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Tiros na Escola: Algumas Referências para a Psicologia na Assistência à Comunidade Escolar

School Shotting: Some References for Psychology in School Comunity Support

Tíros em la Escuela: Algunas Referencias para la Psicología em la Asistencia à Comunidad Escolar

Resumo

A atuação em situações de emergências e desastres apresentam-se como um dos grandes desafios na atuação dos profissionais da Psicologia, demandando intervenções singulares, desde o primeiro contato com as vítimas e o com entorno afetado pelo ocorrido, passando pelo trabalho interdisciplinar e interinstitucional junto aos órgãos públicos de segurança, justiça, assistência e saúde. O presente artigo tem como objetivo apresentar, por meio da experiência na assistência às vítimas na Escola Estadual Raul Brasil, as particularidades e adversidades enfrentadas durante o primeiro semestre de intervenções emergenciais que antecederam a contratação de psicólogos por parte do poder público municipal para continuidade das ações. Por meio de relatos de experiência em intervenções psicológicas, obtidos em diferentes instituições para a assistência às vítimas, este trabalho também visa apresentar alternativas que possam servir de referências para a intervenção do psicólogo e da psicóloga em situações de emergências e desastres, especialmente ocorridas na comunidade escolar. Observou-se que a realização do trabalho interdisciplinar e interinstitucional somado à participação da direção da escola no planejamento das ações e a realização de plantões psicológicos e rodas de conversa junto à comunidade escolar foram fundamentais para a assistência às vítimas do ocorrido.

Palavras-chave:
Emergências; Psicologia; Escola

Abstract

Timely response to emergency and disaster situations is a major challenge for Psychology professionals and require particular interventions, from initial contact with the victims and the affected environment to interdisciplinary and interinstitutional collaboration with public security, justice, assistance and health agencies. Based on the experience of providing assistance to the victims of the State School Raul Brasil, this paper presents the adversities and specificities faced during the first semester of emergency interventions implemented before psychologists were hired by municipal officials for the continuity of care. By analyzing experience reports on psychological interventions obtained from different institutions for victim assistance, this paper proposes alternatives to be used as reference for psychological intervention in emergency and disaster situations, especially those experienced by the school community. Interdisciplinary and interinstitutional collaboration with the school board for planning actions and offering psychological services and conversation circles for the school community was fundamental to assist the victims.

Keywords:
Emergencies; Psychology; School

Resumen

La actuación en situaciones de emergencias es uno de los grandes desafíos a los profesionales de la psicología, pues demanda intervenciones singulares desde el primer contacto con las víctimas y con el contexto afectado por lo ocurrido, pasando por la interdisciplinaridad e interinstitucionalidad junto a los organismos públicos de seguridad, justicia, asistencia y salud. Este artículo tiene como objetivo presentar, por medio de la experiencia de la asistencia a las víctimas del colegio estadual Raul Brasil (en São Paulo, Brasil), las particularidades y adversidades enfrentadas durante el primer semestre de las intervenciones de emergencia que antecedieron la contratación de psicólogos por parte del municipio para continuidad de las acciones. Por medio de reportes de experiencia en intervenciones psicológicas, obtenidos en diferentes instituciones para la asistencia a las víctimas, este estudio también pretende presentar alternativas que puedan servir de referencia en la intervención de psicólogos y psicólogas en situaciones de emergencia y desastres, especialmente ocurridas en la comunidad escolar. Se verificó que la realización del trabajo interdisciplinar e interinstitucional, la participación de la dirección del colegio en la implementación de acciones y la realización de guardias psicológicas y círculos de conversación con la comunidad escolar fueron fundamentales para una asistencia a las víctimas.

Palabras-clave:
Emergencias; Psicología; Escuela

Introdução

As estatísticas alarmantes de crimes contra a vida, registradas no Brasil, já não surpreendem mais. Segundo o Atlas da violência (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019), foram registrados mais de 65 mil homicídios apenas no ano de 2017. Justamente neste mesmo ano, no qual os homicídios apresentaram maior nível de letalidade violenta no país, foi registrada a primeira ocorrência de homicídio por tiros disparados no interior de uma escola, fato que causou comoção pública e motivou o replanejamentos no sistema de segurança das escolas públicas, além do incentivo a ações de enfrentamento ao bullying - caracterizado como um comportamento cruel em que os mais fortes convertem os mais frágeis em objetos de diversão e prazer (Fante, 2011Fante, C. (2011). Fenômeno bullying: Como prevenir a violência nas escolas e educar para a paz (6a ed.). Versus.).

Em 2011, um jovem de 23 anos, ex-aluno da escola Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro, abriu fogo contra os alunos que acompanhavam as aulas do ensino médio. Doze adolescentes morreram e mais de dez ficaram feridos (Agência Estado, 2019Agência Estado. (2019, 15 de março). Atacada em 2011, escola de realengo mudou desde recepção até as aulas. Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/03/15/interna-brasil,743133/atacada-em-2011-escola-de-realengo-mudou-desde-recepcao-ate-as-aulas.shtml.
https://www.correiobraziliense.com.br/ap...
). Diferentemente do que se escuta em relação aos crimes contra a vida, a saber, que as vítimas fatais “estavam no lugar e errado e na hora errada” - discurso que evidencia a naturalização da violência e a estigmatização das vítimas -, os atingidos pelos tiros estavam no ambiente escolar, cuja proteção recai sobre a responsabilidade do poder estadual.

Após o ocorrido, algumas mudanças foram observadas no cotidiano da escola: esta passou por reformas que reforçaram sua segurança e deu início a iniciativas intra e extracurriculares para o favorecimento da inclusão e do enfrentamento ao bullying. Um memorial foi construído em homenagem às vítimas em uma praça onde os alunos, além de realizarem o cuidado do local, comparecem anualmente para relembrar os colegas. Segundo informado pela Agência Estado (2019Agência Estado. (2019, 15 de março). Atacada em 2011, escola de realengo mudou desde recepção até as aulas. Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2019/03/15/interna-brasil,743133/atacada-em-2011-escola-de-realengo-mudou-desde-recepcao-ate-as-aulas.shtml.
https://www.correiobraziliense.com.br/ap...
), não existe tabu ao falar sobre o ocorrido na escola.

Alguns episódios violentos semelhantes ocorreram no país desde Realengo. Em 2017, um estudante de 14 anos matou dois alunos e feriu outros quatro em uma escola particular de ensino infantil e fundamental, em Goiânia. Segundo informações dos alunos que testemunharam a ação, o autor dos disparos sofria bullying e sacou uma arma da mochila durante o intervalo, atirando a esmo, como o fez o autor dos tiros na escola de Realengo (Velasco & Túlio, 2017Velasco, M., & Túlio, S. (2017, 20 de outubro). Veja quem são os mortos e feridos em ataque dentro de escola em Goiânia. Portal G1. https://g1.globo.com/goias/noticia/veja-quem-sao-os-mortos-e-feridos-em-ataque-dentro-de-escola-em-goiania.ghtml
https://g1.globo.com/goias/noticia/veja-...
).

No mesmo ano, na cidade de Janaúba, norte do estado de Minas Gerais, o vigia de uma creche ateou fogo em uma professora e, posteriormente, em alunos que estavam na sala de aula, matando 14 pessoas e ferindo outras dezenas. Segundo informações de familiares, o crime também havia sido premeditado e, de acordo com as investigações, o autor não demonstrou predileção entre os presentes, atingindo com as chamas todos a sua volta (Gorayeb, 2018Gorayeb, J. (2018, 5 de outubro). Após um ano, vítimas de incêndio na creche Gente Inocente buscam amparo e lutam contra dor. G1. https://g1.globo.com/mg/grande-minas/noticia/2018/10/05/apos-um-ano-vitimas-do-incendio-na-creche-gente-inocente-buscam-amparo-e-lutam-contra-dor.ghtml
https://g1.globo.com/mg/grande-minas/not...
).

Em 2018, um adolescente de 15 anos entrou armado na escola estadual João Manoel Mondrone, na cidade de Medianeira, no Paraná. Munido com uma pistola e contando com o auxílio de um colega, ele abriu fogo contra os alunos, atingindo dois gravemente. De acordo com Wurmeinster e Kobus (2018), o crime foi premeditado e motivado por bullying, embora os atingidos não tenham sido identificados como os responsáveis pela prática.

Outros casos de violência semelhantes ocorreram em datas anteriores e posteriores ao de Realengo. Em 2011, na cidade de São Caetano do Sul, região do Grande ABC paulista, um aluno de dez anos atirou contra sua professora e, em seguida, contra si, vitimando-se fatalmente (Portal G1, 2011Portal G1. (2011). Aluno de 10 anos atira em professora dentro da escola em São Caetano, SP. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/09/aluno-atira-em-professora-dentro-da-sala-de-aula-no-abc.html
http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/20...
). No ano seguinte, em Santa Rita, na Paraíba, dois alunos feriram outros três ao entrarem armados na escola (Resende, 2012Resende, A. (2012). Suspeitos de tiros em escola em Santa Rita tinham dois alvos. Jornal da Paraíba. https://jornaldaparaiba.com.br/noticias/suspeitos-de-tiros-em-escola-em-santa-rita-tinham-dois-alvos/
https://jornaldaparaiba.com.br/noticias/...
).

As ocorrências relatadas apontam para algumas particularidades: além de terem sido premeditadas, elas aparentam não ter como alvo indivíduos, mas aquilo que eles representam quando estão juntos: o coletivo, o público. Na escola, mais particularmente, tais dimensões estão articuladas à sua significação como instituição historicamente construída, fortemente marcada por preconceitos sociais (Souza, 2005Souza, M. P. R. (2005). Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar. Revista Estilo da Clínica, 10(18), 82-107.).

Em março de 2019, essa violência voltou a ocorrer, desta vez na cidade de Suzano, região metropolitana de São Paulo. Durante o intervalo, dois adolescentes, aluno e ex-aluno, entraram armados na escola Estadual Raul Brasil e mataram sete pessoas, entre colegas e funcionários. Após a chegada de policiais militares, os jovens buscaram refúgio nas dependências do Centro de Línguas, anexo à escola, onde foram encontrados mortos. O tio de um dos autores também foi morto na ação, totalizando assim dez vítimas fatais. Além delas, outras 11 pessoas foram feridas, as quais, apesar da gravidade, conseguiram sobreviver.

O ataque à escola Raul Brasil reascendeu a preocupação do poder público e da sociedade civil acerca dos cuidados com as vítimas de tiros em escolas e com as políticas públicas para a prevenção e enfrentamento dessa violência. Além disso, convidou profissionais de diversas áreas, especialmente da Psicologia, para a reflexão acerca de seu papel na assistência à comunidade escolar e quais particularidades estão implicadas no trabalho em situações como aquela que ocorreu na escola de Suzano.

Essas preocupações e reflexões se caracterizaram como propulsoras deste estudo, que descreverá a assistência oferecida à escola, desde as primeiras horas após o ocorrido até a conclusão das atividades emergenciais, concretizadas ao final do primeiro semestre de 2019, ensejo no qual houve a contratação de psicólogos por parte do poder municipal para continuidade das ações de assistência à comunidade escolar.

A intervenção psicológica em emergências

Catástrofes, desastres e tragédias são acontecimentos cuja participação de profissionais da Psicologia se intensifica a cada nova ocorrência, e possuem similaridades, pois apontam para acontecimentos de grandes proporções e consequente número expressivo de vítimas. No entanto, tais eventos possuem particularidades importantes.

Tragédias, segundo Mano, Ramos e Trevisan (2019Mano, M. A. M., Ramos, N. V., & Trevisan, A. L. (2019). O momento da tragédia: o papel da educação e da saúde na perspectiva da justiça social. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, 24(2), 545-565. https://doi.org/10.1590/S1414-40772019000200013
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), compreendem a soma de diversas variáveis que se sustentam por meio de raízes sociais e históricas profundas, e justamente por esse motivo não podem ser resumidas em apenas tragédias naturais.

Por sua vez, catástrofes são caracterizadas pela Organização Mundial da Saúde (1992Organização Mundial de Saúde [OMS]. (1992). Conceptos sobre catástrofes. Revista Argentina de Enfermagem, 30, 72-73.) como “qualquer fenômeno que provoca danos, prejuízos econômicos, perdas de vidas humanas e deterioração da saúde e dos serviços sanitários em medida suficiente para exigir uma resposta extraordinária de setores externos da comunidade ou zona afetada” (Organização Mundial da Saúde [OMS], 1992Organização Mundial de Saúde [OMS]. (1992). Conceptos sobre catástrofes. Revista Argentina de Enfermagem, 30, 72-73., p. 72).

Exemplificadas também como naturais, as catástrofes impedem a representação com a mesma potência que oferecem novas formas de elaboração de um acontecimento. Trata-se, portanto, de um fenômeno ambivalente, conforme afirmam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000Nestrovski, A., & Seligmann-Silva, M. (Org.). (2000). Catástrofe e representação. Escuta.):

A palavra “catástrofe” vem do grego e significa, literalmente, “virada para baixo” (kata + strophé). Outra tradução possível é “desabamento”, ou “desastre”; ou mesmo o hebraico Shoah, especialmente apto no contexto. A catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma, outra palavra grega, que quer dizer “ferimento”. “Trauma” deriva de uma raiz indo-européia com dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”; mas também “suplantar”, “passar através”. Nesta contradição - uma coisa que tritura, perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, já se revela, mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que por isso mesmo não se deixa apanhar por formas simples de narrativa (Nestrovski & Seligmann-Silva, 2000Nestrovski, A., & Seligmann-Silva, M. (Org.). (2000). Catástrofe e representação. Escuta., p. 8).

Desastres são caracterizados, segundo Alves (2012Alves, E. G. R. (2012). A árvore: A difícil elaboração do processo de luto. O Mundo da Saúde, 36(1), 127-132.), como produto da ausência de um gerenciamento adequado dos riscos sobre o crescimento e transformação de uma sociedade. Dessa forma, os desastres estão relacionados às políticas públicas e acabam por reforçar as vulnerabilidades já existentes em determinadas populações.

A tentativa de nomear uma emergência é justificável, em especial neste trabalho, pois uma das primeiras dificuldades enfrentadas, tanto pelos psicólogos quanto pela comunidade escolar, nas primeiras horas após os tiros foi encontrar um nome para aquele acontecimento brutal. Apresentava-se pouco provável para ser caracterizado como uma tragédia, bem como não natural para ser considerado como catástrofe. Por se tratar de um ambiente escolar, portanto minimamente protegido de riscos, tampouco poderia ser considerado um desastre.

Em contrapartida, para todos restavam poucas dúvidas quanto ao seu potencial traumático e desorganizador. Desde logo, sob o barulho ensurdecedor de helicópteros e em meio à persistência dos veículos de comunicação para obter maiores informações sobre o ocorrido, juntamente à grande quantidade de pessoas, em sua maioria pais a procura de informações sobre seus filhos, psicólogas e psicólogos da rede de atenção psicossocial do município realizavam as primeiras triagens em um centro improvisado na Associação Cultural Suzanense, também conhecido como Bunkio.

Consideradas todas essas variáveis que se entremeavam no contexto do atendimento psicológico, caracterizam-se assim os campos de atuação em situação de emergência:

A emergência já parte do pressuposto de que algo saiu do previsto, da organização conhecida, que algo está fora do normal ou esperado. Ao invés de um local fixo, fechado, privativo, com hora marcada, o trabalho muitas vezes é feito em um local público, com pessoas passando e falando (chorando ou gritando), barulhos, cheiros e dificuldades inerentes à situação presente (Costa et al., 2015Costa, C. F. D., Affini, E. P., Alves, I. B., Fonseca, J. P., Biasoto, L. G. A. P., Gianini, M. M. S., & Klug, S. (2015). O atendimento psicológico em emergências: diferentes settings. In M. H. P. Franco (Org.), A intervenção psicológica em emergências: Fundamentos para a prática (pp. 105-146). Summus., n. p).

O trabalho desses profissionais recebeu reforço com a chegada de psicólogas da Universidade de São Paulo, bem como psicólogas e assistentes sociais da Defensoria Pública do Estado de São Paulo e da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, além de dezenas de voluntários. Uma vez em seus postos e tendo recebido as mínimas informações sobre o fluxo de atendimento recém-estabelecido, os profissionais realizavam as triagens munidos de água e kit lanche, fundamentais para a realização das intervenções psicológicas em emergências. Segundo Costa et al. (2015Costa, C. F. D., Affini, E. P., Alves, I. B., Fonseca, J. P., Biasoto, L. G. A. P., Gianini, M. M. S., & Klug, S. (2015). O atendimento psicológico em emergências: diferentes settings. In M. H. P. Franco (Org.), A intervenção psicológica em emergências: Fundamentos para a prática (pp. 105-146). Summus.), quanto mais próxima ao momento do ocorrido, mais concreta será a intervenção, e, por esse motivo, a alimentação e hidratação, tanto das vítimas quanto dos profissionais, eram cuidadosamente consideradas.

Outro motivo que reforça a necessidade de profissionais que trabalham em situações de emergências se atentarem para seus cuidados mais básicos, bem como das pessoas a serem atendidas, é a falta de perspectiva acerca de qual será o horário em que os trabalhos serão interrompidos. Diferentemente do setting clínico tradicional, por vezes caracteristicamente psicanalítico, as intervenções realizadas em emergências carecem de previsibilidade, obrigando psicólogas e psicólogos a estenderem suas intervenções por longas horas, seja do dia ou da noite.

Assim, uma vez avaliada que a demanda de psicólogos na Associação Cultural Suzanense havia sido suprida pelo alto número de profissionais que ali estavam, foram realizados, por parte do município, encaminhamentos de psicólogos para o auxílio em diversas frentes: na escola, nos equipamentos de saúde e, também, em caráter de assistência domiciliária.

Eram as primeiras horas após o ocorrido e o número de feridos ainda não havia sido dimensionado. Considerando o encaminhamento de sobreviventes não apenas para hospitais da região como para o Hospital das Clínicas, em São Paulo, equipes interdisciplinares foram remanejadas ao local para a avaliação dos feridos.

O número de mortos, por sua vez, já havia sido identificado. Além dos dois autores e do tio de um deles, sete corpos, entre funcionários e alunos, já haviam sido reconhecidos no Instituto Médico Legal do município, que funciona anexo ao cemitério municipal São Sebastião, onde uma equipe, formada por psicólogos e assistentes sociais, estava posicionada para o acolhimento dos familiares.

O Instituto Médico Legal e o cemitério como campo de intervenções psicológicas de emergências

Fundado em 1885 e vinculado à Secretaria Estadual da Segurança Pública, o Instituto Médico Legal está subordinado à Superintendência da Polícia Técnico Científica, sendo seu órgão técnico mais antigo, criado com o intuito de fornecer bases técnicas em medicina legal para o julgamento de causas criminais (São Paulo, s.d.São Paulo. Secretaria da Segurança Pública. (s. d.). Institucional - Instituto Médico Legal. https://www.ssp.sp.gov.br/fale/institucional/answers.aspx?t=3
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). Sua função, para além da realização de necropsias, caracteriza-se majoritariamente pela realização de laudos relacionados a acidentes de trabalho e de vítimas de violência.

Em Suzano, bem como em alguns municípios, o Instituto Médico Legal localiza-se de forma anexa ao cemitério, cuja administração é de responsabilidade do município - mesmo em caso de cemitérios privados, uma vez que, segundo Bravo (2015Bravo, T. (2015). Direito funerário - cemitérios. Portal Jus Brasil. https://thibravo.jusbrasil.com.br/artigos/169156416/direito-funerario-cemiterios.
https://thibravo.jusbrasil.com.br/artigo...
), tais estabelecimentos são compreendidos como de interesse público.

Contando com a coordenação de uma representante da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo, a equipe de psicólogos e assistentes sociais implementaram um fluxo de atendimento com início imediato após o reconhecimento dos corpos pelos familiares, que eram encaminhados a uma capela do cemitério, previamente organizada e abastecida com água, café e lenços de papel.

Os psicólogos realizavam a recepção dos familiares, apresentando-se como profissionais à disposição para o diálogo, além de ofertarem cadeiras, água, café e lenço de papel para melhor acomodação. O oferecimento desses elementos aos familiares das vítimas caracterizou-se como uma importante intervenção, que reforçou a qualidade do cuidado psicológico oferecido. Aos poucos, observou-se que aquele ambiente, profundamente marcado pela dor, apresentava-se como mais profícuo às intervenções concretas em comparação às verbais, em que a presença do profissional da Psicologia e sua disponibilidade eram consideradas.

Com o aumento do contingente de familiares na capela, observou-se também iniciativas de apoio entre as famílias das vítimas fatais, que se abraçavam mutuamente. Unidas pela dor de perder um familiar de forma violenta, elas iniciavam ali os rituais que, segundo Koury (2003Koury, M. G. P. (2003) Sociologia da emoção: O Brasil urbano sob a ótica do luto. Vozes.), servem para auxiliar na concretização da morte, confirmar a perda e autorizar a expressão dos afetos e memórias.

Tais rituais, embora necessários, encontram entraves quando frutos de ocorrências como a que se abateu sobre a escola Raul Brasil, a saber, a dificuldade de se recolher e se concentrar em seus próprios sentimentos, dado o assédio intenso dos veículos de comunicação. As homenagens e demonstrações de solidariedade, mesmo que importantes formas de apoio, podem também obstaculizar o percurso particular do luto de cada familiar.

Tanto o Instituto Médico Legal quanto o cemitério foram espaços importantes para a realização das intervenções psicológicas junto aos familiares das vítimas fatais. O estabelecimento de um fluxo de encaminhamento previamente combinado entre representantes do poder municipal, estadual e dos profissionais presentes serviu de forma a orientar e acolher as vítimas em seu momento mais crítico, favorecendo a humanização do atendimento e ressaltando o direito de serem tratadas com compaixão e respeito com sua dignidade, de acordo com o afirmado pela Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua resolução 40/34, de 29 de Novembro de 1985.

Ao final da noite, todos os familiares já haviam deixado o cemitério e retornado às suas casas. Uma vez concluído o fluxo de atendimento, seria necessário implementá-lo agora na arena de esportes do município, onde o velório coletivo seria realizado.

As intervenções durante o velório e o início das intervenções psicológicas na escola

Velórios são rituais não raro de caráter intimista e limitado aos familiares e amigos do falecido. São considerados rituais importantes para a elaboração do luto:

É importante do ponto de vista religioso para quem tem crenças e também cumpre a função do compartilhamento social, do reconhecimento pela comunidade como alguém que está enlutado. No ritual, concretizamos a morte diante de um corpo concreto. Expressamos emoções e somos acolhidos (Casellato, 2020Casellato, G. (2020, 20 de março). Funerais em tempos de coronavírus. Folha de S.Paulo. https://mortesemtabu.blogfolha.uol.com.br/2020/03/20/funerais-em-tempos-de-coronavirus/
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, n. p).

Tal compartilhamento social citado encontrou ressonância no Brasil e no exterior. Realizado na arena de esportes da cidade de Suzano, o velório coletivo contou com a participação de representantes de diversos segmentos da comunidade local.

A comoção social, provocada pela magnitude daquela violência, resultou em um velório com contornos particulares, cujo caráter comumente intimista e reservado que caracteriza esse ritual foi substituído pela presença massiva da população e pela exposição em tempo real nos programas de televisão.

Para Oliveira et al. (2015Oliveira, A. Q., Maso, J. S., Ramos, R. S., Oliveira, S. R. (2015). Rituais de luto e sua função reconstrutora de desastres. In M. H. P. Franco (Org.), A intervenção psicológica em emergências: Fundamentos para a prática (pp. 229-256). Summus.), o velório nos casos de emergências e desastres apresenta, como uma de suas singularidades, a demanda, por parte dos enlutados, de reconstrução de uma realidade profundamente marcada pela perda. Quanto ao ocorrido na escola Raul Brasil, a reconstrução dessa realidade era demanda de uma cidade inteira.

A demanda refletiu também nas primeiras discussões acerca das ações para a paulatina retomada das atividades escolares naquela comunidade. A escola Raul Brasil, uma das mais antigas e, segundo informações dos moradores, uma das mais bem avaliadas escolas públicas da região, havia sido marcada para sempre como local de ocorrência da mais brutal violência já testemunhada pelo município. Nesse sentido, a reconstrução necessária compreendia a realidade de toda uma comunidade escolar, em ações de assistência que seriam empreendidas no mesmo local onde tudo aconteceu.

No dia seguinte após o velório e o enterro das vítimas, representantes de secretarias estaduais e municipais, bem como representantes das redes municipais e estaduais de saúde, assistência, educação e justiça realizaram uma reunião na quadra poliesportiva da escola. Contando também com a participação de pais de alunos e funcionários, foi sugerida a realização de atividades culturais e artísticas na Raul Brasil, que contaria também com um aparato de apoio psicossocial, realizado nas dependências da escola e nas instituições municipais de saúde que a avizinhavam.

As aulas regulares foram suspensas para que as atividades, dentro e fora das salas de aula, pudessem ser realizadas com o objetivo de atingir o maior número de pessoas, cuja presença era facultativa, especialmente para alunas, alunos, professores e demais funcionários, considerados sobreviventes do atentado e vítimas indiretas daquela violência.

A violência pode atingir outras pessoas, além da vítima direta que tenha suportado o ato violento. A vitimização direta ou difusa amplia a compreensão do sofrimento gerado em decorrência da violação, tendo em vista que a violência perpetrada contra a vítima reverbera em outros contextos, atingindo também, de forma diferenciada e difusa, outras pessoas que podem pertencer ao círculo de convivência da vítima direta e sofrer os efeitos da violência perpetrada (Kamimura, 2008 Kamimura, A. (2008). O atendimento interdisciplinar às vítimas de violência: desafios e possibilidades. [Apresentação de trabalho]. IV Encontro Anual da Associação Nacional de Direitos Humanos, Pesquisa e Pós-Graduação, Vitória, Espírito Santo, Brasil., n. p).

Schilling também colabora na descrição e preocupação com a atenção às vítimas indiretas:

Há vítimas em todos estes casos. Há um tipo de vitimização difusa ou coletiva que nos afeta a todos. Não somos mais os mesmos após os relatos dos crimes que ocorrem. Vamos sendo construídos como subjetividades atemorizadas. Chamamos a atenção para a fraca presença de trabalhos sobre a questão das vítimas de violência urbana. Há um grande acervo de experiências e estudos sobre crianças, jovens e mulheres vítimas de violência doméstica, violência sexual e maus tratos, há uma preocupação com a criação de políticas públicas de atendimento, ainda que insuficientes e não integradas na ação escolar. Insuficientes, inclusive, por não considerarem que, além da vítima direta, há vítimas indiretas nestas situações (Schilling, 2016Schilling, F. (2016). Indisciplina, violência e o desafio dos direitos humanos nas escolas. In Governo do Estado do Paraná. Secretaria de Estado da Educação. Enfrentamento à violência na escola: Série cadernos temáticos. http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/sem_pedagogica/julho_2016/1dia_professores_artigo1_sp_2semestre.pdf
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov....
, n. p).

Com o objetivo, portanto, de evitar a revitimização das vítimas indiretas, tais ações tiveram início na semana seguinte ao atentado. Tendo em vista que a escola havia permanecido fechada deste então, a presença de pais e responsáveis no primeiro dia de atividades na escola se limitou à busca dos materiais escolares de seus filhos, deixados abruptamente nas salas e no pátio após o início dos tiros.

Os que permaneciam apresentavam demandas para a melhoria da segurança na escola, bem como procuravam os psicólogos que se encontravam em plantão no pátio e nas salas de aula. Um programa de intervenção interdisciplinar estava em construção.

A psicologia na assistência às vítimas na Raul Brasil

Com a reabertura da escola para a realização de atividades culturais e artísticas, reabriram-se também os contatos com a comunidade escolar. Experiência necessária, que resultou em observações e avaliações importantes para a construção de um programa de intervenção a ser adotado pelas diferentes instituições participantes, cuja duração ainda era incerta.

A Secretaria de Estado da Educação organizou reuniões semanais, contando com representantes da Defensoria Pública, da Secretaria da Justiça e Cidadania, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, além de demais instituições de ensino superior do entorno e de organizações sociais voltadas às práticas de justiça restaurativa e aprendizagem socioemocional. A direção da escola, nas figuras da diretora e de dois coordenadores pedagógicos, também era partícipe, auxiliando na escolha das ações e sugerindo atividades a serem realizadas pelos profissionais, em sua maioria da Psicologia.

Dentre as diversas sugestões de intervenção com o objetivo de favorecer a abertura de um espaço para que a comunidade escolar pudesse ser acolhida, falar sobre o ocorrido e, assim, ressignificar a violência que se abateu na escola, uma unanimidade estava clara para todos os representantes dessas instituições: a Raul Brasil precisava de tempo, e esse tempo não passaria de forma uniforme para toda a comunidade escolar. Tratava-se do tempo interno e não de um tempo estipulado, conforme afirma Alves (2012Alves, E. G. R. (2012). A árvore: A difícil elaboração do processo de luto. O Mundo da Saúde, 36(1), 127-132.), pois estávamos diante de um trabalho que envolvia luto, e:

O luto é único, singular e individual. Não existe um tempo específico para seu término, cada pessoa fica de luto à sua maneira e durante o tempo que precisar para elaborar a perda e voltar a fazer planos sem a pessoa que morreu (Alves, 2012Alves, E. G. R. (2012). A árvore: A difícil elaboração do processo de luto. O Mundo da Saúde, 36(1), 127-132., n. p).

Tal posição serviu como um dos principais fundamentos para mais uma unanimidade: a comunidade queria falar sobre o que aconteceu. Narrar o acontecimento, os momentos anteriores e posteriores, bem como descrever as características marcantes dos amigos que morreram, justificaram a criação e manutenção das rodas de conversa, realizadas simultaneamente no pátio e em algumas salas de aula.

As rodas de conversa, segundo Méllo, Silva, Lima e di Paolo (2007Méllo, R. P., Silva, A. A., Lima, M. L. C., & di Paolo, A. F. (2007). Construcionismo, práticas discursivas e possibilidades de pesquisa. Psicologia e Sociedade, 19(3), 26-32. https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000300005
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), apresentam possibilidades de discussões acerca de uma temática, em um processo dialógico que comporta elaborações correspondentes e contraditórias, em que cada integrante, por meio de sua fala, provoca os demais à participação. Para Lins e Paes (2018Lins, C. B. A., & Paes, M. S. (2018). Sentimentos de mulheres em sofrimento psíquico grave acerca de suas vivências sexuais. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 21(1), 92-108. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2018v21n1p92.7
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, p. 95), as rodas de conversa “favorecem um espaço de criação de diálogo em que as participantes podem se expressar livremente, escutar a si mesmas e as demais, estimulando-as em sua autonomia por meio das trocas e das reflexões para as possíveis ações”.

Constatou-se, assim, que as rodas, realizadas pelos psicólogos, demonstraram resultados importantes para a construção de um lugar, na escola, onde o tema da morte e da violência, ocorridos como atos, pudessem ser transformados em palavras. Tais temas, especialmente o da morte, segundo Kovács (2012Kovács, M. J. (2012). Educadores e a morte. Revista Psicologia Escolar e Educacional da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 16(1), 71-81. https://doi.org/10.1590/S1413-85572012000100008
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), são difíceis de serem trabalhados nas escolas e com educadores, e ressalta que:

A escola é local por excelência de socialização para crianças, por isso deveria oferecer suporte a alunos que vivem processos de perda e morte. O acolhimento é essencial para ajudar a significar perdas, promovendo prevenção de sofrimento, em parceria com os pais (Kovács, 2012Kovács, M. J. (2012). Educadores e a morte. Revista Psicologia Escolar e Educacional da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 16(1), 71-81. https://doi.org/10.1590/S1413-85572012000100008
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, n. p).

Embora acolhidos nas rodas de conversa, o medo da reincidência de um novo atentado era presente. Em uma das rodas, realizada na sala de aula cedida pela direção, um grupo de alunos chegou a se levantar repentinamente após a porta da sala ter sido aberta pela força do vento. Aos poucos, as alunas e alunos integrantes foram convidando seus amigos, até que o contingente de integrantes nas rodas chegasse a dezenas. Alguns dos alunos se prontificavam a auxiliar o psicólogo no estabelecimento do setting, anunciando as regras do grupo para toda a sala com o objetivo de favorecer a participação de todos.

Uma vez constituída a confiabilidade na roda, assuntos diversos começaram a ser apresentados pelos alunos. Alguns deles mostravam as marcas produzidas pelas automutilações que lhe infringiam, afirmando que tal comportamento os auxiliava a deixar de sentir aquilo que os cercava. Algumas alunas, por sua vez, solicitaram atendimentos individualizados, em que questões relacionadas à dependência química por parte dos genitores e violências ocorridas no contexto familiar eram descritas, dado que ressaltou a importância da articulação entre os órgãos de saúde, assistência e garantia de direitos para a realização do encaminhamento dessas demandas.

Foi possível observar também a inibição, por parte dos alunos que eram amigos dos autores, em relatar sua surpresa com o ocorrido, bem como contar sobre a história de amizade que haviam construído. Tal constatação apontou para a necessidade de se aprimorar o enquadre das rodas, afirmando, logo em seu início, que naquele espaço a história de todos os que se foram poderia ser rememorada.

A dificuldade em nomear o ocorrido também foi observada durante as rodas de conversa. Alguns alunos chamaram de tragédia, outros, de desastre, enquanto alguns tentavam nomear o sentimento de dor que os afligia. Aos poucos e coletivamente, descobríamos que estávamos falando de um massacre.

A nomeação do ocorrido, porém, não deveria encobrir a memória das vítimas. Crimes contra a vida incidem de forma a desqualificar a vítima, deslegitimando também seu luto. Segundo Alencar (2011Alencar, S. L. S. (2011). A experiência do luto em situação de violência: Entre duas mortes [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório PUCSP. https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/16919
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), para que o processo do luto possa ocorrer, faz-se necessário restituir a condição humana das vítimas. Nesse sentido, falar sobre as vítimas e suas particularidades -como as músicas que mais gostavam e suas práticas de esporte favoritas, por exemplo - ressalta a importância de lembrar aos sobreviventes que elas não são aquilo que sofreram.

Além disso, caracterizou-se como uma intervenção importante lembrar àquela comunidade escolar que, apesar da dor, somente ela poderia portar a história de vida daquelas vítimas e contá-la aos demais que ali estavam. Por mais voluntariosos que fossem os profissionais e todas as instituições que realizavam seus trabalhos, somente aquela comunidade escolar poderia transmitir as histórias de vida cujo massacre ameaçava encobrir.

Nas semanas seguintes, as rodas eram realizadas em dias e horários específicos. Com a retomada gradual das aulas, os alunos e alunas que solicitassem participar das rodas teriam que se inscrever previamente, regra que seria desconsiderada caso algum deles apresentasse mal-estar e assim requisitasse apoio do psicólogo.

Os temas, que invariavelmente reincidiam sobre as cenas de violência testemunhadas, começaram a dar lugar às demandas relacionadas aos direitos da comunidade escolar quanto à segurança da escola e sua qualidade de ensino. Dessa forma, as rodas de conversa, que inicialmente eram importantes espaços para a nomeação e elaboração da violência, passaram a ser espaços de cidadania e participação, onde alunos e alunas descreviam os pontos a serem melhorados pela escola, e qual a responsabilidade de todos para com eles.

O psicólogo incentivou tal movimento, reafirmando que sua presença na escola era um direito daquela comunidade escolar. Durante uma das rodas, uma professora, que após algumas semanas havia retomado suas aulas, solicitou que uma das participantes da roda retornasse à classe, sendo advertida firmemente pela adolescente, que afirmou que sua presença naquela roda era um direito a ser exercido por ela. Tal situação foi utilizada como um exemplo acerca da relação entre direitos e deveres com todos os alunos e alunas da roda, uma vez que a professora, por sua vez, exercia seu dever de educar.

Concomitantemente às rodas, outras iniciativas foram implementadas, como as visitações de psicólogos em todas as salas de aula da escola, cuja grade aos poucos era retomada, para fomentar o diálogo sobre o ocorrido, com especial atenção às salas dos alunos vitimados fatalmente.

Além dos alunos, foram realizadas também ações voltadas aos demais setores da escola. As funcionárias da cozinha recebiam visitas semanais dos psicólogos de plantão, que ofereciam seus atendimentos no pátio da escola. Uma vez realizada a escuta, as informações pessoais e contatos telefônicos de todos os atendidos eram contabilizados e encaminhados para a rede de saúde do município, absorvendo as demandas por meio de suas unidades básicas de saúde e centros de apoio psicossocial, para posterior atendimento.

Alguns professores, de acordo com a demanda, receberam visitas domiciliares de psicólogos; inspetores e funcionários da secretaria também recebiam visitas desses profissionais para a avaliação dos efeitos da violência que atingiu aquela comunidade escolar. Ressalta-se que considerável parte dos funcionários testemunhou seus colegas serem assassinados brutalmente e a atenção voltada ao setor era essencial, embora a alta carga de atividades fosse um entrave para a realização de seus atendimentos.

Ao longo dos meses que sucederam ao atentado, em especial durante as primeiras semanas, a metodologia utilizada para o apoio à comunidade escolar, além das rodas de conversa, baseou-se na proposta dos primeiros cuidados psicológicos. Conhecidos por sua sigla, PCP, esses cuidados compreendem um conjunto de ações cujo objetivo se traduz no apoio às pessoas em sofrimento, sobretudo em situações de crises.

Dentre eles estão, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (2011Organização Pan-Americana da Saúde [OPAS]. (2011). Primeiros cuidados psicológicos: Guia para trabalhadores de campo. https://iris.paho.org/handle/10665.2/7676?locale-attribute=pt
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), a oferta de apoio e cuidado prático não invasivo, avaliação das necessidades e preocupações e auxílio na busca por informações. O diferencial dos PCPs é que sua aplicabilidade não se restringe a profissionais da Psicologia, o que favoreceu a amplitude do apoio à escola, protagonizada e manejada por toda a comunidade escolar.

Aproximando-se do mês de junho, portanto três meses do ocorrido, algumas mudanças puderam ser observadas. Além das melhorias estruturais realizadas na escola, a demanda pela participação nas rodas de conversa - que se totalizaram em dezenas, realizadas diariamente ao longo dos quatro meses de intervenção com participação de seis a até aproximadamente 60 alunas e alunos nos períodos de maior procura - arrefeceu. As visitas nas salas de aula estavam sendo concluídas e as matérias da grade curricular haviam sido retomadas, entremeadas dos intervalos, que voltavam a ser caracteristicamente barulhentos e apinhados de crianças e adolescentes.

Havia chegado o momento finalizar as intervenções para a continuidade dos trabalhos no início do segundo semestre, dessa vez, implementados pelas psicólogas e psicólogos recém-contratados pelo município.

Para a finalização das primeiras intervenções psicológicas na escola estadual Raul Brasil, foi apresentada uma proposta de grupo de orientação para a cidadania direcionado a pais e alunos daquela comunidade escolar. Orientativo e circunscrito de forma a ser concluído em cinco encontros, o grupo tinha como objetivo estimular a participação cidadã de pais e alunos junto à direção da escola, sendo realizado em uma das salas de aula.

Embora disponibilizado para pais e alunos, verificou-se a aderência dos pais, cinco ao todo, que inicialmente falaram sobre o estado de saúde dos filhos, alguns se recuperando de disparos de arma de fogo. Ao longo dos encontros, os pais relataram suas dificuldades para o acesso à direção da escola, avaliando que tais deveriam ser superadas para que seus direitos - dentre eles a segurança de toda a comunidade escolar, principal demanda de todos, especialmente no início das intervenções - pudessem ser garantidos por meio da participação cidadã.

Com o objetivo de favorecer a aproximação entre pais, escola e as instituições de saúde, assistência e justiça que trabalhavam junto à Raul Brasil, foram convidados representantes das instituições para se reunirem com a comunidade escolar. Conselheiros tutelares, defensores públicos e representantes das universidades cujos pesquisadores integravam as ações de apoio à escola tiveram a oportunidade de apresentar aos pais suas colaborações, colocando-se à disposição destes para a melhoria da qualidade da convivência escolar.

Todos e todas empenhados na reconstrução de uma escola que ocupa um lugar de especial importância para o município. A escola Raul Brasil é uma das mais antigas escolas de Suzano e, apesar do ocorrido jamais ser esquecido, ela não deve ser resumida à violência que lhe abateu.

Considerações finais

Durante todo o período em que as primeiras intervenções psicológicas foram aplicadas na escola estadual Raul Brasil, desde o primeiro contato, uma constatação em especial foi ouvida por diferentes representantes daquela comunidade escolar: “o que nos ocorreu não foi o primeiro caso e, infelizmente, não será o último”.

De fato, as ocorrências de tiros em escolas como a Raul Brasil e a Tasso da Silveira, em 2011, no Rio de Janeiro, além de ataques similares registrados no país, citados no início deste trabalho, somam-se ao todo sete entre os anos de 2011 e 2019. Nos Estados Unidos, apenas no ano de 2019, segundo Silverstein (2020Silverstein, J. (2020, 2 de janeiro). There were more mass shooting than days in 2019. CBS News. https://www.cbsnews.com/news/mass-shootings-2019-more-than-days-365/
https://www.cbsnews.com/news/mass-shooti...
), mais de 400 ataques foram registrados em escolas, por meio de uso de arma de fogo, dado que levou o governo americano a promover medidas para o controle de armas (Portal DW, 2021Portal DW. (2021). Biden anuncia primeiras medidas de controle de armas. https://www.dw.com/pt-br/biden-anuncia-suas-primeiras-medidas-para-aumentar-o-controle-sobre-armas-de-fogo/a-57139181
https://www.dw.com/pt-br/biden-anuncia-s...
).

No Brasil, mais especificamente, o governo do presidente Jair Bolsonaro, iniciado poucos meses antes do ataque à escola Raul Brasil, defendia reiteradamente o armamento da população, não reconhecendo a relação existente entre homicídios e o porte de armas, que no Brasil se apresenta como principal instrumento de mortes por crime, segundo o Atlas da violência (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA], 2019Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada [IPEA]. (2019). Atlas da violência. IPEA. https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/d...
).

Em contrapartida, observou-se o emudecimento de representantes do governo federal após o ataque à escola estadual Raul Brasil quanto ao assunto do armamento durante os meses em que a escola recebia auxílio das mais diversas instituições comprometidas com a democracia e a plena convivência das diversidades, dentro e fora da comunidade escolar.

Nesse esteio, a Psicologia encontra diferentes formas de se posicionar, todas elas uníssonas a favor de uma sociedade comprometida com os direitos humanos e com a promoção da liberdade, que servem de bases para a construção de espaços dialógicos e acolhedores, como aqueles que foram construídos na escola Raul Brasil.

Por meio desses espaços construídos, histórias de sofrimento puderam entrever um caminho, mesmo que incipiente, à elaboração e, talvez, à transformação da violência em exercício de cidadania, que possa garantir um lugar para as singularidades e os sujeitos, especialmente aqueles em formação escolar, onde a violência, rival do ensino, deve encontrar formas de permanente enfrentamento.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2021
  • Aceito
    01 Jul 2022
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