Acessibilidade / Reportar erro

EXPERIÊNCIA E NARRATIVA: INSPIRAÇÃO BENJAMINIANA PARA UMA CLÍNICA DO TRABALHO 1 1 Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

EXPERIENCIA Y NARRATIVA: INSPIRACIÓN BENJAMINIANA PARA UNA CLÍNICA DEL TRABAJO

RESUMO.

Este artigo trata de inflexões operadas por entre abordagens clínicas do trabalho que o tomam enquanto atividade, notadamente a ergologia (que tem como principal autor o francês Yves Schwartz) e a clínica da atividade (que tem como principal autor o francês Yves Clot), e o pensamento do filósofo alemão Walter Benjamin a respeito de experiência e narrativa. Primeiramente, estuda-se a maneira como o conceito de experiência apresenta-se nas abordagens clínicas do trabalho mencionadas. Voltamo-nos, então, à apreciação das formulações de Walter Benjamin a respeito do conceito de experiência e sua íntima relação com a narrativa. Busca-se, com este diálogo, estabelecer um caminho apontando para a produção de uma clínica da experiência do trabalho, que, no limiar com a atividade, se valha da narrativa enquanto dispositivo clínico. A produção narrativa no campo do trabalho, assim, apresenta-se como uma potente via para fazer frente a muitos desafios colocados no campo do trabalho contemporâneo.

Palavras-chave:
Trabalho; experiência; narrativa

RESUMEN

Este artículo trata de inflexiones operadas entre enfoques clínicos del trabajo que lo toman como actividad, especialmente la Ergología (que tiene como principal autor el francés Yves Schwartz) y la Clínica de la Actividad (que tiene como principal autor el francés Yves Clot), y el pensamiento del filósofo alemán Walter Benjamín acerca de la experiencia y la narrativa. Primero, se estudia la manera como el concepto de experiencia se presenta en los abordajes clínicos del trabajo mencionados. Volvemos entonces a la apreciación de las formulaciones de Walter Benjamín acerca del concepto de experiencia y su íntima relación con la narrativa. Se busca, con este diálogo, establecer un camino apuntando hacia la producción de una clínica de la experiencia del trabajo, que, en el umbral con la actividad, se valga de la narrativa como dispositivo clínico. La producción narrativa en el campo del trabajo, así, se presenta como una potente vía para hacer frente a muchos desafíos planteados en el campo del trabajo contemporáneo.

Palabras clave:
Trabajo; experiencia; narrativa

ABSTRACT

This article deals with inflections operated by clinical approaches to work that take it as an activity, notably the Ergology (whose main author is the Frenchman Yves Schwartz) and the Clinic of Activity (whose main author is the Frenchman Yves Clot), and the formulations of the German philosopher Walter Benjamin regarding experience and narrative. Firstly, the way in which the concept of experience is presented in the mentioned clinical approaches to work is studied. Then, we investigate Walter Benjamin’s formulation of the concept of experience and its intimate relationship with narrative. The aim of this dialogue is to establish a path pointing to the production of a clinic of the experience of work, which, at the threshold of activity, uses narrative as a clinical apparatus. The narrative production in the field of work thus presents itself as a powerful way to face many challenges posed in the field of contemporary work.

Keywords:
Work; experience; narrative

Introdução

Este artigo inscreve-se em uma de nossas vertentes de interesse de pesquisa4 4 Este artigo foi produzido como parte dos estudos e pesquisas desenvolvidos pelo n-pista(s) — Núcleo de Pesquisas Instituições, Subjetivação e Trabalho em Análise(s), no escopo do projeto de pesquisa intitulado Trabalho, subjetivação e clínica: análises nos setores da Assistência Social, Justiça e Comunicações (Amador, 2014) (o qual conta com financiamento do CNPq). Suas formulações referem-se, ainda, à dissertação de mestrado de uma das autoras, cujo título é Atividade, experiência e narrativa: produzindo dispositivos crítico-clínicos do trabalho (Rocha, 2015). , a saber: a da produção de modulações conceituais e metodológicas no campo das clínicas do trabalho que se ocupam das conexões trabalho, subjetividade e saúde, especialmente no que tange ao modo de posicionar o problema clínico e suas estratégias. Interessa-nos apostar em clínicas do trabalho que afirmem a criação de modos de existir e de trabalhar como resistência, enquanto ato de criação que se faz como possibilidade de expansão do poder de agir frente aos constrangimentos presentes nas situações de trabalho.

Nesta direção, operamos por entre abordagens clínicas que se ocupam de tomar o trabalho enquanto atividade, notadamente a ergologia e a clínica da atividade, 5 5 Situamos tanto a ergologia quanto a clínica da atividade no escopo das clínicas do trabalho. Contudo, reconhecemos que a ergologia não tem a pretensão de se constituir enquanto ‘clínica’, nem tampouco Yves Schwartz, nome de referência em ergologia, opera com o conceito de subjetividade, preferindo a este o conceito de corpo-si, conforme veremos ao longo deste texto. Suas preocupações voltam-se, sobretudo, para a dimensão da formação pelo trabalho enquanto atividade. com o objetivo de produzir uma clínica do trabalho fecundada quando do encontro com as formulações de Walter Benjamin a respeito de experiência e narrativa.

As formulações do autor alemão nos inspiram a tecer diálogos que nos parecem potentes, porém, ainda pouco explorados, com as propostas das clínicas que tomam o trabalho enquanto atividade. Suas contribuições nos fazem, ainda, reconhecer a produção de narrativas como um meio privilegiado para a produção e transmissão da experiência do trabalho, aspecto esse presente nas discussões da ergologia e da clínica da atividade, sobretudo, no que tange às considerações relativas à história do ofício e seu lugar na dinâmica do desenvolvimento da atividade (Clot, 2010Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte, MG: Fabrefactum.), bem como do processo renormativo que caracteriza o trabalho como atividade, segundo Schwartz e Durrive (2007Schwartz, Y.,& Durrive, L. (2007). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, RJ: EdUFF. ).

Em meio à investigação a respeito do conceito de experiência nas abordagens clínicas do trabalho mencionadas, voltamo-nos à apreciação das formulações de Walter Benjamin buscando estabelecer, nesse diálogo, um caminho que aponta para a produção de uma clínica da experiência do trabalho, que, no limiar com a atividade, se valha da narrativa enquanto dispositivo clínico.

Clínica da atividade: a respeito de atividade e de experiência

Vinculada aos trabalhos de Yves Clot (2010Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte, MG: Fabrefactum.) e demais pesquisadores na área, a clínica da atividade tem como mote a abordagem do trabalho como atividade. Tal conceito parte da distinção entre trabalho prescrito e trabalho real proposta pelos ergonomistas, já que o trabalho realizado jamais corresponde exatamente ao que é previsto. Dessa forma, o trabalho prescrito diz respeito às pré-determinações do trabalho, à forma pré-fixada com que o trabalho deve ser realizado, incluindo todas as prescrições, normas e resultados esperados. Já o trabalho real refere-se ao trabalho que é, de fato, concretizado: a maneira como, na prática, se dá a realização do trabalho.

Yves Clot (2006Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes.) refere, ainda, uma terceira dimensão denominada de ‘real do trabalho’ ou, mais precisamente,‘real da atividade’, dimensão essa que se refere a algo que vai muito além do processamento e execução de tarefas, “[...] considerando que a atividade real é sempre maior que a realizada” (Silva, Barros & Louzada, 2011Silva, C. O., Barros, M. E. B., & Louzada, A. P. F. (2011). Clínica da atividade: dos conceitos às apropriações no Brasil. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 188-207). São Paulo, SP: Atlas .).

Tal dimensão refere-se a um plano de indeterminação prévia, uma resposta singular que os trabalhadores criam em ato de maneira a dar conta das infinitas variabilidades do meio, o qual é sempre infiel, já a variabilidade um princípio insuperável da vida, conforme adverte Canguilhem (2002Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológico. Rio de Janeiro RJ: Forense Universitária. ). Diz Clot (2006Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes., p. 116),

[...] o real da atividade é também tudo o que não se faz, aquilo que não se pode fazer, aquilo que se busca fazer sem conseguir - os fracassos -, aquilo que se teria querido ou podido fazer, aquilo que se pensa ou que se sonha poder fazer alhures. É preciso acrescentar a isso - o que é um paradoxo frequente - aquilo que se faz para não fazer aquilo que se tem que fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer. Sem contar aquilo que se tem de refazer.

Tomar o trabalho como atividade posiciona a questão clínica do trabalho enquanto operação por uma dimensão de transformação do trabalhador e seu meio, transformação essa que é analisada desde a perspectiva das convocações diárias para gerir a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real, pela ação, portanto. Assim, identificamos uma operação da experiência cuja especificidade refere-se a arranjos que envolvem aderência a esferas normativas para trabalhar, bem como criação em relação a elas.

Do ponto de vista da presença do conceito de experiência na clínica da atividade, destaca-se que as leituras de Vigotski foram de grande inspiração para o desenvolvimento da abordagem de Yves Clot, o qual, em texto denominado ‘Clínica do trabalho e clínica da atividade’, se propõe a apresentar um resumo das principais formulações que lhe servem de referência. Nesse escrito, o autor defende que as mesmas características referentes à ‘experiência artística’, conforme formulada por Vigotski (1999)Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes. , podem ser encontradas no trabalho, do ponto de vista da atividade.

Para Clot (2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas.), o trabalho, tal como a arte, carrega em si a potência de ser uma fonte de alteridade, um centro de iniciativa e criatividade para os sujeitos. Ao experienciar ambos - tanto a arte quanto o trabalho -, no entendimento de Clot, temos a possibilidade de acessar planos de forças circulantes, as quais o autor remete ao que Vigotski refere como sendo “[...] o social estando em nós” (Clot, 2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas., p. 77). Tais forças são consideradas fonte de energia vital, uma vez que se entende que esse social que está em nós é, antes de tudo, um conflito. Nesse sentido, o que se produz nesse tipo de experiência diz respeito aos conflitos de forças de um social, o qual se acessa na experiência. O autor explica, ainda, que é nesse encontro de devires que a criação do novo em nós pode ocorrer, escapando das repetições de um inconsciente ancorado no passado. É importante destacar aqui que, no texto ao qual estamos nos referindo, Clot (2011)Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas. faz questão de diferenciar o tipo de produção psíquica que reconhece se dar por meio do trabalho como atividade - como criação de novas possibilidades, portanto -, um inconsciente diferente daquele das produções de um inconsciente como concebido pela psicanálise, o qual se assentaria na reprodução de conflitos infantis. Esse aspecto nos parece crucial para compreendermos a noção de experiência tomada na clínica da atividade, a partir das concepções de Vigotski. Trata-se de uma possibilidade de produção ‘transformante’ de si mesmo a partir do encontro com um social que nos atravessa.

É na obra de Vigotski (1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes. ), então, que Clot encontra subsídios para apontar as condições sob as quais esse novo pode se produzir no trabalho. Primeiramente, é preciso situar o termo utilizado pelo russo ao se referir à experiência a qual nos interessa. Perejivânie é uma palavra de uso comum no Russo, porém, sem tradução exata para a língua portuguesa. Sendo assim, pode-se encontrá-la traduzida como ‘experiência’, ‘vivência’, ‘emoção’ e ‘sentimento’ (Prestes, 2010Prestes, Z. R. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil (Tese de Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, DF. ). Atuais estudiosos brasileiros da obra do autor apontam, contudo, a tradução ‘vivência’ como sendo o termo que manteria maior fidelidade à ideia pretendida por Vigotski (Prestes, 2010Prestes, Z. R. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil (Tese de Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, DF. ; Toassa, 2009Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo.). Conforme apresentado por Toassa (2009)Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo., a utilização do termo pelo autor relaciona-se com o sentido que indica o dicionário russo: Perejivânie - substantivo de gênero neutro. Estado de espírito (alma), expressão da existência de um(a) forte (poderosa) sentimento (impressão); impressão experimentada (Toassa, 2009Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo.).

Tal termo serviria para expressar a ideia de que uma situação objetiva pode ser interpretada, percebida, experimentada ou vivida diferentemente por diversos sujeitos. A perejivânie, como utilizada pelo autor russo, refere-se a um tipo de evento que tem uma característica de transformação, de marcar uma diferença nos sujeitos nos quais ela se dá. A tradução que se tem feito para o termo vivência é apontada como a mais precisa, inclusive, pela associação à ideia de vida, de vivacidade, de movimento vital transformador.

Considerando que, no entendimento de Yves Clot (2006Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho. Petrópolis, RJ: Vozes.), o trabalho realizado (trabalho real) e a atividade que se desenvolveu para alcançá-lo (real da atividade) não são correspondentes, a abordagem da clínica da atividade busca, então, instrumentos para compreender a situação de trabalho real, valendo-se, para isso, de pensar a articulação entre atividade e subjetividade. Esse parece ser um ponto em que as contribuições de Vigotski, mais uma vez, se fazem valer de modo especial, pois, como seguiremos vendo, a própria noção de perejivânie aponta para uma conexão entre desenvolvimento humano e subjetividade. Além disso, é apoiando-se no autor russo que Clot (2006)Schwartz, Y.,& Durrive, L. (2007). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, RJ: EdUFF. afirma ser o real da atividade, sempre, maior do que a atividade realizada. A articulação entre real da atividade, experiência e criação do novo é referida diretamente pelo autor ao reconhecer que é na possibilidade de abertura a viver novas experiências que o trabalho permite a descoberta de novas possibilidades que se afirmam como atos criadores no trabalho.

Ainda em relação à natureza inacabada da perejivânie, Toassa (2009Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo.) refere uma característica peculiar reconhecida na vivência como concebida por Vigotski: ela diz respeito a uma dimensão que pode estender-se ao passado e ao futuro da existência humana, presentificando elementos importantes na orientação das ações humanas. Trata-se de uma experiência que não se encerra no espaço, mas no tempo, no qual passado, presente e futuro encontram-se para seguirem se produzindo mutuamente. Nesse sentido, a consideração de Clot (2001Clot, Y. (2001). Éditorial.Éducation permanente: clinique de l'activité et pouvoir d'agir, 146, 7-16.) a respeito da potência de uma experiência de trabalho que sirva de abertura para se fazer novas experiências encontra suporte no conceito descrito pelo autor russo. A vivência da qual nos fala Vigotski é algo que não se encerra nela mesma, sendo potente à realização de conexões espaciais e temporais, valendo-se das construções passadas para, a partir do presente, construir um futuro (Vigotsky, 1999).

Clot (2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas.) reconhece, nesse processo, algo que se aproxima do funcionamento do inconsciente como pensado por Deleuze, um inconsciente que é lugar de produção ao invés de apenas reprodução de marcas antigas (Clot, 2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas.). Ao se referir à concepção de Vigotski (1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes. ), Clot (2011)Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas. afirma que a experiência artística, ao produzir o conflito de sentimentos - tornando presente para o sujeito o plano de forças coletivas em contato com sua singularidade - permite imaginar novos destinos para os nossos afetos e paixões. A arte seria, então, um meio pelo qual os afetos podem ser transformados, uma “[...] via para viver novos afetos e dar forma ao inacabado” (Clot, 2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas., p. 78), assim como é o trabalho para Clot. Segundo o russo (Vigotski, 1999Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes. ), as obras de arte teriam uma potência de operarem procedimentos próprios do inconsciente, porém, de natureza social, sendo capazes de despertar conflitos que ultrapassem a história pessoal de cada um. A arte é tomada, assim, como um devir social do inconsciente, não derivando de um inconsciente já produzido, mas recriando o próprio inconsciente em novas produções, no encontro do coletivo com o singular. E é exatamente nesse aspecto que Clot (2011)Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas. afirma existir a mesma potência no trabalho. Parafraseando Deleuze, Clot alega que o trabalho, assim como a arte, é um meio privilegiado de “[...] fazer diferença” (Clot, 2011Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas., p. 79) na história subjetiva. Por meio dele - sendo visto da mesma perspectiva da experiência artística de Vigotski -, é possível a produção de um “[...] objeto transpessoal inacabado [...]”, sendo a esse objeto que se atrela uma clínica da atividade (Clot, 2011Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte, MG: Fabrefactum., p. 80). Esse aspecto do trabalho como experiência transpessoal criadora, como processo que trata da produção de problemas comuns a partir dos quais se modificam os sujeitos e o mundo, nos é muito cara para pensarmos em uma clínica do trabalho composta pelos conceitos de atividade e experiência.

A partir de tais concepções, podemos perceber como a ideia de experiência encontra-se intimamente ligada à dimensão coletiva, tanto em Vigotski quanto em Clot, como uma zona não personalizada de forças por onde ganham passagem o trabalhador e seu trabalho. Ao tratar dessa dimensão, Vigotski (1999)Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte. São Paulo, SP: Martins Fontes. fala de algo que não é próprio de um ator a ser, então, repassado a outro. A transmissão concernente à experiência artística diz respeito a algo que só é transmissível por já habitar algum tipo de plano comum. Dessa forma, na sensibilização por meio da arte, abre-se ao sujeito a possibilidade de acessar matérias que não dizem mais respeito ao indivíduo isolado (no sentido de serem próprias de uma individualidade), mas que se arranjam com as singularidades, efetuando novas composições coletivas.

Ergologia: a respeito de atividade e de experiência

A ergologia tem suas origens na França no final dos anos 70, no debate entre diferentes estudiosos e protagonistas de atividades de trabalho, sob a denominação de ‘análise pluridisciplinar das situações de trabalho’ (APST). Foi no início dos anos 90 que essa corrente começou a se apresentar, efetivamente, como ergologia, a partir dos estudos de Yves Schwartz (Athayde & Brito, 2011Athayde, M., & Brito, J. (2011). Ergologia e clínica do trabalho. In P. Bendassolli& L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 258-281). São Paulo, SP Atlas.). Tal abordagem se apresenta como um “[...] projeto de melhor conhecer e, sobretudo, de melhor intervir sobre as situações de trabalho para transformá-las” (Schwartz & Durrive, 2007Schwartz, Y.,& Durrive, L. (2007). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, RJ: EdUFF. , p. 37), tendo como operador-chave o conceito de atividade, isto é, como matriz da história humana, como movimento incessante de renormatização dos meios de vida no trabalho, uma vez que entre o trabalho prescrito e o trabalho real, conforme preconizaram os ergonomistas, há sempre uma distância a ser gerida pelos trabalhadores quando em situação de trabalho. Desde este ponto de vista, trabalhar é gerir entendendo que a gestão consiste em um problema humano que advém por toda parte onde há variabilidade e história, e no qual “[...] é necessário dar conta de algo sem poder recorrer a procedimentos estereotipados”, diz Schwartz (2004Schwartz, Y. (2004). Trabalho e gestão: níveis, critérios, instâncias. In M. Figueiredo, M. Athayde, J. Brito & D. Alvarez (Orgs.), Labirintos do trabalho: interrogações e olhares sobre o tabalho vivo (p. 23-36). Rio de Janeiro, RJ: DP & A., p. 23). Destaca-se que as preocupações de Schwartz se referem, especialmente, aos temas do trabalho e da formação.

Em um primeiro momento de seus estudos, quando produziu sua tese de doutorado, finalizada no ano de 1986, Schwartz (2011Schwartz, Y. (2011). Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempos - Actas de Saúde Coletiva, 5(1), 55-67. ) partiu do conceito de experiência para desenvolver uma concepção do trabalho posicionada na esfera da atividade humana de renormalização 6 6 Em seus textos, Schwartz emprega o termo renormalização para se referir ao processo incessante de recriação de normas pelos trabalhadores e trabalhadoras quando da gestão da distância entre trabalho prescrito e trabalho real. Optamos por empregar o termo renormatização para distingui-lo do processo de normalização relacionado às regulações sociais. Trata-se aqui de uma fronteira tênue entre o que seriam as normas vitais para Canguilhem (2001) e as normas sociais para Foucault (2002), as quais se imbricam em processos complexos. parcial dos meios de vida, seguindo, assim, o rastro do pensamento de Canguilhem (2001Canguilhem, G. (2001). Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições, 12(2-3), 35-36.). Tal renormalização gera um movimento permanente no âmbito dos saberes produzidos no trabalho, produzindo normas antecedentes que são sempre renormalizadas no recomeço indefinido das atividades (Schwartz & Durrive, 2007Schwartz, Y.,& Durrive, L. (2007). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói, RJ: EdUFF. ) e no lastro de um debate de valores.

O autor dedica-se a pensar sobre características da experiência retomando o tema, explicitamente, em um escrito de 2010 intitulado Quel sujet pour quelle expérience?, que veio a ser publicado em português no ano de 2011, sob o nome ‘Qual sujeito para qual experiência?’ - Schwartz (2011Schwartz, Y. (2011). Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempos - Actas de Saúde Coletiva, 5(1), 55-67. ). Percorrendo a bibliografia de Yves Schwartz, percebemos que uma importante influência, que terminou por convergir na ergologia, foram os trabalhos do médico italiano Ivar Oddone, o qual é apontado como responsável por trazer à tona a redescoberta do papel da experiência nas investigações da psicologia do trabalho (Vasconcelos & Lacomblez, 2005Vasconcelos, R., & Lacomblez, M. (2005). Redescubramo-nos na sua experiência: o desafio que nos lança Ivar Oddone. Laboreal, 1(1), 38-51.).

Por meio da leitura de tais textos, é possível constatar que o tema da experiência na ergologia tem aparecido comumente relacionado à discussão de como se aprende em situação de trabalho, como se formam trabalhadores, como se adquirem saberes relativos ao trabalho tomado na perspectiva da atividade. Assim, o questionamento a respeito do estatuto da experiência no âmbito ergológico se faz pela discussão a respeito da relação entre saberes formais e saberes que seriam provenientes dessa experiência.

Para Schwartz (2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.), são inadmissíveis quaisquer visões de experiência que não considerem o aspecto único do que seria a experiência para cada sujeito. E esse aspecto singular da experiência não diz respeito apenas ao aqui e agora de como se vivencia um acontecimento, mas implica o modo como se vivencia a experiência do momento atravessado pela história, também singular, de todas as experiências que já se viveu.

A segunda ‘visão ergológica’ sobre a experiência diz respeito à existência de uma dimensão dessa experiência que se encontra, de alguma forma, ‘escondida no corpo’ (Schwartz, 2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.). Isso quer dizer que a experiência não se limita ao que seria próprio da alma (os sentimentos, os pensamentos, sensações subjetivas), nem ao estrito intelecto, no que se refere a conceitos formulados conscientemente e expressáveis em palavras, e, ainda, tampouco, a competências que se expressam unicamente em uma materialidade produtiva. Tudo isso parece compor a experiência da maneira como Schwartz (2010)Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48. a interroga, porém, como destacado pelo autor, ela integra também - nas competências que lhe são próprias - sempre algo que é mais ou menos inconsciente e não diretamente verbalizável. Nesse particular aspecto, o conceito de corpo-si torna-se fundamental, como teremos oportunidade de desenvolver com maior detalhamento mais adiante.

Uma ‘terceira visão’ a respeito do conceito de experiência é que ela só pode fazer sua história singular para o sujeito se tornar efetiva, ou, nas palavras de Schwartz (2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48., p. 41), “[...] ser capitalizada em elementos originais de saberes [...]”, caso seja ‘processada’ em um debate de valores desse sujeito. Com essa afirmação, demonstra-se a íntima relação entre atividade e experiência, uma vez que é pela atividade do sujeito, a qual tem como característica o debate de normas e valores, que a experiência pode se ‘realizar’ de forma singular, histórica e ‘corporizada’.

Sendo assim, podemos pensar que para a ergologia não há experiência sem atividade. Por outro lado, a experiência retorna à atividade na medida em que passa a fazer parte, de alguma maneira, das normas antecedentes do trabalho. O que ‘fica’ para o sujeito como sua experiência singular vai compor o conjunto de heterogeneidades que vão se combinar no encontro que a atividade convoca: o denominado encontro de encontros (Schwartz, 2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.). Essa dimensão do encontro de encontros presente em qualquer situação de trabalho é identificada como a parte experiencial da atividade (Schwartz, 2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.). Trabalhar-experenciar implica uma transformação de si.

Chegamos ao conceito de corpo-si, conceito esse de capital importância para pensarmos a respeito de experiência, atividade e trabalho. Schwartz (2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.), ao se referir à característica da experiência como algo da ordem da indefinição, sobre a qual não é possível conhecer seus limites, afirma que a entidade que faz ou vive a experiência é, também, de difícil definição. Segundo o autor, não é possível precisar em quem se dá a experiência. Para ele, o sujeito da experiência é um ser enigmático, cujos limites são tênues. Esse sujeito da experiência usa de seu patrimônio histórico para fazer, de um acontecimento particular, essa experiência. Para isso, utiliza-se de saberes os quais não são totalmente claros, nem verbalizáveis para si mesmo, uma espécie de memória da experiência. Schwartz (2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48., p. 43) refere que tal sujeito remete a um “[...] enigma do corpo”.

A noção de corpo-si é empregada para se referir, então, a essa entidade na qual se conjugam dimensões paradoxais. Ela representa um corpo vivo que é, ao mesmo tempo, o corpo de um ser psíquico e histórico (Schwartz, 2014Schwartz, Y. (2014). Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, 49(3), 259-274. ), um corpo cujos limites são difíceis de discernir.

Narrativa e experiência em Benjamin: algumas inflexões com as clínicas do trabalho

Benjamin, ao tratar do tema da experiência e da transmissão da experiência, o faz na perspectiva de sua íntima relação com o conceito de narrativa, aspecto esse que nos pareceu instigante no que tange a pensar a experiência do trabalho tomado enquanto atividade. No texto ‘O narrador - considerações sobre a obra de Nikolai Leskov’, Benjamin inicia com a intrigante afirmação de que a figura do narrador, por mais familiar que nos seja, não estaria mais presente entre nós em sua atualidade viva (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.). Segundo o autor, é como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências.

A perspectiva da baixa da experiência já vinha sendo construída pelo autor desde seu texto ‘Experiência e pobreza’ (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.), de 1933, no qual se debruça sobre a análise da mudança qualitativa ocorrida na dimensão da experiência na modernidade. Nesse escrito, o conceito de experiência é apresentado como conhecimento transmitido entre gerações (Lima & Baptista, 2013Lima, J. G., & Baptista, L. A. (2013). Itinerário do conceito de experiência na obra de Walter Benjamin. Revista Princípios, 20(33), 449-484.), estando ela ligada aos saberes acumulados que iam sendo transmitidos pelas fábulas, histórias, parábolas ou provérbios.

Benjamin afirma que o saber que antes era naturalmente transmitido entre os homens de diferentes gerações, os constituindo como parte de sua história, perdeu a aceitação na modernidade. Na modernidade, o homem sofre para reconhecer esse saber antes tão naturalmente transmitido entre as gerações, não estando mais apto a dar continuidade a essa experiência, não podendo mais comunicá-la, nem reconhecer o peso contido no saber da tradição (Lima & Baptista, 2013Lima, J. G., & Baptista, L. A. (2013). Itinerário do conceito de experiência na obra de Walter Benjamin. Revista Princípios, 20(33), 449-484.).

As razões apontadas para essa transformação na relação com a experiência teriam a ver com o enorme avanço da capacidade técnica, na modificação dos sistemas produtivos, acrescido à pobre realidade fabril capitalista. O maior evento, porém, apontado como transformador da qualidade da experiência foi a 1ª Guerra Mundial: ao invés de produzir histórias e conhecimentos a serem transmitidos por quem passou por ela, produziu homens emudecidos pelo trauma. Assim, observou-se o declínio, vertiginoso, desse tipo de transmissão da experiência.

Benjamin no texto sobre o escritor russo Nikolai Leskov não apenas explora o conceito de experiência, mas, também, desenvolve proposições sobre a narrativa e a figura do narrador. Diferentemente do que se pode imaginar com o título do texto, a figura do narrador é ressaltada não como uma posição identitária a respeito de uma tarefa específica, mas como uma habilidade ou uma disposição, um modo de ser ligado a um estilo de transmissão da experiência.

Pela descrição de características presentes nos narradores ao longo da história da humanidade, Benjamin trata de uma forma de construção de narrativas que tem como espécie de vetor de transmissão a figura do narrador. O narrador, muitas vezes, não é quem vivenciou o conto que transmite; nem quem o criou. Na maioria das vezes,o narrador narra o que antes lhe foi transmitido por outro narrador, que, por sua vez, ouviu de outro narrador, e assim por diante. São apontadas como as melhores narrativas registradas as que passaram por inúmeros narradores anônimos. O narrador, assim, basicamente, é quem conta, e sua tarefa aproxima-se da existência da narrativa.

O narrador transmite uma história sem se colocar no ponto de vista de uma autoridade sobre o assunto, sobre o qual tudo lhe é natural e explicado. Da mesma maneira, a narrativa é construída por uma multiplicidade de olhares, em que cada narrador que a transmite acrescenta ao narrado o seu olhar outro. O narrador relaciona-se com a narrativa sem tomá-la nem como apenas sua, nem como não lhe dizendo nenhum respeito, pois pelo movimento da transmissão apropria-se, também, dos saberes os quais lhe alcançaram no contato com ela.

Benjamin afirma que a figura do narrador só fica clara quando se reconhecem os dois grupos mais comuns de narradores e seus múltiplos entrecruzamentos. O primeiro deles diz respeito ao viajante ou estrangeiro, o narrador que vem de longe e traz histórias de lugares distantes. O outro grupo é aquele das narrativas do homem que passou a vida inteira em sua terra e conhece todas as tradições e histórias desse lugar: trata-se dos narradores identificados pela figura do camponês sedentário.

Porém, destaca que a melhor compressão a respeito da tradição narrativa só pode ser obtida na interpenetração entre esses dois tipos básicos, dando-se, principalmente, em função do sistema de produção da corporação medieval. Nesse modelo produtivo, o saber era transmitido dos mestres sedentários aos aprendizes migrantes, que atuavam juntos nas oficinas de trabalho. Destaca-se aqui a importância fundamental que o trabalho dos artífices das corporações medievais teve na construção da tradição narrativa, elemento esse crucial para nossas análises a respeito do trabalho como experiência. Foi na relação de diálogo e transmissão de experiência que os trabalhadores das corporações - mestres e aprendizes - estabeleciam entre si que a arte narrativa, tal como caracterizada por Benjamin, se desenvolveu. A experiência compartilhada entre os trabalhadores foi o campo fértil para o desenvolvimento dessa arte que, segundo Benjamin (1987)Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense., encontra-se em extinção. Vê-se, a partir disso, a aproximação entre campo do trabalho e a produção de narrativas como uma relação frutífera, na qual o investimento poderia abrir possibilidades para ativar a dimensão do trabalho enquanto experiência coletiva.

Outra interessante característica dos narradores é o senso prático que o autor afirma encontrar em muitos deles. Trata-se do conselho no seio da narrativa que nos remete a uma importante dimensão a ser pensada nas clínicas do trabalho, referente à transmissão de saberes derivados da experiência. Nessa direção, destacamos, sobretudo, os questionamentos de Yves Schwartz a respeito dos saberes da experiência (Schwartz, 2010Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.), os quais nos levam a pensar que o que se transmite pela experiência diz respeito à produção de problemas comuns (no sentido de se referir ao coletivo). Essa seria uma das características da narrativa e da dimensão da experiência valorizada por Benjamin: ter uma dimensão utilitária compartilhada. O narrador, assim, é apontado como aquele que sabe dar conselhos, sejam eles de ordem moral ou prática.

Benjamin entende que, no período em que escreveu sobre esse tema (ano de 1936), o ato de dar e receber conselhos não é mais algo bem-visto, sendo considerado, até mesmo, antiquado, consideração essa que podemos identificar como algo que segue pertinente quando colocamos em questão o trabalho contemporâneo. Para o autor, a razão de ser dessa desvalorização do conselho está ligada à crescente impossibilidade da comunicação da experiência.

Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para obter essa sugestão, é necessário primeiro saber narrar a história já que só se é receptivo a um conselho na medida em que se verbaliza a sua situação. O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria - o lado épico da verdade - está em extinção (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.).

O primeiro indício do processo que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa o romance da narrativa da epopeia no sentido estrito é que ele está essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa - contos de fada, lendas e mesmo novelas - é que ele nem procede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista segrega-se (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.).

Diferenciando-se do romancista, que se trata de um sujeito segregado, o qual tem apenas suas vivências individualistas como fonte do que conta, o narrador tem como fonte do que narra a experiência, não fazendo diferença tratar-se de sua própria experiência vivida ou da experiência que o alcançou sendo relatada por outros, situando-se, em sua produção, sempre no plano da experiência coletiva. No campo do trabalho, pelo compartilhamento entre colegas - na efetiva formação do coletivo de trabalho -, o trabalhador tem a possibilidade de vivenciar as experiências não como sendo apenas suas. As experiências pelas quais seus colegas passam, ao serem compartilhadas, tornam-se ‘repertório’ para todo o coletivo, incorporando-se à narrativa maior sobre aquele trabalho, e provendo a possibilidade de seguirem sendo transmitidas, mesmo por quem não chegou a vivenciar diretamente determinada situação específica.

Traçando um diálogo com Benjamin, a narrativa dos trabalhadores e trabalhadoras, conforme descrita pelo autor alemão, funciona como se os narradores continuassem se produzindo pela própria existência das narrativas que os seguiam alcançando. As experiências narradas por alguém eram incorporadas pelos seus ouvintes, os quais se tornariam, em seguida, também narradores. Dessa maneira, a narrativa seguia seu rumo interminável e continuamente coletivo, sempre sendo recontada, agregando o inesgotável incremento de cada um de seus múltiplos narradores.

Insistimos aqui em apresentar considerações a respeito das diferenças entre a narrativa e o romance, pois a partir desse argumento de Benjamin, reforçado, como veremos, por Blanchot (2010Blanchot, M. (2010). A voz narrativa. In M. Blanchot. A conversa infinita: a ausência do livro (p. 141-152). São Paulo, SP: Escuta. ), compreende-se a individualização da produção narrativa como marca da transformação da experiência. A passagem da predominância da produção de romances em lugar de narrativas na história humana corresponde ao surgimento da própria produção de indivíduos, modificando, assim, a qualidade da experiência que se produz - de uma experiência coletiva a uma vivência individualizada.

Para nos ajudar a compreender a importância da diferenciação entre narrativa e romance, na direção de afirmarmos uma clínica do trabalho interessada na dimensão coletiva da experiência do trabalho, nos valemos da contribuição de Maurice Blanchot (2010Blanchot, M. (2010). A voz narrativa. In M. Blanchot. A conversa infinita: a ausência do livro (p. 141-152). São Paulo, SP: Escuta. ), que também se debruçou sobre a questão da narrativa. Em seu escrito ‘A voz narrativa’, o autor tece considerações sobre o lugar da voz que narra, sendo este identificado como ‘neutro’. De início, essa identificação pode parecer bastante estranha e até contrária às construções a respeito da figura do narrador traçadas por Benjamin. Porém, Blanchot, ao pensar o narrador não como uma posição identitária, ou uma personalidade com características especiais ‘dona’ da narrativa, mas como um vetor múltiplo de construção do narrado, tal como pensado por Benjamin, nos auxilia a reforçar essa perspectiva. Assim como Benjamin, Blanchot refere que o narrador épico reproduz feitos em suas narrativas mesmo sem que os tenha presenciado diretamente. Essa posição é identificada como sempre exterior à narrativa, exterioridade que não significa, ao avesso do que possa parecer, falta de implicação com o que se narra. Pelo contrário, a implicação é intensa, porém não dada na ordem da consciência objetiva. É como se a própria narração se utilizasse do narrador como meio. Porém, essa relação não é de passividade, como a utilização da expressão ‘neutro’ pode sugerir. Ao ocorrer essa ‘passagem’ da narrativa pelo narrador, algo também ‘acontece’ a ele. A especificidade desse acontecer fica mais clara valendo-se da sintetização surpreendentemente simples e clara sobre o conceito de experiência à luz das concepções benjaminianas realizada por Jorge Larrosa Bondía (2002Bondía, J. L . (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, 19, 20-28.).

Experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça[...]. Nunca se passaram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. (Bondía, 2002Bondía, J. L . (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, 19, 20-28., p. 21)

Blanchot, assim como Benjamin, tratam de uma necessidade da distração no encontro com a narrativa. Distração essa que permitiria uma apreensão do que não remete ao mesmo identitário, ao contrário, ao estar sem o foco concentrado na procura pelos mesmos aspectos já dados de antemão, é possibilitada a transmissão do que não é particularizado, da dimensão coletivizante que faz as narrativas seguirem sendo contadas em sua potência criadora. Mais uma vez aqui, remetemos essa diferenciação ao tipo de produção de experiência que pode se dar pelo trabalho: podendo esta ser tanto uma abertura à potência de habitação e criação de sentidos coletivos quanto uma experiência de individualização; essa segunda, conforme já discutimos, tão presente no contexto do trabalho contemporâneo.

Retornando à concepção do neutro de Blanchot (2010Blanchot, M. (2010). A voz narrativa. In M. Blanchot. A conversa infinita: a ausência do livro (p. 141-152). São Paulo, SP: Escuta. ), sua potência estaria exatamente no reconhecimento dessa narração que parte de um lugar não particular, mas que abrange um comum. Essa voz narrativa tem também como característica ser sempre diferente daquele que a profere, não sendo possível situá-la em nenhum lugar dentro da narrativa. Nessa perspectiva de obrigatória distância narrativa, ela opera, ainda, de maneira a jamais se colocar como centro de tal narrativa. Tampouco permite que a narrativa exista como um todo acabado, finalizado de uma vez por todas, deixando sempre aberturas à criação de sentidos.

Outro aspecto ainda permitido pela perspectiva do espaço neutro da narrativa é que os próprios portadores das falas (que em outros formatos seriam reconhecidos como personagens) encontram-se, também, em posição de não identificação consigo mesmos. Da mesma maneira como sucede ao narrador, a narrativa lhes ocorre sem passar por uma consciência identitária. Essa perspectiva de construção de história na qual os próprios produtores da narrativa não se encontrem em posições identitárias enrijecidas nos faz pensar em uma produção do trabalho enquanto experiência na qual os trabalhadores posicionam-se como vetores de produções coletivas, a partir da qual podem mesmo ser questionadas posições identitárias prévias, indicando-nos um direcionamento no sentido de uma experiência crítica no e pelo trabalho.

Como estamos vendo, as ideias de Blanchot e Benjamin convergem no sentido de diferenciar as características do tipo de experiência implicada na produção da narrativa e do romance. As perspectivas dos autores, porém, diferenciam-se no momento em que Blanchot vislumbra a possibilidade de ainda se experimentar o tipo de voz narrativa que descreve, deixando-nos uma convocação a esse exercício. Benjamin, por outro lado, prioriza traçar análises a respeito dos motivos que têm levado a arte de narrar à extinção. Segundo o autor, a crise que a informação provoca sobre a narrativa é ainda mais aterradora do que o romance provocou, considerando que até mesmo esse gênero narrativo foi também atingido pelo advento da informação (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.). Para Benjamin, a informação, com seu caráter super objetivo, verificável e imediatista, destruiu a autoridade do narrado, que era considerado válido mesmo que não controlável pela experiência.

Uma das principais características da informação é o imperativo de ser compreensível em si mesma, e a obrigatoriedade de ser plausível. De maneira totalmente diversa da narrativa, a forma como a informação é oferecida não deixa abertura a nada além do que já está explícito, entregando o narrado de forma acabada, sem nenhuma possibilidade de construção a partir dela. A cada manhã, recebemos notícias de todos os lados do mundo, mas somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, mas a serviço da informação. Metade da arte da narrativa está em evitar explicações. O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso, o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.).

A informação, à maneira da vivência contemporânea (Bondía, 2002Bondía, J. L . (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, 19, 20-28.), só tem valor enquanto é inteiramente nova; sua vida está limitada a esse momento restrito. Exige-se dela que se entregue inteiramente a esse pequeno instante, sem perdas de tempo, e que se justifique totalmente nele. Na medida em que se esgotam todas as suas explicações (sem as quais não lhe é concedido o estatuto de informação válida), seu fim está decretado. Muito diferente é a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.). Isso apenas é possível pela sua característica de conservar, sempre, a abertura à produção de novos sentidos. O mistério ao qual se refere Blanchot (2010Blanchot, M. (2010). A voz narrativa. In M. Blanchot. A conversa infinita: a ausência do livro (p. 141-152). São Paulo, SP: Escuta. ), não se trata de um enigma a ser desvendado, uma verdade escondida na narrativa. O mistério é a própria abertura ao novo, a curiosidade que faz com que a narrativa continue sendo contada e conservando seu encanto por inúmeras gerações.

Esse entendimento da narrativa como fecunda a incessantes criações, nos leva a afirmar a potência de pensar a especificidade da experiência que se dá no trabalho, entendendo que, assim como Benjamin nos fala de diferentes experiências possíveis ligadas a diferentes maneiras de construção do dizer, é possível entender que o trabalho pode comportar diferentes qualidades de experiência.

Diferentemente da informação, que é construída de forma mecânica como uma produção rápida, em série, sem vida e nem marcas diferenciadoras, a narrativa é comparada à produção artesanal, na qual o efeito do trabalho de seus construtores se faz presente em toda sua apresentação. Benjamin (1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.) afirma que a narrativa, a qual durante tanto tempo floresceu em um meio artesão, é ela própria, em certo sentido, uma forma artesanal de comunicação, utilizando-se, mais uma vez, de metáfora que remete ao mundo do trabalho como plano privilegiado de produção de narrativas. A narrativa, segundo ele, não é produzida à maneira industrial, purificada das impurezas, procurando transmitir uma informação pura sobre a coisa narrada, como um relatório. Pelo contrário, sua produção acontece mergulhada na própria vida dos narradores, imprimindo-se na narrativa a marca do narrador, como as mãos do oleiro na argila do vaso (Benjamin, 1987).

A narrativa, assim, é comparada a um ofício manual, remetendo, mais uma vez, ao trabalho da maneira que era realizado pelos homens, sobretudo antes do advento do capitalismo. Narrativa-produto de uma dedicação paciente, que toma tempo, realizada com calma e se fazendo singular por meio das marcas particulares deixadas por seus produtores. Pode ser comparada a um tecido que é tramado manualmente, uma peça de madeira que é talhada ou uma pedra lapidada aos poucos. Comparável, ainda, às produções dos lentos processos que dependem da ação natural para alcançarem sua melhor forma, como os vinhos envelhecidos e as pérolas naturais.

Além disso, a construção da narrativa da maneira descrita não é fruto apenas de uma relação outra com o tempo, mas, principalmente, de uma forma de produção na qual todo o corpo do trabalhador/artesão/narrador é convocado, e que nunca é visto como exclusivamente individual. O trabalho produtivo típico do artesão contava com o envolvimento coordenado entre alma, olhar e mão. Da mesma maneira, a narração não se trata de um produto exclusivo da voz, mas conta com a intervenção decisiva da mão, que coordena os fluxos do que é dito, utilizando-se dos gestos aprendidos na experiência do trabalho (Benjamin, 1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.). A tarefa do narrador poderia, dessa maneira, ser resumida como o trabalho artesanal sobre a matéria-prima da experiência para devolvê-la ao mundo como um produto, no qual as marcas de todos os narradores-artesãos teriam seu lugar.

Nosso encontro com o pensamento de Benjamin e Blanchot nos anima a produzir inflexões com as perspectivas da clínica da atividade e da ergologia na direção da produção de uma clínica do trabalho como experiência em seus limiares com o conceito de atividade. Interessa-nos um tipo específico de experiência, a qual seja produzida na habitação de uma dimensão coletiva e fértil para a criação de novas possibilidades de viver e trabalhar. Essa experiência coletiva criadora guarda íntima proximidade com a produção e transmissão de narrativas, as quais se produzem na dinâmica entre o patrimônio acumulado de uma tradição e as contribuições singulares de cada narrador.

Considerações finais

Uma potente fecundação entre a transmissão da experiência por meio de conselhos, tal como encontramos no pensamento de Walter Benjamin, e a experiência do trabalho se mostra presente, uma vez que é fácil identificar um senso prático em quem trabalha. O trabalhador para que consiga executar bem o que lhe é proposto, muito além das prescrições dos manuais, necessita exercitar, no mínimo, conselhos a si mesmo sobre as melhores formas de alcançar os objetivos laborais. À medida que vai se experimentando pela atividade de trabalho, vai se deparando com dificuldades e tendo que desenvolver maneiras de contorná-las, descobrindo melhores meios para alcançar os objetivos práticos que lhe são propostos. Ao olharmos dessa perspectiva, o trabalhador, pela característica da finalidade de seus fazeres laborais, também pode ser considerado um sujeito com aguçado senso prático, a partir do qual se produzem conselhos derivados da experiência, o que se liga - como vimos nas abordagens da ergologia e clínica da atividade - com a história e o patrimônio do ofício.

Se pensarmos sobre esse senso prático e o necessário compartilhamento ligado ao ato de aconselhar a que se refere Benjamin, o trabalho, assim, poderia ser considerado um plano de experiência para a prática das narrativas. O trabalho, enfim, terá maiores possibilidades de se desenvolver quanto mais frutífera for a troca de experiências entre os trabalhadores. Da mesma maneira que a melhor narrativa se constitui na transmissão entre uma multiplicidade de narradores anônimos ao longo do tempo, o trabalho se constitui e desenvolve na medida em que sucessivas transmissões são efetivadas entre os trabalhadores. Como uma narrativa que deve seguir sendo contada pelos sucessivos narradores, o trabalho segue se fazendo pelas trocas entre os que o executam.

A mudança nos meios de produção revoluciona não apenas a produção material resultante dela, mas toda a maneira como a experiência do trabalho foi se dando. A transformação nas forças produtivas não produz apenas novos bens, mas diferentes formas de trabalhar, de se relacionar e de subjetivar. Uma das principais diferenças construídas na modificação dos meios de produção desde o início da produção capitalista diz respeito à progressiva individualização e responsabilização pessoal, e não mais coletiva, pela produção.

É interessante pensarmos, porém, que nas configurações predominantes no trabalho em tempos de capitalismo cognitivo, encontra-se uma convocação para que os trabalhadores se comuniquem abundantemente e constituam equipes. Nesse sentido, seria possível dizer que se produzem muitas trocas no trabalho. A qualidade dessas trocas, contudo, merece atenção a partir da perspectiva das narrativas à qual Benjamin (1987Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política. São Paulo, SP: Brasiliense.) se refere. A narrativa, como estamos vendo, diz respeito ao desenvolvimento de uma história comum, feita de contribuições singulares, de alternativas para questões que não dizem respeito a indivíduos. A dimensão da comunicação convocada no trabalho contemporâneo, assim, difere da produção narrativa, na medida em que se situa em uma troca entre indivíduos que se responsabilizam pelo trabalho de maneira pessoalizada, incitados a alcançarem o ‘sucesso profissional’ por meio de estratégias que enaltecem o indivíduo, nas quais pode, inclusive, incluir-se a intensa comunicação entre os pares.

Podemos pensar que, no contemporâneo, uma quantidade cada vez maior de demandas está sempre se colocando, e os trabalhadores e trabalhadoras são estimulados a ‘experimentarem’ o maior número possível delas. Tal funcionamento nos remete à incitação presente no trabalho imaterial para que os trabalhadores sempre se envolvam com maior número de tarefas e assuntos de forma a desempenharem performance extremamente dinâmica no seu fazer laboral, sendo proporcionadas a eles inúmeras vivências.

Ocorre, porém, que essas vivências, por mais intensas que possam parecer no momento, raramente se configuram como efetivas experiências, no sentido apontado por Benjamin. Eis aqui uma dimensão de alta relevância no âmbito das problemáticas clínicas do trabalho contemporâneo.

Referências

  • Amador, F. S. (2014). Trabalho, subjetivação e clínica: análises nos setores da Assistência Social, Justiça e Comunicações (Projeto de Pesquisa). Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre.
  • Athayde, M., & Brito, J. (2011). Ergologia e clínica do trabalho. In P. Bendassolli& L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 258-281). São Paulo, SP Atlas.
  • Benjamin, W. (1987). Magia e técnica, arte e política São Paulo, SP: Brasiliense.
  • Blanchot, M. (2010). A voz narrativa. In M. Blanchot. A conversa infinita: a ausência do livro (p. 141-152). São Paulo, SP: Escuta.
  • Bondía, J. L . (2002). Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira da Educação, 19, 20-28.
  • Canguilhem, G. (2001). Meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições, 12(2-3), 35-36.
  • Canguilhem, G. (2002). O normal e o patológico Rio de Janeiro RJ: Forense Universitária.
  • Clot, Y. (2001). Éditorial.Éducation permanente: clinique de l'activité et pouvoir d'agir, 146, 7-16.
  • Clot, Y. (2011). Clínica do trabalho e clínica da atividade. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 71-83). São Paulo, SP: Atlas.
  • Clot, Y. (2006). A função psicológica do trabalho Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir Belo Horizonte, MG: Fabrefactum.
  • Foucault, M. (2002). Os anormais São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Lima, J. G., & Baptista, L. A. (2013). Itinerário do conceito de experiência na obra de Walter Benjamin. Revista Princípios, 20(33), 449-484.
  • Prestes, Z. R. (2010). Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil (Tese de Doutorado), Universidade de Brasília, Brasília, DF.
  • Rocha, C. T. M. (2015). Atividade, experiência e narrativa: produzindo dispositivos crítico-clínicos do trabalho (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre .
  • Schwartz, Y. (2010). A experiência é formadora? Educação e Realidade, 35(1), 35-48.
  • Schwartz, Y. (2014). Motivações do conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, 49(3), 259-274.
  • Schwartz, Y. (2011). Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempos - Actas de Saúde Coletiva, 5(1), 55-67.
  • Schwartz, Y. (2004). Trabalho e gestão: níveis, critérios, instâncias. In M. Figueiredo, M. Athayde, J. Brito & D. Alvarez (Orgs.), Labirintos do trabalho: interrogações e olhares sobre o tabalho vivo (p. 23-36). Rio de Janeiro, RJ: DP & A.
  • Schwartz, Y.,& Durrive, L. (2007). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana Niterói, RJ: EdUFF.
  • Silva, C. O., Barros, M. E. B., & Louzada, A. P. F. (2011). Clínica da atividade: dos conceitos às apropriações no Brasil. In P. Bendassolli & L. A. P. Soboll (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para compreensão do trabalho na atualidade (p. 188-207). São Paulo, SP: Atlas .
  • Toassa, G. (2009). Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural (Tese de Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Vasconcelos, R., & Lacomblez, M. (2005). Redescubramo-nos na sua experiência: o desafio que nos lança Ivar Oddone. Laboreal, 1(1), 38-51.
  • Vigotski, L. S. (1999). Psicologia da arte São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • 1
    Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • 4
    Este artigo foi produzido como parte dos estudos e pesquisas desenvolvidos pelo n-pista(s) — Núcleo de Pesquisas Instituições, Subjetivação e Trabalho em Análise(s), no escopo do projeto de pesquisa intitulado Trabalho, subjetivação e clínica: análises nos setores da Assistência Social, Justiça e Comunicações (Amador, 2014Amador, F. S. (2014). Trabalho, subjetivação e clínica: análises nos setores da Assistência Social, Justiça e Comunicações (Projeto de Pesquisa). Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre.) (o qual conta com financiamento do CNPq). Suas formulações referem-se, ainda, à dissertação de mestrado de uma das autoras, cujo título é Atividade, experiência e narrativa: produzindo dispositivos crítico-clínicos do trabalho (Rocha, 2015Rocha, C. T. M. (2015). Atividade, experiência e narrativa: produzindo dispositivos crítico-clínicos do trabalho (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Porto Alegre .).
  • 5
    Situamos tanto a ergologia quanto a clínica da atividade no escopo das clínicas do trabalho. Contudo, reconhecemos que a ergologia não tem a pretensão de se constituir enquanto ‘clínica’, nem tampouco Yves Schwartz, nome de referência em ergologia, opera com o conceito de subjetividade, preferindo a este o conceito de corpo-si, conforme veremos ao longo deste texto. Suas preocupações voltam-se, sobretudo, para a dimensão da formação pelo trabalho enquanto atividade.
  • 6
    Em seus textos, Schwartz emprega o termo renormalização para se referir ao processo incessante de recriação de normas pelos trabalhadores e trabalhadoras quando da gestão da distância entre trabalho prescrito e trabalho real. Optamos por empregar o termo renormatização para distingui-lo do processo de normalização relacionado às regulações sociais. Trata-se aqui de uma fronteira tênue entre o que seriam as normas vitais para Canguilhem (2001) e as normas sociais para Foucault (2002)Foucault, M. (2002). Os anormais. São Paulo, SP: Martins Fontes., as quais se imbricam em processos complexos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2017
  • Aceito
    14 Set 2018
Universidade Estadual de Maringá Avenida Colombo, 5790, CEP: 87020-900, Maringá, PR - Brasil., Tel.: 55 (44) 3011-4502; 55 (44) 3224-9202 - Maringá - PR - Brazil
E-mail: revpsi@uem.br