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Aproximando (d)o “Bicho de Sete Cabeças”: Alteridade e Práticas de Segurança no Rio de Janeiro e Irlanda do Norte

Approaching the Seven Heads Monster: Alterity and Security Practices in Rio de Janeiro and Northern Ireland

Aproximando (d)el “Bicho de Siete Cabezas”: Alteridad y Prácticas de Seguridad en Río de Janeiro e Irlanda del Norte

Resumo

O presente trabalho visa problematizar o campo da segurança pública carioca no sentido de averiguar o quanto se constitui enquanto território de acolhida ou eliminação das diferentes formas de expressão psicossociais presentes na contemporaneidade. O intuito é o de averiguar como os desafios de se viver em comunidade produzem demandas relacionadas à alteridade, ora no sentido de segregação e exclusão, ora no sentido de integração e valorização da pluralidade social. Para tanto, a pesquisa se vale da ferramenta teórico-metodológica da cartografia psicossocial, discutida entre outros, por Deleuze, Guattari e Rolnik. Discute-se continuidades e transformações nos paradigmas de segurança, realizando breves articulações com a reforma policial norte-irlandesa. Por fim, a pesquisa procura problematizar as relações entre o aparato policial e a população, bem como defender a potencialização de práticas de segurança em que o encontro com o “outro” seja vivenciado não pela hierarquia que o coloca em termos de superioridade e inferioridade, mas a partir das possibilidades de mundo que a presença de outrem apresenta.

Segurança Pública; Alteridade; Cartografia Psicossocial; Rio de Janeiro; Irlanda do Norte

Abstract

This research aims to problematize the Rio de Janeiro public security context, analyzing how it creates acceptance or elimination of different psychosocial expression forms. The purpose is to verify how the challenges of living in community have produced demands related to alterity, on one hand, related to segregation and exclusion and, on the other, to integration and respect of social diversity. In this sense, the theoretical and methodological concept of psychosocial cartography, discussed by Deleuze, Guattari, Rolnik and others, has been used. The research discusses the continuities and transformations in the public security paradigms, articulating specific points with the Northern Ireland security experience. Finally, this research seeks to problematize the relationship between police and citizens, defending that security practices occur based on diversity and human rights respect.

Public Security; Otherness; Psychosocial Cartography; Rio de Janeiro; Northern Ireland

Resumen

El presente trabajo pretende problematizar el campo de la seguridad pública carioca en el sentido de averiguar cuánto se constituye como territorio de acogida o eliminación de las diferentes formas de expresión psicosociales presentes en la contemporaneidad. El propósito es averiguar cómo los desafíos de vivir en comunidad producen demandas relacionadas con la alteridad, a veces en el sentido de segregación y exclusión, a veces en el sentido de integración y valorización de la pluralidad social. Para ello, la investigación se vale de la herramienta teórico-metodológica de la cartografía psicosocial, discutida entre otros, por Deleuze, Guattari y Rolnik. Se discuten continuidades y transformaciones en los paradigmas de seguridad, realizando breves articulaciones con la reforma policial norte-irlandesa. Por último, la investigación busca problematizar las relaciones entre el aparato policial y la población, así como defender la potenciación de prácticas de seguridad en que el encuentro con el “otro” sea vivido no por la jerarquía que lo coloca en términos de superioridad e inferioridad, pero a partir de las posibilidades de mundo que la presencia del otro presenta.

Seguridad Pública; Alteridad; Cartografía Psicosocial; Río de Janeiro; Irlanda del Norte

O presente trabalho visa cartografar as redes de sentido atuantes no campo da segurança pública carioca, lançando luz a como certas formas de vida ganham viço nos grupos sociais, têm suas diferenças capturadas e delimitadas segunda a leitura social, que, por sua vez, retroalimenta essa leitura pela sensação de insegurança. O intento é refletir sobre o contexto sociopolítico que de alguma forma vem acirrando elementos que estão presentes na sociedade como um todo e que faz com que as práticas de proteção e produção da segurança sejam pautadas pelo medo, risco e pela segregação e exclusão de grupos e práticas específicas. Tratando-se de um desdobramento de tese de doutorado 1 1 Doutorado defendido no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Bicalho. Foi realizado doutoramento sanduíche na University of Dundee – U.K., sob orientação dos Professores Doutores Fernando Lannes Fernandes e Nicholas Fyfe, financiado pela Capes. , o objetivo deste artigo é ir de encontro à discussão de Soares (2013)Soares. L. E. (2013, 9 jan.) Raízes do imobilismo político na segurança pública . Sul 21. Recuperado de: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2013/01/raizes-do-imobilismo-politico-na-seguranca-publica/
https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/...
sobre as raízes do imobilismo político na segurança pública, enfatizando nesta leitura como as formas de construção do “outro” pode potencializar ou obstacularizar suas transformações, tendo a experiência norte-irlandesa como ponto de articulações e ponderações sobre possibilidades de reconfiguração da área.

O intuito é o de se debruçar sobre o tema por meio da genealogia ( Foucault, 2009Foucault, M. (2009) Vigiar e punir: Nascimento da prisão . Petrópolis, RJ: Vozes. ) e da cartografia psicossocial ( Rolnik, 1989Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo . Porto Alegre, RS: Sulina. ). A primeira no intento de discutir algumas das condições históricas e sociais que permitem certos arranjos ganharem consistência em detrimento de outros. A segunda para que possamos acompanhar processos de abertura e ruptura em torno da segurança pública, suas linhas de fuga, dedicando-se ao que ganha emergência em uma postura que dá língua aos afetos que pedem passagem.

A postura de análise procura enfatizar a preocupação foucaultiana com a raridade, tal qual comenta Veyne (1992)Veyne, P. (1992). Como se escreve a história: Foucault revoluciona a história (2a ed.) Brasília, DF: EdUnB. em texto sobre este autor: “os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente” (p. 151). Nesse sentido, o trabalho procurou refletir sobre as seguintes questões: Se os fatos humanos são raros por haver outras inúmeras possibilidades em torno deles, quais outros possíveis podem emergir para se pensar o historicamente desgastado campo da segurança pública? Se o que é pode ser diferente, como diz Veyne, como ampliar a margem de vazão da diversidade nas paisagens configuradas nos contatos entre a população e os agentes de segurança? Como a problematização da alteridade pode potencializar a discussão em torno da segurança pública? Procura-se, dessa maneira, observar como a intensificação do risco e do medo acaba por acirrar elementos comuns da sociedade e amplificar o distanciamento e a alteridade radical entre os grupos sociais.

Ocupando-se da identificação de ameaças

O medo ameaça

Se você ama, terá AIDS

Se fuma, terá câncer

Se respira, terá contaminação

Se bebe, terá acidentes

Se come, terá colesterol

Se fala, terá desemprego

Se caminha, terá violência

Se pensa, terá angústia

Se duvida, terá loucura

Se sente, terá solidão

(Eduardo Galeano, 1994Galeano, E. (1994). As palavras andantes . Porto Alegre: L&PM. , p. 154)

Para onde ir? Do que se alimentar? Como se expressar? Em toda nossa trajetória de vida somos rodeados de incertezas. Há cada vez mais conhecimentos que servem à prescrição, seja ela médica, política, estética ou outras. Não se sabe ao certo para onde ir, mas se tem muito claro onde não se estar, o que não ingerir e quais assuntos não se abordar. Em muitos momentos vivemos pela negação. Obstaculizarizamos a diversidade mais do que nos preparamos para novos formatos de realidade. Há mais preocupação com a construção dos muros e com a colocação de câmeras de segurança, do que com a porta de entrada.

O viver em conjunto, em sociedade, por muitas vezes leva ao acirramento dos elementos de diferença. São muitos os “bichos de sete cabeças” com os quais nos defrontamos cotidianamente e que nos assombram como na música homônima de Geraldo Azevedo e Renato Rocha. Usando os versos dos compositores, são muitas as situações em que não dá pé, nem cabeça, que não tem coração que esqueça e ninguém que mereça. Todavia, mesmo desejando que desapareçam, os bichos de muitas cabeças não cessam de crescer e de povoar os corações que deles não se esquecem, estando cada vez mais presentes na produção das subjetividades contemporâneas.

Os processos que levam ao acirramento das diferenças são diversos. Contudo intensos são seus efeitos. Um exemplo pode ser levantado em texto que Brito (2005)Brito, L. (2005). Guarda compartilhada: Um passaporte para a convivência familiar. In Associação de Pais e Mães Separados. (Org.). Guarda compartilhada: Aspectos psicológicos e jurídicos (pp. 53-71). Porto Alegre, RS: Equilíbrio. comenta sobre a separação litigiosa de casais. A autora destaca o fenômeno comumente observado na disputa pela guarda dos filhos e na argumentação contrária à guarda compartilhada: a indicação de que a convivência com mais de um cônjuge, portanto, a divisão de tempo mais ou menos equilibrada em mais de um lar ou ambiente, supostamente seria prejudicial à criança ou adolescente. Leila aponta que enquanto o casal está exercendo seu matrimônio com relação próxima e minimamente afetuosa entre os envolvidos, as crianças muitas vezes passam grande parte do tempo em diferentes locais e com diferentes referências, como nas casas de avós, tias, primos e creches, sem que isso gere amplas discussões e disputas. Porém, ao passo que este casal enfrenta uma separação conflituosa, a atmosfera de tensão acaba por acentuar e deslocar pontos que antes ocupavam o lugar-comum. A possibilidade, por exemplo, dos filhos terem momentos com ambos genitores ou responsáveis, passa a figurar entre os motivos de disputa e de ataques mútuos.

Outro exemplo pode ser encontrado no estudo de Jovchelovitch (2013)Jovchelovitch, S. (2013). Sociabilidades subterrâneas: Identidade, cultura e resistência em favelas do Rio de Janeiro . Brasília, DF: Unesco. nas comunidades cariocas de Vigário Geral, Cidade de Deus, Pavão, Pavãozinho e Cantagalo (PPG) e do entorno de Madureira. No item em que moradores dessas localidades comentam sobre onde se sentem mais seguros, fazendo uma comparação entre a comunidade em que moram e o centro e zona sul do Rio, os respondentes, em sua maioria, relataram sentirem-se mais seguros em suas comunidades, ao mesmo tempo em que explicitam vivenciar constantes confrontos e trocas de tiro da polícia e facções rivais do tráfico de drogas, principalmente em Vigário Geral e Cidade de Deus, à época da pesquisa. De acordo com Jovchelovitch, o motivo mais recorrente para tal sensação de segurança é o fato de, em suas localidades, estarem mais familiarizados com a dinâmica social, ao contrário dos momentos em que vão para a zona sul (com exceção dos moradores do PPG, que se situam nesta região), onde têm mais dificuldade para fazer a leitura do contexto e com ele interagir.

A partir dos exemplos observamos processos transversais em que, por um lado, o movimento de distanciar-se do outro de maneira litigiosa faz com que elementos antes de menor relevância transformem-se em pontos de conflitos e disputa e, por outro, quanto menor o contato com outras realidades, quanto menos vivência um grupo possui em outro contexto e/ou com outro grupo, maior é a percepção de incertezas e de riscos que os últimos podem oferecer. Assim, a alteridade, quando produzida à distância e sustentada pela polarização, parece perder sua potencialidade de abertura à diversidade, dando vazão a uma relação de diferenciação e antagonismo, em que a diferença se torna ameaçadora.

Em texto que versa sobre diversidade, crime e justiça criminal, Barbara Hudson (2007)Hudson, B. (2007). Diversity, crime and criminal justice. In M. Maguire (Org.), The Oxford Handbook of criminology (pp. 158-178). Oxford: Oxford University Press. faz uma distinção entre as sociedades que enfatizam o que é diverso e o que é diferente. Segundo ela:

A diversidade sugere um leque de opções a escolher, um espectro de estilos de vida e atributos para se apreciar e usufruir. A diferença, por outro lado, sugere diferença da situação padrão, e implica não apenas dicotomia, mas também hierarquia, em que uma das qualidades é superior à que dela difere ( Hudson, 2007Hudson, B. (2007). Diversity, crime and criminal justice. In M. Maguire (Org.), The Oxford Handbook of criminology (pp. 158-178). Oxford: Oxford University Press. , pp. 158-159).

Os processos tratados por Hudson relacionando a diferença à dicotomia e hierarquização parecem ganhar contornos mais intensos na emergência moderna dos grandes centros urbanos. No histórico destes contextos podemos averiguar a relação de “entrincheiramento” do espaço público comentado por Sennett (1998)Sennett, R. (1998). O declínio do homem público: As tiranias da intimidade . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , no sentido de ver como a polarização entre grupos diferentes, como grupos de elite e grupos não elite, favorece um clima de disputa que gera violência e é retroalimentada pelo medo.

Para Sennett (1998)Sennett, R. (1998). O declínio do homem público: As tiranias da intimidade . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , o público adquire seu significado moderno ao constituir não apenas uma região da vida social, separada do âmbito da família e dos amigos íntimos, mas um campo de domínio dos conhecidos e dos estranhos, que inclui um quantitativo relativamente grande de pessoas. Ao mesmo tempo, inserido na emergência da modernidade, há o aumento da ênfase no homem e no conhecimento sobre o homem em detrimento do religioso, o que sustentou o desenvolvimento de saberes sobre a personalidade. Os aspectos de ‘natureza pessoal’, antes protegido e restrito ao ambiente familiar, passam a compor e a serem observados fora do espaço privado.

Apresenta-se, desse modo, uma sociedade intimista regulada pela erosão entre público e privado, na qual o público é regido por valores íntimos e familiares. Ao tomarmos o campo social como um campo de negociações e conflito, em que a reciprocidade está em tensão, como comenta Velho (2000)Velho, G. (2000). Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica. In G. Velho, & M. Alvito (Orgs.), Cidadania e violência (pp.10-23). Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ. , notamos o quanto as diferenças entre as pessoas configuram o motor das trocas expressas e de seus efeitos. Quem é esse outro? O que esperamos desse outro? Qual a margem de risco suporto ao me relacionar com esse outro?

Assim, ao mesmo tempo em que a alteridade se coloca como forma de sustentação para a emergência do mundo percebido como real, o território em que ela ganha consistência majoritariamente será o que procura garantir a maior estabilização possível da segurança. O processo que diferencia os seres e as coisas, que os manifestam enquanto objetos e nos conferem a mínima inteligibilidade destes, nos defrontaria com o perigo de desintegração do “eu”. Isto remete ao caráter produtivo da alteridade, que mais do que um retrato, refere-se a um desenho próximo de um holograma, como coloca Arruda (2002Arruda, A. (2002). Teoria das representações sociais e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa , (117), 127-147. https://doi.org/10.1590/S0100-15742002000300007
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, p. 17), “uma projeção em movimento, e como tal, também um pedaço de mim, prestes a esvaecer”, uma produção de representação que aplaca instantaneamente o conteúdo perturbador do outro, retrabalhando-o e tornando-se assim a diferença incorporada.

Ao retornarmos para os processos discutidos por Sennett, temos que o privado invade o espaço público, fazendo com que o isolamento, o direito ao silêncio e à privacidade surjam como respostas em busca de proteção. Na ampla processualidade do moderno ao contemporâneo vemos, entre outros, o desenvolvimento de uma prática em que, por exemplo, para se comprar uma mercadoria basta olhá-la na vitrine ou na prateleira e levar até o caixa. Cada vez menos é necessária (e por muitas vezes menos desejada) as relações interpessoais, a interação mais alongada entre diferentes. Nas palavras de Sennett (1998, p. 323), “é a atividade que protege as pessoas umas das outras e ainda assim permite que elas tirem proveito da companhia uma das outras. Usar máscara é a essência da civilidade”.

Cabe ressaltar que os processos históricos trazidos não dizem sobre uma totalidade e não se referem a uma sucessão linear. É possível nos dias atuais, por exemplo, ver atuando diferentes lógicas, como a vista em certas ruas do centro carioca em que a venda de produtos se realiza com aglomerados de pessoas em torno de uma pessoa que apresenta o produto junto à sua performance. Todavia, na discussão em torno da vivência social, encontram-se os processos que nos encaminham às formas de produção de segurança contemporâneas, sobre as quais buscamos nos aproximar.

A sociedade intimista desenhada por Sennett favorece a formação de grupos com interesses comuns em que o perigo ameaçador da diferença seja eliminado. “Manter a comunidade se torna um fim em si mesmo; o expurgo daqueles que realmente não pertencem a ela se torna a atividade da comunidade” (Sennett, 1998, p. 319). Assim, os espaços públicos definem-se pela tentativa de ampliar laços íntimos que não necessitem se defrontar com os desafios que a presença do estranho acarretaria. Busca-se a ausência do desconhecido para atenuar (ou seria acentuar?) o esforço dedicado à proteção de si.

A Segurança Pública enquanto dispositivo da (não) diversidade

Na tarefa de problematizar os processos de preservação e descontinuidades das condições de efetuação da segurança pública, cabe destacar sua intrínseca heterogeneidade:

O que caracteriza a problemática da segurança pública, no Brasil – entre outros aspectos relevantes, que também poderiam ser destacados – é seu caráter babélico: não há consenso nem quanto aos seus pontos de dissenso. Quando há acordo quanto aos focos de divergência, organiza-se o debate público, ordena-se a agenda política, estrutura-se o repertório temático para o desenvolvimento de pesquisas, estudos, avaliações, investimentos acadêmicos, investigações jornalísticas [...] Desse modo, as divergências são mapeadas no plano mais profundo, matricial, e em matéria derivada, por assim dizer, que se oferece ao varejo das decisões ad hoc ou a avaliações circunstanciais ( Soares, 2009Soares, L. E. (2009). O regime de representação feminino e as implicações recíprocas entre processos de subjetivação e violência. In J. Sento-Sé (Org.), Segurança pública: Outros olhares (pp. 136-159). Brasília, DF: SPM. , pp.136-137, grifo do autor).

A segurança pública, como outros objetos de investigação, não constitui um campo totalizável a ser decifrado, como um mapa. Diz respeito a produções históricas que atualizam modos de vida regidos em nome da segurança. Fazer pesquisa sobre a segurança é caminhar por terrenos movediços, em constante transformação. Seguindo o campo da análise institucional, considera-se que a sociedade está ordenada em um conjunto aberto, ou seja, não totalizável de instituições, sendo as últimas “um sistema lógico de definições de uma realidade social e de comportamentos humanos aos quais classifica e divide, atribuindo-lhes valores e decisões, algumas prescritas (indicadas), outras proscritas (proibidas), outras apenas permitidas e algumas, ainda, indiferentes” ( Baremblitt, 2002Baremblitt, G. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática . Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos tempos. , pp. 78-79).

Nessa perspectiva, a segurança pública constitui um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam em uma produção que vai além da segurança ou insegurança. Ministérios e secretarias, diretrizes nacionais e estaduais, doutrinas, ensino, treinamento e sistemas de controle, estatísticas de violência, abordagens policiais, etc.; certamente todos esses elementos constituem o campo da segurança pública, mas cabe destacar que esse é um conjunto aberto, tanto em função das diferentes realidades sociais e comportamentos humanos que pode constituir, como pela questão de ser apenas uma das lentes possíveis com a qual enxergamos e investigamos o mundo a nossa volta.

A caixa de ferramentas que esta pesquisa se vale, vai na direção de um campo não totalizável, em que se busca cartografar territórios existenciais, ou seja, produzir paisagens psicossociais sensíveis a “tudo o que serve para cunhar matéria de expressão e criar sentido” ( Rolnik, 1989Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo . Porto Alegre, RS: Sulina. , p. 66). O intuito é o de habitar os territórios do campo de pesquisa, que como destaca Alvarez e Passos (2009Alvarez, J., & Passos, E. (2009). Cartografar é habitar um território existencial. In: E. Passos, V. Kastrup, & L. Escóssia. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Porto Alegre, RS: Sulina. , p. 135), “não nos coloca de modo hierárquico diante do objeto, como um obstáculo a ser enfrentado (conhecer = dominar, objeto = o que objeta, o que obstaculiza) [...]. Cartografar é sempre compor com o território existencial, engajando-se nele”.

Dedicando-nos a essa demanda, notamos primeiramente que a segurança se territorializa em diferentes espaços do Rio de Janeiro. Ao direcionarmos o olhar para o contexto carioca percebemos que o tema está presente em todos os meios midiáticos. Seja no jornal mais vendido na Baixada Fluminense, ou no mais vendido no Leblon, seja nos aplicativos de telefones celulares, nos programas de TV ou nas conversas de botequins, as incursões policiais em confronto com facções de tráfico de drogas, a investigação de assassinatos, a prisão de ex-governadores e presidentes da Assembleia Legislativa, a violência nas escolas ou em jogos de futebol, entre outros, estão sempre presentes. Conforme apontam estudos neste sentido ( Oliveira, 1997Oliveira, M. (1997). O lugar da travesti em Desterro. Florianópolis, SC: UFSC. ; Ramos, & Paiva, 2005Ramos, S., & Paiva, A. (2005). Mídia e violência: Como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil. CESeC Boletim Segurança e Cidadania , 4 (10), 1-16. ; Tavares, 2011)Tavares, G. (2011). O dispositivo da criminalidade e suas estratégias. Fractal: Revista de Psicologia , 23 (1), 123-136. , pautada na maioria das agendas institucionais, a segurança pública é hoje um dos objetos mais relevantes não só do viver carioca, como do brasileiro como um todo. Nas campanhas eleitorais para presidência, dos anos de 2002, 2006, 2010 e 2014, o plano de maior discussão entre eleitores, repórteres e opositores foi o do programa para o combate à criminalidade: “Notável, ainda que requentada, foi a presença da ideia de endurecimento contra o crime com medidas de segurança que vão desde um aparato policial vigoroso a um sistema punitivo impiedoso, tanto por parte de programas de governo como por parte da opinião pública” ( Tavares, 2011, pTavares, G. (2011). O dispositivo da criminalidade e suas estratégias. Fractal: Revista de Psicologia , 23 (1), 123-136. , p. 127).

Habitar o território da segurança pública no Rio muitas vezes é habitar um campo de constantes polarizações. “É uma luta do bem contra o mal”, como disse José Mariano Beltrame, então secretário de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, ao se referir sobre a implantação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na Rocinha em novembro de 2011, em entrevista ao O Globo Rio de 13/11/2011 (“É a luta do bem...”, 2011). O que se vê é que a colocação dos acontecimentos em termos maniqueístas serve como justificativa em si mesmo para a ação do poder público. Para além disto, o campo é visto como passível de constante “experimentação”, independente de planejamento ou discussão participativa com diferentes setores da sociedade. Como disse o general do Exército Walter Souza Braga Netto, à frente da intervenção federal na segurança pública fluminense, em entrevista de 27/02/2018, “o Rio de Janeiro é um laboratório para o Brasil” ( Coelho, & Martins, 2018Coelho, H., & Martins, M. A. (2018, 27 de fevereiro). Interventor federal diz que “Rio é um laboratório para o Brasil”. G1. Recuperado de https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/autoridades-detalham-medidas-da-intervencao-federal-o-rio-de-janeiro.ghtml
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/n...
).

Parece haver, como diz Batista (2003)Batista, V. M. (2003). O medo na cidade do Rio de Janeiro: Dois tempos de uma história . Rio de Janeiro, RJ: Revan. , todo um processo que orienta a vida humana a eleger critérios sobre o que está fora do lugar, sobre o que faz do estranho a síntese da sujeira a ser separada, confinada ou aniquilada. Em nome da beleza, limpeza e da ordem, a civilização limita as possibilidades de ser e estar no mundo.

O histórico colonialista e escravocrata brasileiro demonstra o quanto se investiu numa diferenciação estigmatizante das classes mais pobres, que acaba servindo de substrato simbólico para a atuação policial. “A polícia não é de ‘Poliçópolis’”, provoca o policial civil Roberto Chaves em entrevista à pesquisa anterior ( Melicio, 2014Melicio, T. (2014). São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã (tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ), quando comenta sobre a violência presente nas ações dos agentes de segurança. A polícia é, segundo essa ótica, mais um dos grupos sociais que viveram e vivem o Brasil de desigualdades econômicas e de direitos, que observa ser valorizado em suas ações, mesmo contra seus princípios ético-profissionais, processos discriminação étnica e econômica. Como diz Ramos, em entrevista à Jovchelovitch (2013Jovchelovitch, S. (2013). Sociabilidades subterrâneas: Identidade, cultura e resistência em favelas do Rio de Janeiro . Brasília, DF: Unesco. , p. 45):

O Brasil tem a sexta maior taxa de homicídios do mundo, a quinta maior taxa de homicídios de jovens de 15 a 24 anos do mundo: são 50 mil homicídios por ano. Cinquenta mil! Sete mil apenas no Rio de Janeiro. A taxa de homicídios é de 26 por 100 mil. A da Inglaterra deve ser 0,8 ou 0,9. A taxa dos Estados Unidos é 4 ou 5 por 100 mil. A taxa da Europa Ocidental é 1,5 ou 2. A do Brasil é de 26 por 100 mil. A do Rio de Janeiro é de 50 por 100 mil. Ou seja, é o dobro do Brasil [...]. A taxa de homicídios de jovens no Rio de Janeiro é de 100 por 100 mil, mas a de jovens negros é de 400 por 100 mil. Então, o que acontece com o problema de violência no Brasil é que ele é grande o suficiente para se dizer que é um problema nacional, tanto em números absolutos quanto ponderados como taxa, que é um número espetacular. Mas acontece que a distribuição na sociedade é tão concentrada, que permitiu que o Brasil se desse ao luxo – entre aspas – de passar décadas sem responder a esse tema, porque é subterrâneo, porque esse é um tema que não tem visibilidade, porque quem está morrendo todos esses anos são os meninos negros das favelas.

O Brasil apresenta, assim, uma política que manteve os olhos fechados aos condicionantes históricos, que fizeram e ainda fazem com que uma larga parcela da população tenha dificuldade de acesso ao trabalho e à rede de garantia de direitos. Nos últimos 200 anos, da escravidão à ditadura civil-militar, passando, por exemplo, pelos Códigos destinados aos adolescentes (então “Menores”) viu-se a ênfase da diferença no sentido de hierarquização das pessoas em função de critérios como: quantidade de melanina em sua pele; tipo de situação familiar regular ou irregular; higiene de sua moradia; orientação política, etc.

A transformação do campo da segurança como potencializador das transformações sociais: o caso da Irlanda do Norte

Em pesquisa dedicada à discussão da reforma policial norte-irlandesa ( Melicio, 2014Melicio, T. (2014). São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã (tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ), foi observada a importância que a transformação efetiva do aparato policial pode assumir para as pretensões de transformações sociais mais amplas. No contexto da Irlanda do Norte, destaca-se o histórico embate relacionado à orientação religiosa entre protestantes e católicos e à inclusão ou não do país no Reino Unido. Tais elementos acabaram por configurar um histórico de conflitos, em que o aparato policial se confrontava com grupos paramilitares armados e organizados, como o Irish Republican Army – Exército Republicano Irlandês (IRA), culminando na progressiva militarização e aumento de poderio bélico da polícia.

De acordo com Mulcahy (2008)Mulcahy, A. (2008). The police service of Northern Ireland. In Newburn, T. (Ed.) Handbook of policing (pp. 204-223). Devon: Wilan. , a Irlanda do Norte viveu um contexto de unicidade política ligada aos protestantes unionistas 2 2 No contexto norte-irlandês, protestantes unionistas são aqueles que defendem a inserção da Irlanda do Norte no domínio geopolítico do Reino Unido, enquanto os católicos republicanos são os que defendem a independência do país. e de opressão discriminatória até o fim da década de 1960, quando as comunidades católicas iniciaram um movimento de reação. Surgiram, assim, campanhas e marchas que reivindicavam igualdade de direitos civis, tendo como um dos pontos de discussão a localização das casas de católicos em áreas mais degradadas das cidades. Contudo, o que se viu foi uma contrarreação de protestos por parte dos unionistas, que resultou em onda de violência que percorreu as décadas seguintes. Neste período, o aparato policial, Royal Ulster Constabulary (RUC), sofreu duras críticas provenientes dos católicos, referentes à parcialidade nas ações de seu efetivo, que incluía: tiros indiscriminados de arma de fogo com morte de civis (“ shot-to-kill ”), falhas na prevenção que evitasse a queima de casas dos católicos por parte de grupos protestantes, bem como falhas nas ações para restringir ou dispersar multidões ou proteger vidas e propriedades. A corporação possuía em seu efetivo, ao final dos anos 1990, uma grande maioria de protestantes, sendo apenas 8% católicos (o que não representava a proporção populacional de 2/3 protestantes e 1/3 católico), os quais eram vistos como “traidores” pelo IRA. Observa-se, como comentado por Mulcahy (2008)Mulcahy, A. (2008). The police service of Northern Ireland. In Newburn, T. (Ed.) Handbook of policing (pp. 204-223). Devon: Wilan. , uma latente divisão antagônica entre a comunidade católica e a polícia. Mesmo as situações que, aparentemente, não apresentavam necessidade de intervenção militar acabaram por acarretar trocas de tiros e mortes. O principal exemplo é o acontecimento conhecido como “ Bloody Sunday ”. Durante uma marcha liderada por católicos, em janeiro de 1972, sem registros de uso de armas ou desordens por parte dos manifestantes, o exército acabou por fazer uma intervenção armada, na qual 13 pessoas do protesto foram mortas ( Conway, 2003Conway, B. (2003). Active remembering, selective forgetting, and collective identity: The case of bloody sunday. Identity , 3 (4), 305-323. ).

Durante meados da década de 1990 ocorreram uma série de negociações políticas que acarretaram no cessar-fogo por parte dos grupos armados ilegais norte-irlandeses. O primeiro anúncio entre grupos a favor da vinculação ao Reino Unido (maioria protestante) e os a favor da independência (maioria católica), data de 1994, cercado, contudo, com grande parcela de desconfiança e receio. O IRA, por exemplo, teve seu último ato com ataques com bomba em Canary Wharf, em Londres, retornando ao cessar-fogo em 1997 ( Mulcahy, 2008Mulcahy, A. (2008). The police service of Northern Ireland. In Newburn, T. (Ed.) Handbook of policing (pp. 204-223). Devon: Wilan. ). Assim, mesmo que nos dias atuais possam ser encontradas notas sobre grupos radicais que visam continuar com as atividades paramilitares ( Nolan, 2013Nolan, P. (2013). The Northern Ireland peace monitoring report (n.2).Belfast: Three Creative. ), iniciou-se uma nova etapa no contexto de segurança pública, que culminou no “ Belfast Agreement ” (também conhecido como “ Good Friday Agreement ”), 1998, e na reforma policial, de 1999.

Nesse sentido, para que tal visão adentrasse também o aparato policial, foi criada uma comissão independente, a Independent Commission on Policing ( ICP, 1999Independent Commission on Policing (ICP). (1999). A new beginning: Policing in Northern Ireland . Belfast: Stationery Office. ), que reuniu profissionais de diferentes países. A comissão, então, realizou um extenso processo de consulta popular, que envolveu diferentes formas de aproximação com a comunidade. O intuito era o de proporcionar a escuta dos anseios dos cidadãos, identificar as demandas que eram levantadas e procurar estratégias para sua concretização, bem como para sua manutenção ao longo do tempo. Foram utilizados questionários, entrevistas e sobretudo encontros entre a comissão e a população, em todas as diferentes regiões da Irlanda do Norte, acarretando em acalorados debates ( Mulcahy, 2008Mulcahy, A. (2008). The police service of Northern Ireland. In Newburn, T. (Ed.) Handbook of policing (pp. 204-223). Devon: Wilan. ).

O interesse em formar uma comissão independente provém da facilitação do diálogo. Uma vez que os conflitos envolveram confrontos e ataques, a população, seja católica, republicana, protestante, unionista ou outros, teria menos dificuldade em dialogar com pessoas “neutras”, ou seja, provenientes de outros contextos ou não diretamente envolvidas com os problemas enfrentados no país. Outro ponto é que a ICP procurou integrar ao referido processo a ideia de parceria entre policiamento e comunidade, bem como os princípios e diretrizes de acordos internacionais, como a Convenção Europeia de Direitos Humanos da década de 1950.

Ao fim de 1999, a ICP produz o relatório conhecido como Patten Report , documento que se tornou a matriz da reforma que envolveu mudanças na doutrina, ensino, treinamento e sistema de controle, bem como na própria marca da polícia, quanto ao seu nome, brasão e uniforme. A partir deste período, portanto, o aparato policial norte-irlandês deixa de ser a Royal Ulster Constabulary (RUC) para figurar-se como Police Service of Northern Ireland (PSNI). De acordo com entrevista realizada com os professores doutores, que participaram da formação de oficiais da PSNI, Jonny Byrne e Ruth Fee ( Melicio, 2014Melicio, T. (2014). São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã (tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ), tal mudança ocorreu para uma demarcação do tipo de serviço policial a ser realizado. Segundo eles, até a década de 1990, havia uma percepção de que a polícia era uma polícia do Estado e não do cidadão.

Nesse contexto, a Comissão independente do Patten Report ( ICP, 1999Independent Commission on Policing (ICP). (1999). A new beginning: Policing in Northern Ireland . Belfast: Stationery Office. ), defende que um novo começo para o viver coletivo, baseado em reconciliação, diversidade e garantia de direitos, deve passar necessariamente, em qualquer sociedade, por um novo começo e/ou profunda transformação do que se espera e do que é exercido pelo aparato policial.

Verifica-se, na Irlanda do Norte, a necessidade de conformar (também) a polícia à nova ideia de sociedade que se quer produzir a partir de novas diretrizes. Para tanto, para além de implementação de normativas e treinamentos ligados ao uso progressivo da força, de práticas de policiamento comunitário, respeito e garantia dos Direitos Humanos, entre outros, a mudança começou na própria composição da corporação. Buscou-se, por exemplo, estabelecer um balanço no quadro de oficiais entre a porcentagem de católicos e de protestantes. Todo o ingresso de novos oficiais na corporação obedeceu a divisão igualitária das duas religiões, sendo que ao ingressassem 10 protestantes, outros 10 católicos ingressariam, com vagas restantes a pessoas de outra religião ou credo. Conforme Nolan (2013)Nolan, P. (2013). The Northern Ireland peace monitoring report (n.2).Belfast: Three Creative. , enquanto em 1999, no efetivo policial na Irlanda do Norte 8% eram de católicos e 92% de protestantes e outras religiões, já em 2012, a proporção se alterou para 30,4% de católicos e 69,6% de protestantes e outros. O autor comenta, porém, que no tocante ao staff a mudança não foi significativa, havendo, em 2012, 18,9% de católicos e 81,1% de protestantes e outras religiões.

Observando as experiências brasileiras e norte-irlandesas, temos que ao mesmo passo que a polícia pode ser vista como agente de reprodução dos modos de subjetivação dominante, ela pode protagonizar um movimento de abertura e de transformação. Como destaca o ICP (1999)Independent Commission on Policing (ICP). (1999). A new beginning: Policing in Northern Ireland . Belfast: Stationery Office. no trecho do relatório acima, a polícia não precisa refletir as desigualdades e preconceitos da nossa sociedade, mas, sim, a da sociedade que se almeja. Há, por certo, de se tomar cuidado com as generalizações e otimismo em relação ao processo da Irlanda do Norte. Com certeza os movimentos lá emergentes são difusos e multifacetados, contendo, como todo processo social, avanços e retrocessos. Contudo, torna-se potente lançar luz às linhas de rupturas e novas territorializações que ganharam densidade naquele país.

Ao retornarmos a análise para o solo brasileiro, temos que algumas das raízes do imobilismo político na área de segurança, comentadas por Soares (2013)Soares. L. E. (2013, 9 jan.) Raízes do imobilismo político na segurança pública . Sul 21. Recuperado de: https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2013/01/raizes-do-imobilismo-politico-na-seguranca-publica/
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, referem-se justamente a uma falta de maior “ritualização de passagem” (discussão ampliada sobre os princípios e diretrizes que se busca colocar em curso no país), ausência de mecanismos efetivos para maior capilaridade das ações de policiamento e seu planejamento, e o descolamento dos avanços democráticos da realidade de grande parcela populacional que vivia em condições de miséria.

Observa-se uma conexão entre os processos acima apresentados, no que se refere ao não protagonismo e/ou identificação da maioria populacional com as políticas públicas produzidas. No processo de redemocratização ao final de 1980, que com a Constituição de 1988 faz o paradigma da Segurança Nacional ser substituído legal pelo da Segurança Pública, e o de implementação do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci, ao final de 2000, as formulações ocorreram de maneira distante das classes populares. Ainda que abarquem justamente a questão da cidadania e da isonomia de direitos, bem como reivindicações dos movimentos sociais de base, como no caso da saúde, ambos os movimentos, no caso da segurança, realizaram-se de maneira centralizada, sem consulta ou participação efetiva da sociedade civil, organizada ou não.

Nas contribuições para o referido imobilismo político, há também o avanço do neoliberalismo, junto à demanda do Estado Punitivo. Conforme argumenta Wacquant (2008)Wacquant, L. (2008). The militarization of urban marginality: Lessons from the Brazilian metropolis. International Political Sociology , 2 (1), 56-74. https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2008.00037.x
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, a manutenção e controle da ordem pública, na intensificação da punição pelo Estado, vai representar o controle da delinquência, ou seja, o controle daqueles que imprimem expressões de vida distintas das modeladas pelos modos de subjetivação investidos nas relações de poder. Nota-se o distanciamento que se realiza pela já comentada ênfase na diferença e no antagonismo entre supostos “homens de bem”, de um lado, e supostos “bandidos” de outro. Isto se dá, como descrito por Wacquant (2007)Wacquant, L. (2007). Punir os pobres: A nova gestão da miséria nos Estados Unidos (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Revan. , pelo orquestramento midiático e eleitoreiro que enfatiza o medo, distancia os grupos sociais e distingue entre os que têm honra e não causam perigo e os que são desonrados e potencialmente perigosos, a saber: os pobres, sem poder aquisitivo e sem força de trabalho qualificada. É o que temos relacionado aqui com a construção da realidade com “bichos de sete cabeças”. Quanto menos contatos se estabelecem entre os diferentes grupos, quanto menos vivências comuns de diferentes espaços geográficos e culturais se realizam, mais ênfase há em relação aos receios, ou seja, mais se criam bichos de sete cabeças, situações de difícil resolução e que, por isso, exigem medidas mais drásticas de produção de segurança.

Nesse sentido, a polícia acaba por exercer um papel próximo ao de um cordão de isolamento entre os grupos acima citados. Da mesma maneira que os muros da prisão retiram os ditos “perigosos” do convívio da “população de bem”, os policiais, em muitos casos, acabam por fazer de suas atividades uma produção de isolamento; isolamento de bichos de sete cabeças que a própria sociedade ajuda a criar.

O pessoal da Zona sul vê o morador de rua ali e não quer o pessoal lá. Daí chama a gente. Daí a gente vai lá e tem que ficar explicando que esse não é o nosso trabalho. Mas daí a gente acaba fazendo, pois senão vem mídia, reclamação. O rico, ele quer o pobre pra servi-lo, pra trabalhar. Essa população que não vai servir pra nada, como o menor, o morador de rua, esse pessoal eles não querem nem perto. Então é isso, tem uma divisão e a gente fica nisso (Major da PMERJ em entrevista à pesquisa anterior – Melicio, 2014Melicio, T. (2014). São demais os perigos dessas vidas? Diversidades possíveis no encontro com a diferença como problematização da segurança pública cidadã (tese de doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ).

A polícia, de maneira geral, historicamente ocupou e ainda ocupa um lugar de distanciamento que vem de todos os lados. Em relação às classes de poder aquisitivo mais alto, é convocada apenas quando se faz necessária, para prover sua proteção. Em relação às classes mais baixas, em função de séculos de confronto, é vista com grande desconfiança e, por vezes, hostilizada. Tal postura é encontrada inclusive em certa parcela da produção acadêmica. Conforme comenta Foster (2008)Foster, J. (2008). Policing cultures. In T. Newburn (Ed.), Handbook of policing (pp. 196-227). Devon: Wilan. ocorre uma espécie de “etnocentrismo” em estudos que abordam a cultura policial de maneira superficial e descriminante, por não considerarem as idiossincrasias pertinentes a esse ambiente e enfatizarem sempre as partes ruins da corporação.

Utilizando do conceito de outsider de Becker (2009)Becker, H. S. (2009). Outsiders: Estudos de sociologia do desvio . Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , a polícia é comumente pertencente ao grupo dos outros, não sendo integrada, ela mesmo, de maneira satisfatória à diversidade social, seja ela qual for. Desse modo, para além da importante discussão sobre o paradigma de segurança pública, bem como sobre a doutrina, ensino, treinamento e sistemas de controle da corporação é necessária uma discussão sobre como integrar a polícia e os policiais à sociedade, no sentido deles também não representarem mais um dos bichos de sete cabeças com que se tem que lidar diariamente. Como fala MacDonald (2008, p. 29), “as forças de segurança são com frequência os únicos representantes do Estado nas áreas mais negligenciadas e perigosas. Elas são frequentemente deixadas sozinhas, sem o apoio de instituições relevantes, cujas ações são necessárias para melhorar a situação da segurança”.

Barreiras e comunicações culturais entre polícia e sociedade

Karstedt (2004Karstedt, S. (2004). Durkheim, Tarde and Beyond: The global travel of crime policies. In: T. Newburn, & R. Sparks (Orgs), Criminal justice and political cultures: National and International dimensions of crime control (pp.16-29). London: Willan. , p. 288) define cultura como “um conjunto de sentidos, valores e interpretações que constituem uma força social específica independente ou parcialmente autônoma em relação ao contexto estrutural e institucional”. Mais do que referendar tal conceituação como única, a autora comenta que em todos os estudos culturais é necessário haver uma importante dose de pluralismo de noções, pois cada definição possui um emprego melhor para cada contexto. Todavia, comenta que nas várias conceituações de cultura há sempre uma inter-relação entre três problemas que envolvem: existência ou não de um domínio autônomo da cultura, ao menos parcialmente independente e não congruente com os arranjos sociais mais gerais; homogeneidade, integração e coesão entre seus membros; relação da cultura com o conceito de valores.

A preocupação demonstrada por Karstedt com a utilização do conceito de cultura é o grau de generalização e de distanciamento entre os grupos que ela pode eventualmente estabelecer: “cultura é um conceito que acentua a diferença” (Kastedt, 2004, p. 289). Comentar sobre a produção de políticas públicas e os papéis que a corporação policial nela assume diz sobre um processo próximo ao discutido pelas autoridades etnográficas ( Clifford, 2008Clifford, J. (2008). A experiência etnográfica: Antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro, RJ: Ed. UFRJ. ). As totalizações dos grupos sociais, que ganharam formas pelas canetas dos etnógrafos das autoridades experiencial e interpretativa, por vezes podem se fazer presente na perspectiva criminal culturalista. A ausência de uma análise próxima à vivacidade cotidiana junto aos membros da instituição, comentada anteriormente por Foster (2008)Foster, J. (2008). Policing cultures. In T. Newburn (Ed.), Handbook of policing (pp. 196-227). Devon: Wilan. , pode acarretar em uma visão cristalizada, que acaba apenas por reproduzir os estereótipos propagados pela sociedade e colocá-los como condição sine qua non , como a visão de uma corporação necessariamente corrupta e violenta.

Tratar da questão da polícia, como de outros grupos, envolve, portanto, um movimento que ora agrupa seus membros, enfatizando os aspectos comuns e que nos permitem identificar as pessoas enquanto policiais, e que ora desmembra e pluraliza a instituição, enfatizando as tensões e as disputas de forças internas. Conforme apontam Hayward e Young (2007)Hayward, K., & Young, J. (2007). Cultural criminology. In: M. Maguire (Org.), The Oxford Handbook of criminology (pp. 102-121). Oxford: Oxford University Press. , há um movimento de tendência desconstrucionista que desde a passagem para os anos 1970 relativizam tanto os graus de dependência como de autonomia dos conjuntos culturais e de seus atores. Os autores afirmam que “as culturas não são estáticas, não são uma essência à espera de ser encenada; ao contrário, elas são heterogêneas, confundem, atravessam fronteiras e hibridizam” (Hayward, & Young, 2007, p. 107). Assim, a cultura exerce dois papéis quase antagônicos, sendo o de, por um lado, promover continuidade e previsibilidade e, de outro, produzir resistência, criatividade e invenção.

No processo de agrupamento e de destaque às continuidades presentes na cultura policial, são comumente ressaltadas a rigidez da cultura militar e a preponderância de elementos machistas. Freire (2009)Freire, M. (2009). Paradigmas de segurança no Brasil: Da ditadura aos nossos dias. Revista Aurora , 3 (5), 49-58. , ao refletir sobre a dificuldade do paradigma de segurança cidadã obter viço na prática policial, diz que:

Essa difusão é naturalmente lenta, pois esbarra muitas vezes em visões de mundo arraigadas nas instituições policiais – centradas na preponderância dessas instituições na implementação das políticas de segurança, identificando as políticas sociais como elementos alheios à esfera da segurança – e em uma perspectiva operacional-repressiva ( Freire, 2009Freire, M. (2009). Paradigmas de segurança no Brasil: Da ditadura aos nossos dias. Revista Aurora , 3 (5), 49-58. , p. 56).

Foster (2008)Foster, J. (2008). Policing cultures. In T. Newburn (Ed.), Handbook of policing (pp. 196-227). Devon: Wilan. , por sua vez, aponta para o machismo, decorrente principalmente pelo histórico quase exclusivista de homens em seu quadro, e para a característica, muitas vezes observada na polícia, que algumas culturas têm de refletir, reforçar e por vezes amplificar as desigualdades sociais. A autora discute que esses processos ocorrem, entre outros, em função da diferença entre “como você administra uma organização como esta” e “o que realmente importa por aqui” ( Foster, 2008Foster, J. (2008). Policing cultures. In T. Newburn (Ed.), Handbook of policing (pp. 196-227). Devon: Wilan. , p. 205). Segundo a mesma, a manutenção de valores antigos e a dificuldade de inserção de novos elementos decorrem da pressão identitária que os membros antigos exercem sobre os novatos. Quando o policial ingressa na instituição, para além de seu treinamento e ensino, ele passa a aprender com os outros “o verdadeiro papel do policial militar” ( Foster, 2008Foster, J. (2008). Policing cultures. In T. Newburn (Ed.), Handbook of policing (pp. 196-227). Devon: Wilan. , p. 205).

Contudo, os fatores culturais atuantes na polícia nem sempre vão na direção da continuidade de antigos valores. Em 1997, por exemplo, teve início um processo de paralisação até então tido como improvável aos policiais. Após o governador Eduardo Azeredo conceder aumentos salariais apenas aos oficiais da polícia militar e aos delegados da polícia civil, um grande movimento grevista tomou corpo no estado de Minas Gerais. Conforme aponta Melicio (2010)Melicio, T. (2010). Estudo de caso CICV – Minas Gerais . 2010: Relatório de pesquisa apresentado ao Instituto Via Pública, como parte do projeto de Avaliação do Programa de Integração das Normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos e Princípios Humanitários Aplicáveis à Função Policial do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) com as polícias militares no Brasil, São Paulo. , a greve da polícia militar mineira representou a maior a crise política do estado desde o golpe militar de 1964. Dois dias após o aumento, criou-se um movimento liderado pelos praças (soldados, cabos e sargentos) que reuniu cerca de 700 pessoas entre policiais e bombeiros, até a porta do Palácio da Liberdade, sede do governo mineiro. De acordo com um dos participantes da greve, posteriormente deputado estadual, sargento Rodrigues, em matéria do site da Associação de Praças e Santa Catarina (Aprasc), em 27/01/09: “a manifestação nasceu principalmente da vontade de combater a repressão, a injustiça, o desrespeito e a violação aos direitos fundamentais ao ser humano que os praças estavam sendo submetidos”. Na época, os oficiais e delegados civis mineiros recebiam cerca de R$ 6.000,00 (seis mil reais), enquanto os praças possuíam vencimentos em torno de R$ 430,00 (quatrocentos e trinta reais). Após a morte de um cabo, que integrava a paralisação, atingido em confronto com os policiais que tentavam conter as reivindicações, o movimento ganhou mais força, se difundido em 19 estados brasileiros, entre eles o fluminense.

Em 2012, outro movimento grevista obteve espaço, desta vez liderado pelos bombeiros e acompanhado pelas polícias civil e militar do estado do Rio de Janeiro. Também em função da reivindicação por melhores salários, segundo notícia veiculada em 9 de fevereiro de 2012 pelo portal G1 (Lauriano, & Ahmed), a greve chegou a reunir duas mil pessoas em assembleia na Cinelândia, centro do Rio, onde decidiram pela paralisação, que se encerrou uma semana depois.

O ponto em questão, com ênfase ao desmembramento e pluralidade da cultura policial, refere-se às formas com que a instituição pode se reinventar. O exemplo dos movimentos grevistas diz sobre o rompimento da corporação com um de seus fundamentos militares, que legalmente a impede de realizar greves. Assim, no momento em que optam por ir às ruas reivindicar aumentos salariais, a polícia está tornando concreto uma outra possibilidade de se apresentar à sociedade e de ver a si mesma.

Nesse sentido também estão as ações de policiamento comunitário e de proximidade. A polícia que historicamente se habituou a agir posteriormente ao acontecimento do crime, passa a atuar no diálogo constante com a comunidade, o que pode contribuir para a diminuição dos embates entre polícia e outros grupos sociais.

A diferença pela diversidade: acompanhando processos

Guattari e Rolnik (2005)Guattari, F., & Rolnik, S. (2005). Micropolíticas: Cartografias do desejo . Petrópolis, RJ: Vozes. realizam uma problematização do conceito de cultura, no sentido de questionar o quanto ela pode ser reacionária. Os autores criticam, sobretudo, o aspecto de continuísmo que os conjuntos de valores e ideias historicamente compartilhados podem acarretar, bem como as eventuais limitações que as barreiras culturais podem estabelecer. Trazendo a perspectiva da subjetividade como produção, Guattari e Rolnik comentam como os “técnicos da subjetividade” informam sobre seus padrões dos grupos que estudam, dizendo sobre sua música, dança, atividades de culto, de mitologia e outras: “e descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhe tomar a produção para expô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-las nas teorias antropológicas científicas em circulação” (Guattari, & Rolnik, 2005, p. 25). Ele discute que o mesmo acontece com o sujeito que é inserido no sistema psiquiátrico ou com as crianças no sistema de escolarização:

Antes disso, elas brincam, articulam relações sociais, sonham, produzem e, mais cedo ou mais tarde, vão ter que aprender a categorizar essas dimensões de semiotização no campo social normalizado. Agora é hora de brincar, agora é hora de produzir para a escola, agora é hora de sonhar, e assim por diante (Guattari, & Rolnik, 2005, p. 25).

O processo apontado por Guattari diz sobre a larga escala de produção de subjetividade em que se inserem as pessoas na sociedade contemporânea. Os sistemas médicos, escolares, religiosos, judiciários e outros tantos vão aos poucos normalizando os modos de ser e estar no mundo. São como as formas de vidas “plugadas” que Pelbart (2003)Pelbart, P. P. (2003). Vida capital: Ensaios de biopolítica . São Paulo, SP: Iluminuras. comenta. Da mesma maneira que se pluga um instrumento a uma caixa de som, para que sua sonoridade ganhe matéria e se torne perceptível às pessoas, os desejos, enquanto força produtiva de subjetividade, se plugam a categorias sociais para obterem concretude e produzirem efeito na realidade social. O que acontece é que se os desejos se plugarem a formas de ser e estar no mundo que não são socialmente valorizadas, acaba por não ganhar viço e, por isso, se esvaecem, ou são segregados e/ou infantilizados.

Nesses processos, a alteridade torna-se potente analisadora uma vez que diz sobre as formas de produção de mundo possíveis com a presença de outrem ( Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Michel Tournier e o mundo sem outrem. In G. Deleuze, A lógica do sentido (pp. 311-330). São Paulo: Perspectiva. ). O encontro com outrem e o encontro entre grupos produzem uma interconexão institucional que, por sua vez, estabelece um sistema lógico de definições da realidade social e de comportamentos humanos prescritos e proscritos ( Baremblitt, 2002Baremblitt, G. (2002). Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática . Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos tempos. ). Se as culturas urbanas, tanto em seu âmbito geral, como em suas manifestações mais locais, alimentam uma atmosfera de disputa, os dois últimos, medo e incerteza, são ainda mais acirrados e outrem, ao invés de ser visto pela face de um companheiro na empreitada da vida em sociedade, acaba por ter sua imagem borrada e distanciada – o que gera mais medo, que por sua vez gera mais acirramento, e assim por diante.

Os jogos de força envolvidos na produção de subjetividade colocam em xeque o que é normal e anormal, aceito e não aceito. Contudo, para além das capturas e da “dança conforme a música”, cabe averiguar quais as possibilidades de resistência, de criação de linhas de fuga, que permitem modos de viver escaparem aos dominantes. Como comenta Guattari (1995Guattari, F. (1995). As três ecologias . Campinas, SP: Papirus. , p. 14): “A juventude, embora esmagada nas relações econômicas dominantes que lhes conferem um lugar cada vez mais precário [...] nem por isso deixa de desenvolver suas próprias distâncias de singularização com relação à subjetividade normalizada”.

Os processos de singularização que o autor se refere correspondem à reconstrução do “conjunto das modalidades do ser-em-grupo” ( Guattari, 1995Guattari, F. (1995). As três ecologias . Campinas, SP: Papirus. , p. 16). Seus processos, como o desejado pelo morador de rua na entrevista acima, não apontam para as recomendações gerais que abarcam a biopolítica geral da população ( Foucault, 2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade . São Paulo, SP: Martins Fontes. ), mas para as intervenções comunicacionais e para as mutações existenciais. Como diz Guattari (1995Guattari, F. (1995). As três ecologias . Campinas, SP: Papirus. , p. 14-15):

Se não se trata mais – como nos períodos anteriores de luta de classe ou de defesa da “pátria do socialismo” – de fazer funcionar uma ideologia de maneira unívoca, é concebível em compensação que a nova referência ecosófica indique linhas de recomposição das práxis humanas nos mais variados domínios. Em todas as escalas individuais e coletivas, naquilo que concerne tanto à vida cotidiana quanto à reinvenção da democracia – no registro do urbanismo, da criação artística, do esporte, etc – trata-se, a cada vez, de se debruçar sobre o que poderiam ser os dispositivos de produção de subjetividade, indo no sentido de uma re-singularização individual e/ou coletiva, ao invés de ir no sentido de uma usinagem pela mídia, sinônimo de desolação e desespero.

Pensar, nesta pesquisa, os dispositivos de produção de subjetividade que visam uma singularização individual ou coletiva, é pensar a produção de mecanismos que articulem as instituições e os profissionais de segurança em uma relação com os demais grupos da sociedade que enfatize a diversidade em detrimento da hierarquização da diferença. A alteridade, como principal analisador deste processo, transforma-se no sustentáculo a ser analisado não em seu produto final, mas em seu movimento em curso. Assim, os mecanismos que intentam a valorização da diversidade na relação entre profissionais de segurança e comunidades configuram-se por modalidades práticas de vivência em que o contato com o diferente é seu principal objetivo.

As questões culturais que comumente são trazidas para ressaltar as dificuldades de mudança, como a cultura machista e corporativa da polícia, o histórico colonialista e escravagista brasileiro, a militarização baseada na hierarquia e disciplina, acabam por promover uma densidade por demais profunda às fronteiras relacionais entre os grupos. Este movimento acaba por levar a uma polarização excessiva entre polícia e sociedade, entre a cultura hegemônica brasileira e os grupos minoritários ( Melicio, Geraldini, & Bicalho, 2012Melicio, T., Geraldini, J., & Bicalho, P. (2012). Biopoder e UPPs: Alteridade na experiência do policiamento permanente em comunidades cariocas. Fractal, Revista de Psicologia , 24 (3), 599-622. ). Utilizando-se da orientação do ICP (1999)Independent Commission on Policing (ICP). (1999). A new beginning: Policing in Northern Ireland . Belfast: Stationery Office. para a reforma norte-irlandesa, as práticas de segurança, mais do que reproduzir os valores antigos, segregadores e excludentes da sociedade, podem objetivar constituírem-se como agentes de transformação para uma sociedade mais democrática, o que passa necessariamente pela intensificação de contato entre os diferentes.

Na pesquisa Sociabilidades Subterrâneas, Jovchelovitch (2013)Jovchelovitch, S. (2013). Sociabilidades subterrâneas: Identidade, cultura e resistência em favelas do Rio de Janeiro . Brasília, DF: Unesco. comenta sobre o que denomina por “fronteiras culturais porosas e densas”. Partindo dos relatos de como os moradores das comunidades acima mencionadas interagem com os diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, a autora notou que quanto maior a ausência de suportes sociais para que sejam feitas travessias simbólicas e geográficas, menor a experiência da diversidade. Jovchelovitch (2013)Jovchelovitch, S. (2013). Sociabilidades subterrâneas: Identidade, cultura e resistência em favelas do Rio de Janeiro . Brasília, DF: Unesco. comenta a questão territorial enfrentada por muitos dos moradores. Em função da disputa com facções rivais de tráficos de drogas, bem como com a polícia, a pessoa que mora em uma dessas comunidades tem receio de visitar outros lugares pelo medo de ser reconhecido e sofrer alguma retaliação por parte do grupo rival. Outro aspecto é o comentado no início deste trabalho no que se refere ao desconhecimento, por parte do morador, do funcionamento social de outro contexto. Uma vez que conhece a dinâmica da comunidade onde mora e desconhece a de outros lugares, como a dos pontos turísticos da zona sul, o morador por muitas vezes opta por não sair de seu lugar de conforto, privando suas possibilidades de socialização. Neste caso, observa-se o estabelecimento de uma fronteira cultural densa, que abre poucos pontos de articulação e diálogos com outros grupos e outras culturas.

No intuito de averiguar na trajetória dos entrevistados o que possibilitou a travessia de um contexto de segregação para um contexto de integração, Jovchelovitch procurou identificar “ações e estruturas que apoiam o desenvolvimento individual e social” (Jovchelovitch, 2013, p. 191). Trata-se do suporte oferecido por diferentes instituições que permitem com que o sujeito tenha acesso e usufrua de novas formas de sociabilidades. A autora comenta, que nos casos observados, organizações não governamentais, entre outras, atuaram como um dos apoios para que jovens tivessem contato com outras experiências; por exemplo, um garoto que entra para um dos grupos do AfroReggae ou Cufa e com ele viaja por outros lugares do Brasil e do mundo, tendo contato com outros referenciais que ampliam sua visão de mundo. O ponto que chama atenção são as formas de travessia de um ambiente de isolamento para a vivência mais aberta e inclusiva. Conforme ocorre se intensificam a experiência com outros locais, grupos, estéticas, comportamento, menor a densidade cultural e, consequentemente, maior a sua porosidade, como pontos de articulação e contato com a diferença.

Considerações finais

Intentar um aparato policial que promova os direitos humanos e os princípios humanitários é também objetivar uma sociedade que inclua a cidadania de seus policiais. As fronteiras culturais necessitam ir à direção de sua porosidade, pois quanto menos rígidas forem suas barreiras, maior espaço haverá para as linhas de fuga e processos de singularização. Tão importante quanto os índices de criminalidade e a capilaridade da ação policial é a efetivação de ações que permitam o contato entre os profissionais de segurança e os diversos grupos sociais. Ações relacionadas ao policiamento comunitário e de proximidade, como reuniões, encontros, cafés e outras modalidades de interação não necessitam direcionar suas expectativas apenas para seus produtos, ou seja, não necessitam preocupar-se apenas com as resoluções ali tomadas e com os encaminhamentos escritos em ata. O próprio encontro da diferença, assim como as dinâmicas que ali se estabelecem, como alianças e tensões entre os diferentes segmentos, por si só oferecem plano de análise. É assim que a presente pesquisa aproxima a metodologia por ela utilizada, com a proposta que finaliza seu trabalho. Tal qual na cartografia, torna-se importante o olhar para a alteridade na perspectiva de se acompanhar processos ( Kastrup, 2007Kastrup, V. (2007). O funcionamento da atenção no trabalho cartográfico. Psicologia & Sociedade , 19 (1), 15-22. https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000100003
https://doi.org/10.1590/S0102-7182200700...
; Rolnik, 1989Rolnik, S. (1989). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo . Porto Alegre, RS: Sulina. ). Uma vez que o interesse não se centra na densidade, mas na maior porosidade cultural, a cartografia dos processos em curso se constitui como possibilidade de monitoramento que destaca a ação no presente e, por isso, potencializa as transformações no futuro.

Observa-se como a promoção de uma segurança cidadã que valorize e integre a diversidade, passa também pela valorização e maior integração da própria polícia à sociedade, flexibilizando suas barreiras institucionais e fazendo emergir suas multiplicidades internas. Defende-se, assim, a formação de mecanismos efetivos que permitam o contato entre diferentes, deslocando o monitoramento das políticas públicas da ênfase aos resultados para a ênfase aos seus processos constituintes, tendo a fomentação de travessias e maior porosidade cultural como referência.

Respeitar e promover a diversidade diz sobre respeitar e dar vazão às próprias dificuldades em se realizar tal tarefa. Não se trata de eliminar as “cabeças dos bichos”, para produzir um animal menos estranho, mas, sim, a de trazer as suas “sete cabeças” para conviver com suas estranhezas, atento, sobretudo, a como é esse convívio. Promover a diversidade é promover necessariamente desencontros; e ver a potência dos desencontros é acompanhar os mundos que esses desencontros permitem.

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    » https://doi.org/10.1111/j.1749-5687.2008.00037.x
  • 1
    Doutorado defendido no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Bicalho. Foi realizado doutoramento sanduíche na University of Dundee – U.K., sob orientação dos Professores Doutores Fernando Lannes Fernandes e Nicholas Fyfe, financiado pela Capes.
  • 2
    No contexto norte-irlandês, protestantes unionistas são aqueles que defendem a inserção da Irlanda do Norte no domínio geopolítico do Reino Unido, enquanto os católicos republicanos são os que defendem a independência do país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    21 Ago 2018
  • Aceito
    23 Ago 2018
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