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COMO INTRODUZIR ARTE NA SAÚDE EM UM AMBIENTE EPISTEMOLÓGICO CIENTÍFICO?

A discussão intitulada ‘A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta?’, proposta por Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.) na seção ‘Debates’ da revista Psicologia em Estudo é traiçoeira. Concordemos ou não com os autores, não chegaremos onde eles desejam chegar tomando o caminho que eles escolheram para nos levar até lá. Assim, pode parecer que não faz muito sentido levar adiante uma discussão acerca do assunto proposto. Entretanto, parece-me que ela pode ser esclarecedora ao permitir evitar desvios de rota desnecessários. Além disso, estou inteiramente de acordo com relação ao objetivo da trilha proposta por aqueles autores.

Gostaria de simplificar a discussão dividindo-a formalmente em duas: uma epistemológica e uma ética - acompanhando o que me parece ter sido a intenção dos autores.

A questão da base empírica

Os autores apresentam o problema epistemológico da constituição da cientificidade da psiquiatria por meio de um ponto de vista realista. Isso está expresso já na primeira frase do texto em que eles afirmam que “Observar a natureza e dela extrair conclusões acerca da sua realidade é o objetivo da ciência” (Abramov & Mourão Júnior, 2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556., p. 551). Nessa versão realista a observação é o primeiro passo na constituição do conhecimento científico. Ela seria a responsável por fundamentar a posterior construção dos modelos de funcionamento do mundo natural. Nesse caso, a função da base empírica seria a de sustentar o edifício do conhecimento científico, derivando-o dela por alguma versão de raciocínio indutivo. O realismo consiste em acreditar que a base empírica nos forneceria os elementos reais da natureza, devidamente traduzidos em termos observacionais. Assim, estaria garantida a conexão entre a realidade e o conhecimento.

Tomada essa trilha - que me parece equivocada, como tentarei explicitar adiante - os autores reconhecem que os procedimentos empíricos conduzem a um “[...] raciocínio circular” (Abramov & Mourão Júnior, 2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556., p. 552). A questão da circularidade se torna evidente se considerarmos que o conceito de ‘normalidade’, necessário à psiquiatria e à psicologia, deve ser derivado da base empírica. A partir desse conceito se fazem distinções nessa mesma base empírica quando são separados os casos normais dos patológicos - fechando um percurso sobre si mesmo. A conclusão dos autores me parece acertada: dado seu ponto de partida realista sobre o conhecimento, a conclusão sobre a presença de um círculo vicioso na construção empírica dos conceitos científicos faz todo sentido. Entretanto, parece-me que a trilha realista tomada por eles é onerosa e equivocada.

Embora exista uma crença bastante difundida de que o conhecimento científico se fundamenta na observação, ela não corresponde à prática do trabalho de produção da ciência. Essa crença é uma versão do modelo baconiano de produção do conhecimento científico (Bacon, 1979Bacon, F. (1979). Novum organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo, SP: Abril Cultural.). Em função de depender exclusivamente da lógica indutiva esse modelo foi indiretamente criticado por Hume (1979Hume, D. (1979). Investigação sobre o conhecimento humano. São Paulo, SP: Abril Cultural.) na sua análise acerca do conhecimento humano. Uma solução adequada que permitiu preservar uma função para a base empírica no conhecimento científico e contornar a fragilidade da indução foi desenvolvida posteriormente por Popper (1972Popper, K. (1972). A lógica da investigação científica. São Paulo, SP: Cultrix.). O problema é que essa solução conduziu justamente ao abandono do realismo - que os autores defendem. Vejamos isso em detalhe.

O modelo baconiano (Bacon, 1979Bacon, F. (1979). Novum organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza. São Paulo, SP: Abril Cultural.) corresponde à compreensão que os autores possuem acerca do processo de produção do conhecimento científico. Este último começaria pela observação da natureza, passaria pela sistematização e classificação dos fatos observados, pelo posterior raciocínio indutivo que geraria leis gerais a partir deles e terminaria com uma verificação da validade dessas leis ao mundo empírico, de onde elas teriam emergido.

O cerne da crítica de Hume (1979Hume, D. (1979). Investigação sobre o conhecimento humano. São Paulo, SP: Abril Cultural.) é a seguinte: uma base empírica, por mais ampla que seja, consiste sempre em enunciados que descrevem casos particulares. Não há nenhum caminho lógico que permita passar validamente de quaisquer enunciados particulares para leis gerais. A indução não é um raciocínio válido porque introduz uma dimensão ausente na base empírica: a dimensão do futuro, que não é observável, mas está incluída em qualquer lei geral. Isso conduziu à necessidade de se abandonar a indução como procedimento para gerar conhecimento válido - produzindo uma forte disposição cética.

Popper (1972Popper, K. (1972). A lógica da investigação científica. São Paulo, SP: Cultrix.) contornou essa dificuldade sacrificando o realismo. Para ele o conhecimento científico não é iniciado com a observação, mas com a proposição de alguma teoria, por mais singela que seja. Na verdade, todo cientista possuiria desde o início algum tipo de expectativa teórica. Ela seria o primeiro passo para a geração de novos conhecimentos. Isso obriga obviamente a redimensionar o papel da base empírica. Um exemplo das alterações promovidas por esse ponto de vista na psicologia cognitiva pode ser encontrado na discussão acerca do problema da dissociação funcional entre diferentes sistemas de memória (Silveira, Janczura & Stein, 2012Silveira, R., Janczura, G., & Stein, L. (2012). O que está errado com a dissociação funcional? Ciências & Cognição, 17(2), 40-50.). Então, para Popper, a ciência se inicia com a proposição de uma teoria constituída por leis gerais. Essas leis, sendo gerais, permitem derivações ‘dedutivas’ de previsões particulares. Essas previsões é que são confrontadas com a base empírica para se verificar se elas podem ser aceitas ou não. A função da base empírica é propiciar testes para enunciados particulares derivados de leis gerais, mas não ‘fundamentar’ enunciados gerais. Portanto, a base empírica forneceria um método de teste para as leis científicas mediadas por um processo de dedução lógica.

A perda da referência realista torna-se inevitável na medida em que não há como se garantir, no modelo popperiano, que exista uma continuidade entre a realidade externa e o conhecimento científico - como no modelo baconiano de Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.). Observe como a perspectiva popperiana nos fornece uma versão da produção do conhecimento científico que desfaz a circularidade lógica que, segundo aqueles autores, contaminaria todo empirismo. Além disso, para Popper não faz sentido tentar descrever a ‘origem’ das expectativas teóricas de um cientista porque isso é algo de natureza subjetiva. A ciência se diferiria da arte pelo processo posterior de testagem de suas teorias. Testes que são necessários para o reconhecimento de uma teoria como válida - mas não verdadeira. Essa solução popperiana permite contornar a circularidade que os autores parecem considerar como irremovível de toda ciência empírica.

Esse aparente atropelo da possibilidade de uma ciência empírica destituída de circularidade, contido nos argumentos de Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.), parece dever-se a que outra preocupação ocupa a atenção. Ela diz respeito a um suposto aspecto reducionista do conhecimento científico. Esse aspecto pode ser percebido quando eles afirmam que “[...] dentro de um mundo ontologicamente muito mais complexo que sistemas físicos isolados, o método empírico de conhecer cientificamente mostra mais ainda suas grosseiras limitações” (Abramov & Mourão Júnior, 2016, p. 551). Um pouco depois, esse reducionismo revela uma face política: “Deveríamos considerar uma agressão moral incomensurável a pretensão de reduzir qualquer homem a um objeto inteligível pela ciência” (Abramov & Mourão Júnior, 2016, p. 555). Nesse ponto é que me parece que as crenças realistas dos autores promovem os maiores estragos.

A noção de que o conhecimento humano consiste em uma espécie de redução ou simplificação de um universo real desconhecido não faz sentido. Se temos, de um lado, uma natureza não conhecida - como pretende o realismo - como poderíamos saber que o nosso conhecimento equivale a uma redução com relação a ela? Se ela é efetivamente ‘desconhecida’, não podemos compará-la com nada que conhecemos. Assim, não faz sentido afirmar que o que já sabemos é maior, igual ou menor do que aquilo que não conhecemos - a natureza. Se há efetivamente uma natureza exterior desconhecida, não temos a menor ideia do que ela seja, e não podemos compará-la com o conhecimento que efetivamente temos. O que podemos comparar é uma parte do que conhecemos com outra parte do que conhecemos.

Claro que podemos fantasiar que a natureza desconhecida seja muito mais complexa do que o conhecimento científico atual. Mas isso vale tanto quanto fantasiar que ela é exatamente idêntica ao conhecimento que possuímos. Ou vale tanto quanto postular que ela é muito inferior ao conteúdo da ciência.

Aparentemente, Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.) namoraram furtivamente alguma versão da teoria dos sistemas complexos (Von Bertalanffy, 1968Von Bertalanffy, L. (1968). General system theory. New York, NY: George Brazillier.), mas não me parece pertinente discutir isso aqui, já que essa parceria não é referida explicitamente no texto. Parece-me mais razoável pensar que eles foram levados a defender a tese reducionista em função de não conceberem alternativas ao realismo na produção do conhecimento científico. As teses de Popper (1972Popper, K. (1972). A lógica da investigação científica. São Paulo, SP: Cultrix.) demonstram claramente que é possível termos conhecimento científico sem realismo. Mais do que isso, elas evidenciam que ‘podemos ter conhecimento científico empirista sem realismo’. Para obter esse resultado, basta minimizar nossas expectativas com relação à tese de que o conhecimento científico ‘corresponde’ ou ‘conecta-se’ de maneira especial com uma realidade desconhecida.

A questão da arte

Embora acredite que a trilha realista tomada por Abramov e Mourão Júnior não facilita o acesso a uma perspectiva mais artística para as práticas psicológicas e psiquiátricas, concordo que esse objetivo seja muito desejável. Temo, inclusive, que o realismo que eles adotam funciona como um obstáculo para a construção de uma crítica mais apropriada às práticas científicas atuais. Um indício dessa dificuldade é a posição ambígua dos autores com relação a essas últimas.

Por um lado, eles fazem afirmações de caráter nitidamente moral em que sugerem uma mudança de direção naquelas práticas: “Deveríamos considerar [...]” e “Há de termos a mudança de paradigma [...]” (Abramov & Mourão Júnior, 2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556., p. 555). Tudo isso parece sugerir a necessidade de ruptura epistemológica, de abandono de um velho sistema falido por algo inteiramente novo. Há aqui até certo voluntarismo em função dessa reviravolta não estar fundamentada senão em verbos de intenção como ‘dever’ e ‘ter de’. Por outro lado, curiosamente, na última frase do texto, há uma afirmação que soa contraditória quando os autores concluem que “[...] tanto a psiquiatria quanto a psicologia devem se reconhecer (o quê?) como arte, sem prescindir do ferramental que a ciência - em que pesem suas muitas limitações - possa lhe oferecer” (Abramov & Mourão Júnior, 2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556., p. 555). Com esse desfecho, parece que o texto recua nas suas pretensões, adotando um caráter introdutório ao problema que discute. Isso, na medida em que a ruptura com o velho mecanismo reducionista, criticado pelos autores, pode ter parte de seu ‘ferramental’ preservado, sem que saibamos o que isso poderia significar exatamente. Por isso, parece que aquelas bases epistemológicas prometidas no título não se cumprem e permanecem como meras promessas a se realizarem em um futuro mais promissor.

No conjunto, parece que os autores adotam uma louvável intenção política de alterar o rumo das práticas psicológicas e psiquiátricas na direção a uma maior atenção ao ser humano que, no atual modelo, é um mero ‘objeto’ delas. Julgo ser esse o ponto alto do texto, a despeito de suas bases realistas e de certa confusão com relação ao que deve ser feito e ao que deve ser descartado. Gostaria de dizer algo que talvez auxilie a promover a finalidade desejada pelos autores, porém em termos diferentes.

Em primeiro lugar, eu sugeriria a quem se interessa por promover tais mudanças, na direção defendida por Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.), o abandono de um ponto de vista realista acerca do conhecimento. Isso apenas onerará a discussão e dará a ela, em algum momento, aquele tom moralizador que indica a necessidade de uma transformação ética do cientista - sem poder apresentar as necessárias mudanças epistemológicas na prática interna da própria ciência. Penso que é exatamente a isso que chegamos quando aqueles se referem à preservação do ‘ferramental’ da ciência.Parece que tudo se resume a defender a manutenção do modelo científico atual,acrescido de uma dose bem intencionada de humanismo ou de consideração moral pelo ser humano. Ou seja, no frigir dos ovos nos limitamos a pregar a necessidade de promover uma alteração moral dos cientistas. Os padres e pastores sempre fizeram isso melhor que nós, cientistas e filósofos.

Precisamos propor mudanças nas próprias práticas e nas ferramentas que têm sido utilizadas, porque são justamente elas que incorporam os valores orientadores que queremos alterar. Essas ferramentas científicas não são inócuas e nem existe conhecimento neutro. Preservar tais ferramentas é correr o risco de ser apunhalado pelas costas mais cedo ou mais tarde. No caso de Abramov e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.), acredito que essa punhalada pelas costas equivalha a limitar as alterações propostas à esfera da moralidade, preservando-se o aparato científico epistemológico tradicional.

O instrumental básico do conhecimento científico é a universalidade dos conceitos e das leis. Nesse caso, ‘a finalidade do conhecimento é buscar leis’ que permitem fazer previsões e agir sobre o mundo. Assim, não faz sentido defender que centralizemos as práticas de saúde em uma atenção artística - logo individualizante - preservando-se os dispositivos universais. Isso porque o indivíduo é particular e o dispositivo científico tradicional é universal. O que se busca é uma consideração artística do indivíduo ou um ponto de vista particular sobre o que é particular. Isso obviamente não pode ser obtido por meio de conceitos e leis. Não se pode chegar à arte através de teorias.

Dessa forma, a arte que se busca implementar nas práticas psiquiátricas e psicológicas não pode se limitar ao âmbito tradicional que ela ocupa hoje em um ambiente social científico. Com efeito, hoje a arte está circunscrita a uma dimensão puramente subjetiva e interior, oposta ao universo objetivo dos conceitos e teorias. Adotar essa posição seria o mesmo que aceitar nossa incapacidade em alterar as condições dadas que remetem a própria atividade estética para um plano secundário. Aqui, novamente se apresenta aquele risco de sermos apunhalados pelas costas.

Quero dizer com isso, que não daremos um passo adiante somente afirmando que é necessário alterar o modelo atual de produção do conhecimento em direção a uma posição estética e reduzindo essa alteração ao âmbito moral. Temos que levar em conta que o atual modelo de produção de ciência é industrial desde sua origem (Silveira, 2013Silveira, R., & Worm, M. (2013). Projeto político-pedagógico para a criação do Curso Superior de Graduação Tecnológica em Medicina Tradicional Chinesa. Manuscrito não publicado., 2014Silveira, R. (2014). Ciência sem cultura. Paralaje, 11, 172-185.). Ele não se tornou o que é acidentalmente, em função de algum deslize moral dos cientistas. Então ele não poderá ser alterado por meio de uma mera reforma moral. Não se pode preservar a parte instrumental da ciência, porque ela remete automaticamente toda disposição artística para o plano ineficaz das boas intenções subjetivas - dimensão que a arte já ocupa confortavelmente nas próprias sociedades em que predominam a ciência e a técnica.

As práticas podem ser alteradas em uma direção estética autêntica se formos capazes de propor modelos que não se baseiem naquele instrumental universal a que me referi acima. Abramovic e Mourão Júnior (2016Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.) usam o exemplo do ‘diabetes’ para ilustrar as dificuldades do funcionamento do realismo empírico. Voltemos a esse exemplo, também de outra perspectiva distinta.

Se o propósito é adotar um ponto de vista efetivamente artístico à questão científica relevante não pode ser a caracterização de um conceito universal de ‘diabetes’. A perspectiva estética deve começar por recusar esse propósito industrial e típico da ciência convencional. Assim, seu objetivo poderia ser mais modestamente o de restabelecer a condição de saúde do paciente. Porém, desde que se entenda que não há um único significado universal para ‘saúde’. Ela seria meramente um referencial a ser preenchido pelo conteúdo existencial do próprio paciente. A questão científica empírica relevante deixaria de se identificar como um conjunto de sintomas sob um conceito já conhecido de ‘diabetes’. O ponto central passaria a ser descobrir o que causa transtorno ao paciente, segundo a sua própria perspectiva. Sachs (1995Sacks, O. (1995). Um antropólogo em Marte. São Paulo, SP: Companhia das Letras., 1997Sacks, O. (1997). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas. São Paulo, SP: Companhia das Letras.) já demonstrou o quanto alguns pacientes só podem viver bem com suas próprias patologias. Isso significa que não há necessariamente algum problema em ser portador de uma patologia, a menos que isso perturbe o paciente. Com isso, se abre mão do procedimento tradicional de identificar, antes de mais nada, que patologia o paciente possui - embora se fale tanto em saúde.

Ao contrário, o ponto de vista determinante de uma ‘estética terapêutica’ é o desconforto individualmente expresso pelo paciente. É óbvio que isso conduz à eliminação de procedimentos técnicos padronizados na prática clínica tradicional. Ou seja, torna-se necessário adotar um padrão artístico de ação na medida em que se trata fundamentalmente de reestabelecer o equilíbrio existencial do paciente. Isso, segundo as necessidades específicas e os parâmetros morais e cognitivos dele - e não de acordo com um manual de patologias universais, apenas ilustradas pelo caso particular de um paciente.

No exemplo do ‘diabetes’, isso significa dizer que não existe algo como o ‘diabetes’. Cada conjunto de sintomas que no modelo tradicional era subordinado a um diagnóstico ‘geral’ - o ‘diabetes’- passa a ser entendido como adaptações existenciais realizadas pelo paciente. Do mesmo modo, não haverá um único tratamento para esses conjuntos diversificados de sintomas e sim tentativas de se restabelecer um equilíbrio individual dentro de variáveis também individuais. Pode ser o caso, inclusive, que os sintomas relativos ao ‘diabetes’ não se constituam em fonte de sofrimento do paciente. Logo, eles serão considerados como partes integrantes de uma existência particular equilibrada e deixam de ser relevantes.

Então, não se trata de recuperar um suposto estado universal de normalidade, mas de reequilibrar o paciente, segundo sua maneira particular de ser. A arte terapêutica consiste em identificar as necessidades do paciente e ajustar sua existência a elas. Como se pode ver, não é possível conciliar essa atividade artística com os procedimentos racionais da ciência que procuram sempre subsumir o múltiplo à regra universal. Se se pretende aproximar as práticas psiquiátricas e psicológicas da arte, os processos de subsunção, típicos da razão instrumental, terão que ser abandonados.

Para escaparmos do plano meramente hipotético, permita-me acrescentar que esse tipo de enfoque artístico no tratamento da saúde já é praticado. A versão da Medicina Tradicional Chinesa, adaptada para o mundo ocidental pela Escola Neijing (http://www.escuelaneijing.org/en/), adota exatamente essa perspectiva. Essa iniciativa desconhece a distinção entre problemas epistemológicos e morais, evitando assim as dificuldades geradas pela crescente industrialização a que a ciência contemporânea parece destinada (Silveira & Worm, 2013Silveira, R. (2013). A industrialização da verdade. Redescrições, 4(2), 46-67.).

Para a Escola Neijing, o atendimento propiciado pelo sanador - esse é o termo utilizado - ao paciente não se estrutura como uma relação hierárquica de subsunção do particular pelo universal, até porque não existem hierarquias em procedimentos artísticos. Trata-se de algo melhor descrito como um “[...] encontro de dois fracassados artistas” (Corral, 2006Corral, J. (2006). Fundamentos da medicina tradicional oriental. São Paulo, SP: Rocca., p. 408). Como um humilde fracassado, o sanador nada sabe do paciente no início. E ele desconhece, inclusive, como procederá para reestabelecer o fracasso existencial do paciente - o outro artista fracassado. Enfatizo a presença de uma postura de ignorância e humildade, sem a qual não há atividade artística possível aqui. É óbvio que ela não pode ser adotada sem a devida ‘experiência epistemológica’ dessa mesma ignorância. Por isso, ela não consiste em uma mera disposição moral do sanador.

Esse conjunto de disposições morais e epistemológicas, que ilustram a possibilidade de uma atividade artística autêntica de atenção à saúde, não poderá ser obtida por meio de um rearranjo do conjunto de valores civilizatórios que conduziram à emergência da ciência contemporânea. Não será possível produzir esse tipo de alteração reproduzindo aquela presunção decorrente da posse prévia de leis universais sobre o funcionamento particular da natureza. Acréscimos morais feitos sobre uma formação técnica também não beneficiarão em nada a promoção dessa alteração.

Referências

  • Abramov, D., & Mourão Júnior, C. (2016). A psiquiatria enquanto ciência: sobre que bases epistemológicas sua prática se sustenta? Psicologia em Estudo, 21(4), 551-556.
  • Bacon, F. (1979). Novum organum: ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da natureza São Paulo, SP: Abril Cultural.
  • Corral, J. (2006). Fundamentos da medicina tradicional oriental São Paulo, SP: Rocca.
  • Hume, D. (1979). Investigação sobre o conhecimento humano São Paulo, SP: Abril Cultural.
  • Popper, K. (1972). A lógica da investigação científica São Paulo, SP: Cultrix.
  • Sacks, O. (1995). Um antropólogo em Marte São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Sacks, O. (1997). O homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras histórias clínicas São Paulo, SP: Companhia das Letras.
  • Silveira, R. (2014). Ciência sem cultura. Paralaje, 11, 172-185.
  • Silveira, R. (2013). A industrialização da verdade. Redescrições, 4(2), 46-67.
  • Silveira, R., Janczura, G., & Stein, L. (2012). O que está errado com a dissociação funcional? Ciências & Cognição, 17(2), 40-50.
  • Silveira, R., & Worm, M. (2013). Projeto político-pedagógico para a criação do Curso Superior de Graduação Tecnológica em Medicina Tradicional Chinesa Manuscrito não publicado.
  • Von Bertalanffy, L. (1968). General system theory New York, NY: George Brazillier.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Abr 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2017
  • Aceito
    24 Maio 2018
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