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Sentimentos e Percepções do Luto de Sobreviventes ao Suicídio de Jovens

Feelings and perceptions of grief among survivors of youth suicide

Sentimientos y percepciones de duelo entre sobrevivientes de suicidio de jóvenes

Resumo

Sobreviventes ao suicídio são pessoas que têm suas vidas profundamente afetadas e apresentam sofrimento psicológico, físico ou social após serem expostas a esse fato. O objetivo deste estudo foi analisar a experiência de sobreviventes ao suicídio de jovens, a partir do luto. Participaram sete sobreviventes entre familiares, amigos e parceiros amorosos de jovens que cometeram suicídio. A análise de conteúdo de entrevistas narrativas apontou que os participantes utilizam explicações racionalizadas ou dissociadas, criando uma distância entre o evento e eles mesmos. Como formas de lidar com o sofrimento podem buscar o isolamento, apoio entre amigos, prática religiosa e/ou a dedicação ao trabalho. Reafirma-se a dimensão do luto diante dessa experiência, além da importância da prevenção ao suicídio e da posvenção aos sobreviventes.

Palavras-chave:
Luto; Suicídio; Sobrevivente; Jovem

Abstract

Suicide survivors are people who have their lives deeply affected; they experience psychological, physical, and social suffering following the occurrence. The aim of this study is to analyze the experience of survivors of youth suicide attempts, based on grief. Seven survivors participated among family, friends, and romantic partners of young people who committed suicide. The content analysis of narrative interviews showed that the participants use rationalized or dissociated explanations, creating a distance between the event and themselves. As ways to deal with suffering, they seek isolation, support among friends, religious practice, and/or dedication to work. The dimension of grief in the face of this experience is reaffirmed, as well as the importance of suicide prevention and postvention for survivors.

Keywords:
Grieving; Suicide; Survivor; Young

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar la construcción metodológica desarrollada en una investigación de maestría, en la que sostenemos la escritura de escenas como método de investigación de la escucha clínica. Las escenas del trabajo en cuestión se recogieron a lo largo del tiempo desde la experiencia en un proyecto de extensión universitario de atención a la niñez y adolescencia en situación de vulnerabilidad social aplicado en una comunidad periférica. En este texto, presentamos los interrogantes que se elaboraron en torno a la elección por el trabajo con escenas y compartimos el rescate histórico de las mismas como un método de escribir la clínica y la reanudación del análisis a partir de la tradición psicoanalítica. Amparadas en el psicoanálisis y en lecturas y contribuciones del filósofo francés Jacques Derrida, nos basaremos en la noción de que la escena se constituye como un lugar de producción, engendrando la configuración particular de elementos significantes en los procesos de subjetivación y de construcción social. La escena no es aquí una representación de lo que pasa en la clínica, sino un modo de producir escucha y sus procesos de investigación.

Palabras Clave:
Luto; Suicidio; Sobreviviente; Joven

O suicídio vem crescendo entre a população jovem e esse fato tem sido foco de preocupação social. A Organização Mundial da Saúde (OMS, 2014Organização Mundial de la Salud. (2014). Prevención del suicidio: Un imperativo global. https://iris.paho.org/handle/10665.2/54141
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) indica um crescimento da incidência de suicídio, principalmente entre jovens e crianças, sendo a segunda causa morte de jovens em todo mundo. O boletim epidemiológico da OMS sinaliza o crescimento do suicídio nessa população (OMS, 2018Organização Mundial da Saúde (2018). Dados de suicídio relatados por países 2018. https://www.who.int/es/news/item/04-09-2014-first-who-report-on-suicide-prevention
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), o que marca uma virada epidemiológica importante, pois os estudos iniciais sobre suicídio, ao destacarem o aspecto etário ou as populações historicamente excluídas e marginalizadas, tinham como público-alvo a população idosa.

Na fase da juventude, a sociedade espera uma resposta dos investimentos feitos anteriormente à criança. Diante da necessidade de responder às demandas sociais, juntam-se as questões de ordem psíquica que passam a ser evidenciadas nesse ciclo de vida. Os adolescentes e jovens constituem um grupo que, além de ter suas potencialidades, carregam fragilidades.

Segundo a OMS (2018Organização Mundial da Saúde (2018). Dados de suicídio relatados por países 2018. https://www.who.int/es/news/item/04-09-2014-first-who-report-on-suicide-prevention
https://www.who.int/es/news/item/04-09-2...
), 75% dos suicídios acontecem em países de baixa e média renda. Esse dado indica que, para além dos fatores intrínsecos ao próprio jovem, as questões de ordem econômica e oferta de bens e serviços também se colocam como determinantes e condicionantes dos níveis de saúde mental da população. Assim, em momentos de recessão econômica a tendência é o aumento dos casos de suicídio.

Entre os fatores de risco para o suicídio entre jovens, os estudos apontam: presença de desesperança (Kuczynski, 2014Kuczynski, E. (2014). Suicídio na infância e adolescência. Psicologia USP, 25(3), 246-252. http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n3/0103-6564-pusp-25-03-0246.pdf
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; Moreira & Bastos, 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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; Rios, Mascarenha, Souza, Olebar, Paiva, & Silveira 2019Rios, M. D. G. V., Mascarenha, L. V. R., Siqueira Souza, K., Olebar, D. T. C. R., Paiva, M. C. E., & Oliveira Silveira, A. (2019). Adoecimento e sofrimento psíquico entre universitários: Estado da arte. Humanidades & Inovação, 6(8), 23-31. https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/1259
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), depressão (Kuczynski, 2014Kuczynski, E. (2014). Suicídio na infância e adolescência. Psicologia USP, 25(3), 246-252. http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n3/0103-6564-pusp-25-03-0246.pdf
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; Moreira & Bastos 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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; Rios et al., 2019Rios, M. D. G. V., Mascarenha, L. V. R., Siqueira Souza, K., Olebar, D. T. C. R., Paiva, M. C. E., & Oliveira Silveira, A. (2019). Adoecimento e sofrimento psíquico entre universitários: Estado da arte. Humanidades & Inovação, 6(8), 23-31. https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/1259
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), ansiedade (Moreira & Bastos 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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), uso de substâncias psicoativas (Moreira & Bastos, 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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; Silva, 2009Silva, D. R. (2009). E a vida continua…: O processo de luto dos pais após o suicídio de um filho [Dissertação de mestrado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.; Rios et al., 2019Rios, M. D. G. V., Mascarenha, L. V. R., Siqueira Souza, K., Olebar, D. T. C. R., Paiva, M. C. E., & Oliveira Silveira, A. (2019). Adoecimento e sofrimento psíquico entre universitários: Estado da arte. Humanidades & Inovação, 6(8), 23-31. https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/view/1259
https://revista.unitins.br/index.php/hum...
), abusos físicos (Kuczynski, 2014Kuczynski, E. (2014). Suicídio na infância e adolescência. Psicologia USP, 25(3), 246-252. http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n3/0103-6564-pusp-25-03-0246.pdf
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; Moreira & Bastos, 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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; Silva, 2009Silva, D. R. (2009). E a vida continua…: O processo de luto dos pais após o suicídio de um filho [Dissertação de mestrado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.; Schlösser, Rosa, & More, 2014Schlösser, A., Rosa, G. F. C., & More, C. L. O. O. (2014). Revisão: Comportamento suicida ao longo do ciclo vital. Temas em Psicologia, 22(1), 133-145. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v22n1/v22n1a11.pdf
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), impulsividade, rigidez, falta de clareza para propor soluções, negativismo (Kuczynski, 2014Kuczynski, E. (2014). Suicídio na infância e adolescência. Psicologia USP, 25(3), 246-252. http://www.scielo.br/pdf/pusp/v25n3/0103-6564-pusp-25-03-0246.pdf
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), ausência de apoio social, solidão, comportamento antissocial, antecedente de tentativa de suicídio, conhecer alguém que tenha tentado suicídio, baixa autoestima, disfunções familiares, conduta violenta, agressividade, estresse, bullying, vitimização, causar prejuízo aos outros, ser do sexo feminino (Moreira & Bastos, 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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; Schlösser, Rosa, & More, 2014Schlösser, A., Rosa, G. F. C., & More, C. L. O. O. (2014). Revisão: Comportamento suicida ao longo do ciclo vital. Temas em Psicologia, 22(1), 133-145. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v22n1/v22n1a11.pdf
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). Além desses fatores, estudo de Alves, Zappe e Dell’aglio (2015Alves, C. F., Zappe, J. G., & Dell’Aglio, D. D. (2015). Índice de comportamentos de risco: Construção e análise das propriedades psicométricas. Estudos de Psicologia, 32(3), 371-382. http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v32n3/0103-166X-estpsi-32-03-00371.pdf
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) concluiu que o jovem que tentou suicídio está mais vulnerável do que aquele que apenas teve ideação suicida. Outro fator apontado como preditor de suicídio entre jovens é chamado cutting, ou seja, autolesão por cortes (Nunes, 2013Nunes, C. P. D. S. (2013). Autodano e ideação suicida na população adolescente: Aferição do questionário de impulso, autodano e ideação suicida na adolescência (QIAIS-A) [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade dos Açores.; Oliveira, Amâncio, & Sampaio, 2001Oliveira, A., Amâncio, L., & Sampaio, D. (2001). Arriscar morrer para sobreviver: Olhar sobre o suicídio adolescente. Análise Psicológica, 19(4), 509-521. http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v19n4/v19n4a03.pdf
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).

Como fatores de proteção, os autores apontam sentimentos de bem-estar, autoestima elevada, flexibilidade emocional, capacidade de buscar ajuda (Schlösser, Rosa, & More, 2014Schlösser, A., Rosa, G. F. C., & More, C. L. O. O. (2014). Revisão: Comportamento suicida ao longo do ciclo vital. Temas em Psicologia, 22(1), 133-145. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v22n1/v22n1a11.pdf
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), rede de proteção e de apoio social, ambiente acolhedor com acompanhamento profissional (Melo, Siebra, & Moreira, 2017Melo, A. K., Siebra, A. J., & Moreira, V. (2017). Depressão em adolescentes: Revisão da literatura e o lugar da pesquisa fenomenológica. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(1), 18-34. http://www.scielo.br/pdf/pcp/v37n1/1982-3703pcp-37-1-0018.pdf
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), proteção, apoio familiar, confiança em si mesmo, abertura a conselhos, integração social, bons relacionamentos interpessoais, conexão com amigos e professores (Moreira & Bastos, 2015Moreira, L. C. D. O., & Bastos, P. R. H. D. O. (2015). Prevalência e fatores associados à ideação suicida na adolescência: Revisão de literatura. Psicologia Escolar e Educacional, 19(3), 445-453. http://www.scielo.br/pdf/pee/v19n3/2175-3539-pee-19-03-00445.pdf
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).

O comportamento suicida, fenômeno complexo, possui efeitos também nas pessoas próximas. Os sobreviventes experimentam sofrimentos manifestados principalmente em angústia e culpa, que constituem um importante fator de risco para suicídio (OMS, 2014Organização Mundial de la Salud. (2014). Prevención del suicidio: Un imperativo global. https://iris.paho.org/handle/10665.2/54141
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). Jordan e Mcintosh (2011Jordan, J. R., & McIntosh, J. L. (Eds.). (2011). Grief after suicide: Understanding the consequences and caring for the survivors. Routledge.) definem sobreviventes como “alguém que experiencia um elevado sofrimento psicológico, físico ou social, durante um período considerável de tempo, após a exposição ao suicídio de outra pessoa” (p. 7). Ainda segundo os autores, os sobreviventes compreendem os familiares, namorados, companheiros, amigos, colegas de trabalho, colegas de escola, professores, terapeutas, vizinhos ou qualquer outra pessoa que mantinha relação próxima e significativa com a pessoa que cometeu suicídio. A denominação de sobrevivente para enlutados por suicídio é justificada por ser uma morte violenta, repentina e que pode provocar culpa e autoacusação, demandando muita energia psíquica para a elaboração do luto (Fukumitsu & Kovacs, 2016Fukumitsu, K. O., & Kovács, M. J. (2016). Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico, 47(1), 03-12. https://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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).

Para Fukumitsu e Kovacs (2016Fukumitsu, K. O., & Kovács, M. J. (2016). Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico, 47(1), 03-12. https://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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), assim como o comportamento suicida não pode ser reduzido a explicações simplistas, o processo de luto deste tipo de morte não deve apresentar uma única compreensão, sendo este tipo de luto multidimensional. As autoras ressaltam que, além da morte por suicídio e suas repercussões, o sobrevivente deve aprender a lidar com a ausência e com o sofrimento decorrente do impacto da morte autoinfligida. Destacam que o aspecto traumatizante do sobrevivente não é o fato em si, mas o processo como um todo, a intensidade das emoções que permeiam a questão: “Por que a pessoa se matou?”.

É importante destacar que no período da perda, as pessoas enlutadas vivenciam processos de “elaboração do luto”. Esse período consiste na ocorrência de fenômenos de enfrentamento desta perda e de elaboração da dor derivada deste luto (Kaplan, Sadock, & Grebb, 2003Kaplan, H. I., Sadock, B. J., & Greb, J. A. (2003). Compêndio de psiquiatria: Ciências do comportamento e psiquiatria clínica (D. Batista, Trad.; 7a ed.). Artmed.). Santos, Campos e Tavares (2015Santos, S., Campos, R., & Tavares, S. (2015). O impacto do suicídio: Evidências atuais. Revista Evidências, 1, 16-23. https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/13930/1/rcaap1.PDF
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) apontam que muito tem se buscado entender sobre o fenômeno no sentido de isolar fatores de risco e proteção. No entanto, pouco tem sido estudado no campo do cuidado dos que ficam, como os familiares e amigos.

Segundo Botega (2015Botega, N. J. (2015). Crise suicida. Artmed.), para cada óbito por suicídio há no mínimo cinco ou seis pessoas próximas ao falecido cujas vidas são profundamente afetadas emocional, social e economicamente. Transpondo para o suicídio de um jovem, vale considerar que a morte de uma pessoa nessa fase da vida, mesmo quando não é por suicídio, acarreta o sentimento de estranheza. O comum é situar a morte como o fim de uma jornada longa de vida, ou seja, na velhice. Quando a morte deste jovem é por suicídio, os enlutados além de terem que lidar com fatores que envolvem essa eventualidade, como a morte de alguém importante de forma inesperada e violenta, têm que lidar com assertivas como: “não tinha idade para morrer”, “não deveria morrer nesse momento”. Em síntese, são frustrados os planos e as expectativas em relação a esse jovem (Silva, 2009Silva, D. R. (2009). E a vida continua…: O processo de luto dos pais após o suicídio de um filho [Dissertação de mestrado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.).

Ao serem destacados os sobreviventes ao suicídio de adolescentes e jovens, emerge questionamento a respeito de como estes sujeitos vivenciam o advento do suicídio de um jovem próximo. Assim, o objetivo deste estudo é analisar e discutir a experiência de sobreviventes ao suicídio de jovens, a partir do luto.

Método

Trata-se de pesquisa de modalidade qualitativa de investigação do tipo descritiva e exploratória. Este tipo de pesquisa permite compreender e descrever como uma questão é percebida a partir do significado atribuído por aqueles que a vivenciaram (Creswell, 2010Creswell, J. W. (2010). Projeto de pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. Artmed.).

Os participantes desta pesquisa são sobreviventes de suicídios de jovens, moradores de região metropolitana de capital da região Sudeste do Brasil. Assim, participaram da pesquisa familiares, amigos, parceiros amorosos e outros que declararam relação próxima significativa com jovem suicida, constituindo a condição de sobreviventes. Foram excluídos da seleção crianças, adolescentes ou jovens menores de 18 anos. O critério de tempo da ocorrência do suicídio não foi considerado na seleção dos participantes.

Foram entrevistadas sete pessoas. Esse número de participantes não foi predeterminado e a etapa de campo foi desenvolvida concomitante à análise preliminar dos dados, limitando-se a esse número quando os dados estavam suficientes para o alcance dos objetivos da pesquisa. O acesso aos participantes foi feito após o projeto ter sido aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), conforme a Resolução 466/12Conselho Nacional de Saúde. (2012, 12 de dezembro). Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, (12), 59., que delimita critérios para pesquisa com seres humanos. Foi aprovado pelo CEP da Universidade Federal do Espírito Santo - Campus de Goiabeiras (CEP/UFES/CCHN) com o Número do Parecer: 3.469.677.

Uma das pesquisadoras divulgou o projeto entre sua rede de relacionamentos (grupo de pesquisa, colegas de grupo de organização sobre suicídio, profissionais de saúde mental) e conseguiu alguns contatos de potenciais participantes da pesquisa. Foi feito contato com essas pessoas por meio de ligação telefônica ou por envio de mensagem por aplicativo de celular. Importante ressaltar cerca de vinte possíveis participantes recusaram, demonstrando a dificuldade em tratar do tema para muitos sobreviventes.

O Quadro 1 apresenta os participantes da pesquisa, quanto à idade, gênero, vínculo com o jovem que cometeu suicídio, tempo decorrido do ato suicida, além da a caracterização dos jovens que se suicidaram.

Quadro 1
Caracterização dos participantes e dos jovens que cometeram suicídio.

Foi utilizada a entrevista narrativa como instrumento de coleta de dados. Esta modalidade de entrevista é classificada como “entrevista não estruturada, de profundidade e com características especificas” (Bauer, Gaskell, & Allum, 2002Bauer, M. W., Gaskell, G., & Allum, N. C. (2002). Qualidade, quantidade e interesses do conhecimento: Evitando confusões. In Bauer, M. W., Gaskell, G. (Eds.), Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: Um manual prático (pp. 17-35). Vozes., p. 95). Esta entrevista consiste em provocar a fala livre do entrevistado para que ele conte história sobre a sua experiência com o assunto em questão. Busca romper com a rigidez imposta pelas entrevistas estruturadas e gerar textos narrativos sobre as experiências vividas. O entrevistador intervém o mínimo possível apenas para encorajar, evitando assim sobrepor ou induzir o relato com perguntas. Desse modo, a narrativa nos permitiu ter acesso aos efeitos subjetivos, como os participantes viveram o processo do suicídio, o momento da morte do jovem, a vivência da perda.

No início da entrevista, foi lido e elucidado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) pela pesquisadora ao participante. Após, foi feita a proposta de escutar seu relato sobre a vivência de perder alguém por suicídio. Foi esclarecido que poderia começar por onde quisesse e que seria indagado, caso houvesse dúvidas. Foram utilizados acenos corporais afirmativos como recursos para incentivar a fala do participante.

As entrevistas foram realizadas em local de escolha dos participantes, com duração em média de 135 minutos, com variação de duração de 90 a 180 minutos. A maioria dos participantes optou por conceder a entrevista na universidade; com exceção de dois participantes, um deles preferiu o local de trabalho e outro optou por conceder a entrevista em sua residência.

Para analisar os dados da entrevista narrativa, foi utilizada a análise de conteúdo (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.). Há várias maneiras para analisar conteúdos de materiais de pesquisa. Esta pesquisa foi trabalhada na modalidade de análise temática, que infere a centralidade de um tema e o desmembra em subtemas, a partir do conteúdo trazido pelas entrevistas (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.; Minayo, 2012Minayo, M. C. S. (2012) Pesquisa social: Teoria, método e criatividade (31a ed.). Vozes.).

A análise de conteúdo temática foi realizada em três etapas: pré-análise, exploração do material e interpretação dos resultados (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. Edições 70.). Após a transcrição das entrevistas, o material foi lido exaustivamente, no sentido de obter uma perspectiva do conjunto inicial e identificar as categorias para classificação das falas. Os trechos das entrevistas foram organizados em tabelas que permitiram a visualização das categorias dos discursos dos participantes. Na análise do material, buscou-se identificar unidades de sentido em cada categoria e classificá-lo em temas ou subtemas (Quadro 2) que, juntamente com os pressupostos teóricos iniciais, auxiliassem na análise interpretativa dos depoimentos.

Quadro 2
Resultados: temas e subtemas.

Apresentação e discussão dos resultados

Apesar da proposta do estudo ser centrada nas experiências dos sobreviventes, consideramos importante destacar alguns aspectos dos jovens que cometeram suicídio. A idade entre eles variou de 15 a 24 anos, dois deles entre 15 e 16 anos, e cinco, ou seja, a maioria, na faixa de 21 a 24 anos. Dentre esses jovens, cinco eram homens e duas eram mulheres. Dois jovens identificavam-se como homoafetivos e os outros cinco jovens não tiveram a orientação sexual destacada nas narrativas. Em relação à etnia, três jovens eram negros e os restantes, brancos. No aspecto ocupacional, uma era profissional de saúde e os outros seis eram estudantes: dois cursavam o ensino médio e quatro eram universitários. Como modo de suicídio, seis utilizaram o enforcamento e um a precipitação de altura (Quadro 3).

Quadro 3
Síntese das narrativas sobre o suicídio apresentadas pelos participantes.

Percebemos que a partir dessa caracterização, os jovens que se suicidaram estavam situados dentro dos grupos considerados de risco com a sobreposição de fatores: ser homem, negro, homossexual, profissional de saúde (Silva et al., 2019Silva, R. S., Almeida Machado, R., Carneiro, L. S., Azevedo, G. H. M., Silva, F. T., Sá, C. B. N., & Mendonça, E. D. (2019). Fatores de risco associados ao suicídio na adolescência: Uma revisão integrativa no período de 2004 a 2019. Revista de Patologia do Tocantins, 6(2), 50-56. https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/patologia/article/view/6688/15239
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). Importante ressaltar que a construção do risco se dá em articulação com o social; logo, não se trata de naturalizar características como potencial para o suicídio, mas sim avaliar como esses atravessamentos de ser homem, negro, homossexual, profissional de saúde

com agravantes que serão elucidados mais adiante, como o isolamento ou ter conflitos familiares, podem contribuir para o adoecimento nesta sociedade, marcada por estruturas machistas, homofóbicas e racistas.

Em relação ao tratamento, apenas quatro dos sete jovens receberam algum tipo de cuidado, sendo que um deles recebia acompanhamento psicológico na instituição em que estudava, dois deles faziam tratamento psiquiátrico e apenas um fazia tratamento psiquiátrico e psicológico. Os outros três jovens não faziam nenhum tipo de tratamento psiquiátrico ou cuidado em saúde mental (Quadro 3).

No processo de elaboração do luto, os sobreviventes apresentaram, em suas narrativas, a dor e tristeza, além de apresentarem movimento de buscar causas e culpar outras pessoas pelo ocorrido. Fez parte desse processo a tentativa de compreensão por meio de explicações racionalizadas, criando-se uma distância entre o evento e eles mesmos. Completando a narrativa dessa tarefa do luto, os sobreviventes relataram o suporte que tiveram nesse processo e a superação alcançada, conforme apresentado a seguir.

O último contato

Os últimos contatos que correspondem aos últimos tempos de vida dos jovens são narrados pelos participantes, trazendo destaque a esses momentos. É importante considerar que a entrevista narrativa não se utiliza de indução com perguntas pelo pesquisador e, no caso, o último contato foi trazido espontaneamente pelos sobreviventes. Entende-se o fato da cena do último contato com o jovem estar presente, ocupar lugar de destaque na narrativa, como necessidade enfrentada pelo sobrevivente em entender o ocorrido, assim como ocorre com os enlutados que têm a necessidade de entender a ausência da pessoa amada. É importante destacar que a análise que leva à presença de tristeza no jovem é realizada prospectivamente, quando buscam sentido ao ato, na tentativa de completarem um sistema explicativo para dar sentido ao suicídio.

P5 e P3 trazem a narrativa desse último encontro para o cotidiano vivido com os jovens. No entanto, lembram de algumas diferenças das rotinas dos jovens nesse dia:

Eu desci, eu falei:“Ô meu filho, bença vó”, eu falava “bença vó” com ele todos os dias, aí ele: “bença vó”. Triste . . . eu lembro como se fosse hoje. Ele com um chapeuzinho, um bonezinho . . . eu tinha dado esse chapéu para ele até de marca, eu dei o boné para ele, ele usava sempre para trás. Ele botou o bonezinho assim. Eu falei: “Você não foi com seu avô, com sei pai não?”. Ele falou: “Não vó, hoje eu vou mais tarde, eu vou chegar mais tarde um pouquinho na escola”. Eu falei: “Está bom meu amor, vai com Deus, cuidado atravessar a rua, tá?”, ele falou: “Tá vó”. Ele até deu um sorriso, ele sempre ficava: “Tá vó, está bom vó”. Menina, beleza, foi a última vez que eu o vi com vida (P5).

E aí neste dia quando ele chegou sentou no meu colo. Ele sentou no meu colo ficou sentado lá e eu continuei conversando com os outros colegas. Passou um tempo, ele levantou, lembro que tinha continuado de cabeça baixa porque tinha tirado nota baixa, mas como todo mundo tirava nota baixa, eu também tirava. Mais uma vez eu não dei muita atenção, e aí ele saiu e foi embora (P3).

Para P1, diferente de P3 e P5, a tristeza de sua amiga foi explicitada verbalmente por ela no último contato: “Ela falou que tava muito triste, muito chateada. Eu falei:Quer conversar? Tenta fazer algum esporte vai te ajudar”. É, mas eu não sabia, né? Aí um mês depois mais ou menos, ou um pouco mais, aconteceu” (P1).

No próximo relato, na despedida do amigo, antes do suicídio, o jovem pede desculpa, o que é interpretado, posteriormente, pelo sobrevivente como um pedido de desculpa por desistir da vida.

A gente foi para um encontro [atividade do curso de graduação] foi no ônibus . . ., todo mundo bebendo à vontade, e ele já estava meio aéreo, meio estranho. E na volta, ele ficou perto de uma cidade para ficar em Brasília para ver o pai dele. Aí ele saiu não se despediu do ônibus, aí eu desci, fui lá, me despedir dele. Aí ele começou a pedir desculpa, a falar: “Foi mal, me desculpa aí”. Aí eu falei: “O quê? Não aconteceu nada. Não tem problema, você só indo embora para ver seu pai”. E ele: “Não, desculpa aí”. E meio simbolicamente estava tipo muita nuvem, era um lugar que estava muito branco de neblina assim e ele pedindo desculpa, foi muito estranho, aí eu voltei para o ônibus meio incomodado. E foi pouco depois que ele se matou (P4).

Os pedidos de desculpas são comuns em cartas, bilhetes deixados por suicidas a seus entes. Segundo Cremasco e Brunhari (2009Cremasco, M. V. F., & Brunhari, M. V. (2009). Da angústia ao suicídio. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 9(03), 785-814. http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27115482003
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), esses pedidos costumam ser de desculpas pelo suicídio e/ou também de desculpabilização, ou seja, des-culpam aqueles que poderiam se culpar pelo ato. Aqui, para além das intenções do jovem, para P4 a cena de despedida vem envolta de detalhes - muita nuvem, muito branco, neblina - que parece compor uma cena onírica, em que refere ter um simbolismo. A estranheza da cena é uma prévia do que viria, contudo permanece como um pedido póstumo de desculpa.

O estudo de Sena-Ferreira et al. (2014Sena-Ferreira, N., Pessoa, V. F., Boechat-Barros, R., Figueiredo, A. E. B., & Minayo, M. C. D. S. (2014). Fatores de risco relacionados com suicídios em Palmas (TO), Brasil, 2006-2009, investigados por meio de autópsia psicossocial. Ciência & Saúde Coletiva, 19, 115-126. http://www.scielo.br/pdf/csc/v19n1/1413-8123-csc-19-01-00115.pdf
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) aponta que na maioria dos casos de suicídio encontram-se evidências, de comportamentos anteriores ao ato, que podem ser interpretados como uma comunicação prévia do propósito autolesivo. Estes comportamentos variam, podendo ser mais sutis em relação à intencionalidade suicida, como mudanças de comportamento, pedidos de desculpa e de perdão aos familiares, pequenos bilhetes etc., ou mais diretos e incisivos, como a aquisição de objetos característicos como cordas, escadas, armas de fogo.

A filha de P6, antes de suicidar-se, presenteou a mãe com diferentes objetos: “Ela me deu esse livro [Queria ver você feliz, da autora Adriana Falcão, que trata sobre suicídio], me deu um cartão, e me deu uma blusa” (P6).

O irmão de P7 o chamou para conversar:

Ele me chamou pra conversar no quarto dele, perguntou se eu o amava . . . eu falei que amava e tal é . . . mas ele tava mal assim não tava bem . . . ele meio que se despediu de quase todo mundo da família próxima de alguma forma e . . . se enforcou. Mas antes ele foi no samba com meu pai, ele encontrou com meu outro irmão, ele tocou com meu irmão e meu pai (P7).

Os relatos de P6 e P7 trazem ações prévias ao suicídio que denotam premeditação do ato. No entanto, na emissão de sinais como os relatados pode estar um pedido de ajuda, de intervenção, que o impeça de cometer o suicídio. Para Werlang (2004Werlang, B. G., Sperb, I.W. (2004). Entrevista semiestruturada para autópsia psicológica (Esap) em casos de suicídios rurais. In B. S. Werlang & N. J. Botega (Orgs.), Comportamento suicida (pp. 187-196). Artmed, São Paulo.), a pessoa busca a morte ao mesmo tempo em que espera a intervenção de alguém, estando ambivalente em relação ao suicídio e, por isso, emite sinais de sua intenção.

Segundo Costa e Souza (2017Costa, A. L. S., & Souza, M. L. P. (2017). Narrativas de familiares sobre o suicídio de idosos em uma metrópole amazônica. Revista de Saúde Pública, 51, 1-10. http://dx.doi.org/10.11606/s1518-8787.2017051007059
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), a falta de informação acerca do que acontecia com a pessoa no momento em que se matou parece ser um dos aspectos que trazem maior sofrimento ao sobrevivente. Destacam que um elemento constante contido no relato dessas pessoas é a martirização por não perceberem os sinais que levariam ao suicídio. Em pesquisa realizada com familiares de pessoas que cometeram suicídio, a ideia de terem sido incapazes de perceber as alterações de comportamento prévias ao suicídio é algo que martiriza o pensamento dessas pessoas (Costa & Souza, 2017Costa, A. L. S., & Souza, M. L. P. (2017). Narrativas de familiares sobre o suicídio de idosos em uma metrópole amazônica. Revista de Saúde Pública, 51, 1-10. http://dx.doi.org/10.11606/s1518-8787.2017051007059
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).

Há esforços de campanhas psicoeducativas para identificação e tratamento precoce do comportamento suicida, mas há que se reconhecer que é necessário um cuidado para não supervalorizar a ação das pessoas próximas. Sabe-se que nem todos os suicídios são evitáveis, por mais que a rede de suporte esteja presente e articulada, uma vez que acontecem suicídios até mesmo em hospitais. O suicídio é um fenômeno complexo com fortes componentes de ambivalência e impulsividade (Schlösser & Rosa, 2014Schlösser, A., Rosa, G. F. C., & More, C. L. O. O. (2014). Revisão: Comportamento suicida ao longo do ciclo vital. Temas em Psicologia, 22(1), 133-145. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v22n1/v22n1a11.pdf
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) e nem todo suicídio é fruto de um plano estabelecido; logo, não há garantias de que todos esses comportamentos eram sinais de intenção suicida. No entanto, esses sinais estão presentes nas narrativas de alguns participantes.

Busca de sentido

No processo de elaboração do luto, ao significar sua perda, os participantes buscam a causalidade do suicídio de seus entes.

Então a gente começa a questionar as nossas relações familiares, a gente começa a questionar o modo como olhava ou não olhava, abraçava ou não abraçava, dizia que amava, o quanto dizia que amava, o quanto talvez deveria ter feito mais pra conseguir fazer com que ele não suicidasse (P7).

Então, eu imagino por quê? O que é que aconteceu? Onde nós erramos? Em uma semana antes, para você ter uma ideia eu estava . . . aí eu fui lá embaixo e ele estava na sala, ele chegou perto de mim e falou assim, ele me abraçou, ele falou assim: “Vovó, você me desculpa? Sem mais nem menos, uma semana antes (P5).

Sebastião (2017Sebastião, M. A. S. S. (2017). Vida depois da morte: Narrativas da experiência de perda de um familiar por suicídio [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de Évora.) aponta que questões como “o que eu poderia ter feito para evitar o que aconteceu?” ou “e se…” são pensamentos particularmente intensos e são reações importantes após eventos traumáticos e constituem-se em valiosa aprendizagem e reconstrução/integração da experiência dolorosa. Silva e Marinho (2017Silva, L. G. B., & Marinho, C. A. S. (2017). Suicídio: Aspectos reacionais e o processo de elaboração do luto na família. Psicologia, 1-17. https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1137.pdf
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) afirmam que suicídio é “o evento que demanda a necessidade de reconstruir sentidos a partir da morte trágica do outro” (Silva & Marinho, 2017Silva, L. G. B., & Marinho, C. A. S. (2017). Suicídio: Aspectos reacionais e o processo de elaboração do luto na família. Psicologia, 1-17. https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1137.pdf
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, p. 7). As perguntas e questionamentos dos sobreviventes não serão respondidos integralmente devido à particularidade característica da morte por suicídio. No entanto, diante de uma perda, a construção de sentido é fundamental para que o luto possa ocorrer e o enlutado, mesmo diante de dor intensa, não o vivencie de maneira a experimentar a devastação e o sentimento de incapacidade característicos do luto patológico (Silva & Marinho, 2017Silva, L. G. B., & Marinho, C. A. S. (2017). Suicídio: Aspectos reacionais e o processo de elaboração do luto na família. Psicologia, 1-17. https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1137.pdf
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).

Nos relatos de P3, a seguir, identificamos explicações de forma racionalizada sobre o ocorrido. Criar uma racionalização/explicação para o fato tão doloroso e insuportável pode ser uma etapa importante. Neste caso, a racionalização, como mecanismo de defesa, tem a função de proteger psiquicamente, ainda que a cristalização em torno de uma ideia possa ser prejudicial (Campos, 2019Campos, R. C. (2019). O conceito de mecanismos de defesa e a sua avaliação: Alguns contributos. Revista Ibero Americana de Diagnóstico y Evaluación Psicológica, 1(50), 149-162. http://www.aidep.org/sites/default/files/2019-01/RIDEP50-Art12.pdf
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).

Eu pensava como se ele tivesse. Racionalizando assim bem, é como se fosse uma eutanásia. Não é. O que ele tinha era uma doença tratável, não era uma doença incurável. Mas foi isso tudo é muito difícil de enxergar e pensar assim e até chegar a uma visão racional dos fatos. Às vezes demora meses, anos, a gente podia achar que era uma coisa, a gente podia achar que era outra (P3).

Outra forma encontrada para enfrentar a dor do evento da morte por suicídio do jovem foi a dissociação entre os fatos e os sentimentos provocados por eles, conforme é apresentado no relato de P6, que, na tentativa de suportar a perda traumática da filha, passa a banalizar a morte.

Então, eu aprendi também a tratar a morte como você vai lá na farmácia e compra um remédio para sua dor de cabeça. Porque não tem nada pior que um ente seu morrer e você não ter dinheiro para comprar um caixão Para mim morte hoje em dia é um assunto como “ você vai tomar suco de qual sabor? Hoje nós vamos a qual praia? Hoje nós vamos ” não tem essa coisa, “fulano morreu, morreu” (P6).

Diante de tamanho sofrimento pela perda da filha, parece que P6 busca eliminar a dor recorrendo ao recurso descrito por Barus-Michel e Camps (2003Barus-Michel, J., & Camps, C. (2003). Sofrimento e perda de sentido: Considerações psicossociais e clínicas. Psic: Revista da Vetor Editora, 4(1), 54-71. https://abre.ai/gOi4
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), no qual o sujeito elimina a dor abafando de modo imediato, apagando o sinal, a representação aberrante daquilo que a causa. Nesse caso P6 parece dominar o sofrimento destituindo a morte de seu sentido para, assim, poder ter controle de seus sentimentos.

Descrição dos sentimentos

Neste subtema estão sistematizados os resultados sobre os sentimentos, descritos pelos sobreviventes, como o impacto da notícia e a culpa.

A maioria dos participantes foi avisada por outras pessoas. Os sobreviventes familiares, ou seja, a mãe, avó e o irmão (P6, P5 e P7), tiveram contato com a cena do suicídio, com o corpo do jovem falecido e com os órgãos acionados como a Polícia, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) e posteriormente com o Instituto Médico Legal (IML).

Dos entrevistados, apenas P5 suspeitava que “algo ruim” (sic) poderia acontecer no dia da morte, e P6 pensava na possibilidade de a filha cometer suicídio. Os entrevistados descrevem este momento como inesperado, o que provoca paralisação diante da notícia na maior parte deles, bem como dificuldade de assimilar a notícia e passá-la adiante. Segundo Rangel (2012Rangel, A. P. F. N. (2012). Dilemas éticos na morte dos filhos. O Mundo da Saúde, 36(1), 11-26. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/dilemas_eticos_morte_filhos.pdf
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), o sentimento de irrealidade e choque diante de uma morte violenta, repentina e, principalmente, decorrente da ação humana, como no caso do suicídio, faz com que comumente haja o atraso do luto, pela dificuldade de assimilação da informação da morte.

Os relatos de P1, P5 e P6 indicam uma identificação com os jovens vítimas de suicídio: “Ai, foi assim . . . na hora que aconteceu foi como se eu tivesse parado também. Aí meu mundo caiu, foi foda, caiu demais” (P1). “Mas quando me chamaram para reconhecer o corpo, ali eu vi que parte de mim tinha ido embora. Aí todo o meu mundo, todo o meu mundo foi assim, caindo bem lentamente, bem lentamente” (P6). “A nossa vida foi . . . transformou assim em nada, em nada mesmo. Não tinha mais alegria. A gente, eu, o que eu fiz, a minha vida, eu comecei a pensar em me suicidar, e eu me suicidar Não, eu, eu não, para mim eu não existia” (P5).

Essa identificação é comum na perda de alguém com quem se tinha um forte vínculo. Para Meireles (2016Meireles, I. O. (2016). O luto na fase adulta: Um estudo sobre a relação apego e perda na teoria de John Bowlby. Revista Ciências Humanas, 9(1), 92-105. https://www.rchunitau.com.br/index.php/rch/article/view/274/188
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), quando morre uma pessoa amada, para a outra pessoa, há uma morte, mesmo que simbólica, da representação do que era em relação à pessoa que morreu. Isto porque os amigos, familiares e cônjuges nos ajudam a dar coesão à noção de personalidade e na falta do objeto de apego pode haver uma desorganização psíquica do sobrevivente (Meireles, 2016Meireles, I. O. (2016). O luto na fase adulta: Um estudo sobre a relação apego e perda na teoria de John Bowlby. Revista Ciências Humanas, 9(1), 92-105. https://www.rchunitau.com.br/index.php/rch/article/view/274/188
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).

Além disso, existe o estigma que envolve o suicídio:

Fora que além da gente lidar com a própria tristeza de perder a pessoa, a gente ainda lida com a pressão social sabe? Ainda mais numa sociedade católica que o suicídio é visto com muito maus olhos para igreja né? Então acaba tendo uma pressão social muito forte também (P7).

Os familiares das pessoas que cometem suicídio podem ser julgados e ouvir que não foram capazes de perceber os sinais do suicídio de seu ente, ou que são julgados doentes ou loucos por causa do suicídio (Fukumitsu & Kóvacs, 2016Fukumitsu, K. O., & Kovács, M. J. (2016). Especificidades sobre processo de luto frente ao suicídio. Psico, 47(1), 03-12. https://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2016.1.19651
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). Santos, Campos e Tavares (2015Santos, S., Campos, R., & Tavares, S. (2015). O impacto do suicídio: Evidências atuais. Revista Evidências, 1, 16-23. https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/13930/1/rcaap1.PDF
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) apontam que o luto por suicídio tem características peculiares, uma vez que os sobreviventes estão mais propensos à estigmatização e à necessidade de omitir a causa da morte. Para Miranda (2014Miranda, T. G. D. (2014). Autópsia psicológica: Compreendendo casos de suicídio e o impacto da perda [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de Brasília.), o estigma e pacto de silêncio contribuem para o luto patológico, uma vez que os enlutados não recebem o conforto que gostariam e podem também não buscar ajuda em sua rede por temerem julgamentos, bem como por respeito ao morto, colocando o sobrevivente em um processo denominado de autoestigma.

Suporte e superação

Os enlutados deste estudo, quase que em totalidade, foram surpreendidos pelo suicídio do jovem de sua convivência. Considera-se também que a morte de uma pessoa jovem é considerada prematura e subverte uma suposta ordem natural. Para os sobreviventes, é necessário conseguir executar a tarefa psíquica de compreender “que a pessoa tirou a própria vida e, em decorrência, sentir-se submetido à necessidade de dar sentido a esse ato, de ter de justificar e sustentar o valor de nossas próprias vidas, especialmente, em momentos mais difíceis” (Tavares, 2013Tavares, M. (2013). Suicídio: O luto dos sobreviventes. In Conselho Federal de Psicologia (Org.), O suicídio e os desafios para a psicologia (pp. 43-76)., p. 48).

Foi realmente a gente vai escolhendo viver, tudo que a gente vai escolhendo viver na vida e uma coisa que eu coloquei na cabeça depois disso é que ele fez a escolha dele e todo mundo é livre, eu não sei o quanto ele sofria, o quanto, sabe? . . . o quanto ele podia escolher isso, escolher interromper a vida. Ah . . . mas eu sei que eu tentei respeitá-lo na decisão dele, eu tentei não encontrar respostas para todas as perguntas que começaram a me invadir e eu resolvi que a gente tem que usar a morte, usar o luto, usar esse processo muito dolorido, muito doloroso para nos potencializar (P7).

Diante desse quadro complexo do luto por suicídio de uma pessoa jovem, identificamos, entre os sobreviventes, quatro estratégias para buscar suporte e superação das dificuldades acarretadas pela perda por suicídio: isolar-se, buscar apoio entre amigos em comum com o suicida, buscar uma prática religiosa e trabalhar.

Os diferentes sentimentos manifestados pelos participantes diante do impacto da notícia vão ao encontro da afirmação de Câmara (2015Câmara, L. (2015). Um estudo metapsicológico sobre a inibição [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade Federal do Rio de Janeiro.), que traz que a elaboração do luto necessita de tempo e recolhimento. Estas medidas levam o sujeito a ter contato com sentimentos mais variados em relação ao ente perdido.

Tavares (2013Tavares, M. (2013). Suicídio: O luto dos sobreviventes. In Conselho Federal de Psicologia (Org.), O suicídio e os desafios para a psicologia (pp. 43-76).) aponta que é comum a dificuldade de estabelecer novas relações e a necessidade de isolar-se entre sobreviventes. Neste estudo, P1 e P6 decidiram isolar-se para se proteger. Além disso, acreditavam que as pessoas que não haviam vivenciado a perda de um jovem por suicídio não pudessem ajudá-las, como relata P1:

É um processo que é muito solitário, ainda que tenha pessoas que falem pode contar comigo, mas contar pra que? O que a gente sente, a gente sente . . . e ninguém pode fazer muita coisa a respeito não mas às vezes a gente precisa falar e eu acabei não falando (P1).

O isolamento, o retirar-se do contato com as pessoas, faz parte do processo de elaboração do luto e é necessário para que o enlutado se refaça e processe a perda (Moura, 2006Moura, C. M. D. (2006). Uma avaliação da vivência do luto conforme o modo de morte [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de Brasília.). “Aí eu fui mudando, eu tirei algumas, algumas não, muitas pessoas da minha vida”(P6).

P6 e P7 buscaram apoio junto àqueles que também perderam entes queridos por suicídio, o que muitas vezes permite que elaborem memórias e criem formas de enfrentamento a partir da vivência de outros (Moura, Almeida, Rodrigues, Nogueira, & Santos, 2011Moura, A. T. M. S. D., Almeida, E. C. D., Rodrigues, P. H. D. A., Nogueira, R. C., & Santos, T. E. (2011). Prevenção do suicídio no nível local: Orientações para a formação de redes municipais de prevenção e controle do suicídio e para os profissionais que a integram. Corag.).

Assim, P6 relata: “Tem um grupo que eu participo. Eu ligava todo dia para aquele número [do CVV], eu chorava, chorava, chorava, chorava, chorava não falava coisa com coisa” (P6). Neste sentido, P7 relata: “Acabei tendo acesso às pessoas que também tinham perdido entes queridos, que eu não sabia, por suicídio e essa rede também dá muito apoio, ela te traz muito apoio”(P7).

Alguns dos participantes apoiaram-se na rede social, constituída, às vezes, por amigos em comum com o jovem que se suicidou:

É Às vezes tem dias que a gente tá bem, tem dias que a gente se sente mal que, né, falar às vezes me dá [chora], faz mal, mas assim, com o tempo a dor foi indo foi passando e isso deixou o nosso grupo de amigos muito unido, a gente se manteve unido. Acho que teve muitos fatores que fez que o nosso grupo se mantivesse unido até hoje (P3).

P7 conta que esteve desde o início cercado de pessoas, pois os amigos fizeram turnos para pernoitar em sua casa onde aconteceu o suicídio de seu irmão. Dentre os entrevistados, foi o sobrevivente que mais recebeu apoio social e o único que recebeu auxílio psicológico: “Aí a gente teve tanto apoio dos amigos, tanto apoio dos amigos . . . [choro] que a gente foi vendo que a vida era possível, sabe?” (P7).

O apoio espiritual e/ou religioso é destacado por alguns dos participantes:

Aí eu conheci um terreiro e comecei a frequentar, de umbanda. Então as coisas começaram a ficar . . . como posso falar? Amenizando, passaram a ser amenizadas e começou a melhorar e as coisas foram andando devagar a partir disso (P1).

Quando eu estou triste, quando eu choro, é o Espírito Santo que me consola, ele que vem e arranca, de uma forma extraordinária, a minha ansiedade diminuiu, os meus ataques, muito (P6).

É importante notar que as referências à religiosidade e espiritualidade, aqui expressas por P1 e P6, não dizem respeito a qualquer comunidade religiosa, mas um apoio relatado como iniciação ou restauração de uma crença neste momento de elaboração da perda. Nunes et al., (2016Nunes, F. D. D., Pinto, J. A. F., Lopes, M., Enes, C. D. L., & Botti, N. C. L. (2016). O fenômeno do suicídio entre os familiares sobreviventes: Revisão integrativa. Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 15, 17-22. http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpesm/n15/n15a03.pdf
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), no entanto, ressaltam que a maioria das religiões condena o suicídio e isso pode se refletir na falta de acolhimento e amparo ao sobrevivente.

Outro suporte relatado pelos participantes foi o trabalho: “Então o trabalho foi me puxando de volta para minha potência laboral. Eu foquei no trabalho, foquei nos estudos e eu foquei em . . . e ai eu dei uma esfriada como . . . existencial, assim, sabe?” (P7).

O relato de P7 traz o trabalho como auxiliar no processo de elaboração da perda do irmão. O trabalho aparece como uma forma de retorno, reestruturação e continuidade ao cotidiano, à vida. Para Cândido (2011Cândido, A. M. (2011). O enlutamento por suicídio: Elementos de compreensão na clínica da perda [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade de Brasília.), “O luto é um processo geralmente longo e doloroso, que acaba por se resolver na medida em que o enlutado encontra objetos de substituição para o que foi perdido” (p. 21).

P1 acredita que não se supera por completo uma perda como essa, mas assim como P6 e P7, acredita que aos poucos se pode continuar mostrando que a elaboração desse tipo de luto é um processo contínuo, conforme os relatos a seguir:

Acho que superar a gente não supera. Mas hoje está tudo bem, dá pra seguir a vida. É claro que lembra, o amor continua o mesmo, eu sinto saudade, mas sem querer morrer. Dá pra continuar a viver e então tudo bem (P1).

Como eu disse também eu acredito que esse luto, ele não tem, ele não tem fim, é uma montanha russa, tem dia que eu estou aqui, tem dia eu tô aqui [gesticula com a mão no alto e depois no baixo]. Eu não vou ficar arrastando essa corrente, não vou, eu não quero, eu não quero. . . . A morte da J. me trouxe uma lição, todo dia eu aprendo alguma coisa, então eu escolho ser feliz. Eu escolho viver não tem como trazer ela de volta, mas eu tenho como dar continuidade à minha vida (P6).

Eu fui fazendo isso como um mantra, falando “use como potência, use como potência”, porque a vida dele já foi aqui na terra, não sei onde é que ele tá . . . não sei se ele tá . . . não sei enfim, mas a vida dele aqui na terra como matéria, como meu irmão foi! Mas a minha vida não foi, a minha vida tá aqui ainda (P7).

Os relatos acima expressam o processo de aceitação da morte e separação de suas vidas da morte do jovem amado, uma separação necessária para a continuidade de suas vidas. Para Tavares (2013Tavares, M. (2013). Suicídio: O luto dos sobreviventes. In Conselho Federal de Psicologia (Org.), O suicídio e os desafios para a psicologia (pp. 43-76).), a experiência de perder alguém por suicídio pode ser muito disruptiva, pois coloca para o sobreviventes a necessidade radical de pensar o sentido do porquê continuar a viver, o que sustenta sua própria vida.

Considerações finais

Esse trabalho buscou cumprir com a proposta de escutar as narrativas dos sobreviventes ao suicídio de jovens sobre a experiência da perda, partindo de uma pesquisa em perspectiva descritiva e exploratória que pudesse colaborar para o conhecimento deste tema. No entanto, tem-se a clareza que essa é uma forma de abordagem, dentre outras possíveis, e não foi a intenção o esgotar o assunto. Além disso, considera-se que, como toda produção de conhecimento científico, as conclusões aqui apresentadas são parciais e provisórias.

No que compete ao processo da pesquisa, têm que ser consideradas as muitas negativas de participação entre as pessoas inicialmente contatadas, o que se permite inferir que possivelmente as pessoas com lutos complicados possam estar entre aquelas que negaram a participação. Neste sentido, as consequências da perda de um jovem por suicídio podem contemplar questões além das tratadas aqui.

Identifica-se que a dificuldade em falar sobre suicídio permanece. Além da resistência dos participantes, identifica-se resistência dos próprios profissionais da área de saúde mental, que pouco colaboraram quando acessados dentro dos procedimentos metodológicos no processo da pesquisa. O pacto silencioso não evita a existência e continuidade do suicídio em nossa sociedade. Debater sobre o tema do suicídio é um imperativo para toda sociedade, pois a estratégia de afastamento e silenciamento tem impedido que esta questão seja enfrentada.

Este trabalho pretende contribuir para que os aspectos destacados pelos sobreviventes sejam visibilizados e considerados para pesquisa futuras. Os resultados levantam a hipótese de que os sobreviventes não conseguiram traduzir mudanças comportamentais observadas nos jovens como fatores de risco para suicídio. Como foi possível observar, a depressão na juventude pode se apresentar de forma diferente da forma apresentada em outros ciclos de vida. Disto decorre a importância da divulgação entre a população da informação sobre este e outros fatores de risco de suicídio de jovens, sendo esta medida de importância na prevenção ao suicídio nesta fase específica. No entanto, ressalta-se a importância de discutir a prevenção do suicídio.

A pesquisa sobre comportamento suicida como um todo no Brasil ainda é escassa e se faz necessário, diante do aumento dos casos, superar tabus e preconceitos em torno do tema, assim como garantir assistência psicológica à população no SUS. O suicídio não é um fenômeno novo e os estudos e debates em relação aos fatores de risco e proteção já estão bem delimitados, possibilitando que sejam objeto de políticas públicas.

Busca-se com este trabalho reafirmar a dimensão da dor das pessoas que passam pela perda de alguém por suicídio, além da importância da prevenção e da posvenção que precisam conquistar espaço nas políticas de atenção e cuidado aos jovens que apresentam fatores de risco associados ao suicídio, além dos sobreviventes à dor da perda desses jovens.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2021
  • Aceito
    01 Nov 2022
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