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Racismo e Construção da Carreira: Estratégias de Enfrentamento Adotadas por Universitários Negros

Racism and Career Construction: Coping Strategies Adopted by Black Undergraduates

Racismo y Construcción de la Carrera: Estrategias de Afrontamiento que Utilizan los Universitarios Negros

Resumo

O racismo é um fenômeno que impacta a vida da população negra, direcionando-a para uma condição de marginalização social, inclusive profissionalmente. Diante disso, o presente estudo, qualitativo, objetivou analisar as estratégias de enfrentamento ao racismo adotadas por universitários negros de uma instituição pública de ensino superior no processo de construção de suas carreiras. Adotando-se como referencial a Teoria de Construção da Carreira, 27 entrevistas semiestruturadas foram conduzidas com graduandos (16 do gênero feminino e 11 do gênero masculino) autodeclarados negros de uma universidade situada na região Sudeste do Brasil. Os dados coletados foram submetidos a Análise de Similitude, por meio do software IRaMuTeQ, que demonstrou, a partir de uma árvore máxima, que os discursos dos participantes estiveram centrados no termo “racismo” e em quatro troncos de similitude relacionados aos vocábulos: “negro”, “falar”, “situação” e “acontecer”. Os resultados indicaram que o racismo é um dos fatores que impactam a carreira dos sujeitos, sobretudo por sustentar práticas discriminatórias veladas e limitar oportunidades profissionais. Em resposta a ele, quatro estratégias de enfrentamento foram identificadas: a) diálogo com sujeitos próximos; b) busca por suporte junto à rede de apoio constituída na universidade; c) denúncia de seus impactos; e d) adoção de ações individuais de transformação da realidade. Os achados permitem identificar a adoção de diferentes estratégias individuais e coletivas de enfrentamento ao racismo, que devem ter seu desenvolvimento estimulado pelas instituições de ensino superior, a fim de que se tornem práticas sistematizadas que favoreçam a discussão sobre o fenômeno em âmbitos acadêmico e profissional.

Palavras-chave:
Racismo; Enfrentamento; Desenvolvimento de Carreira; Desenvolvimento Profissional; Estudantes Universitários

Abstract

The phenomenon of racism impacts the lives of Black population, leading them to social marginalization, including professionally. Thus, this qualitative study analyzes the coping strategies adopted by Black undergraduates from a public higher education institution to confront racism during career construction. Adopting the Career Construction Theory as a framework, 27 semi-structured interviews were conducted (16 women and 11 men) with self-declared black undergraduates from a university located in southeastern Brazil. Similarity analysis of the collected data, performed using the IRaMuTeQ software, showed that, from a maximum tree, the participants’ speeches centered around the term “racism” and on four similarity trunks related to the words: “black”, “talk”, “situation” and “happen”. Results indicated that racism majorly impacts the subjects’ careers, especially by upholding veiled discriminatory practices and limiting professional opportunities. To cope with it, undergraduates adopt four main strategies: a) dialogue with close subjects; b) search for support with the support network established at the university; c) denunciation of its impacts; and d) adoption of individual strategies to transform reality. The findings point to different actions, individual and collective, adopted to fight racism, whose development should be supported by higher education institutions so that they become systemic practices that favor discussing the phenomenon in academic and professional fields.

Keywords:
Racism; Coping Behavior; Career Development; Professional Development; Undergraduates

Resumen

El racismo es un fenómeno que impacta la vida de la población negra, llevándola a una condición de marginación social, incluso a nivel profesional. Así, este estudio cualitativo, tuvo por objetivo analizar las estrategias de afrontamiento el racismo que utilizan los universitarios negros de una Institución Pública de Educación Superior en el proceso de construcción de sus carreras. Tomando como referencia la Teoría de Construcción de Carrera, se realizaron 27 entrevistas semiestructuradas a estudiantes (16 mujeres y 11 hombres) autodeclarados negros de una universidad en la región Sureste de Brasil. Los datos recolectados se sometieron a un Análisis de Similitud, desarrollado utilizando el software IRaMuTeQ, que demostró, a partir de un árbol máximo, que los discursos de los participantes se centraron en el término “racismo” y en cuatro troncos de similitud relacionados con las palabras: “negro”, “hablar”, “situación” y “pasar”. Los resultados indicaron que el racismo es uno de los factores que impactan la carrera, especialmente por sostener prácticas discriminatorias veladas y limitar las oportunidades profesionales. En respuesta a ello, se identificaron cuatro estrategias de afrontamiento: a) diálogo con sujetos cercanos; b) búsqueda de apoyo en la red constituida en la universidad; c) denuncia de sus impactos; y d) adopción de acciones individuales para transformar la realidad. Los hallazgos permiten identificar la adopción de diferentes estrategias, individuales y colectivas, para enfrentar el racismo, las cuales deben tener su desarrollo estimulado por las instituciones de educación superior, para que se conviertan en prácticas sistematizadas que favorezcan la discusión del fenómeno en el ámbito académico y profesional.

Palabras clave:
Racismo; Enfrentamiento; Desarrollo de Carrera; Desarrollo Profesional; Estudiantes Universitarios

Introdução

A desigualdade social vivenciada pela população negra brasileira é resultado de diversos fenômenos e, entre eles, pode-se destacar a escravização e o racismo (Santos, 2018Santos, R. E. (2018). O movimento negro e a luta pelas políticas de promoção da igualdade racial no Brasil. KWANISSA, 1(1), 139-153. https://bit.ly/3MVPQ2t
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). A escravização, enquanto método violento de exploração da força de trabalho das pessoas negras, exigiu a produção de justificativas baseadas em princípios ilusórios de superioridade racial dos brancos. Deste modo, o discurso difundido previa que quanto mais retinta fosse a cor da pele ou quão mais presentes fossem as características atribuídas às pessoas negras, maior a inferioridade do indivíduo (Maciel, 2016Maciel, C. (2016). Discriminação racial. In O. M. de Oliveira (Ed.), Negros no Espírito Santo (pp. 167-183). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. https://bit.ly/3GXNoF0
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). Nesse contexto, emerge a ideologia do branqueamento, segundo a qual, para que não sejam discriminados, os indivíduos devem buscar aparentar, o máximo possível, os padrões étnicos e culturais brancos, o que justificaria a tentativa de muitas pessoas negras de minimizarem, esquecerem ou negarem sua negritude (Maciel, 2016Maciel, C. (2016). Discriminação racial. In O. M. de Oliveira (Ed.), Negros no Espírito Santo (pp. 167-183). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. https://bit.ly/3GXNoF0
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; Silva et al., 2020Silva, S. S., Feijo, L. P., Farias, T. M., & Poletto, M. (2020). Parecer branco para não ser discriminado? Revisão sistemática sobre estratégias de embranquecimento. PSI UNISC, 4(2), 114-130. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v4i2.14829
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).

Passado o período de escravização, a maioria da população negra continuou pobre, pois tinha como principal possibilidade de subsistência o desenvolvimento de atividades domésticas, devido à incapacidade atribuída a ela de exercício das demais funções. Em contrapartida, as oportunidades de trabalho disponíveis foram ocupadas pelos imigrantes europeus e seus descendentes, que conseguiram, deste modo, ascender socialmente. Isto os permitiu alcançar as posições de comando político e social, partilhando o poder com as antigas elites dominantes (Benedito & Fernandes, 2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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; Maciel, 2016Maciel, C. (2016). Discriminação racial. In O. M. de Oliveira (Ed.), Negros no Espírito Santo (pp. 167-183). Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. https://bit.ly/3GXNoF0
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).

Diante disso, ainda que a escravização tenha sido abolida em 1888, o racismo foi conservado no Brasil por meio dos discursos e das práticas sociais, apesar de seu não reconhecimento pelos sistemas jurídicos (Ferreira, 2018Ferreira, F. L. (2018). Democracia racial brasileira: Uma piada sem graça. Mediações: Revista de Ciências Sociais, 23(1), 193. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n1p193
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). Assim, mesmo em liberdade, as pessoas negras permaneceram excluídas e participando da sociedade em condição marginal, compondo uma estrutura social que primava pela manutenção do sistema de desigualdade (Benedito & Fernandes, 2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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). Alguns dos produtos de tal sistema, empreendido pelo Estado e pela elite beneficiária da escravização, foram a negação das referências históricas da população negra, o não reconhecimento de suas contribuições à construção da sociedade brasileira e sua designação às piores posições sociais, econômicas e políticas, afetando-a diretamente no acesso às políticas públicas (Santos, 2018Santos, R. E. (2018). O movimento negro e a luta pelas políticas de promoção da igualdade racial no Brasil. KWANISSA, 1(1), 139-153. https://bit.ly/3MVPQ2t
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).

O racismo é um processo de exclusão, discriminação e hierarquização contra um sujeito ou um grupo social definido como diferente por conta de alguma característica física externa (real ou inventada), ressignificada como uma característica cultural interna estabelecedora de padrões comportamentais (Lima & Vala, 2004Lima, M. E. O., & Vala, J. (2004). As novas formas de expressão do preconceito e do racismo. Estudos de Psicologia (Natal), 9(3), 401-411. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000300002
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). Ele representa um meio de dominação, possibilitando ao grupo dominante dispor de privilégios sobre os dominados (Benedito & Fernandes, 2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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). Embora não existam fundamentos genéticos ou biológicos para a diferenciação entre os grupos humanos, a raça, enquanto categoria histórico-social, permanece sendo utilizada como designadora de grupos socialmente hierarquizados, pois o termo existe na sociedade, independentemente da validação científica, influenciando a distribuição desigual de recursos (Tavares & Kuratani, 2019Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. de A. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764
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).

A discriminação, por sua vez, pode ser compreendida como um tratamento injusto, isto é, um modo de avaliação, relacionamento e atendimento desigual e desfavorável direcionado a um coletivo ou a um de seus integrantes motivado pelo preconceito. Ela assume formatos variados, adaptando-se às situações, e, apesar de poder ser praticada individualmente, tende a alcançar o status de uma prática socialmente compartilhada e institucionalizada (Krüger, 2004Krüger, H. (2004). Cognição, estereótipos e preconceitos sociais. In M. E. O. Lima & M. E. Pereira, Estereótipos, preconceitos e discriminação: perspectivas teóricas e metodológicas (vol. 1, pp. 23-40). EDUFBA.). O preconceito, segundo a definição clássica de Allport (1971Allport, G. W. (1971). La naturaleza del prejuicio. Eudeba.), é uma atitude hostil ou aversiva frente a um indivíduo pertencente a um grupo, simplesmente por sua pertença grupal, de modo que se presume, consequentemente, que este disponha de qualidades questionáveis atribuídas ao grupo.

Nos últimos anos, houve um crescimento na produção científica da Psicologia acerca do racismo e das práticas associadas ao preconceito e à discriminação (Schucman & Martins, 2017Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2017). A Psicologia e o discurso racial sobre o negro: Do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37, 172-185. https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017
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), de modo que é possível localizar estudos nacionais sobre a clínica psicológica (Benedito & Fernandes, 2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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; Nascimento et al., 2020Nascimento, A. D. S., Souza, G. F. de, Silva, M. Da, & Oliveira, M. S. de. (2020). “Pretitude” e o afroperspectivismo em psicoterapia: Desafios para a abordagem gestáltica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(4), 927-946. https://doi.org/10.12957/epp.2019.49293
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; Teixeira & Dazzani, 2019Teixeira, A. D. M. B., & Dazzani, M. V. M. (2019). Tornando-se negro: Tensões subjetivas e culturais na experiência identitária de ser um estudante universitário negro. Revista de Psicologia da IMED, 11(1), 83. https://doi.org/10.18256/2175-5027.2019.v11i1.3028
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), a subjetividade de jogadores de futebol (Silva & Paula, 2020Silva, F. H. A. da, & Paula, P. A. de F. e. (2020). Os impactos do racismo na subjetividade do jogador de futebol negro. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003230122
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), a saúde mental (Damasceno & Zanello, 2018Damasceno, M. G., & Zanello, V. M. L. (2018). Saúde mental e racismo contra negros: Produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(3), 450-464. https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017
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), a segurança (Costa et al., 2020Costa, A. F. da, Barros, J. P. P., Silva, D. B. da, Benicio, L. F. de S., & Moreira, M. G. R. (2020). Dispositivo de segurança e racionalidade necrobiopolítica: Narrativas de jovens negros de Fortaleza. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003230162
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), as vivências de universitários (Rosa & Alves, 2020Rosa, E. G. da, & Alves, M. C. (2020). Estilhaçando a máscara do silenciamento: Movimentos de (re)existência de estudantes negros/negras. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229978
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), entre outros. Rosa e Alves (2020Rosa, E. G. da, & Alves, M. C. (2020). Estilhaçando a máscara do silenciamento: Movimentos de (re)existência de estudantes negros/negras. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229978
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), conduzindo um estudo com quatro universitários negros, estudantes de cursos de graduação e pós-graduação de uma universidade federal, identificaram que os participantes utilizavam estratégias individuais, como o autoconhecimento e a autoafirmação, e coletivas, por meio da inserção em coletivos negros e da participação em grupos terapêuticos, para enfrentarem o racismo que vivenciavam e, assim, permanecerem inseridos na instituição.

As investigações sobre as experiências de universitários são particularmente relevantes pois a trajetória no ensino superior envolve diversos desafios, como, por exemplo, o ajustamento às normas institucionais e às exigências sociais, o estabelecimento de novas relações interpessoais, o afastamento de familiares etc. (Soares et al., 2019Soares, A. B., Monteiro, M. C., Souza, M. S. de, Maia, F. A., Medeiros, H. C. P., & Barros, R. de S. N. (2019). Situações interpessoais difíceis: Relações entre habilidades sociais e coping na adaptação acadêmica. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003183912
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). Ademais, no Brasil, o diploma universitário proporciona aos indivíduos mais chances de receber melhores remunerações e dispor de condições de trabalhos mais adequadas (Carvalhaes & Ribeiro, 2019Carvalhaes, F., & Ribeiro, C. A. C. (2019). Horizontal opportunities in access to higher education in brazil: Socioeconomic status, gender and race in a context of educational expansion. Tempo Social, 31(1), 195-233. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2019.135035
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), configurando-se como um potencial mecanismo de redução dos impactos (Ribeiro, 2020Ribeiro, C. A. C. (2020). Mudanças nas famílias dos jovens e tendências da mobilidade social de brancos e negros no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, 39(2), 257-279. https://doi.org/10.25091/s01013300202000020002
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) do racismo na inserção da população negra no mercado de trabalho.

Em meio a esse cenário, a elaboração de estraté- gias de enfrentamento emerge como uma possibilidade de resposta às circunstâncias até então desconhecidas. Tal enfrentamento, também conhecido por coping, pode ser entendido como um conjunto de esforços cognitivos e comportamentais desenvolvidos com o intuito de se tolerar, reduzir ou controlar as demandas internas e externas e os conflitos existente entre elas. Esses esforços apresentam duas funções centrais: a) a regulação de emoções estressantes (enfrentamento focado na emoção); e b) o gerenciamento da relação pessoa-ambiente produtora de estresse (enfrentamento focado no problema) (Folkman & Lazarus, 1980Folkman, S., & Lazarus, R. S. (1980). An analysis of coping in a middle-aged community sample. Journal of Health and Social Behavior, 21(3), 219-239. https://doi.org/10.2307/2136617
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).

O esforço em direção ao enfrentamento, seja focado na emoção ou no problema, pode resultar em estratégias eficazes ou pouco eficazes. São consideradas eficazes as estratégias que envolvem o compromisso da pessoa com seu processo de enfrentamento, mediado pela utilização de soluções ativas, como a busca por suporte, a solução planejada, a aceitação e a reavaliação cognitiva. São entendidas como pouco eficazes as estratégias que se baseiam em evitação, negação e ilusão, ou seja, em esforços de distanciamento ou fuga do estressor ou de minimização das reações comportamentais e emocionais provenientes dele (Novaes & Cunha, 2019Novaes, N. F., & Cunha, A. C. B. (2019). Enfrentamento e resiliência familiar na tomada de decisão pela gastrostomia infantil. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003187678
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; Pagnota & Prebianchi, 2021Pagnota, R. M. N. F., & Prebianchi, H. B. (2021). Estresse e estratégias de enfrentamento em profissionais de abrigos institucionais. Psicologia: Ciência e Profissão, 41, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003193180
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).

Cabe destacar que o grau de estresse psicológico experienciado por determinada pessoa é definido pela relação da pessoa com seu ambiente em um momento específico, correspondendo ao produto da avaliação da situação e dos recursos disponíveis para o enfrentamento (Folkman & Lazarus, 1980Folkman, S., & Lazarus, R. S. (1980). An analysis of coping in a middle-aged community sample. Journal of Health and Social Behavior, 21(3), 219-239. https://doi.org/10.2307/2136617
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). Diante disso, com vistas a expandir a análise sobre os esforços de enfrentamento empreendidos pelos universitários negros, utilizar-se-á como referencial a Teoria de Construção da Carreira (TCC). Estudos de articulação entre a TCC e a abordagem teórica de estratégias de enfrentamento já têm sido desenvolvidos, como a pesquisa de Perera e Mcilveen (2014Perera, H. N., & McIlveen, P. (2014). The role of optimism and engagement coping in college adaptation: A career construction model. Journal of Vocational Behavior, 84(3), 395-404. https://doi.org/10.1016/j.jvb.2014.03.002
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), que compreendem as estratégias de enfrentamento como um processo de adaptação da pessoa ao ambiente.

A TCC adota uma perspectiva contextualista, ou seja, o desenvolvimento da carreira é produto da adaptação ao ambiente. Para esta teoria, as carreiras se originam na construção que acontece à medida que os sujeitos tomam decisões que expressam seus autoconceitos e seus propósitos na realidade social vinculada ao trabalho e lidam com o contexto em que estão inseridos (Ambiel et al., 2019Ambiel, R. A. M., Martins, G. H., Tofoli, L., & Campos, L. P. de. (2019). Variáveis acadêmicas e extracurriculares predizem adaptabilidade de carreira. Psicologia para América Latina, 31, 1-11. https://bit.ly/3KM02ba
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; Savickas, 2005Savickas, M. L. (2005). The theory and practice of career construction. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), Career development and counseling: Putting theory and research to work (vol. 1, pp. 42-70). John Wiley & Sons.). Nessa pesquisa, as estratégias de enfrentamento são compreendidas como uma das formas pelas quais os indivíduos lidam com o contexto.

Segundo a TCC, há três desafios sociais que promovem mudanças na carreira: tarefas de desenvolvimento profissional, transições ocupacionais (movimento de um trabalho para o próximo, desejados/esperados ou não) e experiências negativas no trabalho (eventos dolorosos, imprevisíveis e indesejados) (Salvador & Ambiel, 2019Salvador, A. P., & Ambiel, R. A. M. (2019). Adaptabilidade de carreira e autoeficácia ocupacional: Relações com variáveis de carreira. Revista Avaliação Psicológica, 18(03), 256-263. https://doi.org/10.15689/ap.2019.1803.16853.05
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; Savickas, 2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.). Tais desafios ajudam o sujeito a desenvolver suas capacidades para antecipar seu futuro em contextos de mudança, bem como encontrar modos de atingir suas expectativas por meio do envolvimento em diferentes atividades (Savickas et al., 2009Savickas, M. L., Nota, L., Rossier, J., Dauwalder, J. P., Duarte, M. E., Guichard, J., … van Vianen, A. E. M. (2009). Life designing: A paradigm for career construction in the 21st century. Journal of Vocational Behavior, 75(3), 239-250. https://doi.org/10.1016/j.jvb.2009.04.004
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).

Impulsionado pela adaptação ao ambiente, a construção do self pelo indivíduo ocorre em um meio com outras pessoas e é moldado a partir dos objetos no mundo, por meio da internalização de modelos (Ladeira et al., 2019Ladeira, M. R. M., Oliveira, M. C. de, Melo-Silva, L. L., & Taveira, M. do C. (2019). Career adaptability and employability in the university-work transition: Mediating adaptive responses. Psico-USF, 24(3), 583-595. https://doi.org/10.1590/1413-82712019240314
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; Savickas, 2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.). Os modelos representam soluções provisórias para os problemas e as preocupações que figuram como mais significativos para uma pessoa, fornecendo recursos para que ela molde sua identidade e a comunique aos demais indivíduos (Savickas, 2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.).

Para a TCC, os modelos podem ser internalizados por meio de dois métodos principais: a introjeção de guias e a incorporação de modelos. A introjeção de guias pode ser entendida como um processo de assimilação individual de crenças, normas e valores. Ela ocorre desde a infância, quando os sujeitos atuam como atores sociais, assimilando, primeiramente, a realidade familiar e absorvendo os discursos sociais nela presentes. Tais sujeitos utilizam suas capacidades biológicas e as categorias identitárias que lhes são apresentadas (como gênero, raça e classe, por exemplo) para ocupar um lugar na trama familiar. Posteriormente, junto a suas famílias e em outras interações sociais, os indivíduos criam personagens ou reputações, isto é, aspectos pelos quais são identificados nos espaços em que estão inseridos. Em seguida, elaboram características distintivas nos diferentes espaços sociais. As bases desses personagens ajudam a moldar os temas da carreira e a noção de “arco do personagem”, que diz respeito aos aspectos de um tema da vida que retratam onde um sujeito começou, encontra-se atualmente e deseja terminar em relação a uma questão interna essencial para ele (Savickas, 2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.).

Já a incorporação de modelos se configura como a adoção de estratégias específicas para a resolução de problemas, e representa a primeira escolha na construção da carreira. Ela reflete uma tomada de decisão sobre a autoconstrução e o papel que se deseja exercer no que pode ser compreendido como “drama da vida”. A TCC compreende esse processo como uma estratégia de autoconstrução, internalizada a partir de experiências interpessoais e discursos culturais, isto é, construída por um sujeito e uma sociedade. Ela se concentra, ainda, na agência desempenhada pelo self ao se adaptar às transições, num movimento de direcionamento das escolhas ocupacionais como estratégia de sustentação ante a sociedade. A agência se torna crítica quando a dimensão profissional é perdida, interrompida, paralisada ou silenciada (Savickas, 2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.).

Nessa perspectiva, a introjeção de guias e a incorporação de modelos representam meios pelos quais os indivíduos agenciam a própria carreira diante dos desafios contextuais, ou seja, diante de tarefas de desenvolvimento profissional, transições ocupacionais e experiências negativas no trabalho. Desse modo, considerando o papel delas no contexto profissional, é possível depreender que se trata de elementos significativos para o processo de elaboração das estratégias de enfrentamento adotadas pelas pessoas durante suas trajetórias.

No que diz respeito à produção científica brasileira, as pesquisas desenvolvidas a partir da TCC têm se dedicado a compreender, entre outros grupos populacionais, a carreira de universitários (Almeida & Teixeira, 2018Almeida, B., & Teixeira, M. (2018). Bem-estar e adaptabilidade de carreira na adaptação ao ensino superior. Revista Brasileira de Orientação Profissional, 19(1), 19-30. https://doi.org/http://dx.doi.org/1026707/1984-7270/2019v19n1p19
https://doi.org/http://dx.doi.org/102670...
; Ambiel et al., 2019Ambiel, R. A. M., Martins, G. H., Tofoli, L., & Campos, L. P. de. (2019). Variáveis acadêmicas e extracurriculares predizem adaptabilidade de carreira. Psicologia para América Latina, 31, 1-11. https://bit.ly/3KM02ba
https://bit.ly/3KM02ba...
; Ladeira et al., 2019Ladeira, M. R. M., Oliveira, M. C. de, Melo-Silva, L. L., & Taveira, M. do C. (2019). Career adaptability and employability in the university-work transition: Mediating adaptive responses. Psico-USF, 24(3), 583-595. https://doi.org/10.1590/1413-82712019240314
https://doi.org/10.1590/1413-82712019240...
), contudo, não foram localizados estudos dedicados à compreensão da carreira de graduandos negros brasileiros, sinalizando uma lacuna significativa, visto que a população do país é majoritariamente negra (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. https://bit.ly/41ILLD9
https://bit.ly/41ILLD9...
) e o contexto é um aspecto valioso à teoria (Wehrle et al., 2019Wehrle, K., Kira, M., & Klehe, U. C. (2019). Putting career construction into context: Career adaptability among refugees. Journal of Vocational Behavior, 111, 107-124. https://doi.org/10.1016/j.jvb.2018.08.007
https://doi.org/10.1016/j.jvb.2018.08.00...
). Similarmente, embora também seja possível localizar pesquisas nacionais sobre as estratégias de enfrentamento de estudantes do ensino superior (Carvalho & Silveira, 2021Carvalho, C. J. de, & Silveira, M. de F. de A. (2021). (Sobre)vivências, saúde mental e enfrentamento à pandemia de universitários em vulnerabilidade socioeconômica. Research, Society and Development, 10(14), e288101421955. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i14.21955
https://doi.org/10.33448/rsd-v10i14.2195...
; Mota et al., 2021Mota, D. C. B., da Silva, Y. V., Costa, T. A. F., Aguiar, M. H. da C., Marques, M. E. de M., & Monaquezi, R. M. (2021). Mental health and internet use by university students: Coping strategies in the context of covid-19. Ciencia e Saude Coletiva, 26(6), 2159-2170. https://doi.org/10.1590/1413-81232021266.44142020
https://doi.org/10.1590/1413-81232021266...
; Santos & Soares, 2020Santos, Z. de A., & Soares, A. B. (2020). O impacto das habilidades sociais e das estratégias de enfrentamento na resolução de problemas em universitários de psicologia. Ciencias Psicológicas, 14(2), 2228. https://doi.org/10.22235/cp.v14i2.2228
https://doi.org/10.22235/cp.v14i2.2228...
), as informações existentes sobre a população negra, universitária ou não, ainda é limitada (Carvalho & França, 2019Carvalho, D. M. da S., & França, D. X. de. (2019). Estratégias de enfrentamento do racismo na escola: Uma revisão integrativa. Educação & Formação, 4, 148-168. https://doi.org/10.25053/redufor.v4i12.974
https://doi.org/10.25053/redufor.v4i12.9...
).

Ante o exposto, a presente pesquisa objetivou analisar as estratégias de enfrentamento ao racismo adotadas por universitários negros, ou seja, pessoas autodeclaradas pretas ou pardas, conforme critério adotado pelo IBGE (2011Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2011). Características Étnico-Raciais da População: Um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça, 2008. https://bit.ly/3UPSWqO
https://bit.ly/3UPSWqO...
), de uma instituição pública de ensino superior no processo de construção de suas carreiras. Pretendeu-se, com a realização desta investigação, ampliar os conhecimentos disponíveis sobre o racismo e contribuir para a explicitação de seus impactos sobre a vida dos universitários negros, viabilizando, assim, o aprimoramento das políticas públicas destinadas a esse grupo populacional.

Além disso, considerando que o construto comumente utilizado nas investigações baseadas na TCC é a Adaptabilidade de Carreira (Ladeira et al., 2019Ladeira, M. R. M., Oliveira, M. C. de, Melo-Silva, L. L., & Taveira, M. do C. (2019). Career adaptability and employability in the university-work transition: Mediating adaptive responses. Psico-USF, 24(3), 583-595. https://doi.org/10.1590/1413-82712019240314
https://doi.org/10.1590/1413-82712019240...
), essa pesquisa avançou no uso da teoria ao centralizar suas análises na internalização de modelos e articulá-lo ao conceito de estratégias de enfrentamento, fornecendo evidências acerca de sua relação com um fenômeno social de ampla magnitude: o racismo.

Método

Este estudo qualitativo tem caráter descritivo (Dalfovo et al., 2008Dalfovo, M. S., Lana, R. A., & Silveira, A. (2008). Métodos quantitativos e qualitativos: Um resgate teórico. Revista Interdisciplinar Científica Aplicada, 2(3), 1-13. https://bit.ly/3VbKwKA
https://bit.ly/3VbKwKA...
) e desenho transversal (Wang & Cheng, 2020Wang, X., & Cheng, Z. (2020, July 1). Cross-sectional studies: Strengths, weaknesses, and recommendations. Chest, 158, S65-S71. https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.03.012
https://doi.org/10.1016/j.chest.2020.03....
). A pesquisa qualitativa se preocupa com uma dimensão da realidade que não pode ser quantificada, isto é, ela se debruça em uma análise profunda sobre o universo de significações, motivações, aspirações, crenças, valores e atitudes, que correspondem a um lócus das relações, fenômenos e processos não observado pela operacionalidade de variáveis (Minayo, 2001Minayo, M. C. de S. (2001). Ciência, técnica e arte: O desafio da pesquisa social. In M. C. de S. Minayo & R. Gomes, Pesquisa Social: Teoria, Método e Criatividade (18 ed., vol. 18, pp. 9-29). Vozes.).

Participantes

Participaram desta pesquisa 27 estudantes universitários autodeclarados negros de uma instituição pública de ensino superior localizada na capital de um estado da região Sudeste brasileira. O critério de autodeclaração foi adotado em consonância ao sistema de classificação utilizado pelo IBGE (2011Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2011). Características Étnico-Raciais da População: Um Estudo das Categorias de Classificação de Cor ou Raça, 2008. https://bit.ly/3UPSWqO
https://bit.ly/3UPSWqO...
), que compreende cinco categorias de raça-cor: amarelos, brancos, indígenas, pardos e pretos. Consideraram-se negras as pessoas que se afirmaram pretas e pardas, conforme preveem os estudos do Instituto de Política Econômica Aplicada (IPEA) (Silva, 2013Silva, T. D. (2013). Panorama social da população negra. In T. D. Silva & F. L. Goes (Eds.), Igualdade Racial no Brasil: Reflexões no Ano Internacional dos Afrodescendentes. (pp. 13-28). IPEA. https://bit.ly/40mTndd
https://bit.ly/40mTndd...
).

Dos 27 graduandos, 16 se intitularam do gênero feminino e 11 do gênero masculino. Suas idades variaram entre 20 e 53 anos (m=23,96; DP=6,07). Em relação à formação, os participantes estavam divididos da seguinte forma entre os cursos de graduação: Ciências Sociais (6 participantes), Direito (3), Administração (2), Arquitetura e Urbanismo (2), Engenharia de Computação (2), Geografia (2), História (2), Psicologia (2), Ciências Contábeis (1), Comunicação Social (1), Enfermagem (1), Engenharia Elétrica (1), Fisioterapia (1) e Letras Português/Espanhol (1). Quanto ao tempo de inserção no ensino superior, os participantes frequentaram a instituição entre um e 13 períodos (M=6,7; DP=3,20), sendo: um estudante no primeiro período, quatro no segundo período, um no terceiro, três no quarto, um no quinto, dois no sexto, cinco no sétimo, cinco no oitavo, um no nono, três no 11º e um no 13º. Não foram entrevistados graduandos nos décimo e 12º períodos.

No que diz respeito ao sistema de reserva de vagas, também chamado de cotas, destinado a indivíduos que cursaram o ensino médio integralmente em escolas públicas, 21 graduandos ingressaram por meio dele, os demais (seis) se inscreveram para vagas de ampla concorrência. Entre os cotistas, 20 concorreram às vagas exclusivas para pretos, pardos ou indígenas, dos quais 14 optaram pelas reservadas a estudantes com renda familiar superior a 1,5 salário mínimo per capita e seis às vagas designadas a pessoas com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo per capita. Somente um participante cotista ingressou na instituição em vaga não destinada a pretos, pardos ou indígenas, optando pela cota para pessoas com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo.

Quanto aos rendimentos declarados no momento da pesquisa, os participantes possuíam renda per capita familiar média de R$ 1.038,67 (DP=615,56), valor inferior ao salário mínimo da época (R$ 1.045,00). Considerando a renda per capita dos estudantes cotistas (M=1.034,71; DP= 621,29) e não cotistas (M=1.051,88; DP=653,86), a diferença de remuneração entre os grupos foi de apenas R$ 17,17. Em relação ao serviço de Assistência Estudantil, que provê um benefício financeiro mensal aos graduandos com renda per capita inferior a 1,5 salário mínimo, sendo renovado anualmente, 12 participantes declararam ser beneficiados. Contudo, levando em conta o critério de renda fixado pela política estabelecida a partir do Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), assegurado pelo Decreto nº 7.234 (2010Decreto nº 7.234, de 19 de julho de 2010. (2010, 19 de julho). Dispõe sobre o Programa Nacional de Assistência Estudantil. Diário Oficial da União. https://bit.ly/41l4Uv5
https://bit.ly/41l4Uv5...
), 20 estudantes estariam aptos a receber tal recurso.

Instrumentos

Os dados foram obtidos por intermédio de dois instrumentos: um questionário sociodemográfico e um roteiro de entrevista semiestruturado. O questionário sociodemográfico incluiu questões sobre raça-cor, idade, gênero, período e ano de ingresso na instituição, curso, modalidade de ingresso (via sistema de cotas ou não), situação junto à Assistência Estudantil (se recebia o auxílio oferecido), número de moradores na residência, renda bruta total dos moradores e cidade/estado de moradia. O roteiro de entrevistas semiestruturado incluiu questões relacionadas aos impactos do racismo na trajetória dos participantes e às formas de enfrentamento, individuais e coletivas, adotadas por eles.

A escolha de coletar os dados por meio de entrevistas se deve a sua utilidade no mapeamento e na compreensão das vivências dos respondentes, permitindo, assim, a elaboração de esquemas interpretativos que contribuam para um entendimento mais conceitual das narrativas dos entrevistados. Elas fornecem, portanto, informações sobre os sujeitos e seus contextos, detalhando suas crenças, valores, motivações e comportamentos em situações sociais específicas (Gaskell, 2002Gaskell, G. (2002). Entrevistas individuais e grupais. In M. W. Bauer & G. Gaskell (Orgs.), Pesquisa Qualitativa com Texto, Imagem e Som: Um Manual Prático (Vol. 2, pp. 64-89). Vozes.).

Procedimentos de Coleta de Dados e Aspectos Éticos

O acesso aos participantes ocorreu por conveniência (Flick, 2009Flick, U. (2009). Amostragem, seleção e acesso. In U. Flick (Org.), Desenho da Pesquisa Qualitativa (pp. 43-55). Artmed.), por meio da divulgação, em aplicativo de mensagens instantâneas, de um formulário eletrônico, contendo explicações sobre a pesquisa, questões sociodemográficas e um espaço para fornecimento de dados para contato. O formulário foi enviado pelos pesquisadores a pessoas que possuíam algum vínculo com a instituição foco do estudo, e solicitou-se que fosse encaminhado a pessoas negras estudantes da instituição.

Dentre os sujeitos que preencheram o documento e voluntariaram-se a participar do estudo, foram convidados a participar da etapa de entrevistas aqueles que estavam de acordo com os critérios de seleção, isto é, autodeclararam-se pretos ou pardos e eram discentes de graduação da instituição foco do estudo. Respeitando a ordem de recebimento dos formulários, as entrevistas foram desenvolvidas remotamente, por meio de um software gratuito de videoconferências.

Nos dias e horários escolhidos pelos entrevistados, o pesquisador entrou em contato com os graduandos, solicitando, primeiramente, autorização para captação audiovisual. Obtida a permissão dos participantes, procedeu-se com a leitura integral do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), cuja anuência foi armazenada por um gravador de voz. Após elucidações sobre o formato da entrevista, a coleta de dados foi iniciada, contemplando o roteiro previamente definido, cujos temas centrais foram os impactos do racismo percebidos pelos participantes e as estratégias, individuais e coletivas, adotadas para os enfrentar. Em caso de dúvidas do pesquisador acerca do conteúdo narrado, questões adicionais foram realizadas. Finalizadas as entrevistas, que tiveram duração média de 20 minutos, uma cópia do TCLE assinada pelo pesquisador responsável foi enviada ao e-mail de cada participante. Cabe destacar que a coleta de dados foi antecedida por quatro entrevistas-piloto, desenvolvidas para aprimorar o instrumento e, consequentemente, desconsideradas durante as análises. Por fim, os instrumentos e etapas descritos anteriormente obedeceram, em sua totalidade, às normas éticas de pesquisa com seres humanos, como previsto na Resolução nº 510 (2016Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016 (2016, 7 de abril). Conselho Nacional de Saúde. https://bit.ly/3A7DAUS
https://bit.ly/3A7DAUS...
) do Conselho Nacional de Saúde, tendo sido submetidos e aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa, conforme parecer nº 4.329.256.

Procedimentos de Análise de Dados

As entrevistas foram integralmente transcritas, sendo submetidas, em seguida, à correção ortográfica e à adaptação aos critérios requeridos pelo software livre Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ), como orienta Camargo e Justo (2018Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2018). Tutorial para uso do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição - UFSC. https://bit.ly/2Y3r882
https://bit.ly/2Y3r882...
). O programa, que funciona como uma interface do software R, foi elaborado por Pierre Ratinaud (Souza et al., 2018Souza, M. A. R. de, Wall, M. L., Thuler, A. C. de M. C., Lowen, I. M. V., & Peres, A. M. (2018). O uso do software IRAMUTEQ na análise de dados em pesquisas qualitativas. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 52, e03353. https://doi.org/10.1590/S1980-220X2017015003353
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201701...
). Ele permite a realização de diferentes tipos de análises lexicais, fundamentadas estatisticamente, como: nuvem de palavras, estatísticas textuais clássicas, análise prototípica de evocações, Análise Fatorial de Correspondência, Análise de Especificidades, Classificação Hierárquica Descendente e Análise de Similitude (Sousa et al., 2020Sousa, Y. S. O., Gondim, S. M. G., Carias, I. A., Batista, J. S., & Machado, K. C. M. de. (2020). O uso do software Iramuteq na análise de dados de entrevistas. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(2), 1-19. https://bit.ly/3UT1IV8
https://bit.ly/3UT1IV8...
).

A Análise de Similitude, utilizada nesta pesquisa, desenvolve-se com base na teoria dos grafos e possibilita, a partir da identificação de coocorrência de vocábulos nos segmentos de texto, a compreensão da associação existente entre as palavras. Isto ocorre por meio de uma representação gráfica, chamada de árvore máxima, que explicita as interrelações entre os termos, evidenciando como se estrutura o conteúdo discursivo que compõe o corpus textual (Camargo & Justo, 2018Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2018). Tutorial para uso do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição - UFSC. https://bit.ly/2Y3r882
https://bit.ly/2Y3r882...
; Sousa et al., 2020Sousa, Y. S. O., Gondim, S. M. G., Carias, I. A., Batista, J. S., & Machado, K. C. M. de. (2020). O uso do software Iramuteq na análise de dados de entrevistas. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(2), 1-19. https://bit.ly/3UT1IV8
https://bit.ly/3UT1IV8...
). Sua utilização é vantajosa às investigações qualitativas por propiciar uma apresentação de dados confiável em termos inferenciais e interpretativos (Sousa et al., 2020Sousa, Y. S. O., Gondim, S. M. G., Carias, I. A., Batista, J. S., & Machado, K. C. M. de. (2020). O uso do software Iramuteq na análise de dados de entrevistas. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(2), 1-19. https://bit.ly/3UT1IV8
https://bit.ly/3UT1IV8...
) em que tanto as partes comuns quanto as especificidades do material analisado podem ser visualmente compreendidas (Marchand & Ratinaud, 2012Marchand, P., & Ratinaud, P. (2012). L’analyse de similitude appliquée aux corpus textuels: Les primaires socialistes pour l’élection présidentielle française (septembre-octobre 2011). Actes Des 11èmes Journées Internationales d’Analyse Des Données Textuelles (JADT), 687-699. https://bit.ly/3HljSJB
https://bit.ly/3HljSJB...
).

Na presente pesquisa, conforme preveem Camargo e Justo (2018Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2018). Tutorial para uso do software IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Laboratório de Psicologia Social da Comunicação e Cognição - UFSC. https://bit.ly/2Y3r882
https://bit.ly/2Y3r882...
), foram excluídas da análise palavras com frequência acima de 200 ocorrências (quatro termos), por se tratar de resíduos do processo de coleta de dados, e abaixo de 35 ocorrências, para facilitar a compreensão do gráfico. Além da árvore máxima, como recurso para ilustrar o discurso dos participantes, trechos das entrevistas serão apresentados, mas, a fim de manter a confidencialidade dos dados, o nome dos participantes será substituído pelos primeiros nomes de pesquisadores negros brasileiros.

Resultados

O corpus textual foi composto pelas 27 entrevistas, tendo sido dividido pelo IRaMuTeQ em 837 segmentos de texto, que incluíram 28.839 ocorrências, 3.222 formas de palavras distintas e frequência de hápax igual a 1.676 (sendo 52,02% das formas e 5,81% das ocorrências). A análise de similitude desse material resultou na árvore máxima apresentada na Figura 1. Ela foi obtida com base em 40 vocábulos e indicou que o termo “racismo” foi central nos discursos dos graduandos, associando-se a quatro troncos de similitude relacionados às palavras-chaves: “negro”, “falar”, “situação” e “acontecer”.

Figura 1
Estratégias de Enfrentamento ao Racismo adotadas por universitários negros no processo de construção de suas carreiras.

A palavra “racismo”, citada 163 vezes, aparece vinculada a vocábulos como “pensar”, “dizer”, “existir”, “acreditar” e “racista”, exprimindo as vivências dos entrevistados com o racismo e a percepção de seus impactos. Foram mencionadas situações explícitas de discriminação racial, mas os episódios em que os efeitos do racismo se manifestaram sutilmente emergiram com maior frequência, como no descrédito das capacidades e competências de pessoas negras e a exclusão de seu acesso a espaços, sobretudo os mais valorizados socialmente, demonstrados nos excertos:

Aprendi que existem muitas pessoas no poder que ainda têm mentalidade racista, pessoas em lugares de influência no mundo jurídico, juízes, promotores e grandes advogados, que ainda não tem se disposto para a mudança desse ambiente estrutural racista que o Direito brasileiro vive (Ísis Aparecida, graduanda em Direito, 8º período, não cotista, não assistida pela Assistência Estudantil).

Uma pessoa racista [...] vai achar que você é incompetente, vai pedir outro Fisioterapeuta, pedir uma explicação de outra pessoa, porque não confia no que você explicou, alguma coisa assim. Mas eu acho que no momento, agora, não acontece muito, vai acontecer mais quando eu atender as pessoas, não sei se as pessoas vão confiar tanto em mim por conta dessa imagem que elas têm de que pessoas negras não são confiáveis ou de que não têm capacidade para fazer as coisas de maneira correta, ou que não tem estudo, enfim, essas coisas que pessoas racistas pensam (Ana Candice, graduanda em Fisioterapia, 4º período, cotista, não assistida pela Assistência Estudantil).

O tronco marcado pela palavra-chave “falar”, por sua vez, mencionada em 183 ocasiões, apresenta em seu entorno os termos “querer”, conseguir”, “questão”, “aprender” e “sentir”, e faz referência à construção de uma postura combativa às situações marcadas pelo racismo e pela discriminação racial, processo que se constituiu ao longo do desen volvimento dos participantes, conforme expressam os trechos:

Aprendi que a gente não pode ficar quieto. Eu sou uma pessoa que às vezes fico um pouco na minha, fico um pouco balançado, mas referente à discriminação e a qualquer tipo de discriminação, seja racial ou qualquer coisa, a gente não pode ficar parado, a gente deve falar, a gente deve bater de frente, e eu aprendi isso, eu aprendi a não guardar tudo para mim, e sim lutar, por mim e pelos outros (Helio, graduando em Administração, 2º período, não cotista, não assistido pela Assistência Estudantil).

O enfrentamento ao racismo também me trouxe que a nossa voz é importante, a nossa voz, as nossas atitudes, elas são importantes. A gente tem, sim, que nos colocarmos enquanto pessoas. Esse enfrentamento também me fez pensar sobre a questão da nossa saúde, até onde a gente pode, onde a gente não pode... não digo que a gente não possa, mas até onde a gente deve ou não deve? Até onde isso vai fazer bem ou mal pra gente? Porque a gente se manter vivo e bem também é uma forma de enfrentar o racismo, não é sempre lá gritando (Maria Nilza, graduanda em Ciências Sociais, 6º período, não cotista, não assistida pela Assistência Estudantil).

A palavra-chave “negro”, proferida 177 vezes, relaciona-se aos termos “amigo”, “mulher”, “ver, “branco” e “preto”, abrangendo o discurso sobre a rede de apoio desses universitários para o enfrentamento do racismo nos diversos âmbitos de suas vidas, que é composta por relações de amizade estabelecidas na instituição de ensino e em espaços coletivos, como o Movimento Negro. Na concepção dos entrevistados, o suporte interpessoal recebido é amplo e ultrapassa, inclusive, a dimensão afetiva, como demonstram os excertos:

Aqui eu vejo que existe uma rede mínima de apoio, o fato de ter o Movimento Negro, de terem pessoas aqui, de terem amigos dentro desses movimentos, isso para mim é muito determinante, eu vejo um espaço de cooperação, de acolhimento, e que eu acho que é fundamental, não só para o psicológico, mas até mesmo para a vida profissional, porque você ter esses amigos, você conhecer pessoas negras que passaram por essa mesma experiência, isso te facilita inúmeras coisas, isso te ajuda de inúmeras maneiras, é possível você construir uma comunidade de cooperação a partir disso, e eu acho que isso tem muita potência, não só para me ajudar, mas para ajudar inúmeras pessoas que precisam (Valter Roberto, graduando em Ciências Sociais, 4º período, cotista, assistido pela Assistência Estudantil).

Eu sempre recorro aos meus amigos, e aí, mais uma vez, eu vou bater na tecla da afetividade, da escuta. Minha família também, de alguma forma, mas eu acho que meus amigos mais, porque de alguma forma eles estão ali naquele meio universitário, que tem vínculo com o Movimento Negro, que tem vínculo com discussões de gênero e tal, e... quando acontece alguma coisa, eu sempre vou falar para eles, e eles sempre me dão um retorno positivo, então eu acho que é isso, a escuta dos meus amigos foi fundamental (Janete Regina, graduanda em Geografia, 9º período, cotista, assistida pela Assistência Estudantil).

O tronco associado à palavra-chave “acontecer”, mencionada em 111 situações, abrange vocábulos como “tentar”, “ficar”, “entender”, “ajudar” e “entrar”, versando a respeito das estratégias individuais de enfrentamento ao racismo, que habitualmente estão relacionadas ao uso de habilidades pessoais como tentativa de promover mudanças nos ambientes de convívio dos participantes e, consequentemente, na própria vida e na de outras pessoas negras. Essa dinâmica é explicitada em narrativas como:

Eu sempre estou muito ansioso e sempre muito preocupado, então o que acontece é que eu tento lidar com isso em atendimentos psicológicos, óbvio, mas eu acho que trabalhar isso é uma coisa muito difícil para mim, porque eu tenho muita dificuldade de reconhecer o quanto isso me afeta de fato, mas eu tento lidar com isso na questão do trabalho, conversando com os alunos sobre isso, trazendo esse tópico, como é uma coisa importante para a gente poder discutir, para a gente poder mudar algumas coisas (Sales Augusto, graduando em Ciências Sociais, 11º período, cotista, não assistido pela Assistência Estudantil).

Na minha trajetória até aqui, eu sabia desses lugares que dariam para entrar, que eu conseguiria entrar, apesar do racismo, e estar neles... Então eu diria que eu consegui ler esse jogo, consegui entender minha função, pude entrar nessas brechas. Acho que eu avaliaria minha relação [com o racismo] nesse lugar, de conseguir entrar para esses lugares e, quando eu estava nesses lugares, de consguir fazer alguma coisa dentro deles (Emerson, graduando em Ciências Sociais, 13º período, cotista, não assistido pela Assistência Estudantil).

A palavra-chave “situação”, por sua vez, citada 92 vezes, apresentou em seu entorno os termos “passar”, “conversar” e “dia”. Ela envolve relatos de experiências cotidianas com o racismo, vinculadas, geralmente, à discriminação racial velada, bem como descrições acerca do processo de assimilação dos sujeitos sobre o ocorrido e de enfrentamento a seus danos. Tais situações são percebidas como difíceis de se extinguir devido à ausência de meios efetivos de enfrentar o racismo manifestado de modo sutil. Diante disso, os universitários negros recorrem ao diálogo com seus pares, que se torna uma das estratégias de enfrentamento coletivo dos impactos psicológicos provocados pelo racismo. Esse movimento pode ser identificado nos fragmentos:

Eu gosto de falar, quando é uma situação que eu sofri, que eu passei, que eu fui constrangida por uma atitude racista. Eu costumo estar falando sobre minhas experiências, conversando com quem eu conto, conversando aos pouquinhos. Eu tento ler e falar sobre e compartilhar com quem se dispõe a ouvir, mas não tenho nada específico para recorrer. Isso me ajuda a entender de onde surge, como é feita essa estrutura, porque para enfrentar essa estrutura, a gente precisa conhecer a estrutura (Gabriela, graduanda em Ciências Sociais, 11º período, não cotista, não assistida pela Assistência Estudantil).

Na maioria das vezes, são essas situações de racismo velado, que acontecem muito, são coisas que só eu conversando com eles, a gente se entende, a gente fala a mesma língua, e é o que dá para fazer, é conversar, é trazer esses questionamentos à tona, porque não tem o que fazer, para denunciar tem que ser aquele racismo explícito, e ainda assim é uma burocracia, e na maioria das vezes não é levado a sério. Então, o que eu faço é debater e trazer essas questões. Por enquanto não tem muito o que fazer (Maria Anória, graduanda em Letras - Português/ Espanhol, cotista, 2º período, não assistida pela Assistência Estudantil).

Perante o exposto, é possível depreender que a multiplicidade de formas assumidas pelo racismo, igualmente prejudiciais, exige dos graduandos negros a elaboração de diferentes estratégias de enfrentamento ao racismo, em âmbito individual e coletivo, cujos resultados atingem sobremaneira a dimensão microcontextual, isto é, a vida dos próprios estudantes, de seus familiares, amigos e de outras pessoas negras próximas a eles. Isto pode ser compreendido como resposta a uma estrutura social percebida como difícil de ser transformada e que ainda não proporciona os meios apropriados para a reversão das desigualdades e violências oriundas do racismo, especialmente quando se trata de situações em que sua manifestação ocorre de modo velado.

Destarte, diante dos obstáculos impostos pelo racismo, a construção da carreira dos universitários negros ocorre individualmente, de forma que cada discente busca avançar profissionalmente de acordo com suas possibilidades; ao mesmo tempo, a construção da carreira exige um enfrentamento coletivo, no qual os graduandos recorrem a sua rede afetiva, de familiares, amigos e de coletivos, como o Movimento Negro, para possibilitar o enfrentamento dos constantes desafios presentes em suas vidas e, consequentemente, em suas carreiras. Todavia, ainda que haja o apoio dos grupos de pertença, alguns dos efeitos, como os de ordem psicológica, precisam ser suportados individualmente, por conta das complexas e idiossincráticas repercussões do racismo ao longo de todo o desenvolvimento dos indivíduos.

Discussão

Os resultados apresentados permitem compreender que, embora as manifestações do racismo percebidas pelos universitários negros tenham assumido formas discretas de enunciação, seus efeitos continuam visíveis e substancialmente nocivos, de modo que a discriminação racial continua perpetrada, sobretudo nos ambientes laborais. Diante disso, quatro estratégias de enfrentamento são mencio- nadas pelos participantes: a) dialogar com indivíduos próximos que entendam o fenômeno e estejam dispostos a auxiliar na compreensão e assimilação dos eventos provocados por ele; b) recorrer à rede de apoio constituída na universidade, como o Movimento Negro; c) denunciar seus impactos; e d) empreender, individualmente, ações de transformação da realidade microcontextual durante a atuação profissional.

No que diz respeito à compreensão dos graduandos negros de que sua raça/cor elicia comportamentos discriminatórios, conforme demonstram os resultados, é possível considerar, como propõe Savickas (2013Savickas, M. L. (2013). Career construction theory and practice. In S. D. Brown & R. W. Lent (Eds.), (vol. 2, pp. 147-183). John Wiley & Sons.), que se trata da introjeção de um dos guias de sua carreira. Assim, a inserção na universidade e, especialmente, as vivências no curso de graduação possibilitadas por ela, parecem contribuir para a identificação de potenciais experiências negativas no trabalho relacionados ao ambiente que passarão a frequentar quando atuarem profissionalmente em sua área de formação do ensino superior. Desse modo, os participantes entendem que os espaços decisórios em suas futuras profissões são compostos predominantemente por pessoas brancas e pertencentes à elite, e que ser negro representa, para o público que será contemplado pela atuação deles, indicativo de incompetência ou de despreparo.

A percepção dos universitários negros a respeito das prováveis experiências negativas no trabalho, além de retratar suas vivências, corresponde ao que se observa na literatura científica (Benedito & Fernandes, 2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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; Ferreira, 2018Ferreira, F. L. (2018). Democracia racial brasileira: Uma piada sem graça. Mediações: Revista de Ciências Sociais, 23(1), 193. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n1p193
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). Nesse sentido, Benedito e Fernandes (2020Benedito, M. de S., & Fernandes, M. I. A. (2020). Psicologia e racismo: As heranças da clínica psicológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229997
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) apontam que o racismo é expressão de um pacto inconsciente, estabelecido pela população branca e transmitido intergeracionalmente, em que se atribui à população negra um status de inferioridade, com o objetivo de perpetuar a dominação sobre ela. Complementarmente, Ferreira (2018Ferreira, F. L. (2018). Democracia racial brasileira: Uma piada sem graça. Mediações: Revista de Ciências Sociais, 23(1), 193. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n1p193
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) observa que para a ideologia racista ser eficaz é necessário que ela neutralize a história e as diferenças, oculte as contradições e impeça que se questione a estrutura social. Além disso, seus efeitos, como observa o autor, produzem uma estereotipia na qual as pessoas negras são consideradas suspeitas, incompetentes e desprovidos de beleza, distorções que atingem esse grupo populacional quotidianamente, ao longo de toda a vida, independentemente da posição social que ocupem (Ferreira, 2018Ferreira, F. L. (2018). Democracia racial brasileira: Uma piada sem graça. Mediações: Revista de Ciências Sociais, 23(1), 193. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2018v23n1p193
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).

Diante desse cenário, os dados apontam que os discentes, com intuito de assegurar a agência sobre o próprio percurso profissional, desenvolvem distintas estratégias de enfrentamento às limitações impostas pelo racismo presente no contexto social. Nessa perspectiva, os entrevistados discorrem sobre a importância da comunicação no processo de assimilação de situações em que experienciaram o racismo. Sendo assim, diante da multiplicidade de formas assumidas por esse fenômeno, a incorporação do diálogo com os pares como um modelo de resposta à violência racial se constitui como uma estratégia de manutenção do processo de construção da carreira, tendo em vista a ineficácia, constatada pelos universitários, do sistema jurídico no enfrentamento ao racismo que os assola pessoal e profissionalmente. Na impossibilidade de garantir uma resposta institucional adequada, baseada na legislação em vigor, os discentes mencionam recorrer aos indivíduos de sua confiança, que compreendam as terminologias envolvidas na discussão étnico-racial, para que os auxiliem a enfrentar os reflexos psicológicos desses eventos estressores, minimizando-os.

No que tange à garantia de intervenções governamentais com enfoque étnico-racial, Santos (2018Santos, R. E. (2018). O movimento negro e a luta pelas políticas de promoção da igualdade racial no Brasil. KWANISSA, 1(1), 139-153. https://bit.ly/3MVPQ2t
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) alerta que se trata de uma tarefa árdua em virtude do emaranhamento do racismo nas instituições e da crença no mito da democracia racial, que se confluem e sustentam a ideologia de que os problemas étnico- raciais no Brasil são secundários em relação aos fatores socioeconômicos. Prevalece, assim, o racismo velado nas organizações sociais e governamentais, dissimulando a discriminação por intermédio da crença na igualdade jurídica de direitos.

Por outro lado, discutir sobre o racismo, de acordo com Nascimento e colegas (2020Nascimento, A. D. S., Souza, G. F. de, Silva, M. Da, & Oliveira, M. S. de. (2020). “Pretitude” e o afroperspectivismo em psicoterapia: Desafios para a abordagem gestáltica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(4), 927-946. https://doi.org/10.12957/epp.2019.49293
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), envolve, além da conscientização a respeito do sofrimento provocado por esse sistema de opressão, a reflexão acerca de sua influência na estruturação da sociedade e no modo como as relações se estabelecem. Trata-se, então, de analisar as hierarquias sustentadas pela imposição do privilégio branco e seus efeitos no cotidiano da população negra. Nesse contexto, segundo Silva e colegas (2020Silva, S. S., Feijo, L. P., Farias, T. M., & Poletto, M. (2020). Parecer branco para não ser discriminado? Revisão sistemática sobre estratégias de embranquecimento. PSI UNISC, 4(2), 114-130. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v4i2.14829
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), reconhecer-se como negro envolve: estar ciente da ideologia fictícia em circulação na sociedade, que confere a seu grupo populacional uma imagem deturpada; ressignificar a própria existência, não se submetendo às imposições do outro; contestar o estabelecimento do modelo eurocêntrico hegemônico; e construir uma trajetória de vida baseada nas próprias escolhas. Desse modo, considerando os relatos dos entrevistados, é possível compreender que a incorporação de um modelo de enfrentamento ao racismo pautado no diálogo, como prevê a TCC, contribui para a preservação do poder de agência dos graduandos negros na gestão de suas carreiras, permitindo que eles mantenham, apesar da segregação racial, o controle sobre suas vidas e percursos profissionais.

Em relação à rede de apoio desenvolvida após o acesso ao ensino superior, destacada pelos discentes, é possível depreender, de acordo com os resultados, que a busca por suporte de grupos ou indivíduos que compartilham vivências e visões semelhantes às do graduando negro representa a incorporação de um modelo em que a construção da carreira é entendida como potencializada na relação com o outro. Quanto ao papel da universidade, sua importância para essa população, segundo Teixeira e Dazzani (2019Teixeira, A. D. M. B., & Dazzani, M. V. M. (2019). Tornando-se negro: Tensões subjetivas e culturais na experiência identitária de ser um estudante universitário negro. Revista de Psicologia da IMED, 11(1), 83. https://doi.org/10.18256/2175-5027.2019.v11i1.3028
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), deve-se à oportunidade, vinculada sobremaneira às atividades extraclasse, de se ter contato com novos conhecimentos e pessoas, que contribuem para uma transformação no sistema de crenças e valores do indivíduo e para a adoção de um posicionamento crítico em relação ao tratamento social dispensado às pessoas negras. Já o interesse em integrar grupos sociais se deve, segundo Tavares e Kuratani (2019Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. de A. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764
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), à busca pelo sentimento de pertencimento e pela possibilidade de se construir uma nova identidade. A interação sujeito-coletivo, como demonstram Nascimento e colegas (2020Nascimento, A. D. S., Souza, G. F. de, Silva, M. Da, & Oliveira, M. S. de. (2020). “Pretitude” e o afroperspectivismo em psicoterapia: Desafios para a abordagem gestáltica. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(4), 927-946. https://doi.org/10.12957/epp.2019.49293
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), proporciona um espaço de cuidado e autoconhecimento em que as relações intra e interpessoais não são regidas a partir da lógica instituída pelo racismo, permitindo um fortalecimento subjetivo de seus componentes.

Em contrapartida, a adoção de uma postura combativa às múltiplas violências de ordem étnico-racial, como os participantes acreditam ser necessário, pode ser entendida como uma resposta à marginalização social que diferentes atores sociais tentam impor a eles, e configura-se, como prevê a Teoria de Construção da Carreira, na incorporação de um modelo que se baseia na resistência a esse processo, estruturado no intento de visibilizar, por meio de denúncias, a lógica cruel de funcionamento do racismo. Acerca dessa estratégia de enfrentamento ao racismo, Silva e colegas (2020Silva, S. S., Feijo, L. P., Farias, T. M., & Poletto, M. (2020). Parecer branco para não ser discriminado? Revisão sistemática sobre estratégias de embranquecimento. PSI UNISC, 4(2), 114-130. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v4i2.14829
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) destacam que a estratégia do sujeito negro é direcionar sua atenção para as próprias necessidades e se distanciar dos papeis sociais atribuídos a ele, a fim de não constituir uma identidade estabelecida por outrem e que o encaminha a uma posição de inferiorização e submissão. Adota-se, então, uma postura de autotransformação, em que o sujeito se impõe diante de situações que o desqualifiquem ou o desabonem. Em relação ao enfrentamento na universidade, Rosa e Alves (2020Rosa, E. G. da, & Alves, M. C. (2020). Estilhaçando a máscara do silenciamento: Movimentos de (re)existência de estudantes negros/negras. Psicologia: Ciência e Profissão, 40, 1-14. https://doi.org/10.1590/1982-3703003229978
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) indicam que, conforme os estudantes negros se apropriam da instituição, eles passam a reivindicar não somente o acesso, mas o direito de se expressar e de incluir a intelectualidade negra nas discussões.

Outra estratégia de enfrentamento às experiências negativas pessoais e profissionais provocadas pelo racismo, conforme relatam os participantes, é a adoção de ações individuais de mudança do meio social, empregadas, em especial, por intermédio da inserção no mercado de trabalho e da atuação profissional orientada pelo enfrentamento aos efeitos da desigualdade racial. As ações dos graduandos podem ser entendidas como uma tarefa de desenvolvimento profissional diante de um fenômeno que atinge não apenas a vida dos graduandos, mas também a das gerações posteriores, com as quais alguns deles estão frequentemente em contato, conforme relatam, devido à trajetória acadêmica em cursos de licenciatura. Dessa forma, como preveem os pressupostos da TCC, os estudantes buscam se inserir em espaços de formação profissional que os permitam intervir nos impactos do racismo percebidos na própria realidade e na de seus congêneres. A instrumentalização teórica para o enfrentamento às desigualdades raciais tende a emergir, assim, como resposta a um expressivo desafio na construção da carreira.

As estratégias de enfrentamento acionadas pelos universitários entrevistados podem ser consideradas como estratégias eficazes (Novaes & Cunha, 2019Novaes, N. F., & Cunha, A. C. B. (2019). Enfrentamento e resiliência familiar na tomada de decisão pela gastrostomia infantil. Psicologia: Ciência e Profissão, 39, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003187678
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; Pagnota & Prebianchi, 2021Pagnota, R. M. N. F., & Prebianchi, H. B. (2021). Estresse e estratégias de enfrentamento em profissionais de abrigos institucionais. Psicologia: Ciência e Profissão, 41, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003193180
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). Sua utilização está relacionada à forma com que os participantes conseguiram se articular para transformar o contexto em que estão inseridos e, consequentemente, poder construir uma carreira que favoreça a constituição de seu autoconceito e a possibilidade de viver seu propósito. Em outras palavras, e em acordo com a TCC, o processo de adaptação (neste caso, as estratégias de enfrentamento) possibilitou que os graduandos negros lidassem com as limitações impostas pelo racismo presente no contexto social.

A decisão dos universitários de buscar meios para transformar seu contexto está de acordo com o que preveem Damasceno e Zanello (2018Damasceno, M. G., & Zanello, V. M. L. (2018). Saúde mental e racismo contra negros: Produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(3), 450-464. https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017
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), que apontam a possibilidade de redução dos efeitos da discriminação racial na saúde mental dos negros quando se provê a atenção a suas demandas. Por sua vez, Silva e colegas (2020Silva, S. S., Feijo, L. P., Farias, T. M., & Poletto, M. (2020). Parecer branco para não ser discriminado? Revisão sistemática sobre estratégias de embranquecimento. PSI UNISC, 4(2), 114-130. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v4i2.14829
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) afirmam que a promoção de uma identidade negra positiva envolve o rompimento do silêncio e a discussão sobre as experiências com o racismo, a fim de que os sujeitos reconheçam o vigor de sua luta. Os autores sinalizam, também, que os movimentos de resistência podem ser individuais ou coletivos, e podem envolver práticas como a atuação cidadã, o reconhecimento de referências culturais e a participação em movimentos sociais (Silva et al., 2020Silva, S. S., Feijo, L. P., Farias, T. M., & Poletto, M. (2020). Parecer branco para não ser discriminado? Revisão sistemática sobre estratégias de embranquecimento. PSI UNISC, 4(2), 114-130. https://doi.org/10.17058/psiunisc.v4i2.14829
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).

Por fim, considerando os desafios associados à construção da carreira dos universitários negros, que abrangem não só o reconhecimento dos danos ocasionados pelo racismo, mas o desenvolvimento de diferentes estratégias para os enfrentar, reitera-se a recomendação de Ambiel e colegas (2019Ambiel, R. A. M., Martins, G. H., Tofoli, L., & Campos, L. P. de. (2019). Variáveis acadêmicas e extracurriculares predizem adaptabilidade de carreira. Psicologia para América Latina, 31, 1-11. https://bit.ly/3KM02ba
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) acerca da necessidade de as instituições de ensino superior aumentarem seus investimentos, a fim de promoverem um desenvolvimento de carreira eficiente aos discentes, oferecendo-os oportunidades, internas e externas à universidade, para que possam desenvolver suas competências e ampliar as chances de uma inserção bem sucedida no mercado de trabalho. Em relação aos graduandos negros, em específico, recomenda-se que as intervenções permitam o fortalecimento das estratégias já adotadas, como o incentivo às atividades organizadas pelos coletivos, a elaboração de projetos específicos ao atendimento psicológico desse público e a ampliação e sistematização dos projetos de intervenção comunitária destinados à difusão da discussão étnico-racial.

Considerações Finais

A presente pesquisa objetivou analisar as estratégias de enfrentamento ao racismo adotadas por universitários negros de uma instituição pública de ensino superior no processo de construção de suas carreiras, tendo como referencial a Teoria de Construção da Carreira. A análise dos resultados indicou que o racismo é percebido como um fenômeno de forte impacto na carreira, sobretudo por subsidiar práticas discriminatórias veladas e limitações de oportunidades profissionais. Em resposta a ele, quatro estratégias de enfrentamento foram identificadas: a) o diálogo com sujeitos próximos; b) a busca por suporte junto à rede de apoio constituída na universidade; c) a denúncia de seus impactos; e d) a adoção de ações individuais de transformação da realidade.

Os resultados encontrados permitem compreender que, diante da introjeção do racismo como um dos guias de carreira, os universitários negros incorporam diferentes modelos para enfrentar seus efeitos, o que envolve medidas individuais e coletivas, a fim de manterem a agência sobre a própria carreira. Isso ocorre devido ao reconhecimento dos prejuízos do racismo ao desenvolvimento pessoal e ocupacional, que se materializa, posteriormente, em uma potencial experiência negativa no trabalho. Sendo assim, essa investigação cumpre com seus objetivos e aprofunda a compreensão das estratégias de enfrentamento empreendidas por essa população para assegurar sua trajetória profissional e contribuir para a de outras pessoas negras.

Entretanto, diante dos obstáculos identificados pelos participantes, tornam-se necessários maiores investimentos das instituições de ensino superior em políticas de permanência para os discentes, de maneira que se contemplem meios para que as estratégias de enfrentamento dos universitários sejam mantidas, aprimoradas e difundidas a todos os estudantes. Por fim, é necessário reconhecer as limitações desse estudo, que foi conduzido em apenas uma instituição de ensino superior localizada na capital de um estado da região sudeste do Brasil e com estudantes majoritariamente matriculados em cursos das Ciências Humanas e Naturais e das Ciências Sociais Aplicadas. Isso restringe a compreensão sobre como pessoas negras de outras instituições, estados da federação e áreas do conhecimento percebem o racismo e lidam com ele. Recomenda-se a realização de novas pesquisas que incluam graduandos negros de um maior número de cursos, estados federativos e instituições. Também são sugeridos estudos que investiguem como a interseccionalidade entre as variáveis raça-cor, gênero, orientação sexual e outras impactam a construção da carreira dos universitários negros, considerando a dinâmica da introjeção de guias e incorporação de modelos, proposto pela TCC.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2021
  • Aceito
    07 Fev 2022
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