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Câncer Materno: A Compreensão da Criança e suas Representações

Maternal Cancer: The Child’s Understanding and Its Representations

Cáncer Materno: Comprensión del Niño y Sus Representaciones

Resumo:

O câncer é uma doença crônico-degenerativa, que tem como uma de suas principais características a capacidade de invadir tecidos e órgãos do corpo, favorecendo o crescimento desordenado de células. É uma doença que impacta fortemente a pessoa enferma e todos à sua volta, incluindo sua família e seus amigos. A partir desse cenário, este trabalho visou compreender a visão da criança e o impacto emocional sofrido diante do diagnóstico de câncer da mãe. Buscou-se avaliar, a partir de ferramentas lúdicas e do desenho-estória, o entendimento da criança em relação ao processo de adoecimento materno, tomando como base o referencial psicanalítico para reconhecer como ela lidou com a situação. Participaram desta pesquisa uma mulher de 39 anos com diagnóstico de câncer em remissão e seu filho de 9 anos. Os resultados demonstraram que o adoecimento materno causou impactos emocionais significativos e assustadores para o infante, gerando fantasias irreais relacionadas ao câncer e a si próprio. Dessa forma, considera-se de fundamental importância o cuidado estendido aos familiares do indivíduo doente, a fim de que se tenha um olhar a todos que sofrem diante desse contexto.

Palavras-chave:
Câncer; Câncer Materno; Sofrimento Infantil; Ferramentas Lúdicas; Desenho-Estória

Abstract:

Cancer is a chronic-degenerative disease that has as one of its main characteristics the ability to invade tissues and organs of the body, favoring the disordered cell growth. It is a disease that strongly impacts the sick person and everyone around them, including their family and friends. Based on this scenario, this work aimed to understand the child’s view and the emotional impact suffered in the face of the mother’s cancer diagnosis. It sought to evaluate, with ludic tools and drawing history, the child’s understanding about the mother’s illness process, based on the psychoanalytic framework to recognize how they deal with the situation. A 39-year-old woman diagnosed with cancer, in remission, and her 9-year-old son participated in this research. The results showed that the maternal illness caused significant and frightening emotional impacts for the infant, creating unrealistic fantasies related to cancer and to himself. Thus, the care extended to the sick individual’s family and to the relatives is considered of fundamental importance, to give a complete care for all those who suffer in this context.

Keywords:
Cancer; Maternal Cancer; Child’s Suffering; Playful Tools; Drawing History

Resumen:

El cáncer es una enfermedad crónico-degenerativa, que tiene como una de sus principales características la capacidad de invadir tejidos y órganos, favoreciendo un crecimiento desordenado de las células. Enfermedades como esta impactan fuertemente a la persona que está enferma y a todos los que la rodean, incluidos familiares y amigos. Considerando esta situación, este estudio tuvo como objetivo comprender la percepción de un niño y el impacto emocional que sufrió ante el diagnóstico del cáncer vivido por su madre. Se pretendió evaluar, utilizando herramientas lúdicas y de dibujo-cuento, la comprensión del niño al proceso de enfermedad materna, buscando reconocer cómo el niño manejó este proceso a partir del referencial teórico psicoanalítico. En esta investigación participaron una mujer de 39 años diagnosticada de cáncer en remisión y su hijo de 9 años. Los resultados mostraron que los impactos emocionales de la enfermedad materna fueron significativos y aterradores para el infante, generando fantasías irreales relacionadas con el cáncer y él mismo. De esta forma, el cuidado extendido a la familia del individuo que está enfrentando esta enfermedad es importante para promover una atención integral a quienes la padecen en este contexto.

Palabras clave:
Cáncer; Cáncer Materno; Sufrimiento Infantil; Herramientas de Juego; Dibujo-Cuento

Doenças crônicas como o câncer causam prejuízos de diferentes ordens para os indivíduos doentes, pois o sofrimento é multidimensional, englobando sintomas psíquicos, dúvidas e questionamentos existenciais, além de preocupações com o contexto familiar e social (Cunha & Rúmen, 2008Cunha, A. D., & Rúmen, F. A. (2008). Reabilitação psicossocial do paciente com câncer. In V. A. de Carvalho, M. H. P. Franco, M. J. Kovács, R. P. Liberato, R. D. C. Macieira, M. T. Veit ..., & L. H. D. C. Barros (Orgs.), Temas em psico-oncologia (pp. 335-341). Summus. ).

Além do indivíduo diagnosticado, o adoecimento crônico afeta todo seu núcleo familiar, seja em sua composição geral ou em relação aos cuidados com a pessoa doente, já que a família tende a se configurar como uma importante unidade de suporte para o enfermo. Essa realidade costuma causar desconforto não só para o paciente como para os seus familiares, configurando essas pessoas como cosofredoras do processo de adoecimento (Gil & Santos, 2021; Sanchez & Ferreira, 2011 Sanchez, K. D. O. L., & Ferreira, N. M. L. A. (2011). Reorganização do sistema familiar na condição do câncer. Ciência, Cuidado e Saúde, 10(3), 523-532. https://doi.org/10.4025/ciencuidsaude.v10i3.12655
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).

Em decorrência do possível encontro com a morte, o câncer normalmente gera sofrimentos e questionamentos. A doença também traz outros relevantes tipos de perda, como a perda do corpo saudável ou do domínio da própria vida (Rossi & Santos, 2003 Rossi, L., & Santos, M. A. (2003). Repercussões psicológicas do adoecimento e tratamento em mulheres acometidas pelo câncer de mama. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4), 32-41. https://doi.org/10.1590/S1414-98932003000400006
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). Ademais, para a mulher, o câncer pode gerar conflitos internos em relação ao papel de mãe, envolvendo a necessidade de esconder ou não do filho seu adoecimento, o medo de prejudicar ou não estar mais presente na vida da criança e não saber como lidar com suas próprias necessidades em conjunto com as do infante (Castro & Job, 2010Castro, E. K., & Job, C. (2010). Câncer na mãe e o impacto psicológico no comportamento de seus filhos pequenos. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 3(2), 136-148. ).

Quando a mãe adoece, é possível supor que surjam questionamentos, medos, dúvidas e inseguranças na criança, repercutidos ao longo do seu desenvolvimento emocional (Nigro, 2004Nigro, M. (2004). Hospitalização: O impacto na criança, no adolescente e no psicólogo hospitalar. Casa do Psicólogo. ). A vivência do câncer materno é uma realidade de difícil compreensão; sendo assim, é importante apreender e entender as fantasias criadas pela criança sobre a enfermidade e sua cura, para que, caso necessário, sejam explicados corretamente os aspectos que ainda se encontram nebulosos, para evitar que a imaginação da criança piore sua percepção sobre esses acontecimentos e gere sintomas prejudiciais a sua saúde (Nigro, 2004Nigro, M. (2004). Hospitalização: O impacto na criança, no adolescente e no psicólogo hospitalar. Casa do Psicólogo. ). É importante que a criança e seu parente adoecido recebam amparo multiprofissional, focado em oferecer orientações e diversas formas de cuidado, para que esse momento seja enfrentado da forma mais positiva possível (Sousa, Reichert, Sá, Assolini, & Collet, 2014 Sousa, M. L. X. F., Reichert, A. P. D. S., Sá, L. D., Assolini, F. E. P., & Collet, N. (2014). Adentrando em um novo mundo: Significado do adoecer para a criança com câncer. Texto & Contexto – Enfermagem, 23(2), 391-399. https://doi.org/10.1590/0104-07072014000710013
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).

Um dos fenômenos presentes no contexto do adoecimento materno é o da angústia de separação, termo relacionado tanto à própria angústia quanto à depressão e ao luto, constituindo-se como um afeto situado entre a fantasia e a realidade (Quinodoz, 2007Quinodoz, J.-M. (2007). Ler Freud: Guia de leitura da obra de Sigmund Freud. Artmed. ). Quando ocorrida de forma comum no desenvolvimento, essa angústia é vista como universal e necessária por ser estruturante para o ego, no sentido do indivíduo passar a se perceber como uma pessoa única, e não mais como uma mera extensão de algum outro ser (Salvador, 2016), gerando maturidade psíquica para que se passe a tolerar o sentimento de solidão (Quinodoz, 2007Quinodoz, J.-M. (2007). Ler Freud: Guia de leitura da obra de Sigmund Freud. Artmed. ). Todavia, no caso de situações de familiares com doenças crônicas, é comum que essa angústia se instale de forma mais intensa na criança, visto que ela pode passar a ter medo de perder definitivamente o ente querido. Nesse sentido, dependendo do grau de angústia presente, a criança pode apresentar diversos sintomas, como: reações emocionais, como a mágoa e a tristeza; psíquicas, como a depressão e a fobia; e até mesmo manifestações somáticas e psicossomáticas (Salvador, 2016Salvador, J. M. (2016). A dor de crescer: Marcas da angústia de separação. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(3), 69-79. ).

Mesmo causando um grande sofrimento para o sujeito, a manifestação de angústias ou conflitos internos de forma somática – ou até mesmo psíquica – tem sempre uma finalidade: a de defesa, mas também a de demonstrar que algo está errado (Myssior, 2007 Myssior, S. G. (2007). Doenças e manifestações psicossomáticas na infância e na adolescência: Construindo uma interseção da psicanálise com a pediatria [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Minas Gerais]. Repositório institucional da UFMG. http://tinyurl.com/7u5b4yj6
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). Dentre as possibilidades de expressão desse sofrimento, está a fobia. De acordo com Freud (1894/ 1996cFreud, S. (1996a). As neuropsicoses de defesa. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899) (vol. 3, pp. 51-72). Imago. (Trabalho original publicado em 1894) ), as fobias têm sua origem na representação, ou seja: quando um pensamento inicial é tido como muito doloroso, para se proteger, a psique faz com que sua representação permaneça na consciência, só que mais fraca. Sendo assim, seu afeto se desliga dela, ligando-se a outras representações que passam então a atormentar o sujeito por não pertencerem àquele lugar, criando o medo exacerbado e a repetição daqueles pensamentos em determinadas situações.

Além disso, é fundamental reconhecer que, no geral, o câncer carrega um estigma de sentimentos negativos e até mesmo de morte. Logo, é considerado usual que a pessoa adoecida e aquelas que estão a sua volta entrem em um estado de luto e passem a pensar na possibilidade e no conceito de morte (Teixeira & Pereira, 2011 Teixeira, R. J., & Pereira, M. D. G. (2011). Impacto do câncer parental no desenvolvimento psicológico dos filhos: Uma revisão da literatura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 24(3), 513-522. https://doi.org/10.1590/S0102-79722011000300012
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). A morte é algo que pode acontecer em qualquer momento da vida, perpassando também a infância; todavia, nesse período de desenvolvimento, esse é um assunto tido como proibido ou impossível, como se não fosse parte natural da vida (Fernandes, 2017 Fernandes, L. M. D. S. (2017). Desenhos estórias de crianças com câncer acolhidas na Casa Hospedaria: Desvelando seus significados [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará]. Repositório institucional da Universidade Federal do Pará. http://tinyurl.com/as6wp5uy
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).

Para Freud (1917/ 2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 249-263). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) ), o luto normalmente é um estado emocional de reação à perda, seja de pessoas, objetos ou estados subjetivos e físicos, como a saúde física. Esse estado se justifica pelo fato de que o indivíduo percebe que o objeto amado não está mais presente e, por isso, precisa retirar toda a libido que foi investida nesse objeto, agora faltante em sua vida. Isso exige um alto gasto energético e mental da pessoa enlutada, que consequentemente mostra-se cansada e apática enquanto está no processo de luto, que pode vir a ser demorado e longo (Freud, 1917/ 2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 249-263). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) ).

Quando tais experiências são vivenciadas no período da infância, é preciso ter certos cuidados e se atentar para que a criança desenvolva recursos e tenha possibilidade de aprender a enfrentar e lidar com o sofrimento. O luto e outras situações enfrentadas nessa fase do desenvolvimento podem ser elaborados por meio do brincar, uma vez que esse meio de expressão facilita as construções da fantasia infantil e a forma como a criança vivencia e percebe a realidade concreta. O brincar é usado, então, como uma das formas de se analisar e compreender o ser que, por ser desejante, será representado por meio da relação entre ego e fantasia. Como dizem Conti e Souza ( 2010 Conti, F. D., & Souza, A. S. L. (2010). O momento do brincar no ato de contar histórias: Uma modalidade diagnóstica. Psicologia: Ciência e Profissão, 30(1), 98-113. https://doi.org/10.1590/S1414-98932010000100008
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, p. 100): “Partimos da hipótese de que fantasiar é necessário para se ampliar o espaço psíquico e os acessos aos cômodos da mente daquele que se apresenta como sujeito”.

Dessa forma, a fantasia pode ser compreendida como a expressão simbólica de conflitos, alegrias, medos e inseguranças. O brincar, além de demonstrar a relação existente entre o inconsciente e o sujeito, pode também ser a forma que a criança utiliza para expressar suas angústias. Ao brincar, a criança vai progredindo e fazendo com que as identificações da brincadeira estejam cada vez mais próximas da realidade que a cerca (Schmidt & Nunes, 2014Schmidt, M. N, & Nunes, M. L. T. (2014). O brincar como método terapêutico na prática psicanalítica: Uma revisão teórica. Revista de Psicologia da IMED, 6(1), 18-24. ). Nesse sentido, como afirma Winnicott (1971/ 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971) ), a fantasia e a criatividade têm um papel essencial na vida infantil, pois é por meio delas que a criança lida e elabora os acontecimentos da realidade. Por outro lado, a fantasia também pode acabar se tornando paralisante e inibitiva, a depender do contexto em que a criança se encontra, fazendo com que a brincadeira deixe de ser criativa e atrapalhe seu desenvolvimento, gerando sintomas (Barros, 2011 Barros, C. V. (2011). O brincar e suas relações com a fantasia: Um estudo teórico-clínico construído a partir das reflexões sobre o brincar e o estatuto da fantasia [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://doi.org/10.11606/D.47.2011.tde-14062011-160858
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).

À luz dessas considerações, por esse ser um fenômeno plural e cheio de possibilidades, faz-se importante a compreensão da visão da criança e o impacto emocional que esta sofre diante do diagnóstico de câncer da mãe, além da avaliação, a partir de ferramentas lúdicas e do desenho-estória, de qual foi seu entendimento em relação ao processo de adoecimento materno, buscando reconhecer como lidou com a situação, tomando como base o referencial teórico psicanalítico.

Método

Trata-se de uma pesquisa com ênfase na metodologia qualitativa, realizada por meio de estudo de caso único, considerando o referencial teórico da psicanálise.

Participante

Foi convidada a participar desta pesquisa uma criança de nove anos, do sexo masculino, residente de Brasília (DF), cuja mãe foi diagnosticada com câncer e estava em processo de remissão da doença. A família do participante foi contatada por meio da rede de contatos da pesquisadora, constituindo uma seleção de conveniência. Os critérios de inclusão utilizados para a participação na pesquisa foram a idade da criança, que deveria ter entre seis e dez anos de idade, e o histórico de adoecimento por câncer de sua genitora, estando ela em tratamento da doença ou em acompanhamento do período de remissão.

Materiais

Foram utilizados o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi lido com a mãe e assinado por ela; e o Termo de Assentimento, que foi lido com a criança e assinado por ela. Ademais, foram realizadas entrevistas com a mãe (entrevista clínica) e com a criança (entrevista lúdica) e a aplicação do procedimento clínico desenho-estória.

Entrevista clínica

A responsável pela criança respondeu a uma entrevista clínica, com duração de 1 hora e 45 minutos, para apresentar informações a respeito de aspectos do desenvolvimento pessoal, emocional e relacional da criança e sua família.

Entrevista lúdica

Uma entrevista lúdica foi realizada no primeiro momento de encontro com a criança, com duração de 25 minutos. Essa entrevista teve a intenção de estabelecer um rapport com a criança e possibilitar o estabelecimento de um vínculo com ela para que, em seguida, fosse realizado o procedimento desenho-estória 1 1 A primeira autora deste trabalho foi responsável pela condução das entrevistas com a mãe, bem como pela aplicação do desenho-estória com a criança. As três autoras realizaram em conjunto a análise dos dados. As interpretações dos desenhos foram realizadas a partir do que aconteceu no encontro entre pesquisadora e participante. Como afirma Figueiredo ( 2020), é no encontro psicanalítico que são vivenciadas a transferência e contratransferência, possibilitadas neste caso pelo bom estabelecimento do rapport entre criança e pesquisadora. . A autora utilizada como referência para a realização e posterior análise da entrevista lúdica foi Aberastury ( 1982Aberastury, A. (1982). Psicanálise da criança: Teoria e técnica. Artmed. (Trabalho original publicado em 1979) ).

Desenho-estória

O desenho-estória é um procedimento que investiga aspectos inconscientes da personalidade, relacionando-os, principalmente, a queixas ou angústias do indivíduo, seja no momento da aplicação e/ou relacionados a alguma situação específica. Sua forma de aplicação envolve a produção de desenhos livres associados a histórias que o próprio examinando conta no contexto do procedimento. No total, neste estudo foram feitas cinco produções e um desenho da família ao final da aplicação (Safra, 1984Safra, G. (1984). Procedimentos clínicos utilizados no psicodiagnóstico. In W. Trinca, A. M. T. Trinca, E. Becker, G. Safra, M. Ancona-Lopes, M. D. E. Santiago, S. R. Jubelini, & T. M. J. A. Tsu, Diagnóstico psicológico: A prática clínica (pp. 73-83). Editora Pedagógica e Universitária. ; Trinca, 1984Trinca, A. M. T. (1984). O diagnóstico psicológico em face das técnicas de investigação clínica. In W. Trinca, A. M. T. Trinca, E. Becker, G. Safra, M. Ancona-Lopes, M. D. E. Santiago ..., & T. M. J. A. Tsu, Diagnóstico psicológico: A prática clínica (pp. 93-101). Editora Pedagógica e Universitária. ).

Procedimentos

Considerações éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, conforme Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. A coleta de dados foi realizada após essa aprovação. Foi assegurado o sigilo das informações dos participantes, bem como sua participação voluntária na pesquisa.

Coleta de dados

Inicialmente, a pesquisadora contactou sua rede de contatos de profissionais da área da oncologia do Distrito Federal, que conversaram com mulheres com perfis compatíveis ao desejado para este estudo e perguntaram se elas teriam interesse em participar da pesquisa, citando o tema geral. A partir disso, a pesquisadora entrou em contato com as mulheres indicadas, convidando-as a participar, desde que estivessem em conformidade com os critérios de seleção de participantes (ter um ou mais filhos de entre seis e 10 anos e estar em tratamento de câncer ou acompanhamento da remissão). A entrevista clínica, realizada com a mãe da criança por meio de videochamada, teve a duração de 1 hora e 45 minutos.

A entrevista lúdica e o desenho-estória com a criança foram realizados na residência do participante e, dentro das possibilidades disponíveis, em um ambiente adequado para o trabalho. Com a permissão da responsável, a entrevista lúdica e o procedimento de desenho-estória foram gravados (somente voz) para posterior análise detalhada.

No procedimento clínico desenho-estória, as etapas da investigação envolveram as seguintes instruções: “Agora vou pedir para você desenhar de forma livre aquilo que lhe vier à mente”; “Agora vou pedir para você pensar em uma história a partir desse desenho” quando a criança termina o desenho; e, por último, “agora vou pedir para que você crie um título para a produção”. Foram feitas algumas perguntas (inquérito) sobre cada desenho. Após a aplicação do procedimento, foi solicitado que a criança desenhasse especificamente a própria família. Esse tipo de instrução teve como objetivo trazer à cena, de forma lúdica, um dos aspectos específicos e fundamentais da vida da criança: sua família (Werlang, 2007Werlang, B. G. (2007). Entrevista lúdica. In J. A. Cunha (Org.), Psicodiagnóstico – V (5a ed., pp. 96-104). Artmed. ). Portanto, ao todo, foram realizadas seis produções pela criança.

Análise dos dados

A análise da transcrição da entrevista com a mãe da criança se deu, principalmente, a partir de três eixos: 1) conhecer o desenvolvimento da criança no geral; 2) saber o que foi e o que não foi dito sobre o diagnóstico de câncer; e 3) compreender como a mãe acredita que a criança possa ter absorvido todo esse processo e se foi perceptível alguma mudança na sua forma de agir, após o diagnóstico e também após constatada a remissão. Já a análise da entrevista lúdica com a criança foi realizada a partir da observação de como ela se expressou por meio do brincar, para que fosse possível conhecer as fantasias envolvidas nesse contexto específico (Aberastury, 1982Aberastury, A. (1982). Psicanálise da criança: Teoria e técnica. Artmed. (Trabalho original publicado em 1979) ).

A análise do desenho-estória, especificamente, seguiu a proposta de Trinca ( 1984Trinca, A. M. T. (1984). O diagnóstico psicológico em face das técnicas de investigação clínica. In W. Trinca, A. M. T. Trinca, E. Becker, G. Safra, M. Ancona-Lopes, M. D. E. Santiago ..., & T. M. J. A. Tsu, Diagnóstico psicológico: A prática clínica (pp. 93-101). Editora Pedagógica e Universitária. ) e Safra ( 1984Safra, G. (1984). Procedimentos clínicos utilizados no psicodiagnóstico. In W. Trinca, A. M. T. Trinca, E. Becker, G. Safra, M. Ancona-Lopes, M. D. E. Santiago, S. R. Jubelini, & T. M. J. A. Tsu, Diagnóstico psicológico: A prática clínica (pp. 73-83). Editora Pedagógica e Universitária. ). Foi analisado cada elemento que surgiu a partir do procedimento, sempre pensando em seus elementos como um todo, ou seja, como um processo, pois cada componente representa uma forma de enxergar as angústias e fantasias que envolvem o fenômeno investigado, que, neste trabalho, foi o adoecimento materno. O primeiro ponto analisado foi o movimento gráfico e verbal, para que se pudessem reconhecer as angústias e fantasias presentes. O segundo ponto foi o estudo de cada um dos cinco desenhos-estória, para identificar possíveis mecanismos de defesa psíquicos evidenciados e para que fosse possível perceber e elencar os recursos utilizados pela criança para solucionar/lidar com seus conflitos e sua capacidade de adaptação.

Resultados e discussão

Entrevista clínica com a mãe

Gabriela (nome fictício da mãe) contou que João (nome fictício da criança participante) foi uma criança muito desejada. Contudo, seu desenvolvimento no início da vida foi conturbado, já que ele nasceu prematuro, com 33 semanas de gestação, e teve infecção hospitalar. Nesse sentido, ela atribui alguns comportamentos apresentados até hoje por João, como a grande necessidade de atenção e toque, ao seu nascimento prematuro.

Quando João tinha um ano e meio, Gabriela engravidou, sem planejamento, da segunda filha, Clara (nome fictício), o que trouxe alguns questionamentos e dúvidas em relação à maternidade, além do sentimento de culpa e medo em relação ao filho mais velho. Além disso, João demonstrava ter muito ciúme da irmã, o que fez com que sua mãe sofresse ainda mais ao “ deixá-lo um pouco de lado ” para cuidar da filha recém-nascida. Esse conflito acabou gerando certo afastamento emocional entre ambas nesse início de vida. Gabriela exemplificou esse afastamento, relatando que não conseguiu amamentar a filha e que chegou a ter uma sensação ruim quando tentava, pois se sentia muito culpada em relação a João e o abandono que ela sentia que estava cometendo. Por isso, nessa época, o marido ficou responsável por dar mamadeira para a filha recém nascida.

Sobre o câncer, Gabriela contou para os filhos que ela tinha um “ carocinho no peito ”, que precisava de cuidados. Ela e o marido costumavam se referir a esse carocinho como um “ dodói ”, sem nunca especificar o que era, ou seja, nunca disseram explicitamente que a doença era o câncer. Eles também nunca contaram como a doença poderia ter surgido ou deram maiores informações a respeito disso. Quando ela adoeceu, João tinha cinco anos e Clara tinha três.

Na visão de Gabriela, após o diagnóstico de adoecimento, João, que já apresentava muitos medos e receios, passou a apresentar sintomas físicos ligados a estes. Segundo ela, o filho já chegou a vomitar ou urinar por se sentir acuado em alguma situação ou com muito medo de um acontecimento que estaria por vir. Um exemplo dado foi sobre a perda dos dentes de leite e seu grande medo de “contrair” o câncer, passando a generalizar qualquer mudança corporal, mesmo que mínima, como relacionada à doença: “ Ele adquiriu essa questão da doença, qualquer pontinho, qualquer carocinho, dores na garganta, ele achava que ele também ia ter algo grave ”.

Gabriela contou também que acabou se afastando de seus filhos, por conta do seu medo de morrer e da necessidade que ela tinha de olhar e cuidar de si, devido à doença: “ Eu não conseguia associar a maternidade a isso, eu só conseguia associar a minha vida ”. Com isso, ela contou que João aproximou-se mais do pai. Ademais, a mãe disse que, mesmo depois que foi constatado um período de remissão da doença, ela apresenta sintomas de ansiedade e pânico toda vez que volta a fazer exames e que isso causa muito medo e ansiedade nas crianças.

Entrevista lúdica e aplicação do desenho-estória com a criança

Ao encontrar a pesquisadora, João indicou saber o motivo do encontro, dizendo que era para “ falar sobre a época que a mamãe ficou doente ”. Ele afirmou que não se lembrava de praticamente nada do adoecimento de sua mãe, mas que sabia que tinha acontecido. Apesar de ter se mostrado uma criança comunicativa, ele também se mostrou retraído, no sentido de tomar cuidado com as palavras, o que talvez se explique como um possível mecanismo de defesa para não tocar no assunto indesejado e causador de seu sofrimento psíquico, vivenciado no período do adoecimento materno. A seguir, encontram-se as interpretações realizadas a partir dos desenhos-estória ( Figura 1 ).

Figura 1
Título dado pela criança: O barco aventureiro.

Estória: “ Um cara tinha comprado esse barco, aí nesse barco, esse cara tinha passado por diversos momentos, ele tinha passado por ondas bem altas, passado por calmaria, que ele não conseguia se mexer, não conseguia fazer nada. Ele tinha atravessado o mundo inteiro, tinha feito muitas coisas desse tipo, que aí depois ele voltou pra casa dele, vendeu o barco e foi pra outro dono que fez a mesma coisa ”. (João)

A partir dessa produção, entendeu-se que João utilizou a referência do homem que comprou o barco para falar de sua mãe. Ao dizer “ esse cara tinha passado por diversos momentos, ele tinha passado por ondas bem altas, passado por calmaria, que ele não conseguia se mexer, não conseguia fazer nada ”, ele poderia estar se referindo à vivência do câncer pela mãe, período em que ela passou por momentos de muito estresse (ondas altas) e impotência, quando não podia fazer nada além de aguardar e torcer por sua melhora.

Ao mesmo tempo, João também podia, de certa forma, estar se referindo a si mesmo, pois “o cara” vendeu seu barco e a pessoa que o comprou “fez a mesma coisa”. Nesse trecho, a criança pareceu estar, a partir de um processo de identificação com sua mãe, expressando seu medo de também vir a desenvolver o câncer e sentir-se passando pelas mesmas coisas que ela, processos que podem estar ligados à transgeracionalidade entre mãe e filho, na qual a figura materna transmite sentimentos, valores, lutos e até mesmo percepções patológicas para a criança, que absorve aquilo que recebe, sem, muitas vezes, conseguir simbolizar de forma saudável, podendo causar sofrimento e sintomas (Gutierrez, Castro & Pontes, 2011Gutierrez, D. M. D., Castro, E. H. B., & Pontes, K. D. D. S. (2011). Vínculo mãe-filho: Reflexões históricas e conceituais à luz da psicanálise e da transmissão psíquica entre gerações. Revista do NUFEN, 3(2), 3-24. ).

Quando questionado sobre a possibilidade de existirem outras pessoas no barco, João respondeu que não havia mais ninguém, demonstrando um sentimento de solidão e afastamento, pois ele estaria sozinho, assim como sua mãe, que já esteve sozinha nesse “barco de emoções”.

Figura 2
Título dado pela criança: O girassol admirador.

Estória: “ Era que, o que veio na minha cabeça foi: um menininho tinha plantado esse girassol. Aí ele nasceu, nasceu, cresceu. Quando ele cresceu, ele viu o sol. Aí, toda vez que ele via o sol, ele achava o sol muito bonito. Aí ele ficava olhando pro sol o dia inteiro, ele fez isso durante a vida inteira dele, aí quando ele tava quase morrendo, ele ficou triste, porque ele ia morrer e não ia mais ver o sol. Quando ele morreu, nasceu outro girassol igual a ele e fez tudo igual ao que ele fez ”. (João)

Na estória, ao contar que “ quando ele (o girassol) cresceu, ele viu o sol. Aí, toda vez que ele via o sol, ele achava o sol muito bonito ... aí quando ele tava quase morrendo, ele ficou triste, porque ele ia morrer e não ia mais ver o sol ”, João poderia estar comunicando seu medo de perder a mãe, caso ela viesse a falecer. Nesse sentido, Gabriela seria o girassol, e o filho, juntamente com outros aspectos importantes da vida dela, seriam o sol, e quando ela estava “quase morrendo”, ou pensando que estava, ficou triste, pois não poderia mais ter contato com tais aspectos importantes. Além disso, João poderia estar expressando por meio dessa estória a separação que sentiu, por parte da mãe, quando ela adoeceu, além da interrupção da simbiose entre os dois (Mahler, Pine, & Bergman, 1975/ 1993Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1993). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (2 ed.). Artmed. (Trabalho original publicado em 1975) ), pois o medo que Gabriela tinha de morrer e seu estado de luto (Freud, 1917/ 2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 249-263). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) ) acabaram fazendo com que ela se afastasse do filho.

Figura 3
Título dado pela criança: O cachorro mais feliz.

Estória: “ Foi assim, esse cachorro, quando ele era filhotinho, um cara pegou ele, aí esse cara tinha levado o cachorrinho pra casa dele, aí ele maltratava muito o cachorro, aí o cachorro cresceu, cresceu, o dono continuava maltratando o cachorro, aí um dia o dono ficou tão bravo com o cachorro, que ele abandonou o cachorro na rua. Aí o cachorro tava lá, ele tava lá todo machucado, dormindo, e aí veio um menininho e achou ele. Aí ele pegou o cachorro e falou que ia cuidar bem do cachorro. Aí quando chegou em casa, ele deu bastante comida, bastante água pro cachorro, cuidou dele, levou no veterinário, aí o menino, toda vez dava comida, dava água, cuidava muito bem do cachorro. Aí quando o cachorro via o menino, ele ficava tão feliz, mas tão feliz, que ele ficava pulando, latindo de alegria, aí é, quando ele via o cara, quando passava, ele ficava todo amedrontado, foi isso que imaginei ”. (João)

A partir dessa estória, levantou-se a possibilidade de que o suposto cachorro ferido e maltratado fosse uma alusão à sua mãe quando em tratamento contra o câncer, época em que João sempre a via chorando ou triste em casa, e, por isso, poderia enxerga-la como muito sensível e “maltratada”. Além disso, por várias vezes, Gabriela disse para João que estava chorando em decorrência “ do dodói do peito ”, explicação que pode ter contribuído para que ele a visse como machucada e triste. O dono que maltratava o cachorro poderia representar o câncer, que maltratava e machucava sua mãe.

Nessa mesma produção, João cita: “ o dono ficou tão bravo com o cachorro, que ele abandonou o cachorro na rua ... e aí veio um menininho e achou ele. Aí ele pegou o cachorro e falou que ia cuidar bem do cachorro ”. Nesse trecho, a criança poderia estar comunicando seu desejo de cuidar da mãe na época em que adoeceu, quando estava machucada, abandonada e triste. Segundo Carneiro et al. ( 2020Carneiro, E. C. D. S. P., Silva, R. M. C. R. A., Pereira, E. R., Lobosco, M. P. J., Andrade, A. C. D. S., & Chicharro, S. C. R. (2020). A percepção da mulher com câncer mamário em relação ao impacto nos filhos. Revista Cubana de Enfermería, 36(1), 1-16. ), a criança que cresce em convívio com o adoecimento materno reage de diversas formas, sendo uma delas a necessidade de cuidado e amparo à figura adoecida. Além disso, no estudo de Gil e Santos ( 2021 Gil, M., & Santos, M. A. (2021). Fatores facilitadores e dificultadores reportados por filhas ao lidarem com a doença e o tratamento oncológico das mães. Interação em Psicologia, 25(2), 180-191. http://dx.doi.org/10.5380/riep.v25i2.72175
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), percebeu-se que, na percepção das filhas de mulheres com câncer, o convívio com o frágil estado da mãe é um dos fatores mais sofridos e que dificultam seus próprios processos de ajustamento, pois intensificam suas inseguranças e medos em relação ao presente e, em especial, ao futuro. Esse processo também pode ter ocorrido com João.

Outro trecho importante foi: “ quando o cachorro via o menino, ele ficava tão feliz, mas tão feliz, que ele ficava pulando, latindo de alegria, aí é, quando ele via o cara, quando passava, ele ficava todo amedrontado ”. Nele, João demonstrou perceber o medo e a ansiedade que sua mãe sentia, e ainda sente, toda vez que faz algum exame para verificar se continua em período de remissão. Segundo a própria Gabriela: “ Na semana que precede os exames, eu ainda choro, ainda fico com medo, e aí eles vêm e me acalentam ”, trecho em que novamente fica evidente a necessidade de cuidado com a mãe por parte de João (Carneiro et al., 2020Carneiro, E. C. D. S. P., Silva, R. M. C. R. A., Pereira, E. R., Lobosco, M. P. J., Andrade, A. C. D. S., & Chicharro, S. C. R. (2020). A percepção da mulher com câncer mamário em relação ao impacto nos filhos. Revista Cubana de Enfermería, 36(1), 1-16. ). Por fim, o título dado à estória foi O cachorro mais feliz , demonstrando a percepção e a esperança de João que sua mãe hoje seja mais feliz, depois de se recuperar do câncer.

Figura 4
Título dado pela criança: O último coala.

Estória: “ Minha história era assim: esse aqui era o último coala do mundo, aí ele vivia fugindo dos humanos que queriam caçar ele, aí ele não tinha tempo pra nada, só pra fugir. Aí um dia, ele ainda era muito novo, mas ele morreu, porque ele morreu de tão cansado que ele tava de fugir das pessoas. Aí quando ele morreu, quase todo mundo ficou sabendo por causa que ele era o único coala que existia no mundo, aí todo mundo ficou falando ”ai que dó, ai que dó, ai que dó”, mas no fundo, eles queriam caçar esse coala, eles só não queriam falar que queriam matar o coala, só pra conseguir carne e pele ”. (João)

A partir dessa produção, entendeu-se que João gostaria de expressar seu desejo de que o câncer pudesse morrer. Quando fala que todos fingiram estar tristes com a morte do coala apesar de na verdade estarem felizes, ele pode ter demonstrado seu alívio ao perceber que o câncer tinha ido embora, ou seja, que havia simbolicamente morrido, mesmo que para isso tenha sido necessário um certo afastamento por parte de sua genitora. Também nesse trecho, João poderia estar tentando expressar o alívio de poder sair da relação simbiótica (Mahler et al., 1975/ 1993Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1993). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (2 ed.). Artmed. (Trabalho original publicado em 1975) ) com a mãe, mesmo que tenha sido gerado certo sofrimento.

Figura 5
Título dado pela criança: A aranha do bem

Estória: “ Era assim: Essa aranha, ela era uma aranha do bem que não queria só fazer mal, picar as pessoas, essas coisas assim. Aí, só que as pessoas não sabiam, aí todo mundo tinha medo dela, ficava querendo pisar, ou sair correndo. Só que aí um dia, tinha um, ela tava numa casa, aí eles tinham um peixe, aí o aquário do peixe tinha caído, aí o peixe tava caindo junto, aí a aranha, aí todo mundo, tava a família toda vendo, a família toda não, o pai só. Aí a aranha via que o peixe tava caindo, aí ela salvou o peixe. Aí é, o pai viu, contou pra família e depois que ouviu que o pai contou que ela salvou o peixe, eles ficaram todo mundo querendo falar, falar pra, na minha história, falar pra aranha que, é ficar pedindo ajuda da aranha toda hora, querendo ser amigo, mas a aranha não aceitou por causa que antes ninguém gostava dela, aí agora só por causa de uma coisa que todo mundo tá gostando ”. (João)

O que chama a atenção nesse desenho é o fato de ter ficado evidente que a figura do pai foi muito significativa para João na época em que a mãe adoeceu. Como Gabriela citou, seu marido foi a ponte e o elo entre ela e os filhos durante todo o adoecimento. Sendo assim, quando cita o pai da história, que faz a ponte entre a aranha e a família, João pode estar querendo expressar a importância dessa conexão. Na produção, a aranha se sentia indesejada e sozinha, até que o pai percebeu seu valor, ou seja: talvez a aranha fosse uma alusão a si mesmo, que se sentiu indesejado e abandonado pela mãe, até mesmo sozinho, até que o pai apareceu e melhorou sua percepção, se fazendo presente e estável. Assim, percebe-se mais uma vez a quebra de simbiose entre a mãe e a criança, trazendo para a relação uma terceira figura, que seria a paterna. Relacionado a isso, nota-se o início da elaboração do complexo de Édipo.

Freud (1905/ 1996bFreud, S. (1996c). Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). (v. 7, pp. 73-111).Imago. (Trabalho original publicado em 1905) ) afirma que esse conceito evidencia a forma que a criança encontra de se colocar no cenário da família, fazendo parte da relação dos pais e colocando-se como sujeito no mundo. Para João, quando a mãe se afastou dele de forma mais prolongada a partir do diagnóstico e tratamento do câncer, um caminho pode ter se aberto para a intervenção e aproximação paterna, levando à identificação da criança com essa figura, para que, enfim, se iniciasse a elaboração do complexo de Édipo.

Figura 6
Título dado pela criança: O desenho da família.

Por fim, foi pedido a João que desenhasse sua família. Primeiramente, ele desenhou o pai e depois a mãe. Ao se desenhar, não falou nada, e então foi perguntado como é estar nessa família. João respondeu que é bom e que, apesar das brigas com a irmã, gosta muito de todos. No desenho, João está ao lado de seu pai, e sua irmã ao lado da mãe, demonstrando como, nesse momento, ele possivelmente se sente mais próximo emocionalmente do pai, reafirmando esse importante vínculo fortalecido.

No geral, por meio do desenho-estória, foi possível acessar processos inconscientes importantes da criança, além do sofrimento psíquico presente, ainda relacionado ao câncer e ao adoecimento da mãe. Essa técnica permite o uso da associação livre e a exploração de aspectos inconscientes que possibilitam o acesso à vida psíquica dos indivíduos e, como afirma Trinca ( 2020Trinca, W. (Org.). (2020). Formas lúdicas de investigação em psicologia: Procedimento de desenhos-estórias e procedimento de desenhos de família com estórias. Vetor. ), um setting adequado pode oportunizar, já nos primeiros contatos, a comunicação dos principais problemas, conflitos e distúrbios psíquicos.

Em seus desenhos, João demonstrou um sentimento de ser diferente e se sentir solitário. Além disso, ele expressou um medo muito grande de “contrair” ou herdar a doença da mãe, talvez por ter dificuldade em se separar dela, indicando resquícios de uma vivência de angústia de separação ainda presente. É importante comentar que os dois primeiros desenhos foram coloridos e de um tamanho que ocupou maior parte da folha do que os três posteriores, como se João, ao entrar em contato – de forma inconsciente – com temas que vivenciou (e vivencia) e que são carregados de angústia, fosse perdendo certa vitalidade e demonstrando maior sensibilidade ao que estava retratando. A seguir, estão elencados alguns temas importantes presentes nos conteúdos apresentados ao longo dos procedimentos utilizados.

Angústia de separação

O nascimento prematuro e a grande necessidade de atenção de João, juntamente com o grande fluxo de cuidados e atenção advindos dos pais, fez com que ele tivesse mais dificuldade em se ver separado dos genitores como um ser individual, diferente e com identidade. Essa dificuldade mostrou-se presente principalmente em relação à genitora, devido à maior atenção que essa dispôs para ele desde seu nascimento, e também à simbiose (Mahler et al., 1975/ 1993Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1993). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (2 ed.). Artmed. (Trabalho original publicado em 1975) ) formada entre eles, expressa por Gabriela nos seguintes trechos da entrevista:

“... eu vejo que eu senti um certo abandono, que estava abandonando o João depois que ela (Clara) nasceu, sabe? Eu pensava: meu deus, eu larguei meu filho bebezinho pra ter outro bebezinho ... Porque realmente o João ficou com muito ciúmes, né? Ele teve muito essa questão da chegada de um outro bebê, então eu acabei me desvencilhando um pouco dessa relação com a Clara. Eu tive dificuldade de amamentar, eu não conseguia amamentar por muito tempo porque é como eu te falei, eu ficava muito preocupada com ele, o sentimento de culpa muito grande, ele tinha sido prematuro, ele precisava de mim ”.

Nesse trecho da entrevista, fica evidente o conceito de simbiose , atrelado ao de família simbiótica . Segundo Mahler et al. (1975/ 1993Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1993). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (2 ed.). Artmed. (Trabalho original publicado em 1975) ), a simbiose faz parte do desenvolvimento infantil, sendo caracterizada como a fase em que o bebê depende completamente da mãe e, com isso, não difere o eu do não-eu, como se mãe e filho estivessem fundidos em um sujeito só. Quando essa simbiose é mantida por mais tempo do que o necessário, é possível que tenha se formado algo que Zimerman ( 2007Zimerman, G. I. (2007). Velhice: Aspectos biopsicossociais. Artmed. ) chamou de família simbiótica, aquela família em que os membros aparentemente se uniram em razão do avassalador amor que um sente pelo outro; na realidade, nessa configuração familiar, nenhum dos membros da família consegue realmente se emancipar, no sentido de se sentir um ser único e independente, fazendo com que qualquer separação mais prolongada seja vista como uma tragédia iminente.

Isso, sem dúvida, acaba por interferir no desenvolvimento da criança, fazendo com que ela sinta mais dificuldade de se desvencilhar da família, a caminho de uma independência sadia. Dessa forma, quando Clara nasceu, não somente João, como também a genitora, tiveram muita dificuldade de se separar e se ver como dois indivíduos independentes. Isso pode ter acontecido também devido à idade de João, na época com um ano e meio e que, como disse Gabriela, “ foi sempre muito mimado e frágil ”. Com isso, a mãe direcionou alguns cuidados de Clara para o pai das crianças, deixando por exemplo, de amamentar a filha, para que ela tivesse mais tempo com João: “ Eu queria que qualquer pessoa desse mamá pra ela, menos eu. Eu não queria ser responsável por aquilo. Porque eu queria muito estar próxima do João ”.

A partir disso, foi perceptível que, para João, tornava-se cada vez mais difícil elaborar esse distanciamento que deveria acontecer de forma natural para a criança em formação, condição que é estruturante para o ego, por meio da identificação de si como um sujeito separado de sua mãe e outras pessoas, ou seja, alguém que possui uma identidade (Salvador, 2016Salvador, J. M. (2016). A dor de crescer: Marcas da angústia de separação. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(3), 69-79. ).

Por receio de fazer com que o filho mais velho sofresse devido ao distanciamento, Gabriela acabou prolongando por muito tempo essa relação simbiótica com João – ainda que inconscientemente – criando assim mais dificuldades para o menino se ver como um ser separado e parcialmente independente dela. Nesse sentido, a relação dos dois se tornou uma relação de família simbiótica (Zimerman, 2007Zimerman, G. I. (2007). Velhice: Aspectos biopsicossociais. Artmed. ), na qual João não conseguia se ver separado da mãe e vice-versa. Dessa forma, qualquer tipo de demonstração de separação mais prolongada, mesmo que momentânea, causava nos dois uma sensação de desamparo.

Quando Gabriela descobriu o câncer de mama, a angústia de separação apareceu novamente para ela e João. A situação do adoecimento crônico foi gerando um grande pavor, relacionado à ideia de possível morte, o que fez com que ambos entrassem em um estado de luto (Freud, 1917/ 2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 249-263). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) ). A partir do diagnóstico, estabeleceu-se um sentimento de perda ou de possibilidade de perda em Gabriela e seus familiares, que, como afirmam Teixeira e Pereira ( 2011 Teixeira, R. J., & Pereira, M. D. G. (2011). Impacto do câncer parental no desenvolvimento psicológico dos filhos: Uma revisão da literatura. Psicologia: Reflexão e Crítica, 24(3), 513-522. https://doi.org/10.1590/S0102-79722011000300012
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), acabaram tornando-se cosofredores nesse processo, incluindo João. Cada um, de sua forma, passou a ter muito medo de perder algo importante. Para Gabriela, o luto estava ligado à percepção de que havia perdido seu corpo saudável e o domínio de sua saúde e vida (Rossi & Santos, 2003 Rossi, L., & Santos, M. A. (2003). Repercussões psicológicas do adoecimento e tratamento em mulheres acometidas pelo câncer de mama. Psicologia: Ciência e Profissão, 23(4), 32-41. https://doi.org/10.1590/S1414-98932003000400006
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), além da possibilidade de deixar de existir, o que consequentemente traria a perda de seus filhos e marido. Para João, o luto estava ligado à possibilidade de perder a mãe, figura de extrema relevância para ele, o que fez com que a angústia aumentasse em níveis elevados. Nesse caso, o nível foi tão alto que ele acabou desenvolvendo reações somáticas, como episódios de vômitos e desregulação do intestino, nos momentos em que se sentia apreensivo ou ansioso, além de um medo excessivo de diversos eventos naturais e objetos, como a perda dos dentes e trovões (Salvador, 2016Salvador, J. M. (2016). A dor de crescer: Marcas da angústia de separação. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(3), 69-79. ). Tais reações somáticas sugerem que ele demonstrava por meio do corpo toda a sua insegurança, ansiedade e medo ligadas à dificuldade de lidar com o contexto vivenciado.

Fobia e somatização

Além das questões apresentadas anteriormente, Gabriela citou que, mesmo após ter sido constatado um período de remissão da doença, João continuou tendo uma preocupação forte de que ele mesmo pudesse contrair câncer por machucados leves, dores, quando apareciam pintas em seu corpo ou pela perda dos dentes:

Ele começou a perder uns dentinhos, com cinco anos, e ele ficava desesperado, não é como aquela ansiedade que a criança tem de perder o dente. Pra ele, perder um dente era como se ele fosse também ter a mesma doença que eu.. . E até hoje ele fala isso, ”mamãe, tem um caroço aqui, eu to com câncer! Será que eu tô com câncer?”. E aí até hoje ele é assim, qualquer coisa que ele vê na pele dele, que ele vê no pescoço, qualquer coisa, qualquer mancha, qualquer pinta, ele entra em paranoia, ele já chora, fica nervoso ”.

A partir desse trecho, pode-se entender que o medo exacerbado de perder os dentes e contrair a doença poderiam representar o medo de se separar da mãe novamente, visto que, em seu relato, a genitora contou que, de certa forma, deixou os filhos de lado quando teve câncer, para olhar e cuidar de si. Nesse sentido, é possível observar vários fatores que contribuíram para que os relatos citados ocorressem: 1) a simbiose, mantida de forma inconsciente pela mãe, ainda presente à época que ela adoeceu (Mahler et al., 1975/ 1993Mahler, M. S., Pine, F., & Bergman, A. (1993). O nascimento psicológico da criança: Simbiose e individuação (2 ed.). Artmed. (Trabalho original publicado em 1975) ); 2) a angústia de separação, que foi mal elaborada pela criança e dessa forma mantida; e 3) e o estado de luto instaurado (Freud, 1917/ 2010Freud, S. (2010). Luto e melancolia. In S. Freud, Obras completas. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916) (vol. 12, pp. 249-263). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1917) ).

Assim, é compreensível que João tenha tido muita dificuldade em elaborar o distanciamento repentino por parte da mãe em decorrência do câncer, pois não havia experienciado isso antes. Além disso, por ter passado por um momento de muito sofrimento e medo durante o adoecimento, João passou a ter medo de que a doença voltasse na mãe ou nele e que com isso, novamente e definitivamente, perdesse a genitora, pois ao se separar dela de forma emocional tão intensa ele já vivenciou dentro de si um sentimento de perda.

Apesar do termo perda normalmente ser atribuído a um acontecimento permanente e o termo separação ser mais relacionado a situações momentâneas, para João, aquela separação, mesmo que momentânea, foi vivenciada como uma perda definitiva, pois como ele nunca havia se distanciado de sua genitora, ao perceber esse movimento por parte dela de forma tão repentina, pensou que a estava perdendo definitivamente (Salvador, 2016Salvador, J. M. (2016). A dor de crescer: Marcas da angústia de separação. Revista Brasileira de Psicoterapia, 18(3), 69-79. ). Como a ideia de perda e morte da mãe era inconcebível para ele, ela continuou consciente, porém enfraquecida. A partir disso, de acordo com a teoria freudiana, a representação da ideia de doença materna e perda da mãe tornou-se intolerável, fazendo com que o afeto dessa ideia se desgarrasse, sendo direcionado para outras noções, como a perda dos dentes e os trovões. Como o afeto não pertencia a essas ideias, a fobia se apresentou de forma tão forte que gerou também reações somáticas em João, como forma de sinalizar que a criança não estava conseguindo elaborar algo (Freud, 1894/ 1996cFreud, S. (1996a). As neuropsicoses de defesa. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Primeiras publicações psicanalíticas (1893-1899) (vol. 3, pp. 51-72). Imago. (Trabalho original publicado em 1894) ).

No procedimento clínico, a criança demonstrou esses sentimentos por meio dos desenhos do barco e do girassol. No desenho do barco, João contou que seu novo dono fez a mesma coisa que o anterior, e na história do girassol que quando o girassol morreu, nasceu outro que fez tudo igual ao anterior. Com isso, pode-se dizer que João expressou o medo da doença se repetir, tanto nele quanto na mãe, além do medo de perder a genitora novamente, quer fosse psiquicamente, emocionalmente ou fisicamente. Segundo Freud (1914/ 1996aFreud, S. (1996b). Recordar, repetir e elaborar (novas recomendações sobre a técnica da psicanálise II). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1913-1914) (vol. 12, pp. 191-203). Imago. (Trabalho original publicado em 1914) ), a repetição acontece quando a resistência envolvendo um fenômeno está demasiadamente grande, fazendo com que o recordar seja substituído pelo atuar, ou seja, repetir aquela dada situação. Nesse sentido, por meio do esquecimento, João demonstrou sua resistência em recordar e elaborar o adoecimento materno, quando disse que não se lembrava de quase nada da época em que sua mãe adoeceu, e ao repetir o adoecimento, por meio de seus sintomas. Ou seja, de forma simbólica, por meio dos pensamentos quanto a também estar com a doença, João repete o diagnóstico de câncer da mãe, dessa vez em seu corpo e de forma somática, ou seja, a partir dos sintomas corporais, ele coloca para fora do self aquilo que está dentro, mas que não consegue elaborar (Winnicott 1966/ 1994Winnicott, D. W. (1994). A enfermidade psicossomática em seus aspectos positivos e negativos. In: D. Winnicott, R. Shepherd, & M. Davis (Orgs.), Explorações psicanalíticas: David Winnicott (pp. 82-90). Artmed. (Trabalho original publicado em 1966) ).

A fantasia do não dito

Quando Gabriela e seu marido contaram sobre o diagnóstico de câncer para os filhos, nunca nomearam ou deram informações necessárias e claras para que as crianças compreendessem o adoecimento em sua totalidade, incluindo como acontece e como seria o tratamento. É possível ligar esse acontecimento ao fato de ser comum que, ao receber um diagnóstico de doença crônica, a pessoa passe por conflitos e dúvidas em relação a diversos aspectos de sua vida. No caso de Gabriela, foi perceptível, a partir do seu discurso, que isso de fato ocorreu, inclusive em relação aos filhos, pois seu medo de prejudicá-los ou não poder mais estar em sua vida contribuiu para que ela contasse sobre seu diagnóstico de forma mais velada, talvez também por pensar que eles não tivessem idade suficiente para entender o que estava acontecendo com ela (Castro & Job, 2010Castro, E. K., & Job, C. (2010). Câncer na mãe e o impacto psicológico no comportamento de seus filhos pequenos. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 3(2), 136-148. ).

Quando as crianças viam a mãe chorando, perguntavam o motivo, e a explicação que recebiam era que o “ dodói do peito ” estava doendo A partir dessa informação, quando João utilizava a fantasia na tentativa de elaborar as informações recebidas, ele acabava relacionando o câncer a um machucado, um “dodói” que faz com que a pessoa chore de tanta dor. Dessa forma, ele passou a enxergar a forma como se contrai a doença de maneira equivocada, relacionando-a a qualquer tipo de machucado, como um joelho ralado ou uma dor no ombro. Considerando esse aspecto, foi possível observar que, depois de passar por diversos momentos de conflito e angústia relacionados à mãe e ao medo extremo de perdê-la, além de seu distanciamento, visto por João como repentino, o fantasiar deixou de estar relacionado à criatividade e à brincadeira e passou a paralisá-lo, a deixá-lo assustado e receoso. Nesse sentido, como não foi explicado corretamente do que se tratava, a criança passou a pensar que qualquer machucado que tivesse ou uma marca diferente no corpo poderiam ocasionar também nele um câncer, pois não tinha recursos para compreender por completo a situação sozinho (Barros, 2011 Barros, C. V. (2011). O brincar e suas relações com a fantasia: Um estudo teórico-clínico construído a partir das reflexões sobre o brincar e o estatuto da fantasia [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://doi.org/10.11606/D.47.2011.tde-14062011-160858
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).

Considerações finais

A partir dos resultados obtidos neste estudo, foi possível perceber que a visão da criança formou-se a partir do que foi dito e demonstrado para ela. Esse fato parece indicar que, por meio das informações fornecidas e também das não ditas, a criança utiliza a fantasia como recurso para elaborar o que lhe foi informado, juntamente com as experiências que vivencia. Mesmo quando não tem as informações necessárias para compreender por completo sua situação, a criança usa a fantasia para conseguir lidar com ela. No entanto, é mais difícil fantasiar e elaborar a partir de uma realidade que a criança desconhece ou não conhece por completo, o que pode fazer com que a fantasia acabe sendo nociva, gerando irrealidades causadoras de ansiedade e angústia. Sendo assim, é importante se atentar às fantasias envolvidas no processo de elaboração do adoecimento, a fim de que se possa apreender a compreensão da criança desse tema.

A angústia, diante do sentimento de possível perda de um ente tão querido e importante como a mãe, parece inevitável. Mesmo aquela criança que recebe, de forma lúdica e adequada, todas as informações necessárias para entender a situação, sentirá algum tipo de angústia em relação ao diagnóstico de doença crônica materna. Nesse contexto, é normal que se apresente a angústia de separação. Todavia, esta pode ser mais atenuada do que a observada neste estudo, dependendo do grau de simbiose com a genitora e da idade da criança. Além disso, este trabalho permite que se perceba a importância de se atentar não somente à pessoa adoecida, mas também aos que estão à sua volta. Como ser em formação, a criança é ainda mais sensível aos acontecimentos da vida, e possui recursos limitados para enfrentar situações novas e difíceis. Por isso, torna-se essencial que ela conte com suporte psicológico adequado ao se deparar com o adoecimento crônico de familiares próximos a si.

Nessa direção, este estudo é de extrema importância, pois, além de evidenciar a capacidade que as crianças têm de lidar com conflitos da vida, ressalta a importância de se atentar a sua saúde psíquica, a fim de preservar seu desenvolvimento saudável e pleno, sem deixar de lado a importância do brincar. Winnicott ( 1975Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Imago. (Trabalho original publicado em 1971) , p. 82) diz: “É bom recordar que o brincar é por si mesmo uma terapia. Conseguir que as crianças possam brincar é em si mesmo uma psicoterapia que possui aplicação imediata e universal”.

Assim, mostra-se essencial que existam mais pesquisas acerca desse tema, para tornar ainda mais claro quais os impactos que o adoecimento crônico parental pode causar na vida da criança, possibilitando novas formas de lidar e abordar esse assunto, tanto com os pais como com as crianças. Para proteger e favorecer o desenvolvimento integral infantil, faz-se imprescindível desenvolver modos de:

Oferecermos à criança recursos que a ajudem a enfrentar da maneira mais sadia possível o que não pode ser evitado; a proporcionar-lhe recursos que lhe facilitem a percepção da experiência e a dar-lhe o apoio que lhe permita expressar de forma segura e de acordo com seu nível de desenvolvimento, as emoções decorrentes da mesma (Neira Huerta, 1983 Neira Huerta, E. D. P. (1983). Aprendendo a preparar a criança para enfrentar situações difíceis e/ou desconhecidas. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 17(1), 27-32. https://doi.org/10.1590/0080-6234198301700100027
https://doi.org/10.1590/0080-62341983017...
, p. 28).

Por fim, identificou-se como limitação deste estudo o fato de não ter sido realizada nenhuma entrevista com o pai da criança-participante, a fim de obter outro ponto de vista e aprofundamento da realidade investigada.

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  • 1
    A primeira autora deste trabalho foi responsável pela condução das entrevistas com a mãe, bem como pela aplicação do desenho-estória com a criança. As três autoras realizaram em conjunto a análise dos dados. As interpretações dos desenhos foram realizadas a partir do que aconteceu no encontro entre pesquisadora e participante. Como afirma Figueiredo ( 2020Figueiredo, L. C. (2020). Vicissitudes do encontro psicanalítico ou o susto com o momento presente. Cadernos de Psicanálise, 42(43), 225-232.), é no encontro psicanalítico que são vivenciadas a transferência e contratransferência, possibilitadas neste caso pelo bom estabelecimento do rapport entre criança e pesquisadora.
  • Como citar:
    Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Câncer Materno: A Compreensão da Criança e suas Representações. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416
  • How to cite:
    Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Maternal Cancer: The Child’s Understanding and Its Representations. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416
  • Cómo citar:
    Valadão, B. H., Cerqueira, A. C., Freitas, F. R. (2024). Cáncer Materno: Comprensión del Niño y Sus Representaciones. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-15. https://doi.org/10.1590/1982-3703003257416

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2021
  • Aceito
    03 Mar 2022
  • Revisado
    25 Jan 2022
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