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Trauma, clivagem e progressão intelectual: um estudo sobre o bebê sábio ferencziano1 1 Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Trauma, clivaje y progresíon intelectual: un estudio sobre el bebé sabio ferencziana

RESUMO

O presente trabalho propõe um estudo sobre a figura do bebê sábio na obra de Sándor Ferenczi, com o objetivo de investigar os laços que se estabelecem entre trauma e inteligência. Examinam-se os escritos ferenczianos dos anos 1930, posto que conjugam o pensamento clínico de Ferenczi sobre o trauma. Discute-se, inicialmente, a conjuntura traumática da maturação precoce, articulando as noções de trauma e desmentido. Em seguida, analisa-se o conceito de clivagem, defesa por meio da qual o indivíduo se fragmenta, dividindo-se em um ser que tudo sabe e nada sente. Por fim, debruça-se sobre a figura do bebê sábio, discutindo as noções de progressão traumática e prematuração patológica. Considera-se que o processo analítico na clínica com os ‘bebês sábios’ deve assegurar as condições necessárias para uma inversão de sentido nos processos de maturação pelas vias da regressão e da entrega confiante aos cuidados analíticos. Acredita-se que tal percurso teórico permitirá um refinamento da sensibilidade necessária para escutar o sofrimento, quase inaudível, dos ‘bebês sábios’ na prática clínica com crianças.

Palavras-chave:
Trauma; clivagem; bebê sábio

RESUMEN

El presente artículo propone un estudio sobre la figura del ‘bebé sabio’ en la obra de Sándor Ferenczi, com el objetivo de investigar los lazos que se establecen entre trauma e inteligencia. Se examina, especialmente, los escritos ferenczianos de los años 1930, una vez que conyugan la teoría y la clínica de Ferenczi con pacientes traumados. Se discute, inicialmente, la coyuntura traumática de la maturación precoz, articulando las nociones de trauma y desmentido. En seguida, se analiza el concepto de clivaje, defensa a través de la cual el individuo se divide en un ser que todo sabe y nada siente. Por fin, se aborda la figura del ‘bebé sabio’, discutiendo las nociones de progresión traumática y prematuración patológica. Se considera que el proceso analítico em la clínica com los ‘bebés sabios’ debe assegurar las condiciones necesarias para una inversión de sentido en los procesos de maturación a través de la regresión y de la entrega confiada a los cuidados analíticos. Se cree que tal recorrido teórico refinará la sensibilidad necesaria para escuchar el sufrimiento, casi inaudible, de los ‘bebés sabios’ en la práctica clínica com niños.

Palabras clave:
Trauma; clivaje; bebé sábio

ABSTRACT

This study analyzed the figure of the ‘wise baby’ in the work of Sándor Ferenczi with the purpose of investigating the links established between trauma and intelligence. We analyzed the Ferenczian writings of the 1930s, since they conjugate the theory and practice of Ferenczi with traumatized patients. First, the researchers discuss the traumatic context of precocious maturity, inspecting the notions of trauma and denial. Then, the authors analyzed the concept of cleavage, a defense by which the individual divides himself/herself in a being that knows everything but feels nothing. Finally, the researchers explore the figure of the ‘wise baby’, discussing the notions of traumatic progression and pathological prematurity. The analytical process in clinical practice with ‘wise babies’ must ensure the necessary conditions for a reversal of direction in the maturation processes through the ways of regression and confident submission to analytical care. The researchers believe that this theoretical path will refine the sensitivity required to listen to the almost inaudible suffering of ‘wise babies’ in clinical practice with children.

Keywords:
Trauma; cleavage; wise baby

Introdução

Autotomia Em perigo, a holotúria se divide em duas: com uma metade se entrega à voracidade do mundo, com a outra foge. Desintegra-se violentamente em ruína e salvação, em multa e prêmio, no que foi e no que será. No meio do corpo da holotúria se abre um abismo de duas margens subitamente estranhas. Em uma margem a morte, na outra a vida. Aqui o desespero, lá o alento. Se existe uma balança, os pratos não oscilam. Se existe justiça, é esta. Morrer só o necessário, sem exceder a medida. Regenerar quanto for preciso da parte que restou. Também nós, é verdade, sabemos nos dividir. Mas somente em corpo e sussurro interrompido. Em corpo e poesia. De um lado a garganta, do outro lado, o riso, leve, logo sufocado. Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar, três palavrinhas como três plumas em voo. O abismo não nos divide. O abismo nos circunda. Wislawa Symborska (2016Symborska, W. (2016). Um amor feliz. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 142).

Frequentemente, nos deparamos, no cotidiano da prática clínica, com os laços que se estabelecem entre trauma e inteligência. Referimo-nos aqui a crianças que parecem ter amadurecido precocemente a partir da exploração do potencial intelectual, em função de acontecimentos traumáticos vividos no começo da vida. Trata-se, assim, de crianças bastante articuladas e desembaraçadas, afeitas ao pensamento, porém, pouco à vontade com os afetos. Na maioria dos casos, mostram-se adoráveis e solícitas, além de muito bem-comportadas, tanto no sentido de portar-se quanto de conter-se. A despeito do brilhantismo, nota-se, contudo, insegurança e temor diante da menor adversidade, conflito ou fracasso.

Em geral, tais crianças raramente se queixam de sofrimento, de forma que são levadas para a análise por uma hipersensibilidade e/ou um significativo esgotamento que se estabelece com uma coloração fóbica, irritadiça ou depressiva e, às vezes, com sentimentos de tédio, vazio e algumas compulsões. Não raro, apresentam entraves na interação com outras crianças, tornando-se solitárias e sem pertencimento. Do ponto de vista clínico, observamos, portanto, crianças com dificuldades para se entregar relaxadamente à brincadeira, preocupadas em parecer sempre agradáveis e satisfeitas, empreendendo discursos sofisticados. Temos a impressão de que a aparente vitalidade da criança revela uma impossibilidade de habitar o repouso e o tempo da infância. Constatamos, frequentemente, que tal impossibilidade remonta a uma inversão da relação de cuidado no ambiente familiar, razão pela qual as crianças precisam ‘subir a guarda’, performando uma postura parental diante de si mesmas e dos adultos importantes para o seu existir.

Certamente, não se trata aqui de propormos uma relação de causa e efeito entre trauma e inteligência, tampouco, amenizar a dor psíquica aí envolvida, mas, sim, de pensar de que forma o avanço dos processos de maturação se encontra associado com uma estratégia de sobrevivência diante de situações traumáticas. Essa problemática nos convida a investigar a figura do bebê sábio na obra de Sándor Ferenczi; figura que expressa a criança que se torna extremamente inteligente como medida de salvamento diante do traumático. De fato, com Ferenczi (1992aFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928., p. 254) é possível pensar que “[...] o intelecto só nasce a partir do sofrimento [...]”, constituindo-se como uma tentativa de compensação para uma comoção psíquica completa frente ao trauma.

Para tanto, vamos mergulhar nos escritos ferenczianos dos anos 1930, especialmente, em Análise de crianças com adultos (Ferenczi, 1992bFerenczi, S. (1992b). Análise de crianças com adultos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV)(p. 69-83). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1931.), Confusão de línguas entre os adultos e a criança (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928.) e algumas notas compiladas em Notas e fragmentos (Ferenczi, 1992aFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928.) e no Diário clínico (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932.), posto que conjugam a teoria e a clínica de Ferenczi com pacientes traumatizados. Acreditamos que tal mergulho permitirá o refinamento da sensibilidade necessária para escutar o sofrimento, quase inaudível, dos ‘bebês sábios’ na clínica com crianças.

Trauma e desmentido

O trauma ocupa um lugar central na obra de Ferenczi. Considerado um especialista em ‘pacientes difíceis’, o psicanalista húngaro trabalhava, em grande parte, com sofrimentos mais primários e mais graves em relação aos sofrimentos clássicos da neurose. A partir da análise de casos com estas características, ele percebeu a importância dos aspectos relacionais, a complexidade do funcionamento psíquico diante do traumático e os mecanismos de defesa implicados na sobrevivência ao trauma. Em seu Diário clínico (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932.), podemos acompanhar de perto algumas dificuldades, tentativas e potencialidades encontradas no seu processo de investigação teórica e tratamento do sofrimento psíquico.

Com efeito, o célebre artigo Confusão de língua entre os adultos e a criança, publicado em 1933, se constitui como o momento mais significativo na elaboração da teoria do trauma que atravessa a obra ferencziana. Este texto aborda a relação traumática entre adultos e crianças, levando em conta a diferença de linguagem existente entre eles. Enquanto a criança está imersa na ‘linguagem da ternura’, vivenciando um universo lúdico e de faz de conta; o adulto se encontra na ‘linguagem da paixão’, domínio da sexualidade adulta, marcado pelas interdições sexuais, recalque e culpa. Nesse sentido, “[...] ternura e paixão consistem em dois modos diferentes de se relacionar com o outro, são como duas línguas distintas” (Dal Molin, 2017Dal Molin, E. C. (2017). Trauma, silêncio e comunicação. In C. P. França(Org.), Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual(p. 63-86). São Paulo, SP: Blucher ., p. 76), o que denota um significativo diferencial de intensidades e expressões que não pode ser abolido.

A partir desses dois registros, Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933.) utilizou uma cena emblemática de sedução de uma criança por um adulto, dando relevo à confusão de línguas aí implicadas. Trata-se aqui da construção de um mito que envolve três personagens e dois momentos (Pinheiro, 1995Pinheiro T. (1995). Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.). Em um primeiro tempo, uma criança e um adulto brincam. Cabe precisar que “[...] o jogo pode assumir uma forma erótica, mas conserva-se, porém, sempre no nível da ternura” (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., p. 101-102). Alguns adultos, contudo, confundem as brincadeiras da criança com os desejos de uma pessoa sexualmente madura, ou seja, interpretam a linguagem da ternura como sedução genital. Nesses termos, terminam por responder à brincadeira infantil e aos endereçamentos termos da criança com violência sexual. O adulto da linguagem da paixão é aquele, portanto, que perde a dimensão da diferença entre as gerações.

É importante precisar que a confusão é resultante da fusão das duas linguagens, logo, inerente à relação do adulto com a criança. De fato, não há como o adulto se relacionar com a criança através de uma linguagem que não a sua própria. Nesse sentido, trata-se, sobretudo, de reconhecer a diferença em jogo nesta relação, pois não há como escapar dela, tampouco, negá-la. Certamente, tal diferença produz uma série de mal-entendidos e traumas, mas que podem adquirir um sentido estruturante, na medida em que contribuem para o desenvolvimento e a organização psíquica da criança (Pinheiro, 1995Pinheiro T. (1995). Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.). O aprendizado das normas de higiene, por exemplo, pode ser traumático na medida em que obriga a criança a se submeter a uma lei externa, cuja motivo lhe escapa, sendo, contudo, absolutamente necessário e estruturante para o seu psiquismo.

Por esta via de entendimento, o trauma desestruturante, por sua vez, se institui para a criança quando o adulto se choca violentamente com sua linguagem da ternura, tornando inviável o processo de metabolização e reorganização psíquicas após o choque. Com efeito, a sedução sexual equivale a uma intrusão forçada. Nesse caso, a criança se sente ameaçada pelo que sobrevém supreendentemente do adulto. A violação física e psíquica está determinada, portanto, pelo exercício abusivo do poder e da autoridade de um adulto que desconsidera o desejo e o modo de funcionamento da criança, sendo o trauma o resultado dessa violação. Nesse contexto, as necessidades dos adultos prevalecem sobre as da criança na dinâmica psíquica da família (Cabré, 2017Cabré, L. M. (2017). El diario clínico de Ferenczi. In L. M. Cabré(Org.), Autenticidad y reciprocidade: um diálogo com Ferenczi(p. 23-32). Buenos Aires, AR: Biebel.).

Na sequência da cena narrada por Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933.), o adulto, agente da violência sexual, sente-se culpado e nega o ocorrido, afirmando para a criança que nada se passou. Tomada pela realidade da sua experiência, a criança busca outro adulto na família ou em seu entorno que lhe explique o acontecido. Este, por não suportar o que a criança lhe conta, desmente o relato, desconsiderando o seu vivido. Segundo Ferenczi (1992bFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928., p. 79), “[...] o pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento”. Com efeito, o que é desmentido é o próprio sofrimento da criança. Desse modo, é a conjunção entre a violência e o desmentido que configura o cenário traumático em Confusão de línguas. Para Cabré (2017Cabré, L. M. (2017). El diario clínico de Ferenczi. In L. M. Cabré(Org.), Autenticidad y reciprocidade: um diálogo com Ferenczi(p. 23-32). Buenos Aires, AR: Biebel.), o desmentido se apresenta como o aspecto mais violento do trauma, sendo um novo ataque à possibilidade de compreender o sentido do acontecimento.

É importante sublinhar que a dinâmica do desmentido pode acontecer em muitas situações quando são desconsiderados e desqualificados os pensamentos e os afetos da criança, lançando-a em um dilema inconciliável: confiar na verdade do adulto ou na verdade dos seus sentidos. O não olhar dos pais, por exemplo, para as feridas no corpo de uma criança ou para uma situação de bullying podem implicar em uma dinâmica do desmentido, na medida em que o que a criança expressa, com seu estado de ser ou com o seu corpo, não é acolhido como comunicação. Ou seja, quando os pais tratam com indiferença, frieza ou sem importância um acontecimento que afetou muito a criança. Desse modo, não só o sofrimento da criança é desmentido, mas a sua própria existência (Reis & Mendonça, 2018Reis, E. S., & Mendonça, L. G. L. (2018). Nas cinzas da catástrofe, a criança surge. In A. Maciel Jr. (Org.), Trauma e ternura: a ética em Sándor Ferenczi (p. 15-36). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras .). Dito de outro modo, “[...] o desmentido não só não confirma aquilo que aconteceu como também coloca em dúvida a própria existência daquele que o experienciou” (Knobloch, 1998Knobloch, F. (1998). O tempo do traumático. São Paulo, SP: FAPESP., p. 51).

Interessa-nos chamar a atenção para o fato de que até então a criança contava com a segurança dos laços familiares, mas, após o desmentido, a criança fica sem amparo. Ou seja, ela perde a condição de suporte e garantia de proteção familiares, em última instância, a confiança no vínculo. Resta uma solidão absoluta. O que agride, portanto, não é a violência em si, mas, sobretudo, a falta de apoio. Nessa direção, “[...] trata-se de uma experiência com o objeto em que o aspecto mais importante não é tanto o que aconteceu, mas o que não aconteceu” (Cabré, 2017Cabré, L. M. (2017). El diario clínico de Ferenczi. In L. M. Cabré(Org.), Autenticidad y reciprocidade: um diálogo com Ferenczi(p. 23-32). Buenos Aires, AR: Biebel., p. 29, tradução nossa)4 4 “[...] se trata de una experiencia con el objeto en la que el aspecto más importante no es tanto lo que ha sucedido, sino lo que no há sucedido”. . Dessa forma, o trauma traduz a ausência de uma resposta adequada do adulto em uma situação na qual a criança sente-se vulnerável, sem defesa, à beira da não existência, colocando em xeque toda confiança que deposita no adulto.

Considerando que os adultos são para a criança o suporte da confiança e das suas relações com o mundo e consigo mesma (Pinheiro, 1995Pinheiro T. (1995). Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.), o esgotamento dos recursos internos e de ajuda externa leva a criança a um estado de ‘comoção psíquica’ (Ferenczi, 1992aFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934.), mergulhando o psiquismo em agonias profundas. A vivência traumática engendra, então, a “[...] suspensão de toda a espécie de atividade psíquica, somada à instauração de um estado de passividade desprovido de toda e qualquer resistência” (Ferenczi, 1992aFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928., p. 113). Nesse contexto, a criança “[...] entrega a sua alma [...]”, como escreve Ferenczi (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 73), ausentando-se de si própria e do mundo a sua volta. Desse modo, passa a aceitar de maneira fácil e sem resistência a forma que lhe dão, “[...] à maneira de um saco de farinha” (Ferenczi, 1992aFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928., p. 109), perdendo sua forma própria. De acordo com Gondar (2017aGondar J. (2017a). O desmentido e a zona cinzenta. In E. S. Reis & J. Gondar (Org.), Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (p. 89-100). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras .), é possível pensar, também, que uma criança traumatizada se torne mais facilmente submetida ao desejo do outro, na medida em que o seu desejo não tem ou não teve qualquer importância.

Diante da “[...] autoridade esmagadora dos adultos” (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933., p. 102), a criança se sente sem defesa e perde a voz. Com as referências esgarçadas e tomada por um medo intenso, a criança se submete à vontade daquele que a violentou, incorporando sua culpa. Através do mecanismo de ‘identificação com o agressor’ (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934.), a criança passa a adivinhar e a obedecer seus desejos. Ao hospedar dentro de si o agressor, a criança converte a sua espontaneidade infantil em sentinela e docilidade, tornando-se um ser que funciona mecanicamente. Tamanha adaptação comporta, assim, “[...] uma dimensão de morte parcial, de perda e renúncia de uma parcela de individualidade” (Pinheiro & Viana, 2018Pinheiro, T., & Viana, D. (2018). Trauma, descrédito e masoquismo em Ferenczi. In A. MacielJr. (Org.), Trauma e ternura: a ética em Sándor Ferenczi (p. 46-61). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras ., p. 56). Por identificação, então, o adulto desaparece enquanto realidade exterior, tornando-se intrapsíquico. O modo como isso se processa no psiquismo pode ser compreendido, a partir da investigação do conceito de clivagem, como veremos a seguir.

A ação da clivagem

O conceito de clivagem está intimamente ligado à teoria do trauma na obra de Ferenczi. Trata-se de uma estratégia radical de sobrevivência psíquica quando as defesas se esgotam e a esperança de auxílio se esvai. Nesse contexto, opera-se uma ‘auto clivagem narcísica’, nos termos de Ferenczi (1992c)Ferenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., isto é, uma fragmentação psíquica por meio da qual se elimina a unificação insuportável do sofrimento, dispersando os efeitos traumáticos. Fragmentar-se implica em um processo de autodestruição em prol da sobrevivência psíquica. Nessa direção, Roussillon (1999Roussillon, R. (1999). Traumatisme primaire, clivage et liaisons primaires non symboliques. In R. Roussillon. Agonie, clivage et symbolisation(p. 9-34). Paris, FR: PUF.) postula que a clivagem opera por corte ou retirada da subjetividade. Nas suas palavras: “[...] o sujeito se retira da experiência traumática primária, ele se retira e ‘se corta’ da sua subjetividade. Ele assegura, este é o paradoxo, sua ‘sobrevivência’ psíquica se cortando de sua vida psíquica subjetiva” (p. 20, grifo do autor, tradução nossa)5 5 “[... ] le sujet se retire de l’expérience traumatique primaire, il se retire e se coupe de sa subjectivité”. . Segundo Knobloch (2016)Knobloch, F. (2016). Desafios clínicos: a escuta da ruptura. In Workshop realizado na Sociedade Psicanalítica da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ), Rio de Janeiro, RJ., tornar-se múltiplo se apresenta como uma saída para neutralizar o estado agonizante do traumático, na medida em que se amplia, pela fragmentação, a superfície de suporte do insuportável.

A imagem da clivagem ferencziana ganha contornos mais nítidos através do conceito de autotomia, tomado de empréstimo da biologia (Ferenczi, 2011aFerenczi, S. (2011a). O problema da afirmação do desprazer. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise III) (p. 431-443). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1926.). Trata-se de um conceito desenvolvido a partir de um modo de reação observado em alguns seres vivos elementares, como a lagartixa, por exemplo. Tal modo consiste em se desprender de pedaços do corpo, sede de uma excitação dolorosa e fonte de um sofrimento extremo, para permitir a salvaguarda do restante. De forma análoga, então, o indivíduo também abandona ou destrói partes de si, ao clivar-se, buscando, assim, apartar a dor da vivência traumática e seguir adiante. Ocorre, portanto, uma espécie de sacrifício de um pedaço de si em prol da sobrevivência do conjunto. Nas palavras de Ferenczi (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 240): “[...] o ser que fica só deve ajudar-se a si mesmo e, para esse efeito, clivar-se naquele que ajuda e naquele que é ajudado”.

O indivíduo se divide, então, “[...] numa parte sensível, brutalmente destruída, e numa outra que, de certo modo, sabe tudo, mas nada sente” (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933., p. 77). A parte que tudo sabe, observa a destruição de fora, a distância, como quem assiste a um filme. Cabe sublinhar que há pouca relação entre as partes clivadas, sendo que o afeto fica restrito a determinado elemento, não se transferindo aos demais (Dal Molin, 2016Dal Molin, E. C. (2016). O terceiro tempo do trauma: Freud, Ferenczi e o desenho de um conceito. São Paulo, SP: Perspectiva.). Dito de outro modo, as zonas fragmentadas coexistem no psiquismo, sem, contudo, estabelecer contato ou associação entre si, tampouco, entram em conflito. De fato, “[...] a cessão da interrelação dos fragmentos de dor permite a cada um dos fragmentos uma adaptabilidade maior” (Ferenczi, 1992aFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928., p. 248). Rompem-se, assim, as pontes possíveis entre a subjetividade e a objetividade do mundo. Tal ausência de nexos e coesão no psiquismo se traduz, muitas vezes, por uma dificuldade em se sentir presente, vivo e real, além de trazer sensações de estranheza, desalento e vazio.

De fato, por meio da “[...] ruptura entre sentimento e inteligência” (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 250), interrompe-se o sofrimento e o medo da morte (física e psíquica). Nessas condições, o sujeito não sente mais o estado traumático, posto à margem, mas também, não sente mais nada, anestesiando-se. Com relação à vida afetiva, de acordo com o pensamento ferencziano, ocorre um refúgio na regressão, de modo tal que o indivíduo não sente nenhuma emoção até o fim; no fundo, nunca é a ele que as coisas acontecem (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932.). Cabe precisar que não se trata aqui de uma insensibilidade, mas de uma desconexão afetiva oriunda da descontinuidade radical produzida pela ação da clivagem (Verztman, 2002Verztman, J. (2002). O observador do mundo: a noção de clivagem em Ferenczi. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 5(1), 59-78.). Ou seja, a aparente dessensibilização revela, no fundo, uma hipersensibilização. A inteligência, contudo, assume uma via progressiva, sendo superinvestida, como veremos em seguida.

De acordo com Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933.), quanto mais primários são os choques traumáticos, maior o número e a variedade de fragmentos clivados, resultando daí um estado psíquico radical de atomização e desorientação psíquicas. Contudo, é a fragmentação, ou seja, o processo de tornar-se múltiplo que permite suportar a realidade traumática. Com efeito, a partir dos fragmentos, surge um novo eu. Essa ‘neoformação’, nos termos de Ferenczi (1990), só é possível a partir da prévia destruição total ou parcial do eu precedente. Cabe sublinhar que frente à impossibilidade de produzir alterações no ambiente traumático de maneira aloplástica, muitas vezes, não resta alternativa ao indivíduo senão transformar a si mesmo, de modo autoplástico, engendrando uma nova subjetivação mais adaptada às circunstâncias externas (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932.).

A figura do bebê sábio

A figura do bebê sábio aparece pela primeira vez na obra de Ferenczi (2011bFerenczi, S. (2011b). O sonho do bebê sábio. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise III) (p. 223-224). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1923.) num pequeno artigo intitulado ‘O sonho do bebê sábio’, em 1923. Partindo desse sonho típico, ele coloca em cena o desejo infantil de suplantar os ‘grandes’ em sabedoria, desejo que, por sua vez, inverte a situação na qual a criança se encontra em relação ao adulto. A análise do referido sonho abre algumas vias de interpretação como, por exemplo, da criança que busca através do conhecimento elaborar suas teorias sobre a sexualidade. Contudo, tal figura ganha maior relevância após os avanços da teoria e da clínica do trauma nos anos 1930. Nesse contexto, o bebê sábio vem ilustrar a configuração psíquica de uma criança traumatizada que se torna extremamente adulta para dar conta do seu sofrimento psíquico na ausência de cuidado adulto. Nas palavras de Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., p. 104)

A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão de uma urgência traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente pré-formadas nela.

Trata-se, assim, da eclosão surpreendente e brusca de faculdades novas que surgem em resultado de um trauma. De acordo com Ferenczi (1992aFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., p. 248), uma ‘força interna’, proveniente de energias até então em repouso ou utilizadas para as relações de objeto, “[...] avalia com uma precisão matemática tanto a gravidade do trauma quanto a capacidade de defesa disponível [...]”, calculando o único comportamento psíquico e físico apropriado à situação dada. A esse propósito, Ferenczi (1990)Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932. menciona a existência de ‘forças órficas’, mobilizadas para a preservação da vida ‘custe o que custar’. Podemos compreender Orpha (feminino de Orfeu) como uma espécie de inteligência onipotente, agente de cura e princípio de salvação (Soreanu, 2018Soreanu, R. (2018). Magmas. In S. Raluca. Working-through collective wounds: trauma, denial, recognition in the brazilian uprising(p. 51-82). Londres, UK: Macmillan.), convocada quando a morte se encontra próxima, agindo, contudo, infatigavelmente, a favor da vida. Nesse contexto, “Orpha traz em si a emergência de hiper-faculdades e excesso de performances” (Soreanu, 2018Soreanu, R. (2018). Magmas. In S. Raluca. Working-through collective wounds: trauma, denial, recognition in the brazilian uprising(p. 51-82). Londres, UK: Macmillan., p. 23, tradução nossa)6 6 “Orpha brings an account of the emergence of hyper-faculties and over-performance”. , capaz de permitir uma adaptação à situação até então insuportável.

No lugar da regressão clássica da psicanálise, Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933.) propõe, então, uma fuga do sofrimento psíquico no sentido progressivo, o que pode ser descrito em termos de uma ‘progressão traumática’ ou ‘prematuração patológica’. Nessas circunstâncias, ocorre, portanto, um “[...] desenvolvimento súbito da inteligência, até da clarividência, em suma, uma fuga para frente” (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 251). A imagem evocada por Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., p. 104) ilustra poeticamente tal mecanismo: “Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais, quando o bico de um pássaro os fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado”. Cabe sublinhar que o rompimento entre inteligência e sentimento, como nos ensina a noção ferencziana de clivagem, é justo o que permite a coexistência de um estado emocional embrionário, ao mesmo tempo uma sabedoria intelectual como a de um filósofo compreensivo, matemático, inteiramente objetivo. Tal sabedoria, então, se sustenta na ausência de ligação entre o mundo objetivo e a subjetividade, entre os pensamentos e os afetos.

O que está em questão, portanto, é a possibilidade de que, em situações traumáticas, a inteligência se desligue do afeto, conquistando, por conseguinte, uma esfera de ação muito mais ampla. O intelecto, apartado da sensibilidade, adquire, assim, ares de autossuficiência, despertando uma sensação de triunfo e um mínimo de apaziguamento, a despeito do traumatismo (Mello, Féres-Carneiro, & Magalhães, 2015Mello, R., Féres-Carneiro, T., & Magalhães, A. S. (2015). A maturação como defesa: uma reflexão psicanalítica à luz de Ferenczi e Winnicott. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 268-276.; Mello & Herzog, 2012Mello, R., & Herzog, R. (2012). Psiquismos clivados: vazio de sentido e insistência no existir. Cadernos de psicanálise, 34(27), 65-81.). Nesse sentido, referimo-nos à certa idealização da sabedoria contra o sentido de vulnerabilidade, impotência e imprevisibilidade, próprios do traumático (Cabré, 2017Cabré, L. M. (2017). El diario clínico de Ferenczi. In L. M. Cabré(Org.), Autenticidad y reciprocidade: um diálogo com Ferenczi(p. 23-32). Buenos Aires, AR: Biebel.). Segundo Pinheiro (2016Pinheiro, T. (2016). Ferenczi. São Paulo, SP: Casa do Psícólogo., p. 158), “[...] inteligência é uma palavra pequena para um trabalho tão árduo”. De fato, como afirma Ferenczi (1992bFerenczi, S. (1992b). Análise de crianças com adultos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV)(p. 69-83). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1931., p. 78), “[...] todos nós sabemos que as crianças que muito sofreram, moral e fisicamente, adquirem os traços fisionômicos da idade e da sabedoria”.

Em uma nota do seu Diário clínico, Ferenczi (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 77) aponta claramente a relação entre trauma e inteligência: “[...] a inteligência da infeliz criança comportava-se, pois nas fantasias que estavam sendo analisadas, como uma pessoa à parte, que tinha por tarefa levar rapidamente socorro a uma criança quase mortalmente ferida”. Com efeito, o intelecto passa a se ocupar do cuidado de si, como um ‘anjo da guarda interno’ (Ferenczi, 1990). Em outra anotação clínica, podemos acompanhar descrição semelhante:

A paciente torna-se terrivelmente inteligente; em vez de odiar o pai ou a mãe, mergulhou tão profundamente pelo pensamento nos mecanismos psíquicos, nos motivos, até nos sentimentos (com a ajuda do seu saber quanto a estes últimos), que chegou a apreender com total clareza a situação antes insuportável, uma vez que tinha deixado de existir como ser dotado de sentimentos (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 251).

Para Ferenczi (1992bFerenczi, S. (1992b). Análise de crianças com adultos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV)(p. 69-83). São Paulo, SP: Martins Fontes. Original publicado em 1931., p. 78), “[...] tudo se passa verdadeiramente como se, sob a pressão de um perigo iminente, um fragmento de nós mesmos se cindisse sob a forma de instância autoperceptiva que quer acudir em ajuda”. Assim, uma parte de si começa a desempenhar o papel materno ou paterno, por assim dizer, tornando o abandono das figuras de cuidado nulo e sem efeito. A referida parte fica incumbida de estar alerta a tudo e a todos, conservando o frágil equilíbrio de que é guardiã (Pinheiro, 2016Pinheiro, T. (2016). Ferenczi. São Paulo, SP: Casa do Psícólogo.). De certa forma, “[...] o indivíduo se coloca acima de si mesmo e do agressor, alcançando níveis de abstração sempre mais elevados” (Cabré, 2017Cabré, L. M. (2017). El diario clínico de Ferenczi. In L. M. Cabré(Org.), Autenticidad y reciprocidade: um diálogo com Ferenczi(p. 23-32). Buenos Aires, AR: Biebel., p. 252, tradução nossa)7 7 “[... ] el indivíduo se coloca por encima de símismo y del agresor, alcanzando niveles de abstracción y generalización siempre más elevados”. . Dessa perspectiva, o intelecto se transforma em um substituto do cuidado parental e a criança renuncia a qualquer esperança de ajuda alheia. Dito de outro modo, a inteligência se ocupa do autocuidado, livrando a criança do perigo de estar à mercê de adultos pouco confiáveis, com os quais não se sente em segurança.

De acordo com a perspectiva ferencziana, o medo de adultos enfurecidos, de certo modo loucos, “[...] transforma a criança em psiquiatra” (Ferenczi, 1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933., p. 105). Nessa direção, o autocuidado recai em um cuidado dos adultos, o que se constitui, muitas vezes, como uma situação familiar de filiação invertida: a criança se torna pai ou mãe de seus próprios pais (Mello et al., 2015Mello, R., Féres-Carneiro, T., & Magalhães, A. S. (2015). A maturação como defesa: uma reflexão psicanalítica à luz de Ferenczi e Winnicott. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 268-276.). Decorre daí, então, um processo de ‘inversão de adaptação’ (Liberman, 2013Liberman, A. (2013). “Escisión” e “identificación con el agressor” em El diario clínico de Sándor Ferenczi. Revista de La Sociedad Argentina Psicoanálisis, (17), 151-164.), através do qual as crianças se adaptam, sobremaneira, às necessidades dos adultos e não o contrário. Para tanto, as necessidades caras ao universo infantil precisam ser desconsideradas e colocadas entre parênteses. Nesse cenário, podemos testemunhar o desenvolvimento de uma espécie de atividade meteorológica, como afirma Rabain (2010Rabain, J-F. (2010). Freud ou Winnicott? La place du père et de la mère dans la construction psychique. Mag Philo: Freud, le retour. Recuperado de : http://www.cndp.fr/magphilo/index.php?id=28
http://www.cndp.fr/magphilo/index.php?id...
), a propósito do ‘bebê meteo’. O autor refere-se, assim, às crianças que estudam as variações do ambiente familiar para adaptar-se adequadamente, tal como os meteorologistas estudam o céu para predizer o tempo que vai fazer.

Trata-se aqui do que Ferenczi (1992cFerenczi, S. (1992c). Confusão de línguas ente adultos e crianças. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 97-106). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1933.) designa como ‘terrorismo do sofrimento’, a partir do qual as crianças se veem obrigadas a resolver toda espécie de conflitos familiares e carregam sobre si o fardo dos dramas, muitas vezes, intergeracionais. Nota-se que não há um objetivo altruísta nesta tomada megalômana de responsabilidade por parte da criança em relação aos pais, mas, uma tentativa de restaurar certa estabilidade no ambiente, assegurando sua própria vida no interior da família. Desse modo, acabam tornando-se indivíduos bons e prestimosos, crianças, muitas vezes, ditas perfeitas, estendendo aos outros o cuidado e a sabedoria adquirida a duras penas.

Nessas condições, a extraordinariedade do intelecto convive lado a lado com o cotidiano ordinário de uma vida sem presença afetiva. Nesse sentido, o avanço dos processos de maturação da criança exige alta dose de sacrifício, paga com uma moeda bastante cara ao universo infantil: a espontaneidade afetiva.

Considerações finais

Em certa sessão de análise, uma criança ‘sábia’, com aproximadamente oito anos, expressou o seu desejo de inventar uma máquina do tempo. Tal máquina lhe permitiria ser criança quando adulta. Eis aqui uma bela imagem do processo analítico na clínica com os ‘bebês sábios’. Caberia ao analista, portanto, assegurar as condições necessárias para uma inversão de sentido nos processos de maturação pelas vias da regressão e da entrega relaxada aos cuidados analíticos. Por essas vias, o ‘anjo da guarda interno’ da criança pode ser gradativamente transferido para o analista, figura capaz de sustentar o lugar de cuidado, reconhecimento e suposto saber, avesso do trauma.

Considerando que a clivagem se engendra na solidão, no silêncio e no desamparo da criança com relação aos adultos importantes para o seu existir, tratar-se-ia de criar um vínculo para resgate da confiança. Nesses termos, a naturalidade e a honestidade do analista se apresentam como o meio mais favorável à situação analítica com os ‘bebês sábios’, em contraposição à neutralidade e, muitas vezes, insinceridade, do analista. Nas palavras de Ferenczi (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 161), “[...] o paciente deve sentir que o analista compartilha com ele da dor e que também faz sacrifícios para apaziguá-la”. O reconhecimento do sofrimento é compreendido aqui como o oposto do desmentido, especialmente, em se tratando de crianças que desconfiam das suas próprias percepções. Torna-se fundamental, assim, construir uma ‘atmosfera psicológica adequada’ (Ferenczi, 1992bFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928.), propícia a uma experiência de ‘baixa guarda’, menos vigilância, acessando aí um novo modo de existir.

Para tanto, de acordo com Ferenczi (1992dFerenczi, S. (1992d). Elasticidade da técnica psicanalítica. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 25-36). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1928.), o analista deve ser capaz de ‘sentir com’ o seu paciente, valorizando a via do sensível na comunicação. O conceito de ‘tato’ (Ferenczi, 1992d) é fundamental para a compreensão da disponibilidade necessária para entrar em contato com aquilo que o paciente sente. Nesse sentido, é preciso sintonizar com as mais diversas modulações de expressão afetiva, experimentando o impacto do sofrimento da criança em sua própria carne (Reis, 2017Reis, E. S. (2017). A morte do sentido e a violação da alma. In E. S. Reis & J. Gondar (Org.), Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (p. 78-88). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras .). Nesse contexto, é importante não perder a dimensão da diferença de linguagens entre nós, analistas adultos, e as crianças em análise, com o risco de reproduzir a violência do desmentido. Seria preciso, então, disponibilidade para experimentar junto com a criança a sua sensação de si e do mundo, abrindo-se para os códigos, sentidos e vocabulários da infância.

Cabe precisar que a integração das partes clivadas não se apresenta como o objetivo último da análise, não se tratando, portanto, de ‘desclivar’ o psiquismo. Dessa perspectiva, consideramos necessário abrir mão das pretensões unificadoras, suportando o funcionamento fragmentário, sem esquecer que as ligações, os nexos e as associações são dolorosas. Vale sublinhar que a clivagem não é apenas uma reação patológica, mas uma estratégia de sobrevivência, ou ainda, uma tentativa de cura do traumatismo (Gondar, 2017bGondar J. (2017b). O analista como testemunha. In E. S. Reis & J. Gondar(Org.), Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (p. 186-198). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras.). Certamente, é importante criar pontes entre o intelecto e o afeto, contudo, tais pontes devem ser encaradas como um desdobramento do avanço do processo analítico e não como uma exigência de trabalho a ser imposta. Desse modo, segundo Ferenczi (1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 119), “[...] a tarefa da análise consiste em chamar a alma para vida a partir dessas cinzas”. Ou ainda, “[...] fazer reviver, por assim dizer, a alma que se rendeu, com tato, mas com energia, e levar lentamente esse fragmento morto ou clivado a admitir que, na verdade, não está morto” (Ferenczi, 1990Ferenczi, S. (1990). Diário clínico. São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1932., p. 73).

Devemos, então, perceber onde a vida pulsa, apostando que, não apenas a parte brutalmente destruída e morta pode renascer, como formas inéditas de experimentação da vida podem surgir. Isso implica em um fazer analítico capaz de ‘vitalização ou revitalização’ (Coelho Junior, 2018Coelho Junior, N. E. (2018). A matriz ferencziana. In L. C. Figueiredo & N. E. Coelho Junior(Org.), Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura(p. 117-185). São Paulo, SP: Blucher.), acolhendo, assim, lampejos de desejo, brasas sob cinzas. Trata-se assim, de compreender a análise como um processo de testemunho da dor, mas também como um espaço de reconciliação e reencantamento com o mundo (Reis, 2017Reis, E. S. (2017). A morte do sentido e a violação da alma. In E. S. Reis & J. Gondar (Org.), Com Ferenczi: clínica, subjetivação, política (p. 78-88). Rio de Janeiro, RJ: 7 Letras .). Quem sabe, assim, os fragmentos intelectuais encontrem algum repouso e novos circuitos para os afetos sejam criados. Nas palavras de Ferenczi (1992aFerenczi, S. (1992a). Notas e fragmentos. In S. Ferenczi. Obras completas (psicanálise IV) (p. 235-284). São Paulo, SP: Martins Fontes . Original publicado em 1934., p. 117):

Talvez não lhe possamos oferecer tudo o que lhe caberia em sua infância, mas só o fato de podermos vir em sua ajuda já proporciona o impulso para uma nova vida, na qual se fecha o dossiê de tudo o que se perdeu sem retorno e, além disso, efetuado o primeiro passo, é permitido contentar-se com o que a vida oferece, apesar de tudo, não rejeitar tudo em bloco [...]

Apesar de tudo, vale insistir na criação de um mundo possivelmente melhor, criação contínua, sempre por se fazer. Por fim, a poesia de Wislawa Symborska (2016Symborska, W. (2016). Um amor feliz. São Paulo, SP: Companhia das Letras., p. 229), mais uma vez, nos serve como lembrete: “[...] diferenciar a dor de tudo que não é ela”.

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  • 1
    Apoio e financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
  • 4
    “[...] se trata de una experiencia con el objeto en la que el aspecto más importante no es tanto lo que ha sucedido, sino lo que no há sucedido”.
  • 5
    “[... ] le sujet se retire de l’expérience traumatique primaire, il se retire e se coupe de sa subjectivité”.
  • 6
    “Orpha brings an account of the emergence of hyper-faculties and over-performance”.
  • 7
    “[... ] el indivíduo se coloca por encima de símismo y del agresor, alcanzando niveles de abstracción y generalización siempre más elevados”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2018
  • Aceito
    18 Abr 2019
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