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A Invenção de um Setting On-line para Atendimento Psicológico Remoto

The Invention of an Online Environment for Remote Psychological Care

La Invención de un Entorno en Línea para la Atención Psicológica Remota

Resumo

Com o advento da covid-19, foi declarado estado de emergência de saúde pública e decretadas medidas de isolamento e distanciamento social para conter a propagação da doença. O Conselho Federal de Psicologia, considerando a importância do acolhimento seguro durante a pandemia, publicou a Resolução CFP nº 4/2020, permitindo que serviços psicológicos aconteçam de maneira remota. O presente estudo visa, através do Método da Cartografia, apresentar a construção de um setting on-line para intervenções grupais e os desafios na oferta de acolhimento e atendimento remoto. Foram ofertados grupos terapêuticos, por meio da plataforma Google Meet, para estudantes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Um diário de bordo foi produzido para acompanhar as forças que atravessavam e constituíam o território e a experiência grupal remota. Compreendemos que o território-espaço-grupal-on-line era composto pelo espaço virtual em que nos reuníamos, pelos espaços individuais de cada integrante e pelas forças que os atravessavam. Observamos que nem sempre os participantes dispunham de um lugar privado, mas estiveram presentes no encontro com câmeras e áudios abertos e/ou fechados e/ou através do chat da videochamada. A participação no grupo funcionou como alternativa no momento de distanciamento social, sendo uma possibilidade para o atendimento psicológico em situações de dificuldade de encontros presenciais; entretanto, se mostrou dificultada em diversos momentos, pela falta de equipamentos adequados e instabilidade na internet, fatores que interferiram nas reuniões e impactaram na possibilidade de falar e escutar o que era desejado.

Palavras-chave:
Atendimento Psicológico On-line; Setting Clínico On-line; Psicologia; Covid-19

Abstract

With the advent of COVID-19, a state of public health was declared, and measures of isolation and social distance to contain the spread of the disease was decreed. The Federal Council of Psychology, considering the importance of safe reception during the pandemic, published CFP Resolution No. 4/2020, allowing psychological services to happen remotely. This study narrates, via the Cartography Method, the experience of inventing an Online Setting for group reception. Therapeutic groups were offered, via Google Meet Platform, to students at the Federal Rural University of Rio de Janeiro. A logbook was produced to accompany the forces that crossed and constituted the territory and the remote group experience. We understand that the territoryspace-group-online was composed by the virtual-space that we gathered, by the individualspaces of each member and by the forces that crossed them. We observed that the participants did not always have a private place, but they were present at the meeting with open and/or closed cameras and audio and/or through the video call chat. Participation in the group worked as an alternative at the time of social distancing, being a possibility for psychological care in situations of difficulty in face-to-face meetings, however, it proved to be difficult at various times, due to the lack of adequate equipment and instability on the internet, factors that interfered in meetings and impacted the possibility of speaking and listening to what was desired.

Keywords:
Online Psychological Care; Clinical Setting; Psychology; Covid-19

Resumen

La llegada de la COVID-19 produjo un estado de emergencia de salud pública, en el que se decretaron medidas de confinamiento y distanciamiento físico para contener la propagación de la enfermedad. El Consejo Federal de Psicología, considerando la importancia de la acogida segura durante la pandemia, publicó la Resolución CFP nº 4/2020, por la que se permite la atención psicológica remota. Este estudio tiene por objetivo presentar, mediante el método de la Cartografía, la elaboración de un escenario en línea para la intervención grupal y los desafíos en la oferta de acogida y atención remota. Grupos terapéuticos se ofrecieron, en la plataforma Google Meet, a estudiantes de la Universidad Federal Rural de Río de Janeiro. Se elaboró un diario para acompañar a las fuerzas que atravesaron y constituyeron el territorio y la experiencia remota del grupo. Entendemos que el territorio-espacio-grupo-en línea estaba compuesto por el espacio-virtual que reunimos, por los espacios individuales de cada integrante y por las fuerzas que los atravesaban. Observamos que los participantes no siempre tenían un lugar privado y que estaban presentes en la reunión con cámaras y audio abiertos y/o cerrados y/o por el chat de la videollamada. La participación en el grupo funcionó como una alternativa en el momento del distanciamiento físico y revela ser una posibilidad de atención psicológica en situaciones de dificultad en los encuentros presenciales, sin embargo, se mostró difícil en varios momentos, ya sea por la falta de medios adecuados o por inestabilidad en Internet, factores que interferían en las reuniones e impactaban en la posibilidad de hablar y escuchar lo que se deseaba.

Palabras clave:
Atención Psicológica en Línea; Entorno Clínico; Psicología; COVID-19

Desde o início da pandemia de covid-19, vírus identificado na China em 2019, o mundo inteiro precisou inventar novas maneiras de viver a vida e realizar as demandas do cotidiano. A Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de emergência de saúde pública de caráter internacional, pois os números de infectados e mortos pela covid-19 cresciam avassaladoramente (Santana, Aragão, & Bernardo, 2021Santana, R. S., Aragão, L. I. S., & Bernardo, K. J. C. (2021). Intervenção psicossocial on-line com idosos no contexto da pandemia da Covid-19: Um relato de experiência. Boletim da Conjuntura, 6(16), 69-83. https://doi.org/10.5281/zenodo.4699155
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). No Brasil, em fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde decretou um período de quarentena, após deliberações feitas pelos governos e secretarias estaduais e municipais, e manteve a quarentena ainda no ano de 2021, convocando toda a população a adaptar a rotina e ficar em casa (Lei 13.979, 2020Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. (2020, 6 fevereiro). Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm
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).

Inicialmente sem vacina e tratamento adequado, específico e eficaz, o isolamento e distanciamento social passaram a ser as principais armas no combate ao novo coronavírus (Fundação Oswaldo Cruz, 2020Fundação Oswaldo Cruz. (2020). Saúde mental e atenção psicossocial na pandemia covid-19: Quarentena na Covid-19: Orientações e estratégias de cuidado. http://dx.doi.org/10.26864/PCS.v9.n2.6
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; Santana, Aragão, & Bernardo, 2021Santana, R. S., Aragão, L. I. S., & Bernardo, K. J. C. (2021). Intervenção psicossocial on-line com idosos no contexto da pandemia da Covid-19: Um relato de experiência. Boletim da Conjuntura, 6(16), 69-83. https://doi.org/10.5281/zenodo.4699155
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). Sair de casa passou a ser consentido apenas em casos de extrema necessidade e todos os estabelecimentos não essenciais foram fechados (Lei 13.979, 2020Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. (2020, 6 fevereiro). Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Diário Oficial da União. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm
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). Muita coisa passou a funcionar apenas dentro dos lares das pessoas, como o estudo, o trabalho e o cuidado à saúde mental. O modo de se relacionar com o mundo externo passou a ser on-line e precisou ser inventado às pressas, enquanto as necessidades sociais e demandas emergiam.

Diversos profissionais da saúde foram convocados para fornecer à população ações com fins de cuidado à saúde, de maneira remota, nas modalidades virtuais. Atendendo a uma das responsabilidades do psicólogo descrita no Código de Ética Profissional, que é “prestar serviços profissionais em situações de calamidade pública ou de emergência” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de ética profissional do psicólogo: Resolução nº 10/05 (3a ed.).), o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou uma Resolução que possibilitava atuação dos profissionais de maneira remota enquanto durasse a pandemia (Resolução nº 4, 2020Conselho Federal de Psicologia. (2020, 4 março). Resolução nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do Covid-19. Diário Oficial da União. https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-4-de-26-de-marco-de-2020-250189333.
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).

Embora a possibilidade de oferta de atividade psicológica remota estivesse regulamentada desde a Resolução nº 3/2000Conselho Federal de Psicologia. (2000). Resolução CFP nº 3, de 25 de setembro de 2000. Regulamenta o atendimento psicoterapêutico mediado por computador. https://www.crprs.org.br/upload/legislacao/legislacao40.pdf
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, e tenha sido atualizada com o avanço das tecnologias de informação e comunicação a partir de discussões posteriores promovidas pelo CFP, na prática, os atendimentos, em sua maioria, aconteciam de modo presencial. Outras resoluções foram publicadas pelo CFP para regulamentar e fiscalizar os atendimentos psicológicos remoto/on-line (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de ética profissional do psicólogo: Resolução nº 10/05 (3a ed.)., 2012Conselho Federal de Psicologia. (2012). Resolução nº 11, de 21 de junho de 2012. Regulamenta os serviços psicológicos realizados por meios tecnológicos de comunicação a distância, o atendimento psicoterapêutico em caráter experimental e revoga a Resolução CFP N.º 12/2005. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/ Resoluxo_CFP_nx_011-12.pdf
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), entretanto, as Resoluções nº 12/2005 e nº 11/2012 estabeleceram que o atendimento remoto deveria ser restrito à pesquisa, com caráter experimental, para a execução de estudos que permitissem regulamentar o serviço e as práticas de acolhimento/oferta de atendimentos, e determinaram ainda a obrigatoriedade de aprovação de Comitê de Ética em pesquisa, além de gratuidade para o atendimento. As resoluções possibilitavam apenas atendimentos pontuais e informativos, como orientações psicológicas, profissionais, de aprendizagem, ergonômica, consultoria, reabilitação cognitiva e processos de seleção de pessoas (Santos, Asfura, Lucena, & Cunha, 2021Santos, E. I. S., Asfura, L. V. N., Lucena, L. M. T., & Cunha, J. V. C. (2021). Entre interdições e possibilidades: Uma revisão bibliográfica das práticas on-line em psicologia nos últimos 21 anos no Brasil. Research, Society and Development, 10(14), 1-19. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i14.22266.
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).

Somente em 2018, o Conselho Federal de Psicologia, através da Resolução nº 11/2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução nº 11, de 11 de maio de 2018. Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP nº 011/2012. https://abre.ai/gPb6
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, ampliou a possibilidade de oferta de atendimento psicoterapêutico on-line, sem limite do número de sessões. Com o advento da pandemia de covid-19, o CFP suspendeu o art. 3º da Resolução nº 11/2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução nº 11, de 11 de maio de 2018. Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP nº 011/2012. https://abre.ai/gPb6
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e publicou a Resolução nº 4/2020, que regulamentou os serviços psicológicos realizados por meio das tecnologias de informação e comunicação até o final da pandemia (CFP, 2020Conselho Federal de Psicologia. (2020a). Resolução nº 4, de 26 de março de 2020. Dispõe sobre regulamentação de serviços psicológicos prestados por meio de Tecnologia da Informação e da Comunicação durante a pandemia do Covid-19. https://abre.ai/gPb9
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).

A decisão viabilizou o atendimento psicológico da população, mas lançou o desafio de encontrar formas de ofertar esse cuidado. Nossa experiência anterior com grupos terapêuticos com alunos de escolas públicas, tanto de ensino médio (Gomes Júnior & Rocinholi, 2021Gomes Júnior, D. A. M., & Rocinholi, L. de F. (2021). Adolescentes escolares: Cartografias de um grupo terapêutico-nômade. Psicologia em Revista, 27(3), 834-851. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n3p835-852.
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) como com universitários, nos permitiu considerar a importância de ofertar cuidado na modalidade de grupos durante o período de isolamento e distanciamento social. Adaptamos a proposta de grupos presenciais ao modo remoto para alcançar os alunos universitários que precisavam de acolhimento diante do novo modo de se relacionar no âmbito acadêmico e pessoal e propusemos oferecer apoio psicológico aos jovens universitários, que inicialmente sofreram com a suspensão das aulas presenciais e posteriormente com o modo remoto de funcionamento das universidades.

Neste estudo, apresentaremos como se deu a construção do setting terapêutico on-line para que acontecessem os encontros de grupos terapêuticos remotos com os estudantes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e os desafios encontrados na oferta de atendimento terapêutico on-line. Procuramos identificar ainda as forças que atravessaram os encontros, modulando a participação dos universitários, e impactaram a construção do setting on-line.

Percurso metodológico

Esta pesquisa foi realizada durante o primeiro ano da pandemia de covid-19, com o intuito de ofertar escuta e acolhimento aos estudantes universitários que necessitavam de cuidados diante das incertezas produzidas pelas modificações nos modos de se relacionar neste período. O estudo faz parte de um projeto de pesquisa de mestrado, que como outros, precisou ser adaptado para, ao mesmo tempo, ofertar o acolhimento psicológico, inventar um modo de acolhimento psicológico remoto e desenvolver uma pesquisa com distanciamento social. Diante da demanda, desenvolvemos uma pesquisa-intervenção na qual realizamos encontros grupais remotos com os estudantes de graduação e pós-graduação da UFRRJ acima de 18 anos, com acesso à internet através de dispositivos tecnológicos. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRRJ (Processo nº 23083.031170/2020-11).

Nosso primeiro passo para alcançar os universitários, tendo em conta que a universidade cumpria a determinação de suspensão das atividades presenciais, foi elaborar e lançar um formulário de inscrição nas redes sociais da UFRRJ, contendo nome, idade, curso, período, endereço, motivo de participar dos encontros e disponibilidade de horário. O êxito das inscrições nos permitiu compor três grupos com universitários, (grupos A (n=4); grupo B (n=4) e Grupo C (n=17)) de acordo com a disponibilidade de horário para os encontros. Todos os grupos tiveram seis encontros, com duração média de 90 minutos e aconteceram por meio da plataforma Google Meet. Embora os temas e demandas de cada encontro tenham sido registrados e constituam material de suma importância, mantivemos neste estudo o inte-

resse e o foco em relatar a construção do setting terapêutico on-line e discutimos as possibilidades que a invenção deste setting proporcionou para oferecer atendimento psicológico on-line em grupo. Os dados referentes às demandas dos universitários durante a pandemia serão apresentados em um artigo posterior, que se encontra em preparo.

No primeiro encontro, dedicamos um tempo para que nos conhecêssemos. Propusemos uma dinâmica de quebra-gelo e uma técnica de apresentação, em que pudéssemos criar elos e proximidade com os participantes. Explicamos que a proposta do grupo era ouvir o que eles quisessem falar e compartilhar, no momento mais conveniente para eles, e que os temas também seriam sugeridos por eles. Combinamos o horário de início e final dos encontros e o modo de participação no grupo: que estivéssemos de câmeras abertas, para que todos nós pudéssemos nos ver.

Os encontros foram conduzidos por um terapeuta, psicólogo, e duas coterapeutas, estudantes do curso de Psicologia da UFRRJ que participaram de outros projetos de extensão e pesquisa do nosso grupo. Os participantes dos grupos não conheciam o terapeuta e/ou as coterapeutas antes do início dos encontros.

Lançamos mão do Método da Cartografia para acompanhar os encontros e registrar as configurações que estes assumiram a cada semana. Cartografar significa acompanhar processos (Barros & Kastrup, 2015Barros, L. P., & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.), ou seja, mais do que representar objetos fixos ou desvendar verdades, a cartografia nos permite construir um mapa da realidade processual que é construída no momento do encontro, com os objetos e coisas relacionadas ao objeto pesquisado, incluindo os pesquisadores. Não pretendíamos desvendar verdades a respeito dos atendimentos psicológicos na modalidade on-line, mas sim, nos interessamos por acompanhar as intensidades e movimentos nos encontros, e assim compreender e mapear as forças que atravessavam o setting on-line no Google Meet.

Como um estrangeiro-cartógrafo, adentramos o território pesquisado despido de preconcepções, e buscamos vislumbrar o mundo-território grupal on-line sem uma ordem habitual, nos afastando de uma roupagem que pudesse naturalizar e criar costumes, numa tentativa de visualizar o novo, o estranho e o curioso (Dinis, 2008Dinis, N. F. (2008). A esquizoanálise: Um olhar oblíquo sobre corpos, gêneros e sexualidades. Sociedade e Cultura, 11(2), 355-361. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5293
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; Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Sulina.), mantendo “a atenção cartográfica - ao mesmo tempo flutuante, concentrada e aberta”, “à espreita” (Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Sulina., p. 48).

Assim, este estudo buscou conhecer como se deu o território-espaço-grupal-on-line enquanto encontros grupais aconteceram remotamente por meio da plataforma Google Meet. Durante os encontros, a partir do que conhecíamos sobre um setting terapêutico presencial, procuramos acessar o plano da experiência da construção coletiva de um setting terapêutico on-line. Fomos mapeando o território em um ambiente virtual, reconhecendo as possibilidades de usufruir e criar um espaço-grupal-on-line, com distanciamento do corpo físico, mas com aproximação social virtual. A escolha desse método se mostrou apropriada porque buscamos construir o caminho enquanto caminhávamos, numa proposta de um hódos-metá, considerando “o primado do caminhar que traça no percurso suas metas” (Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina., p. 17), já que procurávamos conhecer como poderíamos construir um setting on-line ao mesmo tempo em que ofertávamos escuta e acolhimento on-line nos grupos remotos.

Um diário de bordo foi produzido para registrar e acompanhar as intensidades que emergiram em cada encontro. Mais do que um registro objetivo do que foi dito, o diário funciona como um mergulho no plano de forças no encontro, possibilitando um retorno à experiência que se deu enquanto nos reunimos (Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.). Usamos os registros do diário de bordo para apresentar a configuração que o grupo assumiu e como se deu a construção do setting on-line.

Cartografia dos encontros remotos

Os ambientes grupais

A experiência em um grupo on-line era diferente de um grupo presencial por vários motivos, mas também se aproximava em algumas similaridades. Não sabemos, em ambos, se os inscritos para o grupo se tornarão participantes. Abri a chamada do Google Meet e aguardei quem chegaria. Dos sete inscritos, quatro apareceram. Comecei a sondar como o encontro ia se configurando e como a experiência de grupo ia se formando entre nós. Nesta sondagem, percebi que tinha participante com a câmera ligada, mas com o áudio fechado, com a câmera desligada e áudio aberto ou com ambos fechados. Um integrante se apresentou e nos informou que estava tendo um culto evangélico praticamente dentro da casa dele e que preferia manter seu áudio fechado (Diário de Bordo, Encontro 1, Grupo A).

Estrear o grupo na modalidade on-line nos fazia ficar muito curiosos. Nem sabíamos o que observar especificamente, mas estávamos atentos a tudo que poderia surgir deste encontro que era inédito para todos nós. Compreendíamos que para entender como um grupo on-line acontecia, era indispensável estar em um campo on-line e ser afetado pelas forças que nele estavam. Demandava estar em grupo on-line para entender como ele se desenrolaria, uma vez que nenhum conhecimento acerca do encontro é capturado de antemão, fora do encontro (Barros & Kastrup, 2015Barros, L. P., & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.; Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.).

Estávamos diante da novidade em ofertar atendimento psicológico remoto que fora aprovado pelo CFP, com restrições, em momentos anteriores à pandemia, através da Resoluções nº 3/2000Conselho Federal de Psicologia. (2000). Resolução CFP nº 3, de 25 de setembro de 2000. Regulamenta o atendimento psicoterapêutico mediado por computador. https://www.crprs.org.br/upload/legislacao/legislacao40.pdf
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, nº 11/2012 e nº 11/2018Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução nº 11, de 11 de maio de 2018. Regulamenta a prestação de serviços psicológicos realizados por meios de tecnologias da informação e da comunicação e revoga a Resolução CFP nº 011/2012. https://abre.ai/gPb6
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, mas que não havíamos experimentado ainda. A liberação para atendimentos remotos com uso de tecnologia diante da pandemia de covid-19, através da Resolução nº 4/2020, nos possibilitou experimentar não só o atendimento on-line, mas o atendimento na modalidade grupal on-line, que considerávamos adequada devido tanto à alta demanda de atendimentos durante o período de pandemia como também ao isolamento e distanciamento social a que a pandemia nos impôs.

Realizar grupos terapêuticos on-line, no meio da pandemia de covid-19 fez com que adentrássemos no território-on-line com cuidado, observando tudo que poderia surgir no encontro e que nos permitisse compreender como atendimentos on-line em grupo poderiam acontecer. Ou seja, nossa curiosidade estava aguçada, fruto de um estranhamento fundamental para a pesquisa de campo, pois estávamos habitando um território antes não habitado, inventando um modo de fazer grupo-on-line antes não realizado por nós, experimentando a construção de um setting que permitisse acolher os universitários, enquanto ofertávamos acolhimento. Não sabíamos se os participantes disporiam dos equipamentos necessários para o encontro, se a qualidade da internet era suficiente, se os espaços individuais dos participantes permitiriam segurança e sigilo na participação.

No contato direto com o campo de pesquisa, participávamos também da composição daquilo que pesquisávamos (Barros & Kastrup, 2015Barros, L. P., & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.). Assim, o estranhamento nos permitiu abrir mão de concepções anteriores ao encontro e nos possibilitou mergulhar naquela experiência que se construiu enquanto estávamos reunidos on-line, em grupo-on-line. É importante destacar que há pouca publicação científica de estudos sobre intervenções psicológicas na modalidade on-line (Santana, Aragão, & Bernardo, 2021Santana, R. S., Aragão, L. I. S., & Bernardo, K. J. C. (2021). Intervenção psicossocial on-line com idosos no contexto da pandemia da Covid-19: Um relato de experiência. Boletim da Conjuntura, 6(16), 69-83. https://doi.org/10.5281/zenodo.4699155
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) e que, portanto, o campo de atuação estava sendo constituído, para nós e para todos que pretendiam ofertar e receber acolhimento na modalidade on-line no período de pandemia.

Enquanto abríamos a chamada no Google Meet e aguardávamos os participantes, buscávamos manter nossa atenção de maneira concentrada e aberta, como um estrangeiro que explora olhares, gestos, falas, espaços, ritmos, objetos, sem buscar nada específico, mas mantendo-nos atentos a quaisquer coisas que poderiam surgir naquela experiência (Barros & Kastrup, 2015Barros, L. P., & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.). Percebemos que a partir do segundo encontro, os participantes já entravam na chamada com microfone e câmera fechados e abriam à medida que sentiam vontade de compartilhar alguma coisa, numa curiosa dança que mostrava e escondia rostos, ambientes e sons.

Nos demos conta que participar de um grupo on-line, diferente da experiência de grupo presencial, significava habitar simultaneamente diversos ambientes: o lado de dentro da tela, no ambiente virtual do grupo, na videoconferência do Google Meet, onde estavam reunidos nós pesquisadores e os participantes da pesquisa, mas também habitávamos o lado de fora da tela, nos territórios individuais de cada integrante, em suas residências. Isso nos fez compreender que o território-espaço-grupal-on-line era maior do que o espaço virtual, na plataforma Google Meet, em que nos encontrávamos em grupo. Com esta ocupação heterogênea, percebemos que nos mantermos com microfone e câmera fechados era uma tentativa de reduzir as interferências do ambiente de cada participante no ambiente coletivo de grupo. Este jogo de espaços que se entrelaçavam tornava a experiência de grupo on-line e grupo presencial completamente distintas. E, para nós, era sempre uma surpresa a configuração que o grupo assumiria a cada reunião.

Iniciamos o encontro atentos e sensíveis ao modo que o espaço-ambiente-on-line de grupo se formaria. Dei boa noite para quem estava chegando. Alguns abriram as câmeras, outros apenas os áudios e pá! Ouvimos uma criança gritando no fundo enquanto tomava banho em um cômodo ao lado que uma participante estava. A participante-mãe-da-criança, envergonhada, pediu desculpas pelo barulho. Todos rimos e nos descontraímos enquanto a criança atravessava o grupo, gritando: “Mãe, tá falando com quem aí? Eu quero falar também!” (Diário de Bordo, Encontro 1, Grupo B).

Se estávamos interessados em compreender como grupos on-line aconteceriam na quarentena, tínhamos tido uma demonstração muito clara do que poderia significar manter o áudio fechado para conter ruídos no espaço individual de cada participante. Nossa atenção, que estava aberta e à espreita do intempestivo (Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Sulina.), se voltou para uma presença que, mesmo não tendo feito inscrição para os encontros, se colocava como uma força que se expressava com vigor no grupo, numa espécie de criança-força.

Curiosamente, quando não acontecia nenhuma interação da criança com a participante-mãe ou com a câmera, os participantes perguntavam: “Cadê o ‘fulano’? Onde ele está? Hoje ele está tão quietinho! O que aconteceu?” Apesar de não participar conosco das discussões, a criança-força estava sempre presente no grupo, às vezes dando apenas um “olá”, em outros momentos compartilhando algum desenho ou tarefa que realizava enquanto estávamos reunidos, ou acenava para quem estava do outro lado da tela do computador da mãe, como uma força que produzia relevo no plano de forças que se constituía no encontro grupal. Entendíamos que não se tratava de um estímulo distrator, mas de uma linha de força que surgia no encontro e que convocava nossa atenção para compreender o espaço grupal on-line, a mudança produzida no plano-encontro e, ainda, fazia falar a respeito de um processo em curso (Dinis, 2008Dinis, N. F. (2008). A esquizoanálise: Um olhar oblíquo sobre corpos, gêneros e sexualidades. Sociedade e Cultura, 11(2), 355-361. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5293
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; Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Sulina.).

Compreendíamos com essa presença que a pandemia para uma mãe solo era assim: ter a companhia do filho em tudo que fazia. A própria participante-mãe nos contou que precisou adaptar as rotinas de trabalho, estudo e cuidados com a casa, pois as aulas do filho foram suspensas. Contou que sempre precisava criar meios de ocupá-lo enquanto estudava, trabalhava, arrumava a casa e participava do encontro; ele estava sempre com ela e, no nosso grupo, não foi diferente. A realidade da mulher mãe-solo é complexa e, em tempos de quarentena, demandava o enfrentamento de jornadas múltiplas, em tempo integral, relacionadas com os cuidados da casa, com a maternidade, com o trabalho e, no caso desta participante, lidar também com as demandas da universidade (Aiello-Vaisberg, Gallo-Belluzzo, & Visintin, 2019Aiello-Vaisberg, T. M. J., Gallo-Belluzzo, S. R., & Visintin, C. D. N. (2019). A experiência emocional de autoras de Mommy Blogs. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 10(1), 107-130. https://doi.org/10.5433/2236-6407.2019v10n1p107
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; Kretzler, 2020Kretzler, M. K. L. (2020). Impactos da pandemia de coronavírus (Covid-19) no trabalho de home office e maternidade: Percepção de mães do Oeste catarinense [Trabalho de Conclusão de Curso, Universidade Federal da Fronteira Sul]. Repositório Digital UFFS. https://rd.uffs.edu.br/handle/prefix/4042
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). Entendíamos, com isso, que muitos participantes precisavam administrar diversas questões para viabilizar sua participação nos encontros remotos.

Percebemos também que os integrantes não se mostraram avessos às interferências da criança-força, nos fazendo ficar atentos ao manejo que o grupo daria a cada aparição. Compreendemos que o acolhimento do grupo à criança-força permitiu que a participante-mãe ocupasse um lugar de integrante do processo grupal, inventando no encontro, e pelo grupo, um modo de estar em grupo on-line. Este manejo, inventado pelo grupo, foi observado também em outras situações, como quando algum participante começava a falar e a internet caía, o fazendo sair da chamada de vídeo. Observamos que nenhum participante começava a relatar sua experiência enquanto o integrante não retornasse à chamada em grupo e terminasse de compartilhar sua experiência. Não foi necessário que nós, terapeuta e coterapeutas, pedíssemos que o grupo aguardasse o retorno do participante. Observávamos que o modo de operação do grupo e do encontro se construía por todos os participantes, como um manejo do grupo, inventado pelo grupo no encontro (Tedesco, Sade, & Caliman, 2013Tedesco, S. H., Sade, C., & Kaliman, L. V. (2013). A entrevista na pesquisa cartográfica: A experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia. 25(2), 299-322. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200006
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).

Percebíamos que estar em grupo on-line incluía a casa dos participantes e os sujeitos que nela estavam. Era do nosso interesse ouvir e acompanhar o que os participantes tinham a compartilhar nos encontros, mas também compreender todas as coisas conectadas aos participantes, que possibilitavam ou dificultavam que essas expressões acontecessem, tecendo um mapa das linhas que atravessavam e que influenciavam os modos de se apresentar no encontro (Passos & Barros, 2015Passos, E., & Barros, R. B. (2015). A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 17-31). Sulina.).

A câmera aberta revelava que parte do espaço de grupo era composto pelo cômodo que os integrantes estavam ocupando, porém recortado pelo ângulo específico que usavam para mostrar seu rosto. O ambiente físico que fazia fundo para a imagem do participante, o uso de fones de ouvido ou o áudio aberto no viva-voz, fazer uso de celular, notebook ou computador durante o encontro, além de outras pessoas que também estavam no espaço, tudo isso eram elementos que compunham o setting e modulavam a participação nos encontros.

“Uma participante disse: Eu posso falar um momentinho? Eu estava falando aqui agora com o meu marido sobre isso enquanto vocês falavam. Eu falei pra ele: lembra que eu era assim?” (Diário de Bordo, Encontro 2, Grupo B).

Estava claro para nós que nem sempre os participantes disporiam de um espaço tranquilo e reservado para o encontro, uma vez que a quarentena exigia que todos ficassem em casa. Compreendemos que encontros terapêuticos realizados remotamente podem ser ouvidos por terceiros, de maneira intencional ou acidental, uma vez que os encontros acontecem nas residências dos sujeitos (Stoll et al., 2020Stoll, J., Sadler, J. Z., & Trachsel, M. (2020). The ethical use of telepsychiatry in the Covid-19 pandemic. Frontiers in Psychiatry, 11, 665. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2020.00665
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; Cosenza, Pereira, Silva, & Medeiros, 2021Cosenza, T. R. S. B., Pereira, E. R., Silva, R. M. C. R. A., & Medeiros, A. Y. B. B. V. (2021). Desafios da telepsicologia no contexto do atendimento psicoterapêutico on-line durante a pandemia de Covid-19. Research, Society and Development, 10(4), 1-9. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482
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).

É importantíssimo ressaltar este aspecto, pois nem todos que manifestam interesse em participar de encontros on-line, seja em grupo ou individual, dispõem de um lugar privativo e seguro para compartilhar o que sentem, sem que se sintam observados e escutados por outros que não sejam os participantes daquele momento-encontro, principalmente em tempos de pandemia, onde é exigido que todos fiquem confinados em casa, cumprindo medidas de isolamento e distanciamento social. Com os encontros acontecendo nas casas dos participantes, mediados pelos dispositivos tecnológicos, era fundamental viabilizar um espaço que preservasse o sigilo e o espaço de escuta (Bittencourt et al., 2020Bittencourt, H. B., Rodrigues, C. C., Santos, G. L., Silva, J. B., Quadros, L. G., Mallmann, L. S., Bratkowski, P. S., & Fedrizzi, R. I. (2020). Psicoterapia on-line: Uma revisão de literatura. Daphora: Revista da Sociedade de Psicologia do Rio grande do Sul, 9(1). https://doi.org/10.29327/217869.9.2-6.
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). A garantia do sigilo faz com que os participantes se sintam protegidos, possibilitando que expressem o que não seria dito em qualquer lugar, guardando para o momento de grupo o que era particular do grupo (Monteiro, Raimundo, & Martins, 2019Monteiro, A. C. L., Raimundo, M. P. B., & Martins, B. G. (2019). A questão do sigilo em pesquisa e a construção dos nomes fictícios. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 9(2), 157-172. http://dx.doi.org/10.26864/PCS.v9.n2.6
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; Dias & Rego, 2020Dias, F. A., & Rego, S. (2020). Estudo sobre a formação ética dos estudantes de psicologia. Research, Society and Development, 9(4), 1-17. https://doi.org/10.33448/rsd-v9i4.2978
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).

Em alguns momentos, percebíamos que os integrantes pareciam não ter problemas de serem ouvidos por outras pessoas nas suas residências, assim como já havíamos presenciado momentos em que era possível ouvir pessoas falando em um ambiente bem próximo e algumas vezes vê-las transitar pelo mesmo espaço. Apesar de fazerem uso de fones de ouvido, nem sempre demonstravam incômodo pela possibilidade de serem ouvidos pelos familiares. Pudemos perceber que apesar dos participantes em determinados momentos se sentirem à vontade para falar, mesmo com outras pessoas circulando no seu próprio espaço-individual de grupo, percebíamos que havia um rearranjo à participação dos demais participantes na chamada no Google Meet. Diferente do acolhimento dado à criança-força, observamos uma redução da fala e participação dos integrantes depois da entrada da força-marido no nosso encontro. Reforçávamos que os participantes poderiam compartilhar o que quisessem, da forma que fosse melhor e mais confortável e reafirmávamos que estávamos construindo juntos o espaço-território-grupal-on-line.

No encontro seguinte, alguns integrantes convidaram os outros a usar fones de ouvido e procurar um lugar mais privativo para que todos se sentissem à vontade naquelas horas que estávamos reunidos. Para nós, evidenciou que o próprio grupo estava se articulando de maneira autônoma para lidar com os atravessamentos imprevistos. Fomentávamos uma discussão, para que os participantes construíssem conosco um modo de habitar o território on-line de maneira sigilosa e acolhedora. Observamos, a partir desse convite, que os participantes passaram a tomar mais cuidado com as interferências de outros adultos no ambiente.

Para nós, era indispensável assegurar o sigilo sobre tudo que era dito em todas as ocasiões que nos reuníamos, cumprindo as disposições sobre o sigilo profissional atribuídos pelo CFP, do mesmo modo que fazemos nos grupos presenciais. Desse modo, diante da fala da participante sobre o comentário com o marido, reafirmamos nosso contrato de sigilo terapêutico com todo o grupo. Segundo o artigo 9º do Código de Ética Profissional do Psicólogo: “É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade de pessoas, grupos ou organizações a que tenha acesso no exercício profissional” (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Resolução nº 12, de 18 de agosto de 2005. Regulamenta o atendimento psicoterapêutico e outros serviços psicológicos mediados por computador e revoga a Resolução CFP n° 3/2000.). Nos grupos presenciais, tínhamos o cuidado de encontrar espaços que dessem mais garantia de sigilo, ficando no encontro o que acontecia ali, pois dizia respeito apenas a quem estava reunido naquele momento (Gomes Júnior & Rocinholi, 2021Gomes Júnior, D. A. M., & Rocinholi, L. de F. (2021). Adolescentes escolares: Cartografias de um grupo terapêutico-nômade. Psicologia em Revista, 27(3), 834-851. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n3p835-852.
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).

Observávamos que inventar um setting on-line atravessava os desafios de manter-se seguro em casa durante a pandemia e que nem sempre havia possibilidade de participar dos encontros em um ambiente privado, sem outras pessoas, o que era um desafio para nós na construção de um setting sigiloso. Percebemos que nem sempre o espaço residencial era suficiente para oferecer a privacidade que esperávamos. Belizário, Arruda, Stedile e Belizário (2020Belizário, M. A. S., Arruda, L. V., Stedile, L. L. M., & Belizário, B.C. S. (2020). Verso e reverso da Covid-19 e o isolamento social: Alterações e impactos na dinâmica de convivência no/do lar. Revista Rural & Urbano, 5(1), 274-294. https://periodicos.ufpe.br/revistas/ruralurbano/article/view/248078
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) apontaram, no seu estudo sobre os impactos da covid19 nas relações com os espaços residenciais e com os sujeitos que residem nestes espaços, que a maioria dos participantes morava em casa ou apartamento na cidade e dividia a moradia com três ou quatro outras pessoas, reforçando nosso entendimento sobre as dificuldades de encontrar um espaço físico privado para os encontros.

Apesar de termos construído um contrato terapêutico no primeiro encontro, acerca do sigilo e do modo de participar das reuniões, percebemos que o contrato precisava ser ajustado a cada imprevisto-força que se apresentava. O acolhimento da criança-força pelo/no grupo modificou o contrato terapêutico, acordado na ação dos participantes de acolher e se interessar pela criança. Em outro momento, após sermos atravessados pela força-marido, o grupo se mobilizou para que o contrato terapêutico verbal fosse revisitado e ajustado.

Compreendemos que construir um espaço on-line para atendimentos psicológicos atravessava diversas questões, como: que tipo de espaço está sendo construído dentro da tela do dispositivo tecnológico que mediava nosso encontro? De que maneira tudo que pode estar atrás desta tela, contido no espaço físico de cada participante, poderia atravessar e interferir no encontro? Como estes espaços impactariam para o sigilo e privacidade que o ambiente terapêutico demanda? Entendemos que não bastava que os participantes tivessem interesse em compartilhar seus afetos nos encontros para que a participação fosse potente e leve. Era necessário também que os espaços dentro e fora da tela possibilitassem a participação, expressão e compartilhamento seguro daquilo que se sentia, vivia, pensava, dentre outros.

Inventando coletivamente um ambiente de grupo on-line

Enquanto espreitávamos os modos que os participantes se colocavam nos encontros, percebemos que eles não abriam seus áudios e vídeos juntos. Embora o participante pudesse manter-se calado, entendíamos que no on-line, manter-se calado poderia significar estar apenas com o áudio fechado (em silêncio para o grupo on-line) ou manter-se literalmente em silêncio, com o áudio aberto. Entretanto, manter o áudio fechado não significava necessariamente uma falta de vontade de falar. Abrir o microfone junto poderia produzir dificuldade no entendimento, porque os sons se misturavam.

Iniciamos o primeiro encontro com um quebra gelo chamado “nome e movimento”, onde os participantes deveriam se apresentar com um movimento e todo o grupo deveria repetir. Era muito difícil saber quando algum participante iria falar, porque era aleatório, o que fazia com que vários abrissem os áudios e falassem ao mesmo tempo e dificultava nossa compreensão. Alguns caíam no meio da fala, por conta da internet com sinal ruim, outros não sabiam se o colega já tinha parado de falar ou se era apenas uma pausa e já atropelavam sua fala. (Diário de Bordo, Encontro 1, Grupo C).

Em outros grupos, quando realizávamos encontros presenciais, percebíamos que alguns participantes davam pistas não-verbais sobre quando falariam ou quando haviam terminado de falar. Direta ou indiretamente havia uma sinalização que poderia indicar que aquela pessoa falaria algo. Alguns se movimentavam, se endireitavam ou percebíamos que estavam prontos para falar porque, de certa forma, nossa atenção, que estava aberta e sem foco, era despertada para algo. Ulkovski, Silva e Ribeiro (2017Ulkovski, E. P., Silva, L. P. D., & Ribeiro, A. B. (2017). Atendimento psicológico on-line: Perspectivas e desafios atuais da psicoterapia. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde, 7(1), 59-68. http://periodicos.unincor.br/index.php/iniciacaocientifica/article/view/4029
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, p. 62) apontam algumas dificuldades nos atendimentos on-line, como “as dificuldades em rastrear pistas não-verbais, a entonação na voz (se baixa, alta ou monótona), perceber os silêncios, as pausas (prolongadas ou leves)”. Observamos que quando o participante só dispunha do áudio para participar dos encontros, as pistas ficavam mais difíceis de serem capturadas. Enquanto dois participantes abriam os áudios ao mesmo tempo, nós não sabíamos para qual narrativa dar atenção, os sons das duas falas se misturavam e pouco era compreendido. Como dito anteriormente, nossa atenção estava aberta ao conteúdo narrado, mas também ao modo de conseguir ou não narrar, capturando as forças que convocavam foco à nossa atenção, revelando um relevo no plano-grupal que cartografávamos (Dinis, 2008Dinis, N. F. (2008). A esquizoanálise: Um olhar oblíquo sobre corpos, gêneros e sexualidades. Sociedade e Cultura, 11(2), 355-361. https://doi.org/10.5216/sec.v11i2.5293
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; Kastrup, 2015Kastrup, V. (2015). O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 32-51). Sulina.).

Nos demos conta de que nossa percepção era modificada na nova configuração de grupo. Não mais olhávamos para os lados, movendo o pescoço, em direção a algum participante, como nos grupos presenciais. No on-line, todos estavam reunidos numa mesma tela e bastava apenas mover os olhos para nos atentar a outro participante. Enquanto os integrantes mantinham os áudios fechados, não sabíamos quem abriria e falaria. Cosenza, Pereira, Silva e Medeiros (2021Cosenza, T. R. S. B., Pereira, E. R., Silva, R. M. C. R. A., & Medeiros, A. Y. B. B. V. (2021). Desafios da telepsicologia no contexto do atendimento psicoterapêutico on-line durante a pandemia de Covid-19. Research, Society and Development, 10(4), 1-9. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482
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) apontam os desafios de desenvolver uma relação terapêutica on-line, uma vez que o contato visual acurado, a observação do gestual completo e a percepção acerca dos comportamentos não-verbais e da expressividade do corpo ficam limitadas pela tela do computador ou do dispositivo tecnológico que faz a mediação da participação no atendimento.

Atentos a essas dificuldades impostas pelo meio de comunicação, rastreamos os modos de falar no grupo e, no decorrer dos encontros, identificamos uma curiosa mudança. Alguns participantes começaram a abrir o áudio e perguntar: “Alguém vai falar? Posso falar?” Quando o grupo consentia, a pessoa compartilhava o que desejava. Também observamos que alguns participantes perguntavam se todos estavam vendo e ouvindo o que era transmitido durante o encontro, e quando não eram vistos e ouvidos da melhor forma, modificavam a posição das câmeras e dos celulares, para melhorar a compreensão. Compreendemos que a participação em um grupo on-line exigia uma entrada mais polida do que no grupo presencial e parecia haver uma amplificação promovida pelo ambiente on-line que exigia uma frenagem ou moder(ação); a ação era modulada no tempo do grupo on-line. Em alguns momentos, a impossibilidade de falar junto, somando na fala do outro, concordando ou discordando, dificultava o compartilhamento de questões. O tempo da interferência do outro modificava o estado de estar no grupo on-line e o diferenciava do grupo presencial.

Realizar grupos on-line nos fazia perceber que era necessário inventar um espaço-on-line para o grupo, no coletivo, com os participantes. Em alguns encontros, apenas nós, terapeuta e coterapeutas estávamos com o vídeo aberto e isso nos intrigava, pois não entendíamos os motivos. Não queríamos impor um modo de estar no grupo, mas entendíamos que era necessário compartilhar esta impressão com os participantes e que, em conjunto, buscássemos uma forma mais tranquila e confortável para que nos encontrássemos, reavaliando nosso contrato terapêutico. Não queríamos um modelo, mas um jeito-confortável-e-leve-e-possível de nos encontrar. No presencial, fazíamos questão de dizer para os participantes que se sentassem como quisessem, deitassem no chão caso sentissem vontade, tirassem os sapatos. Inventávamos juntos um ambiente livre e leve, para que todos pudessem compartilhar como se sentiam (Gomes Júnior, Araújo & Rocinholi, 2020Gomes Júnior, D. A. M., Araújo, S. M. S., & Rocinholi, L. F. (2020). O contexto escolar e a promoção de saúde em adolescentes. In A. C. A. Peixoto, C. C. Vicente, & L. F. Rocinholi (Orgs.), Práticas na formação em psicologia: Supervisão, casos clínicos e atuações diversas (pp. 17-38). Appris.; Gomes Júnior & Rocinholi, 2021Gomes Júnior, D. A. M., & Rocinholi, L. de F. (2021). Adolescentes escolares: Cartografias de um grupo terapêutico-nômade. Psicologia em Revista, 27(3), 834-851. https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2021v27n3p835-852.
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). Nos encontros on-line sentíamos que era também necessário compartilhar isto com os grupos:

Abrimos um espaço no encontro para compartilharmos nossas impressões sobre o grupo on-line e os modos de estar nele. Uma participante iniciou falando sobre a dificuldade de estar conosco: “Eu tenho uma criança aqui… então ele iria ficar tentando falar junto comigo. Se eu coloco a câmera [abrir o vídeo durante a chamada], na hora ele cola do meu lado e quer vir participar. E aí eu fecho, senão vai atrapalhar todo mundo. Eu prefiro ir abrindo e fechando a câmera. Por mais que tenha dificuldade, é muita emoção ver gente, ainda mais depois do coronavírus, que a gente tá trancado.

Outro participante completou: “Eu só estou com a minha fechada porque eu estou sem camisa. Está um calor do caramba aqui dentro de casa” [Compreendíamos que muitos ficavam mais à vontade do que imaginávamos].

Outra participante contou: “Eu em relação ao microfone, tanto faz ligar ou desligar. Mas tem que desligar, né? Porque às vezes o som da casa… Tem outras pessoas da casa e aí complica, atrapalha.

Outra participante completou:

Assim… tem dias que eu quero ser vista, tem dias que eu não quero. A minha dificuldade maior é o tempo que a gente tá aqui. Por exemplo, em uma hora e meia ou uma hora e quarenta eu já estou doida para sair. Semana passada eu fiquei estressada. Nem em uma aula da faculdade eu fico duas horas direto. É cansativo. Por que a gente fica o tempo inteiro aqui ó… na frente do computador, na frente de uma tela digital. Isso é uma coisa que faz muito mal para a gente. De resto, está tudo tranquilo. (Diário de Bordo, Encontro 3, Grupo B).

Foi importante ter aberto um espaço para pensarmos juntos no melhor modo de conduzirmos os encontros. A modalidade on-line guarda a potencialidade de ser uma modalidade de atendimento em situações onde não há possibilidade de sair de casa, oferecendo certa facilidade no acesso à oferta de atendimento (Ulkovski, Silva, & Ribeiro, 2017Ulkovski, E. P., Silva, L. P. D., & Ribeiro, A. B. (2017). Atendimento psicológico on-line: Perspectivas e desafios atuais da psicoterapia. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde, 7(1), 59-68. http://periodicos.unincor.br/index.php/iniciacaocientifica/article/view/4029
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). Porém, cada participante se encontra em um espaço físico diferente, de modo que as interferências do ambiente, como calor ou sons da casa, são também diferentes para cada um, e podem ser apontados como analisadores para o funcionamento do grupo on-line.

Ressaltamos que os encontros aconteceram durante a pandemia de covid-19 e, neste período de quarentena, não era apenas o grupo que acontecia on-line; outras atividades aconteciam remotamente e exigiam que algumas pessoas passassem boa parte do dia em frente ao computador, de modo que o tempo de duração do grupo foi identificado como um analisador. Nosso interesse era construir coletivamente um espaço de acolhimento para todos, mas diante da fala da participante apontando a dificuldade, ficamos atentos para o horário de término acordado com o grupo, 90 minutos, e que estávamos ultrapassando. Nosso objetivo não era levar uma fórmula pronta para realizar o encontro e simplesmente aplicarmos com aqueles participantes, até porque nunca havíamos proposto grupos on-line. Nossa proposta era cartografar os encontros, buscando habitar um território existencial sem nos colocar de modo hierárquico diante do objeto da pesquisa. Coabitávamos no grupo um plano comum, onde era indispensável convidar os integrantes dos grupos para inventar conosco e construir conjuntamente o melhor jeito de nos reunirmos, nos inserindo também numa posição de aprendiz-cartógrafo (Alvarez & Passos, 2015Alvarez, J., & Passos, E. (2015). Cartografar é habitar um território existencial. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 131-149). Sulina.).

Neste mesmo encontro, reforçamos que o grupo tinha autonomia para falar quando quisesse, sem a necessidade de nos pedir a palavra ou esperar sua vez. Fomos percebendo que muitos participantes acabavam falando mais do que outros, mas não interferíamos no tempo que cada participante tomava para se expressar. Combinávamos um horário confortável para iniciar e encerrar nosso encontro e, quando chegava próximo desta hora, sinalizávamos que era necessário encerrar. Compreendíamos que era necessário que o grupo desenvolvesse sensibilidade de maneira própria e espontânea e não a partir de comandos nossos. Não estávamos ali para determinar a quantidade de minutos que cada um seria ouvido. Pelo contrário, o grupo estava sendo gerido por si só. Percebemos, também, que a participante que reclamou da duração do encontro era, paradoxalmente, a que mais falava.

Aos poucos, entendíamos que o grupo ia encontrando formas próprias de se comunicar, de falar, ouvir e participar com mais equidade. Enquanto acompanhávamos os encontros, reforçávamos que o espaço de grupo poderia ser usado da forma que os participantes quisessem. Para nós, era fundamental que os integrantes se sentissem à vontade para compartilhar sobre suas vidas, sem que nós terapeutas tivéssemos controle sobre o que poderia ou não ser dito ou qual seria “a vez” de cada participante falar. Percebemos que construímos, coletivamente, um modo autônomo de estar no grupo, de maneira horizontal. Éramos terapeutas e estudantes, mas todos participantes, numa relação que não se verticalizava. Inventamos, em conjunto, os modos de adentrar e participar dos encontros.

Passamos a ouvir participantes falarem coisas como: “Deixa eu parar de falar um pouco e deixar o pessoal falar também” e, em um momento em que uma integrante estava sem poder abrir o áudio, alguém no grupo disse: “Pode escrever, a gente aceita também, porque senão a gente vai ficar muito calado aqui… quer acrescentar algo?” De maneira interessante, observamos que, nos primeiros encontros, os participantes passavam mais minutos falando, sem serem interrompidos, enquanto os demais escutavam. Com o passar do tempo, percebemos que o encontro se tornava uma conversa, com troca, onde todos falavam e queriam ouvir os demais participantes. Curiosamente, não fomos nós terapeutas que estabelecemos os critérios de participação ou os modos que deveríamos nos relacionar.

Apesar de divulgarmos que os critérios de participação nos encontros eram ter acesso à internet e dispositivos tecnológicos como celular, computador, dentre outros, nem sempre os participantes se expressavam abrindo o áudio, o que para nós foi uma surpresa. Em diversos momentos, sinalizavam com gestos ou escreviam no chat da plataforma Google Meet. Quando isso acontecia, os próprios integrantes informavam o motivo: a internet instável, não se sentiam à vontade pra falar por ter alguém por perto, não estavam com um equipamento de áudio que funcionava adequadamente ou não estavam com vontade de falar.

Tivemos um encontro onde a comunicação por chat foi curiosa e muito importante para nos fazer compreender o ambiente grupal e o efeito que uma mensagem escrita poderia produzir na composição da discussão grupal. Enquanto uma participante estava falando que tinha dificuldades com a faculdade por estar doente, vimos uma interação dupla entre áudio e chat.

Uma participante nos contou que tinha uma doença autoimune, que a fazia gastar a maior parte do seu dinheiro com medicação. Se sentia com uma corda no pescoço, tentava ser resiliente, mas seguia exausta. Disse: “Como não ficar insegura e desanimada? Fica difícil estando doente e desempregada”. Fiquei pensando: realmente, como não ficar desanimada? Como a gente consegue traçar linhas de fuga diante de uma situação dessa magnitude?

Antes que eu pudesse pensar em perguntar qualquer coisa, outra participante rapidamente abriu o áudio e disse que já tinha passado por algo parecido e que, ao cortar o glúten da sua alimentação, tinha sentido considerável alívio. Soltou uma frase que me marcou muitíssimo (que inclusive a repeti no final do encontro): “Melhor não comer pão do que sentir dor… dá pra substituir tudo!”. Pronto! Era a faísca que nos acendeu pra inventar linhas de fuga… sim, dava pra substituir tudo!

Pouco tempo depois, a participante enviou muitos links de vídeos no chat do Google Meet sobre os impactos que o glúten tem na dor, formas de substituir o glúten, como melhorar a alimentação, sugerindo que ela assistisse para aprender e incorporar esses novos hábitos na vida (Diário de Bordo, Encontro 1, Grupo B).

Vimos o chat surgindo como uma comunicação paralela ao que estava acontecendo no áudio e vídeo, que também é encontro, e que revela a natureza viva e dinâmica das nossas reuniões em grupo. No presencial, percebíamos isso quando algum integrante se virava para o lado e cochichava algo com outro integrante. Entendemos que os atendimentos psicológicos on-line podem ser mediados por mensagens instantâneas, através de chamada coletiva de vídeo, chamada de voz ou através de um chat (Ulkovski, Silva, & Ribeiro, 2017Ulkovski, E. P., Silva, L. P. D., & Ribeiro, A. B. (2017). Atendimento psicológico on-line: Perspectivas e desafios atuais da psicoterapia. Revista de Iniciação Científica da Universidade Vale do Rio Verde, 7(1), 59-68. http://periodicos.unincor.br/index.php/iniciacaocientifica/article/view/4029
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; Stoll et al., 2020Stoll, J., Sadler, J. Z., & Trachsel, M. (2020). The ethical use of telepsychiatry in the Covid-19 pandemic. Frontiers in Psychiatry, 11, 665. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2020.00665
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; Cosenza, Pereira, Silva, & Medeiros, 2021Cosenza, T. R. S. B., Pereira, E. R., Silva, R. M. C. R. A., & Medeiros, A. Y. B. B. V. (2021). Desafios da telepsicologia no contexto do atendimento psicoterapêutico on-line durante a pandemia de Covid-19. Research, Society and Development, 10(4), 1-9. https://doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482. http://dx.doi.org/10.33448/rsd-v10i4.14482
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).

Entendemos que não havia apenas um canal de comunicação aberto no grupo, que não tínhamos apenas uma via de fala e expressão e que os participantes não conversavam apenas com terapeuta e coterapeuta. Havia comunicação e relação entre os participantes se estabelecendo, de maneira viva, evidenciando que os laços e participação nos encontros não dependiam somente da mediação dos terapeutas e nem se dava através de imagem e som. Compreendemos que a experiência de grupalidade e sua ampliação se constroem justamente por meio destas relações/comunicações cruzadas, “que ocorrem quando os próprios participantes acolhem as falas uns dos outros e lhes dão encaminhamento” (Tedesco, Sade, & Caliman, 2015Tedesco, S. H., Sade, C., & Kaliman, L. V. (2013). A entrevista na pesquisa cartográfica: A experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia. 25(2), 299-322. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200006
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
. p. 121). Visualizamos que o manejo, que no início do processo grupal estava centrado nos terapeutas, foi sendo distribuído e compartilhado por todos os integrantes. Em vários momentos percebemos que o grupo não precisou de nenhuma intervenção verbal nossa, para fomentar a discussão ou o acolhimento; havia grupalidade e o próprio grupo encaminhava, manejava, conduzia e acolhia. Para Tedesco, Sade e Caliman (2015Tedesco, S. H., Sade, C., & Kaliman, L. V. (2013). A entrevista na pesquisa cartográfica: A experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia. 25(2), 299-322. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200006
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
, p. 121), este manejo é “um processo que depende do aumento dos graus de transversalidade do grupo para a grupalidade”, ou seja, do quanto estabelecemos relações e movimentos transversais no e para o grupo.

O setting on-line

Compreende-se setting terapêutico como “um espaço que se apresenta para propiciar a estruturação simbólica de um tratamento e é nele que se integram as condições técnicas básicas para a intervenção do Psicólogo” (Bittencourt et al., 2020Bittencourt, H. B., Rodrigues, C. C., Santos, G. L., Silva, J. B., Quadros, L. G., Mallmann, L. S., Bratkowski, P. S., & Fedrizzi, R. I. (2020). Psicoterapia on-line: Uma revisão de literatura. Daphora: Revista da Sociedade de Psicologia do Rio grande do Sul, 9(1). https://doi.org/10.29327/217869.9.2-6.
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). Compreendemos com os encontros que o setting era a configuração que se estabeleceu no processo terapêutico, incluindo o espaço físico, as relações que se construíram, os contratos e sigilos que nortearam a relação terapêutica, as tecnologias que mediaram a participação nos encontros e o impacto destas nas nossas reuniões, e não apenas o ambiente on-line que se formou nos encontros grupais, como forças que atravessavam e constituíam a experiência de grupo a cada encontro.

Ao longo dos encontros, diversos integrantes compartilharam que mesmo com as dificuldades de participar dos encontros on-line, viam que era a única possibilidade de acolhimento que poderiam ter. O setting on-line foi apontado como uma vantagem para os participantes, onde não era necessário sair de casa para participar do grupo, não só pelo receio de exposição ao vírus, mas por não precisar pegar transporte público, gastando tempo e dinheiro, para nos reunirmos. Mesmo com a exigência de isolamento e distanciamento social, alguns participantes precisavam trabalhar fora de casa, outros tinham que dedicar tempo para o cuidado da casa, da família, de crianças, além de conciliar com os estudos.

Alguns participantes compartilharam que seria logisticamente inviável que participassem dos encontros caso fossem presenciais, mesmo que acontecessem dentro da universidade. Em diversos momentos, comentavam que sentiam falta de mais proximidade, de estarmos reunidos num mesmo ambiente, mas que o espaço de grupo era o único local onde eles viam o rosto de outras pessoas, sem máscara, numa relação de distanciados, mas próximos. Tivemos um encontro onde pedimos que os participantes ofertassem alguma coisa para o grupo e uma integrante disse que queria muito dar um abraço em todos nós. Na mesma hora, todo o grupo começou a abraçar a si mesmo, acolhendo esta oferta, evidenciando que os laços de proximidade estavam sendo construídos naquele território on-line, mesmo sem o contato físico.

Um dos requisitos para a participação na pesquisa era ter acesso à internet em algum dispositivo tecnológico, como celular, tablet, notebook, computador, dentre outros, pois eram os meios que possibilitavam o grupo on-line acontecer, uma vez que nosso setting foi totalmente reconfigurado com a experiência remota. Os equipamentos que os integrantes usavam foi outro aspecto que saltou à nossa percepção, pois não demonstravam a eficiência e performance que esperávamos para a participação nos encontros. Para alguns, a participação se dava apenas através do celular, dispositivo que possibilitava que o participante compartilhasse seu áudio e vídeo durante o encontro, mas não permitia ver todos que estavam presentes na chamada. Havia quem utilizasse duas telas para conseguir ver todos na reunião, outros que entravam no celular e no notebook, ao mesmo tempo.

Percebíamos que nem sempre os participantes conseguiam ouvir, falar e exibir o vídeo no mesmo dispositivo, o que fazia necessário inventar um “jeitinho” pra conseguir estar presente nos encontros. Uma participante contou que o microfone do seu computador não funcionava e no seu celular não funcionava a câmera, então ela precisava dos dois equipamentos para participar. Outro integrante usava o celular para transmitir seu áudio e seu vídeo e entrava pelo computador, que não tinha microfone e nem webcam, mas o permitia ver todas as pessoas do grupo. Juntos, os equipamentos possibilitavam que os integrantes estivessem conosco no encontro e entendíamos que estar em grupo on-line nem sempre se dava através de um único equipamento.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019, 99,5% dos domicílios pesquisados possuem acesso a celular, 45,1% a computador e 12% a tablet. Entretanto, um em cada quatro brasileiros não tem acesso à internet, ou seja, 45 milhões de brasileiros ainda vive em um “deserto digital”. Apenas 55,6% possuía acesso à internet de qualidade nas residências (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).). Indispensável levar em consideração que a internet ofertada para a população brasileira não é da mesma qualidade para todos, pois características como gênero, renda, idade e escolaridade modulam e tornam desigual o acesso à internet, assim como aos dispositivos tecnológicos (Senne, Portilho, Storino, & Barbosa, 2020Senne, F., Portilho, L., Storino, F., & Barbosa, A. (2020). Inclusão desigual: Uma análise da trajetória das desigualdades de acesso, uso e apropriação da internet no Brasil. Revista de Direito, Estado e Telecomunicações, 12(2), 187-211. https://doi.org/10.26512/lstr.v12i2.34718
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). Segundo a Pró Reitoria de Assuntos Estudantis da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro [UFRRJ], 2019Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. (2019). Relatório sobre o perfil discente ingressante na UFRRJ: Análise comparativa dos períodos 2016/2, 2017/1, 2017/2 e 2018.1.), a maior parcela do perfil discente da UFRRJ é de estudantes que moram distante da universidade, longe dos principais centros urbanos, com renda per capita de até 1,5 salário mínimo, que fez o ensino médio em escola pública e que ingressou na universidade através das cotas sociais e/ou raciais. Isso tudo nos fazia compreender que nem sempre o interesse em participar de um grupo on-line era suficiente para que os interessados se tornassem participantes, já que o acesso à internet e a aquisição de equipamentos adequados para a participação eram interditados pelas condições sociais e econômicas dos participantes, constituindo outro analisador na oferta de grupos on-line.

Os recursos financeiros e tecnológicos atravessavam e influenciavam a escolha de participar ou não da pesquisa, além dos modos de participação. Uma integrante compartilhou que pensou em não iniciar os encontros porque seu computador não pegava o áudio, mas inventou um modo de participar, entrando no Google Meet pelo computador, para exibir sua imagem e ver os demais integrantes, e pelo celular, para transmitir sua voz. Percebemos que em um grupo on-line não era suficiente querer falar e compartilhar alguma coisa com o grupo, mas ter um dispositivo tecnológico que permitisse falar o que desejava ser compartilhado, o que nem sempre acontecia.

Observávamos também que alguns não tinham muita habilidade com o uso das plataformas digitais e com os equipamentos tecnológicos, que se uniam às dificuldades com equipamentos adequados para a participação no encontro.

Coterapeuta: “Seu microfone tá desligado, C”.

Participante: “Só um momento que eu tô resolvendo…tá, deu”.

[A participante desabilita o áudio e começa a falar e gesticular].

Terapeuta: “C., a gente não te ouve. Desconecta e conecta seu fone de novo, pra ver se pode ser algum problema de mal contato…”

[Vemos a participante gesticulando, perguntando se estávamos ouvindo alguma coisa].

Terapeuta: “Não foi. A gente não te ouve ainda”.

Participante: “Agora vai?”.

[Ouvimos o som bem baixo, com bastante eco].

Terapeuta: “Agora foi”.

Coterapeuta: “Repete pra gente o que você tava falando, a gente não tava ouvindo”.

Participante: “Ah sim, eu tava falando que eu tô com um computador aqui de um amigo e aí ele pega melhor a internet, mas o áudio dele não funciona. Vou até desligar aqui. Só que esse computador que eu tô não funciona a internet bem”.

Terapeuta: “Você consegue ver e ouvir a gente bem?

Participante: “Agora não tô ouvindo. Gente, eu quero morrer com esse aparelho. Eu fico toda enrolada com os aparelhos” (Diário de Bordo, Encontro 4, Grupo B).

Nos deparamos com uma comunicação pouco clara em diversos momentos e precisávamos pedir que os participantes repetissem o que estavam tentando dizer. Ficávamos aflitos quando algum integrante começava a falar e seu áudio começava a falhar, parecendo voz robotizada ou com a fala picotada, nos fazendo não compreender tudo o que estava sendo dito. A interferência no sinal da internet, levando à latência na escuta por conta de atrasos na chegada da voz e as dificuldades na prosódia, que nos permite acompanhar a entonação e o sentido da fala do participante, também se apresentou como um aspecto complexo nos encontros de grupos terapêuticos on-line. Entendíamos que isso influenciava completamente a configuração do encontro, porque era importante que todos se ouvissem e entendessem claramente o que estávamos compartilhando, não apenas que nós terapeutas entendêssemos. Para nós, era fundamental que todo o grupo pudesse ouvir e ver o que todos estavam compartilhando, aumentando o grau de transversalidade e de autonomia no grupo (Alvarez & Passos, 2015Alvarez, J., & Passos, E. (2015). Cartografar é habitar um território existencial. In E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do Método da Cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 131-149). Sulina.; Sade, Caliman, & Tedesco, 2015Tedesco, S. H., Sade, C., & Kaliman, L. V. (2013). A entrevista na pesquisa cartográfica: A experiência do dizer. Fractal: Revista de Psicologia. 25(2), 299-322. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200006
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).

Algumas interferências atravessavam nossa comunicação e faziam com que nossa dificuldade de nos compreender aumentasse. Tivemos dificuldades em ouvir o que era compartilhado em alguns encontros e percebíamos que nem sempre os participantes estavam com o microfone próximo da boca e o som saía muito baixinho. Em outros momentos, não sabíamos se o participante estava falando conosco ou com alguém próximo. Também nos parecia que os participantes não se ouviam ou se ouviam com certa dificuldade. Vimos que alguns não utilizavam fones de ouvido e todo o som do ambiente vazava enquanto o participante abria o áudio para compartilhar alguma coisa e dificultava nossa compreensão do que era compartilhado.

A internet foi outro fator importante que modulou nossa forma de nos colocar em grupo. Como nos encontrávamos on-line, era indispensável que ela permanecesse estável, o que nem sempre acontecia, principalmente quando chovia. Em alguns momentos, levávamos um certo tempo para nos darmos conta de que nossa comunicação não estava sendo eficaz, que não estávamos sendo ouvidos, que a internet estava instável e impactando no nosso encontro.

O atraso na transmissão simultânea do vídeo e do áudio - delay - também esteve presente em diversos encontros. Escutávamos áudios lentificados, com o som robotizado algumas vezes, com falhas e cortes, o que dificultava nossa compreensão. Assim, na dinâmica que realizamos relatada anteriormente, chamada “nome e movimento”, onde um participante deveria se apresentar com um movimento e todo o grupo deveria repetir, tivemos dificuldades de observar o movimento completo, pois a imagem travava e, quando destravava, o movimento já havia sido encerrado e não sabíamos exatamente o que o participante havia feito. Rimos bastante da dificuldade de observar e repetir o movimento e da dificuldade de manter o ritmo da dinâmica; entretanto, este episódio nos fez perceber claramente a interferência da qualidade da internet no grupo on-line.

Em alguns momentos observamos um silêncio no ar e depois alguns participantes abrindo o áudio e falando ao mesmo tempo. Apesar do encontro acontecer simultaneamente pela chamada do Google Meet, interrupções podem acontecer no diálogo, por conta da falha de conexão causadas pela qualidade do sinal de internet ou dos equipamentos utilizados, sendo observadas na chamada de vídeo o congelamento da imagem ou falha no áudio (Bittencourt et al., 2020Bittencourt, H. B., Rodrigues, C. C., Santos, G. L., Silva, J. B., Quadros, L. G., Mallmann, L. S., Bratkowski, P. S., & Fedrizzi, R. I. (2020). Psicoterapia on-line: Uma revisão de literatura. Daphora: Revista da Sociedade de Psicologia do Rio grande do Sul, 9(1). https://doi.org/10.29327/217869.9.2-6.
https://doi.org/10.29327/217869.9.2-6...
). Senne, Portilho, Storino e Barbosa (2020Senne, F., Portilho, L., Storino, F., & Barbosa, A. (2020). Inclusão desigual: Uma análise da trajetória das desigualdades de acesso, uso e apropriação da internet no Brasil. Revista de Direito, Estado e Telecomunicações, 12(2), 187-211. https://doi.org/10.26512/lstr.v12i2.34718
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) afirmam que apesar dos dispositivos tecnológicos como celulares e computadores estarem presentes de maneira quase universal entre os lares brasileiros, isso não significa que a população está conectada à rede e, caso esteja, que seja através de uma rede de boa qualidade. Para Silva (2015Silva, S. P. (2015). Políticas de acesso à internet no Brasil: Indicadores, características e obstáculos. Cadernos Adenauer XV5, 1(3), 151-171. http://ctpol.unb.br/wp-content/uploads/2019/04/2015_SILVA_Acesso-Internet.pdf
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), apesar da internet discada ter sido superada pela banda larga no Brasil, 51% da população brasileira navega na internet com velocidade até 4Mbps, o que significa que estar on-line não é estar incluso na internet. Observamos que nem sempre a internet utilizada pelo participante dava conta de permanecer na videochamada com estabilidade. Tudo isso compunha a configuração de grupo-on-line, que curiosamente diferia do presencial, onde estas forças não existiam ou não assumiam estas características.

Considerações finais

A experiência on-line com grupos nos fez concluir diversas coisas. A primeira delas foi que o desejo em participar de grupos on-line não se traduzia em participação. Estar remotamente em grupo era um desafio, inúmeros fatores interferiam, possibilitavam a participação de alguns e dificultavam consideravelmente a participação de outros, revelando de algum modo algumas formas de exclusão.

Era fundamental disponibilizar um espaço seguro e sigiloso, que permitisse conforto e segurança para compartilhar afetos e experiências. Nem sempre os acordos de sigilo eram suficientes para criar um ambiente-sigiloso para os participantes, uma vez que parte do espaço de grupo era composta pelas residências dos integrantes.

O espaço de grupo era composto dos lugares físicos, mas também das tecnologias que mediavam a participação nos encontros. Todas elas interferiam nas reuniões e impactavam no desejo e possibilidade de participar, falar e dar fluxo ao que pedia passagem para expressão. O desejo de expressar não parecia suficiente, uma vez que dependia de uma dessas tecnologias.

Sabemos que mais estudos precisam ser realizados para conhecer outros aspectos relevantes sobre as processualidade dos grupos on-line. Um aspecto importante a ser tratado é o público-alvo da pesquisa, pois reconhecemos que na construção do setting on-line com grupos de universitários aparecem características e demandas específicas de jovens adultos que foram atravessados pela pandemia.

Um setting terapêutico on-line demanda uma habilidade do usuário, ou ao menos flexibilidade no uso das tecnologias (equipamentos e ferramentas de internet) que teve que ser aprimorada por todos durante a pandemia; entretanto, consideramos que jovens nativos digitais sempre tiveram mais facilidade em manipular esses dispositivos. Ressaltamos que diante das dificuldades sociais e econômicas, os jovens deste estudo se superaram nesta categoria, já que não só usaram as tecnologias, mas driblaram o mal funcionamento dos equipamentos, em parte avariados, a que tiveram acesso para participar no grupo on-line.

Compreendemos que estudos com públicos-alvo em diferentes momentos do desenvolvimento, como idosos ou crianças, podem nos mostrar outras processualidades e linhas de forças que atravessam o setting on-line. Apontamos também que o nível educacional dos universitários, e em específico o contexto social deles, que exige muito empenho para engajamento acadêmico, permitiu a construção de linhas de fuga, forças criadoras de vida, em um período em que tantas mortes ocorreram pela covid-19, de modo que acessaram e participaram do grupo on-line.

Longe da pretensão de criar um manual de como inventar um setting on-line para grupos, buscamos traduzir em palavras nossos olhares, nossas percepções, aquilo que direcionou nossa atenção a cada reunião e que nos apontava para pensar o relevo que se configurava a cada chamada. Juntos fomos tecendo o mapa das forças que se apresentava como facilitadoras e desafiadoras, compreendendo que estar em grupo on-line exigia outras demandas diferentes da experiência presencial.

Pensamos ainda que o território-setting-grupo-terapêutico-on-line, construído durante a pandemia de covid-19, deva permanecer e se aprimorar, como alternativa para ofertar e ampliar o acesso aos serviços de atendimentos psicológicos, sendo este um produto do ganho de conhecimento em ciências humanas neste período.

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  • Agradecimentos e fonte de financiamento: O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.
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    Agradecemos as contribuições de Gabriele Mazulo e Giulia Vaz, que participaram como coterapeutas dos grupos de coleta/produção de dados do estudo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Ago 2021
  • Aceito
    18 Abr 2022
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