Sá et al., 2019Sá, M. C., Miranda, L., Diniz, D. S., Savi, E. S. A., Teixeira, E. S., & Fonseca, M. L. G. (2019). Oficinas clínicas do cuidado: Efeitos da narratividade sobre o trabalho em saúde. Fiocruz.).

Fundamental, ainda, é situar essas considerações no contexto dos serviços públicos. Pois, nestes, a demanda infindável, a escassez de recursos, a lógica burocrática e a exigência cada vez maior de produtividade são espaços dominados por um gerencialismo que dará pouco ou nenhum ensejo a espaços de troca e reflexão acerca da complexidade da prática assistencial.

Os maiores riscos envolvidos nesse quadro são o comprometimento do cuidado prestado e as consequências da sobrecarga psíquica para o trabalhador. Por outro lado, uma gestão que abra espaço para a escuta de seus profissionais e considere o pathos aí envolvido possibilitaria novos modos de trabalhar e viver. Assim, interessa-nos salientar a centralidade dos processos subjetivos na produção do cuidado e propor caminhos que atentem para esses processos na gestão dos serviços de saúde. Especificamente os situados no âmbito da saúde pública, pela abrangência e relevância nela envolvidas.

Saúde pública e paradigmas de gestão: tensionamentos atuais

Segundo Paim & Almeida Filho (1998Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32(4), 299-316. https://doi.org/10.1590/S0034-89101998000400001
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), a Saúde Pública é uma prática técnica, científica e tecnológica cujo saber não é exclusivamente vinculado ao conhecimento científico, mas atravessado por outras manifestações da sabedoria humana. Os autores apontam para um enlace conceitual no qual estão concernidas as necessidades de saúde, o sujeito e as práticas em saúde. Isto é, junto ao saber técnico, a cultura que permeia a sociedade também fundamenta esse campo. Sobretudo, eles salientam sua especificidade como sendo a de um caráter “multi/inter/transdisciplinar” (Paim & Almeida Filho, 1998Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32(4), 299-316. https://doi.org/10.1590/S0034-89101998000400001
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, p. 143).

Ao dissertarem sobre a proposição de uma nova saúde pública, Paim & Almeida Filho (1998Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32(4), 299-316. https://doi.org/10.1590/S0034-89101998000400001
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) interrogam quais seriam as características dessa inovação e, ao mesmo tempo, afirmam que pensar uma nova saúde pública requer o questionamento acerca de sua teoria e prática, sendo esta última analisada em seus aspectos político, econômico, ideológico e tecnológico. Essa nova concepção permitiu deslocar as ponderações acerca do planejamento e desenvolvimento de práticas de saúde. Ao colocar o trabalho como categoria central, forneceu diretrizes importantes para o estudo dos processos de produção e reprodução social das doenças, assim como das práticas dos serviços de saúde.

Revisitar a constituição conceitual no campo da saúde pública é relevante do ponto de vista de sua produção científica, tecnológica, epistemológica e político-cultural; posto que é um campo fértil de práticas contra-hegemônicas e aberto a novos paradigmas. A inflexão então se daria na passagem da valorização do que acontece entre os sujeitos em oposição à subjetividade de cada um, no ganho de relevância da alteridade sobre a identidade e na ênfase da valorização da prática em detrimento do controle técnico (Paim & Almeida Filho, 1998Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32(4), 299-316. https://doi.org/10.1590/S0034-89101998000400001
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).

Sá (2013Sá, M. C. (2013). Por uma abordagem clínica psicossociológica de pesquisa e intervenção em saúde coletiva. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz.) também reconhece um deslocamento do interesse da área de planejamento e gestão, com ênfase nas abordagens mais processuais e destaque para a questão do sujeito e suas interações. No entanto, a despeito de observar esse movimento, sinaliza o desafio que ainda subsiste para que, efetivamente, sejam integrados o racional e o subjetivo. Ou seja: para que se desenvolvam métodos de pesquisa e intervenção que ultrapassem as dicotomias individual/coletivo, afetivo/racional, quantitativo/qualitativo; para que, de fato, possam emergir espaços de reconhecimento de sujeitos de desejo, conforme descreveram Paim & Almeida Filho (1998Paim, J. S., & Almeida Filho, N. (1998). Saúde coletiva: uma “nova saúde pública” ou campo aberto a novos paradigmas? Revista de Saúde Pública, 32(4), 299-316. https://doi.org/10.1590/S0034-89101998000400001
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).

Dessa forma, ainda que se tenha no horizonte o projeto de uma nova Saúde Pública, ou de Saúde Coletiva, ainda permanece o descompasso entre o que se propõe e as práticas em si. Sá (2013Sá, M. C. (2013). Por uma abordagem clínica psicossociológica de pesquisa e intervenção em saúde coletiva. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz.) aponta dois fatores que obstam essa mudança.

O primeiro fator é de ordem epistemológica referente à inspiração teórico-metodológica da área, de forte viés estruturalista, cujo foco não recai sobre as singularidades. Mesmo quando posto em realce o sujeito, a concepção aí admitida restringe-se ao sujeito da consciência. De forma que as teorias mais comumente aceitas são as relacionadas à sociologia compreensiva, que se configura como hegemônica nas pesquisas em ciências sociais e humanas aplicadas à saúde.

O segundo fator remete à pressão político-institucional sofrida pelos espaços de formação. Em sua origem nacional, nos anos 1970, a saúde coletiva surgiu embasada pelas ciências sociais, em contraposição à saúde pública exercida pelo Estado; esta, calcada na ciência positivista e no modelo biomédico. Todavia, desde a década de 1990, tem-se aumentado a pressão exercida sobre os cursos de pós-graduação, submetidos a critérios de avaliação referidos às ditas ciências duras.

Se, por um lado, há um aumento considerável dos cursos no campo da saúde pública - refletindo sua maior popularização -, por outro, distancia-se cada vez mais sua práxis de seu projeto original, isto é, de uma área multi/inter/transdisciplinar. Esse caminho culmina na hipervalorização das áreas mais voltadas para as tecnociências, amparadas por condutas protocolares e pelo consequente esvaziamento da atividade reflexiva ou de discussões conceituais.

Tal tendência não se restringe ao mundo acadêmico e é contemporânea do declínio da linguagem em sua função simbólica, metafórica, restando apenas o uso instrumental e pragmático daquela. É o declínio da narrativa - como nos fala Benjamin (1933/1987aBenjamin, W. (1987a). Experiência e pobreza. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 114-119). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1933)) - ou da poiesis, como escreve Birman (2003Birman, J. (2003). Dor e sofrimento num mundo sem mediação [Apresentação de trabalho]. Estados Gerais da Psicanálise: II Encontro Mundial, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.). Esse cenário não é casual, mas coaduna-se com a lógica de uma economia neoliberal. Esta não se trata apenas de um modelo de maximização da concorrência e do dito livre comércio, mas refere-se também a uma forma de gestão social e de produção de formas de vida que acarreta uma corporeidade específica: são os corpos que “perderam a qualidade narrativa” (Safatle, 2018Safatle, V. (2018). O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2a. ed. rev). Autêntica., p. 136).

Desse modelo também decorre a necessidade da internalização psíquica de uma nova ética de trabalho. A sociedade de consumo requer a mobilização total dos desejos, uma expropriação da economia libidinal dos sujeitos, que culmina na eliminação do recalque e, em última instância, de seus conflitos; portanto, não há necessidade de buscar nada além. É a concepção do “ideal empresarial de si”: a ilusão de uma plasticidade infinita das formas de vida, na qual o risco da incerteza social é visto apenas como covardia moral. Representa também a busca por uma “racionalização do desejo”, traduzida em vigilância e autocontrole constantes. Enfim, um modo de governabilidade neoliberal enraizado psiquicamente, com repercussões em todas as esferas da vida humana (Safatle, 2018Safatle, V. (2018). O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2a. ed. rev). Autêntica.).

O esvaziamento da atitude reflexiva anteriormente mencionado configura, inclusive, uma função da política adotada, que repercute na relação dos sujeitos com a temporalidade. Pois para que exista o tempo, não basta que fatos se desencadeiem em uma sequência cronológica, conforme discutiremos no tópico sobre a temporalidade em Benjamin. É necessário, como lembra Safatle (2018Safatle, V. (2018). O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (2a. ed. rev). Autêntica.), que haja também uma compreensão do modo estrutural das relações.

Dessa maneira, enxergamos o contexto atual como bastante adverso a uma proposta que inclui a necessidade do tempo como ensejo à construção de sentidos e que, concomitantemente, reconhece o imponderável como inerente aos processos psíquicos e institucionais - fruto de uma epistemologia que confere ao inconsciente um papel na produção de conhecimento. Todavia, justamente por essas características, acreditamos ser este o momento certo para a subversão da lógica dominante e aposta na abordagem das narrativas como método de pesquisa e intervenção em saúde.

Saúde coletiva e psicanálise: contribuições da clínica ampliada

Onocko Campos (2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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) propõe a aproximação entre conceitos da psicanálise e da psicopatologia institucional ao estudo da gestão em saúde, reconhecendo, porém, que tais contribuições tiveram pouca entrada no campo da saúde pública. A autora cogita se isso se deve ao fato de o referencial teórico utilizado não pertencer ao rol das disciplinas que são comumente estudadas pelos sanitaristas; mas, ainda sim, enxerga potencial nessas áreas para que se pense as relações entre as pessoas e as instituições.

Seguindo a linha proposta acima e remetendo-nos à psicopatologia institucional, encontramos em Oury (1991Oury, J. (1991). Itinerários de formação. Revue Pratique, 1, 42-50.) um referencial importante sobre as relações que se estabelecem, ao lembrar que os trabalhadores de uma instituição não são “abstrações”. Isso significa dizer que sua presença, seu estilo, a forma como cada profissional se coloca diante da organização possui um impacto que ultrapassa a mera atuação técnica. O autor fala sobre a sensibilização necessária para que cada trabalhador tenha abertura para mostrar o que pode fazer e que tal sensibilização também faz parte da formação.

Para que a sensibilização ocorra, é preciso que, numa instituição, cada um possa levar em conta o outro. A abertura incluirá, consequentemente, as diferenças e falhas inerentes à convivência humana e, justamente por isso, torna o espaço institucional propício para que relações possam ser criadas, seja entre os profissionais, seja entre profissional e usuário. Trata-se, ainda, de levar em consideração a trajetória de cada um, sua história, e que, por fim, as histórias possam se integrar.

Ao longo de sua trajetória, Onocko Campos (2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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) defende a ideia de que a gestão exerça também essa função, ou seja, que se constitua como um espaço e tempo em que decisões possam ser tomadas de forma coletiva e, como consequência, as situações institucionais possam ser analisadas com maior implicação de seu pessoal quanto ao que se produz. Produção aqui entendida não como apenas números, mas também referente às relações que ali são produzidas.

Para isso, é necessário que se atente “para o caráter de recalcado da categoria clínica, ... atentos àquilo que não se fala” (Onocko Campos, 2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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, p. 578). A tenência é condição precípua para que não se negligencie importantes aspectos da clínica que se faz nos equipamentos de saúde. Isso requer uma sólida fundamentação teórica, mas não se basta, posto que, novamente, reiteramos que não se trata somente da dimensão técnica. Existe uma dimensão do lidar com o sofrimento que exige do trabalhador aquilo que Oury (1991Oury, J. (1991). Itinerários de formação. Revue Pratique, 1, 42-50.) chama de “estar advertido”; isto é, uma formação que module a atenção para que esta tenha a capacidade de distinguir dentre a polifonia dos discursos, de reconhecer a qualidade dos contextos.

Para Onocko Campos (2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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), a formação é central, pois interferirá na capacidade de o trabalhador resistir e tolerar as diferentes facetas de dor e sofrimento com que se deparará em sua prática, amplificando sua vulnerabilidade diante das duras demandas com que se defrontará no exercício da profissão.

Dessa forma, uma clínica ampliada traz como consequência não apenas um aprimoramento da técnica - que beneficia diretamente o usuário - como também a atenção ao bem-estar do trabalhador, posto que isso colabora para minorar seu sofrimento diante de questões graves. Concomitantemente, a autora defende a indissociabilidade entre clínica e formas de organização do trabalho, incluindo sua gestão. De forma que a gestão “estará sempre entrelaçada às questões subjetivas” (Onocko Campos, 2005Onocko Campos, R. (2005). O encontro trabalhador-usuário na atenção à saúde: uma contribuição da narrativa psicanalítica ao tema do sujeito na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(3), 573-583. https://dx.doi.org/10.1590/S1413-81232005000300015
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, p. 579).

Essa compreensão é fundamental para a discussão neste artigo. Defendemos que a abordagem de narrativas - incluindo o recurso às artes, na forma de diferentes expressões artísticas - é capaz de favorecer a elaboração das diversas experiências atravessadas pelas equipes de saúde. De modo que tal elaboração ajude a proporcionar não apenas significados, mas também sentido (direção) para suas práticas cotidianas.

Buscamos, então, fomentar a utilização de um instrumental teórico-metodológico que favoreça o desenvolvimento, nos serviços de saúde, de espaços de troca e “elaboração das questões afetivas e relacionais vivenciadas nos processos clínico-assistenciais e na dinâmica organizacional mais ampla dos serviços, contribuindo para a busca de saídas para os problemas enfrentados” (Sá et al., 2019Sá, M. C., Miranda, L., Diniz, D. S., Savi, E. S. A., Teixeira, E. S., & Fonseca, M. L. G. (2019). Oficinas clínicas do cuidado: Efeitos da narratividade sobre o trabalho em saúde. Fiocruz., p. 19).

Abordagem de narrativas e a pesquisa em saúde

A abordagem das narrativas é uma modalidade de pesquisa qualitativa que tem por base relatos, histórias de vida e histórias profissionais; e é proposta aqui como um método de pesquisa na área da saúde. A relevância dessa abordagem deriva da assunção que a história de um coletivo - social, institucional - só adquire consistência por ter sido vivenciada por sujeitos ao longo de suas trajetórias. As singularidades de um grupo podem ser apreendidas nos meandros em que se articulam, por meio do tempo, as relações entre sujeito e coletividade (Azevedo, 2013Azevedo, C. S. (2013). A abordagem de narrativas de vida como um caminho de pesquisa em saúde. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz.).

Um exemplo é o livro Reinventando a vida: narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental (Vasconcelos et al., 2014Vasconcelos, E. M., Leme, C. C. C. P., Weingarten, R., & Novaes, P. R. (2014). Reinventando a vida: Narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental. Hucitec.), no qual é apresentada uma série de narrativas elaboradas por pacientes com sofrimentos psíquicos diversos. No prefácio, Vasconcelos fala sobre o objetivo do livro: a vulnerabilidade comum a todos nós, mas que, pela forma de manifestação em algumas pessoas, acarreta mais peso e sofrimento às suas vidas. O que queremos reiterar a partir dessa referência é a força que a narrativa contém, em gérmen, de produzir uma tessitura entre fios de diferentes existências, compondo assim a noção de coletivo.

No campo da saúde pública, esse método ganhou mais espaço a partir dos anos 1970, como resultado de um rompimento com a hegemonia das análises estruturalistas que debatiam os processos de mudanças sociais. Esse movimento dizia respeito a um “‘retorno do ator’ e, portanto, ao reconhecimento do papel do sujeito como agente de mudanças.... A questão epistemológica passou a se referir ao estatuto teórico concedido ao sujeito e à subjetividade no trabalho da pesquisa científica” (Azevedo, 2013Azevedo, C. S. (2013). A abordagem de narrativas de vida como um caminho de pesquisa em saúde. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz., p. 132).

No campo internacional, uma tendência que se destaca no estudo e intervenção nos processos de cuidado em saúde com base na abordagem de narrativas é a denominada Medicina Narrativa, fazendo um contraponto à chamada medicina baseada em evidências (Fernandes, 2015Fernandes, I. (2015). Leituras holísticas: de Tchékhov à Medicina Narrativa. Interface (Botucatu), 19(52), 71-82.).

No âmbito nacional, Onocko Campos & Furtado (2008Onocko Campos, R. T., & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1090-1096. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052
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) têm construído uma trajetória de pesquisa e intervenção com essa abordagem, trazendo importante revisão sobre o tema, na qual sinalizam que, dentro da área de Políticas, Planejamento e Gestão, subjaz a “motivação ético-política de produzir sínteses que possam ser utilizadas para formular recomendações para o SUS” (Onocko Campos & Furtado, 2008Onocko Campos, R. T., & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1090-1096. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052
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, p. 2). Refletindo a complexidade da pesquisa qualitativa, a abordagem contempla estudos a partir de variados referenciais teóricos. No entanto, ainda que a partir da polifonia observada, certos aspectos permanecem comuns em seu uso na pesquisa. Elencaremos a seguir alguns desses pontos.

O primeiro se refere ao caráter essencialmente subjetivo da história e de sua narrativa, assim como da história da pesquisa que motiva o encontro entrevistado/entrevistador. Por essa perspectiva, não existe oposição entre história vivida e história contada, ou entre fatos objetivos e a maneira como são interpretados, seja no momento, seja posteriormente.

Numa articulação com o conceito de memória, pode se compreender a narrativa como um ato de reviver, refazer e reconstruir. Uma interpretação feita, às vezes, a posteriori, resultado do trabalho do narrador e que ajuda a compor os fatos da história. Outra consequência dessa relação (entre história e memória), para a pesquisa com base em depoimentos, é que ela consegue expressar os encaminhamentos distintos que uma vivência tem para cada sujeito, ainda que tenha sido uma vivência coletiva (Azevedo, 2013Azevedo, C. S. (2013). A abordagem de narrativas de vida como um caminho de pesquisa em saúde. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz.).

Isso, porém, não significa apelarmos ao relativismo generalizado, reduzindo a uma atividade exclusiva do narrador. Porque o que se reivindica - narrar o passado - escapa a uma tentativa de apropriação unívoca e dominante, que se extinguirá tão logo o presente também se torne passado. E a cada presente muda-se a memória do passado, mesmo se houver o esforço de recontar seguindo o estabelecimento de uma ideia dominante. Devemos realçar, então, o caráter sobretudo ético e político da construção do passado, preocupação que ganha mais ênfase após a Segunda Guerra Mundial, diante de algumas tentativas de negação do holocausto (Gagnebin, 2008).

Onocko Campos & Furtado (2008Onocko Campos, R. T., & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1090-1096. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052
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) também apontam que um traço indissolúvel da ação é que ela nunca pode ser eticamente neutra. Por conseguinte, aqueles que agem, ou seja, os agentes, são pessoas dotadas de qualidades éticas e suscitam, por meio de seus atos, a aprovação ou reprovação. E as narrativas - como mediação entre ação e linguagem - trazem consigo a marca desse posicionamento ético.

Um ponto relevante é que se reitera o papel do entrevistador como coautor do que se produz. Por essa perspectiva, reconhecemos no ato narrativo uma “simultaneidade entre a construção narrativa e seu encaminhamento ao outro... Portanto, em um contexto ‘entre-dois’, finalmente culminando numa polissemia que resiste à totalização” (Azevedo, 2013Azevedo, C. S. (2013). A abordagem de narrativas de vida como um caminho de pesquisa em saúde. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz., p. 139). Seguindo a mesma lógica, não se deve considerar os relatos como dados prontos, aptos a serem apenas colhidos. Torna-se imprescindível um olhar que articule as falas, transformando-as em narrativas (Onocko Campos & Furtado, 2008Onocko Campos, R. T., & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1090-1096. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052
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).

Outra característica importante na construção da narrativa é a busca permanente do equilíbrio entre o respeito ao estilo de quem conta e o cuidado de tornar a transmissão o mais acessível possível para quem a receberá. Essa não é uma tarefa fácil e o recurso às artes pode auxiliar o pesquisador nesse burilamento. Uma dificuldade desse aspecto se refere aos componentes éticos e legais, dado que os relatos incluem citações que podem trazer implicações até mesmo jurídicas para os autores. Assim, a manutenção do anonimato pode ser fundamental em alguns casos (Vasconcelos et al., 2014Vasconcelos, E. M., Leme, C. C. C. P., Weingarten, R., & Novaes, P. R. (2014). Reinventando a vida: Narrativas de recuperação e convivência com o transtorno mental. Hucitec.).

No campo da história, o uso das narrativas permite que se analisem as múltiplas vozes concernidas num acontecimento, a heteroglosia. Esse aspecto é interessante para a pesquisa e intervenção na saúde pública, pois permite traçar uma relação entre os eventos ocorridos nos serviços e suas estruturas, evitando assim contrapor micro e macropolítica (Onocko Campos & Furtado, 2008Onocko Campos, R. T., & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6), 1090-1096. https://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102008005000052
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).

Já na área da etnossociologia, a abordagem é empregada como um modo de remontar do particular ao geral, por meio dos casos estudados. Compreende-se que, se a sociedade como um todo pode ser considerada um macrocosmo, os diferentes mundos sociais que a constituem representam mesocosmos, que se abrem nos microcosmos que os constituem (Azevedo, 2013Azevedo, C. S. (2013). A abordagem de narrativas de vida como um caminho de pesquisa em saúde. In C. S. Azevedo & M. C. Sá (Orgs.), Subjetividade, gestão e cuidado em saúde: abordagens da psicossociologia. Fiocruz.). Mesmo que a linha teórica ora adotada seja a psicanálise, pensamos que essa analogia de superfície, de mediação, é uma boa representação da metodologia aplicada.

Por fim, os conceitos psicanalíticos de transferência e de escuta permitem ao pesquisador estar atento aos processos inconscientes que emergem. Principalmente, atentar que é em função daquilo que o afeta como entrevistador, considerando sua implicação nisso, que se criam direções para aquilo que é narrado.

Psicanálise e narrativa: aproximações conceituais

Considerando que ao tomarmos um tema como objeto de análise acabamos por transformá-lo em produto dos discursos que se fazem acerca dele, pensamos que a narração é o acesso privilegiado a uma subjetividade. Por essa razão e seguindo a rota aberta por outros autores, propomos um estudo teórico que analise alguns conceitos de Walter Benjamin, traçando aproximações entre a narrativa tradicional e a psicanálise freudiana. Dos autores que anteriormente estudaram o tema, citaremos aqui Werner, Rouanet e Gagnebin.

Iniciaremos com Werner (2015Werner, N. (2015). Archaologie des Erinnerns: Sigmund Freud in Walter Benjamins Berliner Kindheit. Wallstein Verlag.), cujo livro mostra o quanto Benjamin se interessou por Freud, em particular, por sua teoria da memória. Alguns exemplos que ilustram sua pesquisa são: a citação da função essencial da teoria do trauma e da memória nos textos sobre Baudelaire, diversas alusões à Interpretação dos sonhos no Trabalho das Passagens e no ensaio sobre Eduard Fuchs, a menção à Psicopatologia da vida cotidiana no ensaio sobre A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, a evocação ao caso Schreber na resenha Livros de doentes mentais e, finalmente, a reflexão sobre as lembranças encobridoras e sobre o fenômeno do a posteriori no texto Notícia de uma morte. Além dessas menções, Benjamin fala de sua admiração por Freud em inúmeras cartas a Scholem ou a Gretel Adorno.

Rouanet (1981Rouanet, S. P. (1981). O Édipo e o anjo: Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Tempo Brasileiro.) também traz em seu livro ideias que aproximam Benjamin e Freud. O autor escreve que, do fluxo daquilo que é falado, o analista recolhe fragmentos que transforma em indícios, fragmentos, anteriormente negligenciados e descartados. Tal como um cineasta e sua câmera, o analista conjuga a capacidade de atentar para o imediatamente visível, sem deixar o olhar esgotar nisso.

Para Freud, os indícios são conteúdos que só possuem relevância quando remetidos a uma história que precisa ser contada, para que se desvelem suas possíveis interpretações. Em Benjamin, o fundamento principal de seu pensamento é uma concepção de história que, ao ser contada apenas como uma sucessão de fatos, será sempre a dos vencedores. O autor propõe uma história que não é linear, que comporta rupturas e cuja origem dos fatos não é um marco temporal, mas uma aposta, que poderá germinar a posteriori (Rouanet,1981Rouanet, S. P. (1981). O Édipo e o anjo: Itinerários freudianos em Walter Benjamin. Tempo Brasileiro.).

Gagnebin (2013Gagnebin, J. M. (2013). História e narração em Walter Benjamin. Perspectiva.) também encontrará em ambos os autores relevantes enlaces teóricos. A autora considera a narração como início de um processo de cura, que teria a força de romper com o que, tal como uma barragem, resiste ao fluxo narrativo. Movimento este portador de um cunho ético e político, ao invés de se circunscrever ao registro meramente científico (Gagnebin, 2013Gagnebin, J. M. (2013). História e narração em Walter Benjamin. Perspectiva., p. 110).

Partindo dessas considerações, traçamos algumas interseções entre conceitos elaborados por Benjamin e Freud, passíveis de serem trabalhados na abordagem de narrativas. Ressaltamos que as divisões ora realizadas visam apenas a uma melhor apresentação didática do texto, isto é, as fronteiras entre os conceitos não são tão claramente demarcadas assim.

Narrativa e escansão

Benjamin (1933/1987aBenjamin, W. (1987a). Experiência e pobreza. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 114-119). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1933)) inicia sua definição de narrativa como um conhecimento que é transmitido de geração para geração, como uma joia de família. Conhecimento fruto de uma experiência que não é exclusiva de quem conta, mas resultado de outras experiências incorporadas à sua. A forma como se dá essa transmissão pode variar, desde a síntese inerente a um velho provérbio à loquacidade de uma história contada de pais para filhos. O cerne da questão está em um saber que deriva de algo vivido e que, ao ser compartilhado, pode produzir um efeito naquele que o recebe. Quem escuta está em companhia daquele que narra.

A narrativa, segundo o autor, seria um amálgama entre o saber que vem de longe, como um estrangeiro, e o saber que deriva da tradição sedimentada ao longo do tempo. Ela se constitui de uma dimensão utilitária: o narrador é alguém que sabe dar conselhos; não como aquele a que tudo responde, mas cuja sugestão permite o prosseguimento da história.

Para Benjamin (1940/1987cBenjamin, W. (1987c). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 222-232). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940)), a história é narrada pelos vencedores. Afirma que nunca houve uma cultura isenta de barbárie, nem tampouco seu processo de transmissão. Ele propõe um conceito de história que possa abarcar a verdade dos vencidos, dos oprimidos. E já no século XX criticava o assombro referente aos episódios de dominação fascista, quando os críticos perguntavam como ainda seria possível tais fatos, pois tal assombro se baseava numa concepção de história insustentável para ele. Sua indicação é de uma narração que não seja um continuum, mas com saltos, interrupção e descontinuidade. Um exemplo é observável no contexto político do ensaio Sobre o conceito de história, em que reitera-se a relação entre interrupção e revolução.

Na concepção benjaminiana, o que a história “lisa e sem aspereza” intenciona é apagar os buracos que são brechas possíveis no continuum da dominação. “As fraturas que escandem a narração” são também sinais de uma falha mais fundamental, na qual pode (ou não) advir outras histórias, outras verdades. A tarefa do historiador é a produção de rupturas eficazes. Não se trata de o historiador apresentar uma outra versão a ser adotada, mas provocar um impacto que afete o desenvolvimento artificial da narrativa (Gagnebin, 2013Gagnebin, J. M. (2013). História e narração em Walter Benjamin. Perspectiva., p. 103).

Essa também é a tarefa do analista. Instado por seus pacientes a deixá-los falar, Freud (1900/1996bFreud, S. (1996b). Interpretação dos sonhos II. In Obras completas de Sigmund Freud. (pp. 683-687). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1900)) defronta-se com algo inesperado. Acompanhando a cadeia associativa dos pacientes, depara-se com esquecimentos e lapsos que aqueles buscavam disfarçar, apelando para remendos de linguagem ou justificativas inconsistentes; sendo justamente nesses pontos que algo do sujeito era passível de emergir. A constatação vai se evidenciando ao longo do trabalho psicanalítico, até que Freud (1915/1996) escreverá que os atos falhos, os sonhos, os esquecimentos e os sintomas, isto é, tudo o que claudica no consciente, constituía a via privilegiada de acesso ao inconsciente e, portanto, ao sujeito. E é nesse ponto em que a narrativa exige uma demarcação do analista, que traçamos um paralelo com a ruptura histórica de Benjamin: ambas se relacionam à uma escansão, à necessidade de uma determinada pontuação, para que se propicie uma mudança de posição.

A memória se torna um elemento fundamental do método psicanalítico, porém não em sua concepção positivista. Isto é, ela não será utilizada como um aparato para comprovação dos fatos, mas seu próprio trabalho de reconstrução daqueles será utilizado pelo analista. Ao longo das obras de Benjamin e de Freud, podemos observar que o trabalho em torno da memória não se refere à busca de uma visão única de passado, mas algo que se abre à própria dispersão do esquecimento e que é atravessado pela alteridade.

A memória e a verdade

No texto Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin (1989Benjamin, W. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. (pp. 103-149). Brasiliense.) assinala a diferença entre vivência, restrita a uma percepção momentânea, e experiência, aquilo que deixa rastros mnêmicos. Ele já apontava que a perda da memória coletiva é marca de uma sociedade sob a égide do capitalismo, implicando em um ser humano privado de história e incapaz de participar de uma tradição.

Para o autor, “a experiência é matéria de tradição.... Forma-se menos com dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com frequência inconscientes, que afluem à memória” (Benjamin, 1989Benjamin, W. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. (pp. 103-149). Brasiliense., p. 105). Quando há, efetivamente, o registro da experiência, conjugam-se na memória conteúdos do passado pessoal e coletivo, de forma que estes se fundem.

Benjamin (1989Benjamin, W. (1989). Sobre alguns temas em Baudelaire. In Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. (pp. 103-149). Brasiliense.) faz inúmeras referências a Freud e sua teoria do trauma, sinalizando o papel da consciência para elaboração do choque. Todavia, interessa-nos abordar a função da memória na teoria psicanalítica também em duas outras dimensões: na constituição do sujeito e em sua relação com a verdade.

Começando pela dimensão constituinte, Freud (1923/1996eFreud, S. (1996e). O ego e o id. In Obras completas de Sigmund Freud (pp. 33-40). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1923).), ao discorrer sobre a constituição do aparelho psíquico, já considerava a influência das experiências passadas sobre a trajetória de cada pessoa. Ele escreve que se as experiências do eu parecem perdidas a princípio, quando elas se repetem com frequência, em muitas pessoas e por sucessivas gerações, elas se transformam em conteúdo inconsciente, passível de ser herdado (Freud, 1923/1996eFreud, S. (1996e). O ego e o id. In Obras completas de Sigmund Freud (pp. 33-40). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1923)., p. 51). Portanto, a alteridade é reconhecida e desempenha importante papel na psicanálise, fazendo ruir a noção de uma teoria que desconsideraria a função do social.

E a outra dimensão que queremos abordar é da relação entre a memória e a verdade. Se no início de seu trabalho Freud buscava por lembranças que revelassem a etiologia dos sofrimentos atuais de seus pacientes, com o desenvolvimento da técnica analítica ele descobriu que a realidade psíquica deveria ser tão considerada quanto a realidade prática (Freud, 1914/1996dFreud, S. (1996d). A história do movimento psicanalítico. In Obras completas de Sigmund Freud (pp. 18-73). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1914)). Como escreveu em uma de suas cartas a Fliess: “no inconsciente, não há indicações da realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a ficção que é catexizada com o afeto” (Freud, 1897/1996aFreud, S. (1996a). Carta 69. In Obras completas de Sigmund Freud (pp. 309-311). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1897), p. 310).

Assim, o investimento libidinal realizado dirá mais sobre a realidade psíquica do que a busca pelo fato em si. Gagnebin (2013Gagnebin, J. M. (2013). História e narração em Walter Benjamin. Perspectiva.) enxerga semelhança entre a verdade para a psicanálise e para a narrativa benjaminiana pois, segundo a autora, para Benjamin, aquilo que escapa à facilidade de uma classificação óbvia é que pode ser indício de uma verdade.

Ricouer (2011Ricœur, P. (2011). Vivo até à morte seguido de fragmentos. Edições 70.), cuja obra é referência na abordagem das narrativas, faz uma analogia entre o trabalho de memória e a teoria freudiana de elaboração do luto. Gagnebin (2019Gagnebin, J. M. (2019). Les empêchements de la mémoire. Études Ricœuriennes/Ricœur Studies, 10(1), 43-57. https://dx.doi.org/10.5195/errs.2019.454
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) ressalta que o autor também insiste na mediação narrativa para passar do esquecimento que não quer saber a uma palavra que busca a verdade. Para Ricoeur, a noção freudiana de trauma e de elaboração do luto é um paradigma adequado a uma narrativa histórica justa, no que tange à afirmativa freudiana de que a tentativa de negar um acontecimento é uma das causas das patologias da memória. A ligação entre sofrimentos do passado e do presente sobrecarrega a atividade da memória com uma tarefa que proíbe defini-la como figura ideal de objetividade, figura que a ciência atual almejaria. O lado emocional da memória não se esgota em um subjetivismo exigente, mas enfatiza o elo da vida que une o presente ao passado.

Do mesmo modo, o trabalho analítico refere-se a uma construção, a percorrer os rastros deixados por um evento o qual, ainda que finalizado, permanece reverberando em quem o sofre. O rastreio precisa ser construído e esta é a tarefa do analista. É conhecida a analogia de Freud entre o trabalho do psicanalista e do arqueólogo, ambos reconstituem uma história a partir dos restos encontrados. E é sobre esse método que falaremos no próximo tópico.

A história contada pela caça

O historiador italiano Carlo Ginzburg (1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). Companhia das Letras.) fala sobre a emergência, no final do século XIX, de um novo modelo epistemológico nas ciências humanas. Para descrevê-lo, ele começa contando a história sobre o surgimento, entre 1874 e 1876, de estudos sobre a pintura italiana que obtiveram grande repercussão, sendo inicialmente assinados e traduzidos por dois desconhecidos - respectivamente, Ivan Lermolieff e Johannes Schwarze. Posteriormente, os dois foram identificados como uma única pessoa, cujo nome verdadeiro era Giovanni Morelli.

O método morelliano é comentado até hoje dentre os estudiosos de arte. A partir da observação de quantidade significativa de quadros em museus, cujos autores eram erroneamente reconhecidos, ele propunha uma nova forma de verificar as autorias. Segundo ele, era necessário não apenas se deter nas características mais referidas ao estilo de cada pintor, pois estas eram mais facilmente falseadas. Ao contrário: era fundamental atentar para os detalhes comumente desconsiderados. Morelli catalogava a forma de pintar as unhas, os lóbulos da orelha, fazendo um inventário. E por meio desse método designou diversas obras em museus a autores que se supunha ser de outra autoria. Morelli tinha um aforismo: “a personalidade deve ser procurada onde o esforço pessoal é menos intenso”, e sobre este é possível fazer uma relação com a psicanálise.

O próprio Freud (1914/1996cFreud, S. (1996c). O Moisés de Michelangelo. In Obras completas de Sigmund Freud. (pp. 213-239). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1914)) é quem aponta para essa relação. No texto O Moisés de Michelangelo, ele cita Morelli e faz uma analogia ente a psicanálise e o método morelliano, em que caracteres secundários e tidos como insignificantes eram privilegiados em detrimentos dos mais comumente reconhecidos. Ele diz: “Parece-me que seu método de investigação tem estreita relação com a técnica da psicanálise que também está acostumada a adivinhar coisas secretas e ocultas a partir de aspectos menosprezados... de nossas observações” (Freud, 1914/1996cFreud, S. (1996c). O Moisés de Michelangelo. In Obras completas de Sigmund Freud. (pp. 213-239). Imago. (Trabalho originalmente publicado em 1914), p. 228). Ao escrever isso, Freud afirma que ouviu falar sobre Morelli muito antes de criar o método psicanalítico e é relevante considerar a influência do método morelliano na construção da psicanálise, sendo interessante notar a identificação da íntima expressão artística com o que está fora do controle da consciência.

Ginzburg (1989Ginzburg, C. (1989). Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história (pp. 143-179). Companhia das Letras.), dissertando sobre o método indiciário - identificado em Freud e Morelli, mas também em autores de romance policial - escreve sobre o saber venatório. Este se caracteriza por um conhecimento que, a partir de dados marginais, remonta a uma realidade complexa e não imediatamente experienciável, disposta pelo observador de forma a criar uma sequência narrativa. O autor afirma que o caçador teria sido o primeiro a contar uma história, ao reconstruir eventos a partir das pistas deixadas pela caça.

Reencontramo-nos então, novamente, entre a psicanálise e a narrativa. Lembrando, porém, que essa reconstrução não se trata de uma leitura única e nem mera retrospectiva, pois o tempo aqui não se reduz a uma linearidade.

A subversão do tempo

Benjamin (1940/1987cBenjamin, W. (1987c). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 222-232). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940)) critica a noção de história como uma simples sequência de acontecimentos que se sucedessem naturalmente, frutos de uma marcha no interior de um tempo “vazio e homogêneo”. Ao contrário, sua construção conceitual se coadunaria mais com “um tempo saturado de agoras” (1940/1987cBenjamin, W. (1987c). Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 222-232). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1940), p. 229) pois, para ele, a história se dará antes pela conjunção realizada pelos eventos do que por uma sequência linear e cronológica.

Veremos então que, para o autor, origem é uma categoria histórica. O que se desenrola a partir dela é que lhe confere realização, num movimento em duas direções: como restauração e reprodução e, concomitantemente, como incompleto e inacabado. De maneira que abertura e desenvolvimento são premissas dessa noção, ainda que não garantidas por ela. Além disso, a origem não está apartada dos fatos, mas se atualiza com a história destes - a pregressa e a que vem depois (Benjamin, 1984Benjamin, W. (1984). Questões introdutórias de crítica do conhecimento. In Origem do drama barroco alemão. (pp. 67-68). Brasiliense.).

O conceito deve considerar uma temporalidade que não é de uma causalidade linear e nem exterior ao evento. Isto é, o tempo participa da causa, da origem. A relação de origem com o tempo é uma relação do tempo como concernido ao objeto e não uma extensão do objeto no tempo. O tempo é constituinte do objeto, sua relação com os eventos não é meramente aditiva (Gagnebin, 1994Gagnebin, J. M. (1994). Histoire, mémoire et oubli chez Walter Benjamin. Revue de Métaphysique et de Morale, 99(3), 365-389., 1998Gagnebin, J. M. (1998) La vérité du passé. Autres Temps. Cahiers d’éthique sociale et politique, (58), 49-56., 2013Gagnebin, J. M. (2013). História e narração em Walter Benjamin. Perspectiva.; Werner, 2015Werner, N. (2015). Archaologie des Erinnerns: Sigmund Freud in Walter Benjamins Berliner Kindheit. Wallstein Verlag.).

Discutindo o método de pesquisa em psicanálise em contraposição ao método positivista, David (2007David, H. (2007) Fiction et vérité de la recherche em psychanalyse. Canadian Jornal of Psychoanalysis, 15(1), 147-155.) observa que, no modelo empírico, fenômenos, métodos e teorias são compatíveis com a ideia de continuidade entre causa e efeito - o que não ocorre dentro do referencial psicanalítico. Portanto, há questões epistemológicas da psicanálise incompatíveis com os critérios atualmente considerados como imprescindíveis nas pesquisas empíricas. Encontramos também em Werner (2015Werner, N. (2015). Archaologie des Erinnerns: Sigmund Freud in Walter Benjamins Berliner Kindheit. Wallstein Verlag.) e em Gagnebin (1998Gagnebin, J. M. (1998) La vérité du passé. Autres Temps. Cahiers d’éthique sociale et politique, (58), 49-56.) apontamentos que sinalizam o trabalho de construção da memória presente em Benjamin e Freud, em oposição a um paradigma que considere a memória apenas como um reservatório de dados.

Desse modo, reencontrar o passado é, assim, uma forma de transformar o presente, o que nos conduz à noção psicanalítica do a posteriori. Esse não é um constructo original da psicanálise, o historiador já o traz. O que há de inaudito é a concepção de golpe em dois tempos. Assim, é preciso que haja uma ideia incidente - por parte de quem fala - que seja devidamente pontuada pelo analista em sua associação com o recalcamento de um evento, para que ocorra o segundo momento, esse golpe do a posteriori. O segundo golpe permite não apenas uma significação, mas, principalmente, uma nova abertura de sentido, de direção, para o que foi narrado (André, 2013André, J. (2013). O a posteriori transferencial dos traumas do início da vida. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 16(spe), 127-140. https://doi.org/10.1590/S1516-14982013000300009
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; Werner, 2015Werner, N. (2015). Archaologie des Erinnerns: Sigmund Freud in Walter Benjamins Berliner Kindheit. Wallstein Verlag.).

Portanto, para a psicanálise, o tempo não se relaciona com os eventos significativos apenas de uma maneira cronológica, mas, primordialmente, como atualização e potencial ressignificação da posição do sujeito na história. Para isso, no entanto, é preciso que se narre o que se vive. E é justamente o perecer dessa atividade que testemunhamos nos dias que correm.

Como canta Chico Buarque: a dor da gente não sai no jornal

Benjamin (1933/1987aBenjamin, W. (1987a). Experiência e pobreza. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 114-119). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1933)) aponta o desaparecimento da narrativa como forma de transmissão, atribuindo isso ao final da Primeira Guerra, quando os soldados voltavam dos campos de batalha mais pobres em experiências comunicáveis. Ele afirma que os homens não aspiravam mais a ter novas experiências; ao contrário, eles as empenhavam em troca de receberem apenas o que é atual.

Além disso, discorre sobre o crescente desinteresse pelo conhecimento que pudesse vir de longe, sendo gradualmente substituído pela informação: algo que aspira a uma verificação imediata e que é compreensível apenas por si mesmo, ainda que sua veracidade seja tão ou mais questionável quanto os relatos antigos. A difusão da informação, apoiada pela imprensa a partir do capitalismo e caracterizada pela incapacidade de deixar rastros a serem compartilhados com outros, seria um dos principais responsáveis pelo declínio da narrativa. Os acontecimentos informados são isolados e não se incorporam à experiência do leitor, de forma que aquilo que afeta a terceiros não parece capaz de nos acometer.

Birman (2003Birman, J. (2003). Dor e sofrimento num mundo sem mediação [Apresentação de trabalho]. Estados Gerais da Psicanálise: II Encontro Mundial, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.) também discorrerá sobre o perecimento do registro metafórico da linguagem, devido ao seu uso majoritariamente informacional. A linguagem se evidencia em seu aspecto pragmático, perdendo sua dimensão de poiesis, de criação. Os efeitos dessa inibição se desdobram e repercutem, por fim, na capacidade humana de pensar. Mais ainda: posto que a linguagem já não cumpre seu papel mediador dentre os acontecimentos humanos, a violência ganha força como resposta imediata, na medida em que o simbólico não consegue mais regular os impulsos.

A diferença entre informar e narrar é essencial: a narrativa possui, em seu âmago, a característica fundamental de manter a história em aberto, evitando explicações. Benjamin (1936/1987bBenjamin, W. (1987b). O narrador. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (3a ed., pp. 197-221). Brasiliense. (Trabalho original publicado em 1936)) a compara às sementes de trigo, que guardam em si o potencial germinativo por muitos anos. Por outro lado, a retórica da técnica encerra-se em si mesma e já não consegue fazer um apelo ao outro. Birman (2003Birman, J. (2003). Dor e sofrimento num mundo sem mediação [Apresentação de trabalho]. Estados Gerais da Psicanálise: II Encontro Mundial, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.) aponta a redução do corpo a instrumento e a medicalização deste como alguns dos efeitos mais palpáveis dos discursos reducionistas sobre o que significa saúde e vida humana nos dias atuais.

Se consideramos difícil não sermos capturados por uma visão exclusivamente objetificante e empobrecedora do que é a verdade, é porque ratificamos acriticamente uma certa concepção de verdade, submetida ao critério positivista de verificação empírica. É possível defender uma referência, um conceito de verdade calcado no enraizamento e pertencimento que antecede a relação do sujeito com os objetos; o que pode ser um caminho alternativo tanto ao positivismo dogmático quanto ao relativismo pós-moderno (Gagnebin, 1998Gagnebin, J. M. (1998) La vérité du passé. Autres Temps. Cahiers d’éthique sociale et politique, (58), 49-56.).

Considerações finais

O propósito deste artigo foi explorar e avançar no estudo de um método que já vem sendo utilizado há pelo menos duas décadas com diversas perspectivas teóricas; mas que ainda não obteve o devido reconhecimento no que tange à leitura psicanalítica das narrativas na pesquisa em Saúde Coletiva. A revisão de literatura foi realizada concomitante a um olhar que buscou ampliar o que já se produzira; ampliando, consequentemente, o potencial desse referencial teórico para a pesquisa em saúde.

O trabalho de narrar em primeira pessoa possibilita, dentre outros fatores, a maior implicação dos sujeitos participantes, de forma que, além de permitir um maior conhecimento do campo de trabalho, ainda se propõe a recolocar o profissional como um agente de mudança do status quo. Ao mesmo tempo, promove uma inserção da psicanálise para além do trabalho individual, recuperando dimensões político-institucionais da teoria psicanalítica que têm sido negligenciadas - e, portanto, subutilizadas - no campo da saúde pública.

Certamente, não exaurimos neste texto todo o debate sobre aproximações teóricas entre Benjamin e Freud. Porém, acreditamos alcançar com ele a possiblidade de apontar, junto aos demais pesquisadores, um caminho que reúne alguns fundamentos de ambos os autores, capaz de balizar novas investigações sobre o tema do trabalho no campo da saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2021
  • Aceito
    08 Jul 2022
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