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A Coisa em Psicanálise e o Objeto no Lísis de Platão

The Thing in Psychoanalysis and Object in Plato’s Lysis

La Cosa en Psicoanálisis y el Objeto en Lisis de Platón

Resumo

Este artigo propõe o estudo sobre o conceito de outro como semelhante e como objeto. Partindo de textos que interpelam a alteridade na psicanálise e remetendo aos temas do complexo semelhante, da satisfação, da perda, do luto, da negativa, da repetição; avalia o conceito de outro articulando textos de diversos autores. A partir da psicanálise freudiana, estuda o das Ding e a negação, discriminando com estes termos um objeto estruturante na origem do psiquismo. Aborda textos técnicos da psicanálise para delimitar o tema da repetição. Também a recordação e a repetição são vinculadas ao objeto e estudadas na perspectiva da filosofia moderna. São retomados temas do diálogo platônicos para definir o lugar do erótico e da amizade. No fim do presente artigo, propomos o termo clássico grego Oikos com valor equivalente ao da Coisa freudiana e como esta aparece em escritos psicanalíticos.

Palavras-chave:
A Coisa; Repetição; Alteridade; Platonismo; Objeto

Abstract

This article studies the concept of other as similar and object. It is based on texts that question the alterity in psychoanalysis and refers to the themes of otherness complex, loss, grief, negative, repetition, and evaluates the concept of other, using articles of diverse authors. Based on Freudian psychoanalysis, it studies the Thing and the denial and discriminates a structuring object in the origin of psychism. It approaches technical texts of psychoanalysis to delimitate the theme of repetition. The recordation and repetition are also linked to the object and studied from the perspective of modern philosophy. Themes of the platonic dialogues are resumed to define the place of the erotic and the friendship. In the end of the article, we propose the greek classic term Oikos, with equal value to the Freudian Thing, as this one appears in psychoanalytic writings.

Keywords:
The Thing; Repetition; Alterity; Platonism; Object

Resumen

Este artículo estudia el concepto Otro como semejante y como objeto. A partir de textos que interpelan la alteridad en psicoanálisis y que se refieren a temas del complejo semejante, de la satisfacción, de la pérdida, del duelo, de la negación, de la repetición, se evalúa el concepto de Otro articulando textos de diferentes autores. Basado en el psicoanálisis freudiano, se aborda Ding y la negación, discriminando con estos términos un objeto estructurante en el origen de lo psíquico. Se abordan textos técnicos del psicoanálisis para delimitar el tema de la repetición; el recuerdo y la repetición son vinculadas al objeto y estudiadas desde la perspectiva de la filosofía moderna; y se retoman temas de los diálogos platónicos para definir el lugar de lo erótico y la amistad. Al culminar este artículo se propone leer el término griego clásico Oikos con un valor equivalente al de la Cosa freudiana como aparece en los escritos psicoanalíticos.

Palabras clave:
La Cosa; Repetición; Alteridad; Platonismo; Objeto

Introdução

Neste texto pretendemos indicar uma condição constante no conceito de outro como semelhante, o que observamos nas expressões de diferentes autores. A complexidade de escutar o sujeito em relação ao outro requer a formação de um conceito que atenda às diversas possibilidades e, neste sentido, traços característicos do objeto que revela a psicanálise podem ser rastreados até a filosofia antiga. O acolhimento clínico, ainda que respeite as diferentes singularidades, precisará se sustentar sobre um conceito de outro que abranja as relações implicadas em diferentes discursos - nosso percorrido até a Antiguidade delimita uma contiguidade dessa elaboração conceitual.

Observamos que no dia a dia da cidade as relações sociais são diversas e complexas. Realizamos constantes intercâmbios, sejam de falas, frases, signos e objetos vários. Observar pessoas num diálogo numa esquina qualquer, nos permite dimensionar um espaço social e no mesmo momento reconhecer o código que o viabiliza, o organiza, o controla. O fato social pode se distinguir da rede de linguagem, que cada um de nós colabora participando, ao mesmo tempo em que somos sustentados por ela, podendo também abandoná-la a cada instante - por exemplo quando nos deixam sem palavras - quando as circunstâncias tornam insustentável nossa comunicação. É porque, além das palavras, a cidade permite sociabilizar e sensualizar, as imagens, os corpos e suas peles, os passos, as vozes, induzem a uma rede de trocas que atenderiam muito mais do que nossas necessidades básicas, provocando a busca por formas de realização. Ao mesmo tempo, é a partir de impulsos individuais que as pessoas buscam algo para o momento, naquele dia, o que se pretende, aquilo que precisam e intimamente os movimentam. Desse modo, no hábito de garantir satisfações, é que formam suas rotinas. Em si mesmas, desde diferentes perspectivas, chegam a dimensionar uma complexidade possível entre semelhantes. Diversidade ilimitada, mas redutível a alguns afetos e ações constantes nas relações: aceitamos, rejeitamos, agrada ou nos desagrada, muito próximos ou distantes podem nos provocar intensos afetos de amor, ódio ou indiferença. Entre a abertura do espaço social e a singularidade da relação com um semelhante, o intercâmbio presentifica a necessidade dos conceitos de outro e de objeto.

Contemplando a cidade, ou no lar, indo ao psicólogo ou ao mercado, haverá sempre uma dimensão externa ao sujeito, que ao ser vivenciada não prescinde da sua percepção interna. Assim ponderamos que algo de si mesmo permanece na sustentação do laço social, aquém do intercâmbio. Nas diversas relações sociais, vínculos estreitos se estabelecem, às vezes chegando a coincidir o que se tem como algo íntimo e também alguma intimidade do outro. Este algo situado entre interior e exterior, essa constante, pode ser escutada em uma variedade de posições e, em termos gerais, pode nos indicar o modo como o sujeito lida com suas vontades e conflitos com seus semelhantes. Caso considere que ser escutado por um profissional seja uma boa alternativa e com esse fim marque um encontro clínico, o sujeito se abstrairá parcialmente do olhar da cidade, suspendendo a importância do juízo de seus semelhantes. Subtraindo-se do movimento externo, entra num outro espaço, particular, mais íntimo e protegido.

Quem ouve o outro por ofício vai agir com sua escuta na análise do psiquismo, atendendo às diversas condições que forjam a subjetividade. Acolhe o semelhante e, por mais complexa que seja a situação, antes de qualquer outra postura, prevalece que ele respeitará a sua singularidade. Por este motivo, em frente ao outro, sua atitude deve ser dimensionada numa especificidade que permita receber uma amplitude de variáveis. Pelo que seja falado ou fantasiado, no espaço público ou no privado, para descrever o que lhe foi oferecido ou o que necessitava, pelo que reconhece interno ou exterior, pelas mais diversas condições; é pertinente dispor de um conceito - à altura da construção da sua alteridade - e implica haver distinguido as modalidades nas que se percebe o outro.

A abertura do espaço para a escuta decorre na construção de uma noção de alteridade mais complexa, que aqui abordaremos considerando obras de autores de épocas diferentes, desde a modernidade à antiguidade, sem soltar o fio da questão que ordena os valores que permitem assimilar a construção do que é o semelhante e sua relação com o objeto. Assim, para considerar o outro nos remeteremos ao início da subjetividade, a momentos conflitivos, quando participa entre iguais ou quando, no outro, notamos aquilo que é diferente e distante, pode ser que esteja no próximo, ou suposto na virtualidade. Possibilidades múltiplas evidenciam que o outro persiste na interrogação do sujeito psíquico. A condição do virtual nos atualiza o desafio que tensiona ou afrouxa a relação entre as pessoas. As modificações em saúde, com suas implicações sociais, econômicas e políticas, desde começos da segunda década deste século, têm situado o próximo mais distante e o externo mais participante da intimidade, modificando os encontros, espaço, tempo, modos de intercâmbios, quantidade de dados e informações. Se anteriormente foi necessário situar um conceito que permitisse dimensionar o “complexo semelhante”, no atual período encontramos alguns fios que enlaçam um presente indefinido às constantes inaugurais do nosso passado.

Objetivos

Partindo das indicações de Lacan (1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 67) para a leitura do texto de Freud “Projeto para uma psicologia científica” (1950/1996Freud, S. (2006). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. I). Imago. (Trabalho original publicado em 1950)), pretendemos interrogar a alteridade no psiquismo, começando por reconhecer a construção que nos inícios da clínica realiza com as observações sobre o semelhante (Nebenmensch), pois surge uma complexidade que permite situar múltiplos aspectos do outro. Percorrendo textos de Kierkegaard (1843/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843)) e Platão (1961), também acrescentamos questões que foram produzidas pelas particularidades da relação com o outro, pelas necessidades, categorias de objeto, pelas posições, pelos movimentos, pelos afetos. A bibliografia escolhida nos apresenta os efeitos do complexo semelhante, do outro e suas possibilidades de aparição, situado nos textos como um ponto de partida para reconhecer e explicar situações de nossa prática.

Como objetivo específico examinaremos, no período emergente da psicanálise que corresponde ao “Projeto para uma psicologia científica” (1950/1996Freud, S. (2006). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. I). Imago. (Trabalho original publicado em 1950)), conceitos fundamentais para a clínica, decorrente do “complexo semelhante” como auxiliar.

Abordaremos, a partir de referências aos aspectos da escuta, o valor que situa Lacan (1960) para das Ding, que num contexto específico se tornaria um termo auxiliar para indicar a dimensão ética da psicanálise.

Destacaremos situações equivalentes às que permitem a delimitação do outro como objeto, o que é abordado desde ensaio psicológico de Sören Kierkegaard (1943/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843)), em seu texto “A repetição”.

Indicaremos as referências antigas ao outro, à coisa e ao elemento familiar, no texto Lísis, de Platão, desde uma posição analítica, propondo possibilidades de tradução.

Ainda, no intuito de ajustar com precisão o tema deste artigo, além do tema de repetição, não comentaremos aqui os textos de Freud que desenvolvem as projeções, não descreveremos a dinâmica da relação clínica e os sentimentos que nela surgem, nem atuações e situações de reproduções em transferência. Por essa via, direcionaria o problema em torno do conceito de transferência e, para esse conceito em particular, outras bibliografias deveriam ser analisadas, tais como o texto O banquete de Platão, os Seminários VIII e IX, de Lacan, e outros textos de Freud. Entendemos que a alteridade é um termo prévio e auxiliar ao conceito de transferência e, já que acompanha sua elaboração, optamos por seguir as proposições de leitura que Lacan realizou no Seminário VII (1960/2008, p. 48), o qual indica circunstâncias próximas da experiência clínica; e assinalamos, em qualidade de acréscimo teórico, um dado arqueológico desde o texto Lísis, de Platão, que indica um termo clássico como semelhante, coisa desejada que avaliaremos em seu aspecto ético.

Método

Como referência metodológica consideramos que os resultados deste artigo derivam de uma pesquisa bibliográfica que ordenou dados básicos não aplicados. Utilizamos metodologia de análise estrutural, segundo modelo proposto por Levis-Strauss (1955/1970Levis-Strauss, C. (1970). Antropologia estrutural. Tempo Brasileiro. (Trabalho original publicado em 1955), p. 47) para análise das estruturas de parentesco - referenciado por Lacan no seminário IV, intitulado a Relação de Objeto (1957/1995) e no texto Mito Individual do Neurótico (1952/2007). Esse modelo estrutural permite observar eixos temáticos constantes na análise de discurso. Seguindo esse paradigma, a partir da bibliografia especificada, foram agrupadas por semelhanças as abordagens de diferentes períodos, em torno do tema comum e recorrente da qualidade de objeto no outro: temporalidade - atemporalidade; prazer - desprazer; exterioridade - interioridade; isenção de contradição entre termos. A metodologia de análise não somente permite reconhecer elementos invariáveis na interrogação que recai sobre o semelhante, mas também em outras produções discursivas da antiguidade clássica. Neste caso, temos a possibilidade de observar uma constante sobre o outro que permeia diferentes autores em diversos momentos históricos.

Para os comentários do Lísis, de Platão, utilizamos as versões de diferentes editoras elencadas na bibliografia e, para conferir o texto grego, acompanhamos a tradução de Maronna (2014Maronna, H. A. (2014). Lísis, de Platão: Tradução, estudo introdutório e notas [Dissertação de mestrado, Faculdade de Filososfia, Letras e Ciencias Humanas Universidade de São Paulo]. Portal Teses USP, São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-01072015-133935/fr.php
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8...
). Quando foi pertinente, se acrescentaram os números dos parágrafos e as letras canônicas para identificação e estudo de parágrafos em Platão (1995Platão. (1995). Lísis (F. de Oliveira, Tradução.). Editora UnB.).

O semelhante e o estranho em Freud

O imemorial acena na distância e insiste em mostrar signos a serem reencontrados. Assim Freud (1950/1996) o exprime numa carta que escreveu a seu amigo Fliess, datada em 25 de maio de 1895 (p. 335), quando relatou que uma reflexão sobre a psicologia, com sua teoria do funcionamento psíquico, seu método de abordagem entre a psicopatologia e a normalidade, vinha acenando para ele. Atualmente, mediante uma leitura comparativa do “Projeto de Psicologia Científica” (1950/1996Freud, S. (2006). Projeto para uma psicologia científica. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. I). Imago. (Trabalho original publicado em 1950)) com a “A interpretação dos sonhos” (1950/1996), observamos que este último trabalho expôs sinteticamente ideias complexas com as quais Freud vinha refletindo por anos a fio. Mas algumas das ideias do manuscrito, feito em papel e lápis, ficaram inconclusas e entregues ao passo do tempo. No texto “A interpretação dos sonhos”, ao escrever sobre o desejo, a regressão, a primeira vivência de satisfação e os processos secundários do aparelho psíquico, ele estava retomando construções metapsicológicas elaboradas em reflexões anteriores, que aqui retomaremos para encaminhar numa trilha o valor que o outro, como semelhante e como objeto, teve em uma construção progressiva.

A experiência de satisfação se revela uma peça fundamental para Freud pensar o aparelho anímico, pois foi a partir dela que se inscreve no sistema mnêmico uma matriz do agradável. Esta experiência parte do desprazer anterior e do auxílio externo que o outro dá ao organismo humano a partir de uma ação específica. A vivência inicial se estabelece pela “ajuda externa” que uma pessoa independente oferece aos cuidados de um ser infante. Esta vivência é determinante da função da compreensão. Freud (1950/1996) o remeteu à experiência de desamparo e aos primórdios de toda normativa moral (p. 370). Com relativa continuidade, teremos do desamparo algumas interrogações posteriores referidas às perdas.

Será pertinente lembrar que estes termos propostos por Freud surgiram do seu fazer clínico, em textos metapsicológicos de 1914 e 1915. Falando sobre o narcisismo e as pulsões, respectivamente, abordou essa perspectiva de trabalho que situa o conceito na cúspide da pirâmide e a experiência prática acumulada em todo o resto da obra. Desse modo, a relevância ou substituição de um conceito pode ser reconsiderada, sem detrimento da experiência. O interesse teórico que atribui ao termo “objeto” explicita essa condição quando ele escreve proposições aparentemente contrárias a respeito do sujeito que é um outro ser humano: “um objeto semelhante [ênfase adicionada] foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto satisfatório [ao sujeito], seu primeiro objeto hostil, além de sua única força auxiliar” (Freud, 1950/1996, p. 383). Aqui o cálculo pelo complexo semelhante dimensiona o prazer, o desprazer e o auxílio externo numa unidade. Mas ainda, se esse tal objeto desse um grito, ativaria a lembrança do próprio grito de angústia e, nesse momento, a íntima sensação da dor. Perpassar estas possibilidades nos permite pensar na dimensão de um sistema complexo que tem externo e interno, com o prazer e o desprazer numa contiguidade sem intervalos, assim como escutamos do paciente no momento da clínica.

Com estas orientações, podemos acompanhar Freud (1950/1996) na construção de uma noção de outro que permanece, a partir de ter sido a força externa auxiliar, como junção coesa e constante: “permanece unido como uma Coisa . . . pode ser rastreado até as informações sobre o próprio corpo do sujeito” (p. 384). Se bem a contiguidade entre cadeias associativas que expressem desamparo, auxilio, dependência e sofrimento, podem aparecer regularmente na escuta de cadeias associativas, é um momento de originalidade de Freud o fato de aproximar esta única noção: “O que chamamos Coisa, são resíduos que fogem de serem julgados” (p. 389), indicando assim, a exterioridade psíquica da noção buscada, mesmo que seja como a vivência mais íntima, como auxiliar e também como resíduo psíquico sim predicado.

No texto “A negativa”, Freud (1925/1996Freud, S. (2006). A negativa. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XIX). Imago. (Trabalho original publicado em 1925)) retoma a pergunta pela formação original de um juízo, realizada três décadas antes (1950/1996, p. 382). Observa que a negação pode ser antecipada, recusando uma representação. Em nosso fazer clínico cotidiano acolhemos falas coloquiais cujo sentido pode bordear seu avesso - por exemplo, ao escutar uma expressão do tipo: - Tu agora vai pensar que . . . mas não é isso!; ou uma frase como: - A pessoa que aparece no meu sonho não é quem tu deves imaginar… São exemplos de negação que antecipam aquilo que se pretende evitar… mas o ouvido de Freud (1925/1996Freud, S. (2006). A negativa. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (vol. XIX). Imago. (Trabalho original publicado em 1925)) indicava um sentido oposto, “como um substituto intelectual do recalque” (p. 266). Desse modo, trinta anos depois, retornou o tema da operação de julgamento, vinculando mais uma vez essa tarefa intelectual encostada no corpo. A pulsão oral incorpora ou cospe fora num movimento equivalente à construção do juízo, de modo que afirmar ou negar são extensões do objeto pulsional. Nos indica, assim, que a antítese “sujeito - objeto” não é um fato consumado a priori, mas se dá em torno de um objeto, e a percepção buscada e nunca encontrada é mais bem um reencontro (Lacan, 1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 74) daquilo que nunca foi perdido.

O das Ding no Seminário da Ética de Lacan

O termo Ding foi utilizado por Freud nas elaborações do Projeto, no início de suas propostas metapsicológicas, mas ele mesmo não chegou a exprimi-lo como conceito. O termo foi valorizado por Lacan, no Seminário “A Ética da Psicanálise”. Inicialmente, nas classes de 9, 16 e 23 de dezembro de 1959, com a expressão “als Ding” e retomada enlaçando um conjunto de interrogações derivadas da experiência freudiana, visando situar um núcleo psíquico anterior ao reencontro de objeto. A leitura que Lacan faz do texto do Projeto (1950/1986) indica a marca de uma diferença que provoca a inscrição - Freud escolheu o termo Niederschrift, e não Lacan - da percepção (1960/2008, p. 65). Dependendo do tipo de inscrição, o paciente reproduz um tipo discursivo porque a emergência do desejo é diferente: segundo os casos de histeria, como um suporte de aversão; na neurose obsessiva, como um excesso de prazer; ou na paranoia, como uma rejeição à inscrição de um apoio simbólico (1960/2008, p. 70). Ao se deparar com este termo, Lacan indica preferentemente o caráter estranho, Fremde, sendo exterior e íntimo, e o traço do objeto de desejo com a tendência que repete e retorna ao mesmo lugar.

Interroga-se das Ding, situando algumas oposições. A leitura é feita destacando a importância de um resto, além da busca de prazer e do encontro com uma realidade; quando objeto que se tem por fim (no sentido de meta) se mantém à distância, resulta num resto de insatisfação. De modo que a Coisa se manterá dura, opaca, monótona, imóvel (Lacan, 1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 64), permanente e sempre à espera, para bem ou para mal, de que seja reencontrada. As horas de fala em algumas sessões podem ser um modo de cernir a Coisa pelas bordas, o exercício da fala pode contorná-la, mais do que concebê-la; também podemos calcular sua força de determinação muito cedo nos encontros clínicos. Assim como nas diversas formas de intercâmbios regulares de uma sociedade, artesãos, artistas, fabricantes ou moralistas, podem amarrar o sujeito, os elementos a, elementos imaginários da fantasia, vêm recobrir, engodar o sujeito no ponto mesmo de das Ding” (Lacan, 1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 123).

Ao tempo que das Ding é reconhecido nesse núcleo original de inscrição do próximo como outro, será também uma referência para a sublimação como destino de pulsão no movimento com apelo ao Outro. A pulsão freudiana Trieb, lembramos, foi um conceito forjado “entre” o psiquismo e o somático. Com ele podemos acompanhar cadeias associativas que bordejam, entre palavras e bordas, insistem e se aproximam das partes do corpo. Quando chega um objeto, dele pode ser esperar o mais variável, o que sempre está para ser usado e cair em desuso. Mas o objeto pode bem driblar o usufruto e ser uma elaboração especial, insígnia privilegiada, até encontrar seu espaço vinculado ao Ideal. Eis onde parece se aproximar da Coisa. Pois o caminho da sublimação pode ser o de elevar o objeto “à dignidade da Coisa” (Lacan, 1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 137).

Yo no busco, encuentro”; citando Pablo Picasso, Lacan (1960/2008Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960) , p. 145) situa em Ding um termo que flexibiliza o ouvido, pois permite escutar desde as caraterísticas de um objeto inconsciente. Se, por pensar num exemplo, retemos a expressão cubista do ataque a Guernica, podemos encontrar uma via para pensar em sua pintura fragmentada, metonímica ( Jakobson, 1935/1969, p. 137), na qual o desejo movimenta parte por parte; mas, sem perder o movimento do traço, demarca as linhas de defesa e nos permite calcular algo da Coisa na sublimação. Nessa cena de violência e destruição, vemos deslizar-se um percurso que é externo e interno, pois o grito se mantém no desenho sem um som, como um objeto que ainda não distingue a sede subjetiva no Eu; as partes de corpos fragmentados pelo ataque da cena de guerra não se integram. Produz o efeito de uma exterioridade que direciona à busca de integração, ao tempo em que é o primeiro complexo próximo inscrito como suporte de aversão.

Essa Coisa que, entre os anos 1959 e 1960, Lacan resgata das primeiras noções da metapsicologia freudiana, é articulada como uma instância de origem que situa a psicanálise como um agir, no sentido de um movimento, como um ethos (disposição em grego koiné) platônico que não se detém em justificativas ou pensamentos, no decorrer de anos posteriores irá sofrer modificações. Em seminários seguintes, ao comentar o Banquete, Lacan (1961/2010) já não denomina o objeto como Coisa, als Ding, e passou a ser um objeto parte do outro desejante, figurando sua representação como objeto agálmata que Alcibíades viu em Sócrates. Esse objeto que abre a função da falta como constitutiva do amor é a caraterística em torno da qual se interroga se o amor é em função de algo ou de alguém (Lacan, 1961/2010, p. 50), o que, como veremos, será repetido no Lísis. Por um lado, temos aqui um amante, um amado e o movimento de reciprocidade na substituição hiperapotanein metafórica de lugares quando um deles passa ocupar o lugar do outro, exemplificado nas partes em que o Fedro, no Banquete, fala do amor entre Alcestes e Admeto. Por outro lado, Platão, nesse texto, explicita que alguma coisa, algo ou alguém está detrás do desejo e do amor, essa é a função metonímica no desejo: “alguma coisa que está para além de todos os objetos, que está na passagem de um certo objetivo e de uma certa relação, a saber, do desejo, através de todos os objetos, e rumo a uma perspectiva sem limites” (Lacan, 1961/2010, p. 166). Desse modo, como o significante é vazio de sentido e se ordena em relação a outro significante, também o amor encontra sua ordem a partir da carência e entre dois polos de linguagem. Ante Sócrates, a substituição deu lugar a um afrouxamento do Outro em favor do objeto parcial e no percurso dos seminários da Identificação (Lacan, 1962) e da Angustia (Lacan, 1963), esse objeto será designado com um valor (tipo algoritmo matemático, a), de causa de desejo e objeto da pulsão.

Foi no Seminário XI, de 1964, ao falar sobre a repetição contando como um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que Lacan se referiu a Sören Kierkegaard como “o mais agudo dos questionadores da alma” (Lacan, 1964/2008, p. 65), e nele encontrou uma junção de indicadores da repetição na relação de objeto. Na continuidade observaremos que o filósofo danês teve um modo de calcular o objeto psíquico, que traz a caraterística de sustentar a complexidade sem dificuldades, em parte, porque seu estudo da repetição do objeto de amor foi feito ao tempo que defendia a sua tese sobre o conceito de ironia, constantemente referido a Sócrates, que também se mantém em ambiguidade paradoxal. “Não mais que em Kierkegaard, não se trata em Freud de nenhuma repetição que se assente no natural, de nenhum retorno à necessidade. O retorno à necessidade visa o consumo posto ao serviço do apetite. A repetição demanda o novo” (Lacan, 1964/2008, p. 65).

Amor-recordação, amor-repetição

Para considerar aquilo que Kierkegaard revela, é conveniente retomar e situar algumas perguntas derivadas da clínica. Entre os anos 1911 e 1914, Freud escreveu artigos que exprimem a técnica psicanalítica, abordando diferentes aspectos, como o da pertinência da intepretação dos sonhos, a administração do tempo, o dinheiro na esfera clínica, a situação de advertência sobre o impulso de educar ou de curar, entre outros. Também se interrogou sobre a dinâmica da transferência com os afetos positivos e negativos que geram a repetição e a busca de satisfação no semelhante e, quando avaliava a história da técnica psicanalítica, aproximou o amor de transferência junto à recordação e à repetição. Assim, ele reconheceu que no percurso da cura o paciente não lembra e que o recalque e as resistências abrem lacunas de memória. No entanto, desde o caso Dora, Freud (1905/1996, p. 111) tinha observado que as transferências são projeções, reproduções que as pacientes focavam sobre ele. Essa repetição volta a ser situada no texto “Repetir, recordar, elaborar” (1914/1996, p. 165), indicando que em determinadas circunstâncias o paciente “não recorda coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas expressa-o pela atuação e atua-o (acts it out). Ele o reproduz, não como lembrança, mas como ação”. Esses comportamentos surgem no decurso da análise, podendo criar algumas situações novas e inesperadas. Freud optava por deixar o paciente em liberdade para agir, somente em casos de ações que poderiam resultar em consequências definitivas, nos diz ele, tentou proteger dessas repetições que estavam inseridas no percurso da análise, como neuroses de transferência. Isso porque “no curso do tratamento, novos e mais profundos impulsos instintuais, que até então não se haviam feito sentir, podiam vir a ser repetidos” (1914/1996, p. 168). A novidade recreativa surge na repetição, ao ponto que Freud tenta tomar essa transferência como um Playground, fazendo do lúdico uma das suas dimensões (1914/1996, p. 169).

Na perspectiva de poder observar como a repetição pressupõe novidade, como um espaço lúdico, situaremos algumas das ideias do texto “A Repetição. Um ensaio em psicologia experimental”, o qual Kierkegaard publicou sob o pseudônimo de Constantin Constantius, no ano de 1843. Nele, desdobra alguns planos sobre a relação de amor e a posição do objeto que permite distinguir a disjunção entre o sofrimento melancólico da recordação, a busca pela repetição e a esperança. Num primeiro momento, expõe o tema do ganho e da perda na repetição; e, numa parte posterior de seu livro, no formato de uma série de epístolas, reproduz o que subjetivamente foi vivido por um jovem apaixonado na sua relação de objeto, permitindo a análise do amor em múltiplas perspectivas. As vivências dessa paixão teriam sido sofridas por um jovem que o narrador induz para que lhe sejam feitas as confidências do percurso amoroso, quem relata os fatos se mantém como observador e como testemunha silenciosa similar à de um analista contemporâneo. Mas os biógrafos não demoraram em descobrir que se tratava de uma história autobiográfica, foi a vivência deste filósofo da ironia que lhe rendeu o material de elaboração, como efeito de introspecção.

A reflexão parte da hipótese de que repetir e recordar são um mesmo movimento em direções opostas. Quem recorda repete para trás e quem repete, recorda para adiante (Kierkegaard, 1843/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843), p. 36). O amor recordação, escreveu, no tom de ironia que ele regia, é o único feliz. Sublinharemos a unidade, o único, que dá essa posição para o amor melancólico da recordação, que somente se teve a si mesmo de modo melancólico e é um exercício de perda. Ainda que, neste sentido, o entendimento sobre a melancolia como patologia ou como estado afetivo pudesse mudar de 1841 a 1917, lembramos que, também para Freud, foi em relação ao objeto do melancólico que surgiu a fórmula “A sombra do objeto cai sobre o ego” (Freud, 1917/1996, p. 254); um objeto que ainda está próximo do brilho da idealização e cuja opacidade escurece, se perfila como agente psíquico especial (expressão básica do que será a posteriori o Super-ego) impossibilitando ao ego situar seu desejo.

Na condição que se apresenta amor-recordação, o objeto amado articula o exercício de amor a partir da sua inscrição de objeto perdido (Kierkegaard, 1843/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843), p. 36), descrevendo, então, essa perda num sofrimento que se sustenta independente da presença ou ausência do objeto externo. “A recordação tem a grande vantagem de começar com a perda; por isso é mais segura, já que nada tem a perder” (Kierkegaard, 1843/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843), p. 37); se conserva como única sem arriscar uma falta que a tornaria dinâmica e o furo em torno do qual se constrói o afeto dá um suporte ao sofrimento melancólico.

Na sequência, distingue o amor repetição do amor-recordação, sendo que o primeiro é um movimento adiante daquele que permaneceu como perda. Com a ideia de que a repetição avança na segurança do instante, situa a temporalidade cronológica ineludível e, ainda, nos diz que pontual será o instante. No entanto, pode prescindir da esperança, pois ela estará sempre à frente e se lhe escorregará das mãos. Articulando a tríade a uma incorporação subjetiva, propõe que a esperança é um fruto sugestivo que não sacia, o amor-recordação um miserável viático que não alimenta; mas a repetição é um pão cotidiano que alimenta as necessidades. Embora nos permita destacar as caraterísticas e o alcance desse objeto original, a junção tripla entre objeto perdido, repetição e busca aparece com enlaces poéticos e, consequentemente, mantém seu discurso com o tom enigmático de um bucle sobre o objeto, que não impede acompanhar a repetição vinculada ao movimento e ao desejo.

A repetição parte do movimento. Notemos que este texto que trata do objeto de amor, como recordação, repetição e esperança, começa situando a repetição a partir dos pré-socráticos, de modo que a repetição é um achado que reedita uma impressão anterior e se satisfaz na identidade. Esse movimento, numa referência ao início do texto, é apresentado por Diógenes de Sínope que, sem usar palavras, quando discutia com os Eleatas que negavam o movimento, ele avançando uns passos, com seu ato, refutou a ideia de imobilidade do universo (Kierkegaard, 1843/2009Kierkegaard, S. (2009). A repetição. Relógio d’Água. (Trabalho original publicado em 1843), p. 31). A mobilidade, a Kinesis grega, é o signo de deslocamento que no presente poderíamos relacionar à metonímia. Esse movimento é necessário à repetição, e ela mesma se vincula com a recordação, que seria, para Kierkegaard, um equivalente das reminiscências platônicas.

Uma perspectiva da Grécia clássica

A leitura de Platão nos permite constatar que nos começos da civilização o diálogo com o semelhante valorizou o outro e delimitou o objeto. Em seus escritos, encontramos algumas articulações que situamos próximas das que foram propostas a partir da psicanálise e sua ética. Interrogaremos o texto de Lísis, visando avaliar um termo que parece central no momento da tradução e da delimitação de uma constante no trato do semelhante e seu objeto, a palavra Oiknon. Para situar o termo, comentaremos o texto de Platão, as temáticas que aborda e, numa descrição da cena grega, pretendemos observar o fio que indica o valor onde pode se encontrar - quando conveniente para sustentar uma escuta - o outro como semelhante e como objeto em diferentes posições afetivas.

A cena do diálogo transcorre na cidade de Atenas, por volta de 430 a.C., mais precisamente às bordas do caminho que ligava a Academia ao Liceu, pelo lado externo da muralha. Sócrates caminha perto da palestra onde Micco, um sofista, ensina os filhos dos cidadãos atenienses a arte da escrita e a leitura. Quem convida Sócrates para se aproximar é o jovem Hipótales que está junto a Ctesipo, os dois em idades próximas da puberdade. Ele aceita e diz para Hipótales que reconhece nele já ser um amante (erastés), e interroga também quem seria seu amado. Ante a isso, o Ctesipo denuncia que o amado de Hipótales é o Lísis, uma criança ainda, numa idade pela qual não participa do Gimnásio, mas sim da Palestra (modalidade de paideia reservada às crianças). Somente nessa data se juntavam as faixas etárias para os rituais de Hermes. Ctesipo ridiculariza o desejo erótico de Hipótales pela criança, mas Sócrates pretende mostrar que louvando antes de ter o objeto amado, está agindo com um discurso equivocado, pois quando a pessoa é bajulada fica mais difícil de conquistar. Foi então que Hipótales pediu a Sócrates que lhe indique o que deve dizer e fazer para se ganhar os favores daquele a quem ama. Assim, entram os três na Palestra onde tem outros, entre eles o Lísis e o Menexeno, seu primo que não fica muito tempo porque o chamam a cumprir com um ritual a Hermes.

Do momento e o termo com que Sócrates começa a indagar a Lísis temos que notar uma modificação importante. Sócrates interroga Lísis para saber se ele acredita que seus pais o amem. Aqui, muda o verbo regularmente traduzido por amar (Platão, Lísis, 207 d.51 1 Para as referências que indicam a localização de parágrafos ou termos do grego antigo na obra de Platão, acrescentamos a numeração canônica, que permite conferir o texto grego original assim como as diversas traduções disponíveis. ). Pois já não é erao, mas substitui por fileuo. Nas falas com Hipótales, Ctesipo o termo tinha a tensão da paixão e do erotismo, mas aqui substitui a palavra ao citar o amor dos pais.

Em outro contexto abordado, o da educação, surgem interrogações sobre o desprazer, o dever fazer e a disciplina. Alternando numa antinomia, chama de amigo o que visa ao prazer e de inimigo seu contrário. O desprazer como negativo é citado de modo permanente em torno do amor fileuo e este aspecto negativo será também a diminuição de um valor em torno do que é próximo. Notaremos também que no parágrafo (Platão, 210 c.1) do texto Lísis, depois que Sócrates adverte que quando não se tem conhecimento de uma atividade, nem o pai, nem a mãe, nem quem seja mais “próximo”, confiam. Sendo esta a primeira vez que aparece a palavra oikeion, mas ainda com valor de semelhante, e está fora da descrição do psiquismo na qual será inserida no final do diálogo. O desprazer, o dever fazer, se vinculam ao próximo, ao íntimo e não somente o que é afeto positivo acompanha as vivências íntimas e originais. Numa exposição de carências, de desprazeres, de dever fazer e ser disciplinado, Sócrates desconstrói a imagem de um Lísis belo ante Hipótales, temos aqui uma primeira cena de exposição da falta.

Volta Menexeno ao grupo reunido e Lísis pede a Sócrates que o interrogue. O tema a seguir será o da amizade, situando um ativo, um passivo e uma correspondência nessa relação. Uma reciprocidade necessária no gosto da amizade, diferente do gosto por objetos. O objeto está presente, mas fica agindo atrás do reflexo do amigo. Falando com Menexeno, ante Lísis e os outros, Sócrates aborda temas como a atração entre semelhantes ou entre opostos (tema que também se encontra no diálogo do Banquete na fala de Erixímaco). Como efeito da diferença resultante do passo do semelhante ao oposto, introduz Sócrates a questão sobre o vazio (Platão, Lísis, 215 e.9), que também é um elemento que prepara um campo de entendimento para o objeto Oikeion.

Na medida em que vai cercando perguntas em torno da causa do que se ama (eros) ou do que é amigo (file), se aproxima de uma coisa que falta e se ama em vínculo com outra. Platão utiliza um demonstrativo Ekeinos para nomear Aquela coisa anterior em ordem da qual se desejam as outras coisas. No entanto, elas se repetem, “e necessário chegar a algum princípio (epi tina archn, 219 c.5), que já não nos remeta (epanoisei) a alguma outra coisa querida, se não, que nos leve a aquela que seja a primeira querida (proton filon) pelo amor do qual digamos que todo o demais é querido” (Platão, Lísis, 219 d.1). Esse princípio de origem é a ordem da linguagem, mais precisamente aqui a ordem metonímica na qual Lacan se detém ao ler no Banquete as falas de Diotima (Lacan, 1961/2010, p. 166).

Também o texto do Lísis nos conduz a uma relação da falta com o desejo equivalente ao do Banquete. Diz que a coisa que se deseja (epithumei) é alguma coisa que se carece (endeos), porque foi despojado (afaireta). Eis aqui onde Platão reintroduz um termo que, ao tempo de remeter ao semelhante, nos diz do que é do lar e também está como objeto originalmente desejado:

“É de algo que lhe é afim, creio, Lísis e Menexeno, que existe amor, amizade e desejo, ao que parece” (Platão, 1961, p. 60).

Tou oikeiou de, os eoiken, (Lísis, 221 e.3) o te eros, kai e philia kai e epithumai” (Lísis, 221 e.4) (Maronna, 2014Maronna, H. A. (2014). Lísis, de Platão: Tradução, estudo introdutório e notas [Dissertação de mestrado, Faculdade de Filososfia, Letras e Ciencias Humanas Universidade de São Paulo]. Portal Teses USP, São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-01072015-133935/fr.php
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, p. 117).

Pela relação com o objeto original, reconhecido no das Ding freudiano, avaliamos que o termo grego oikenos deve ter o sentido da palavra “algo”, e também como como objeto parcial. Platão registra no texto, além do familiar, o ponto inicial desse objeto desejado, um impulso de disposição subsequente, quando nos diz que esse “algo (to oikeion) afim no amado (erómenon), quanto a psique, algo do psíquico ético (ti tes psikes éthos), ou carácter da imagem (trópous é éidos)” (Platão, Lísis, 222 a.2). Nesta linha do texto, a associação da palavra ética à psique, se bem pode usufruir sua semântica de comportamento, no sentido de hábito, não deixa de ter a significação que se sustenta também desde um movimento a partir do objeto causa inicial, próximo do proposto por Lacan no Seminário da Ética, de 1960. Ainda, notemos que esse objeto original, que está detrás do amor erótico, a amizade e o desejo, tem um traço, um caráter, no sentido de marca de objeto no psíquico.

Observamos que Lacan retomou do escrito de Freud (1895Freud, S. (1895). Entwurf einer psychologie. Writings in Librery of Congress. https://www.loc.gov/resource/mss39990.OV1315/?sp=24
https://www.loc.gov/resource/mss39990.OV...
) als Ding e posicionou - aí onde tinha-se situado o momento mítico - o objeto na clínica. Com a inscrição do auxiliar do apoio, indicará modelo de escolha de objeto, facetado pela diversidade da relação de objeto.

Conclusão

Temos percorrido alguns conceitos, em vínculo com as situações clínicas que os geraram. Na cidade contemporânea ou na pólis grega, onde tem uma rede de laços e a escuta se fez possível, interrogar-se pelo amor e pelo semelhante, levou à necessidade de conceber um conceito de outro e de objeto. A complexidade do amor, suas relações com os desafetos, desprazeres, que podem ser externos ou internos e ainda estar resistentes a serem dialogados, parecem acenar de tempos imemoriais. A presente insegurança que as modificações contemporâneas trazem, permite uma desorganização e uma reconsideração ao que é clássico, ao que se repete, do que permanece estável, ao menos no cotidiano, que nos possibilite ensaiar uma leitura.

Sustentados pela linguagem, entre seus polos, se ordenam os desejos e os encontros, o que pode fazer sentido. Por diferentes motivos, múltiplos intercâmbios, desde os fenícios até o mercado contemporâneo, uma diversidade de objetos é oferecida aí onde se busca sempre a outra coisa. Momentos de perda foram importantes para situar que o objeto metonímico em questão pode ancorar num sentido de perda, de melancolia, de luto. Eis quando nos românticos e nos modernos a perspectiva de interno e externo melhor se delimitou.

Por esses diferentes motivos, uma passagem à interrogação pode ser feita a Sócrates ou a quem se disponha a escutar, on-line ou na intimidade de uma sala. Mas para implicar a quem fala na sua própria condição de desejante, se faz necessária uma perspectiva do desejo que considere sua causa. Eis onde, como semelhante, o sujeito terá uma complexa função de garantir a circulação da palavra, por onde ela circule, pelo prazer das fantasias, pelas frustrações, pelo desprazer ou pela agressividade. As possibilidades são ilimitadas, mas se discriminam com seus valores em torno do objeto que faz causa, de Oikos à Coisa.

Referências

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  • Lacan, J. (2008). A Ética da psicanálise (Vol. 7). Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1960)
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  • Maronna, H. A. (2014). Lísis, de Platão: Tradução, estudo introdutório e notas [Dissertação de mestrado, Faculdade de Filososfia, Letras e Ciencias Humanas Universidade de São Paulo]. Portal Teses USP, São Paulo. https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-01072015-133935/fr.php
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  • Platão. (1995). Lísis (F. de Oliveira, Tradução.). Editora UnB.
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    Para as referências que indicam a localização de parágrafos ou termos do grego antigo na obra de Platão, acrescentamos a numeração canônica, que permite conferir o texto grego original assim como as diversas traduções disponíveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2022
  • Aceito
    07 Ago 2023
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