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Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora

RESENHA

Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora1 1 Boarini, M. L. & Borges, R. F. (2009). Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora. Maringá, Eduem.

Nádia Mara Eidt

Doutora em Educação Escolar. Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Nádia Mara Eidt Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho–UNESP Departamento de Psicologia Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 CEP 17033-360, Bauru-SP, Brasil E-mail: nadiaeidt@fc.unesp.br

No livro "Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora", Maria Lúcia Boarini e Roselania Francisconi Borges apresentam resultados da pesquisa intitulada "A farmacologização da infância em idade escolar", na qual problematizam especialmente a alta incidência da prescrição do cloridrato de metilfenidato para tratamento do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Tal quadro é descrito como uma "síndrome caracterizada por comportamento hiperativo e inquietude motora, desatenção marcante, falta de envolvimento persistente nas tarefas e impulsividade" (Lima, citado por Boarini & Borges, 2009, p. 20).

Atualmente, a epidemia de diagnósticos de TDAH e o uso indiscriminado de metilfenidato – também chamado de "droga da obediência" – caracterizam um problema de saúde pública, a despeito da falta de concordância entre os profissionais da área de saúde e educação acerca da existência ou não dessa "doença psíquica", bem como da ausência de consenso sobre o uso de psicotrópicos em idade escolar.

O livro é organizado em quatro capítulos, intitulados, pela ordem, "Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade: uma questão controversa", " TDAH, a educação escolar e a família"; "Algumas histórias de vida e um diagnóstico que se repete"; e "A caminho do 'desconhecido mundo novo'".

A análise histórica, desenvolvida pelas autoras no primeiro capítulo, mostra que, no Brasil, a busca de soluções médicas para enfrentamento de problemas relacionados ao processo de aprendizagem escolar tem origem no início do século XX. Nessa época, médicos higienistas centravam seus esforços em duas direções: classificar a população escolar em dois grandes grupos - o dos capazes e o dos incapazes - e estimular as crianças a adquirirem "hábitos sadios". Assim, a escola desempenhava importante papel na moralização e regeneração da população brasileira, contribuindo para o processo de higienização social. Um século se passou sem que a ideia de que é possível solucionar os problemas da educação escolar a partir de intervenções individuais mostrasse sinais de envelhecimento.

No mesmo capítulo (Boarini & Borges, 2009) recuperam também a história da medicalização das supostas alterações orgânicas e/ou genéticas, que justificariam o insucesso escolar de uma parcela significativa da população. Comportamentos desatentos e hiperativos apresentados por vítimas de uma epidemia de encefalite letárgica ocorrida em 1819 nos Estados Unidos foram entendidos pela medicina da época como consequência de possíveis lesões no sistema nervoso central, provocadas pela referida doença. A partir de então, as pesquisas da época passaram a generalizar esse dado, considerando que crianças com comportamento semelhante seriam igualmente portadoras de alguma lesão cerebral. Em 1950 surge o conceito de "síndrome hipercinética" e, com ele, a difusão do tratamento à base de medicamentos, pautado na mera constatação empírica da mudança de comportamento que acompanhava sua administração.

No capítulo "TDAH, a educação escolar e a família", (Boarini & Borges, 2009) discutem processos de naturalização vigentes no interior dessas instituições. No que se refere à escola, historicamente, as dificuldades de aprendizagem – entendidas como problemas individuais decorrentes de problemas emocionais ou orgânicos – ajudaram a justificar os elevados índices de fracasso escolar verificados na realidade brasileira. Desde algumas décadas a indisciplina, a violência escolar e problemas de desatenção e agitação vêm engrossando o rol das queixas escolares. O enfrentamento dessas questões por parte dos educadores tem sido feito, em grande medida, mediante o encaminhamento de escolares a especialistas como médicos e psicólogos, e mais recentemente, ao conselho tutelar. Verifica-se, nesse processo, o deslocamento do eixo de discussões político-pedagógicas para a busca de causas orgânicas, isto é, centradas no organismo da criança. Nessa direção, concepções naturalizantes sobre processos de aprendizagem ainda subsidiam a compreensão dos motivos que levam ao fracasso escolar e são propostas soluções alheias às práticas educativas. No que se refere à família, as autoras alertam para o fato de que o modelo patriarcal vem se modificando ao longo da história, a partir das transformações no modo de produção da vida material. Faz-se necessário compreender tais transformações, bem como superar concepções baseadas em um ideal de família, a fim de romper a relação ideológica, linear e simplista entre fracasso escolar, dificuldades de aprendizagem e problemas familiares.

No terceiro capítulo - "Algumas histórias de vida e um diagnóstico que se repete" - as autoras acompanharam o processo de diagnóstico de três crianças cuja queixa escolar versava sobre problemas de comportamento. A reconstrução dessa queixa evidencia as contradições vividas pela criança, seus pais, professores e médicos envolvidos no encaminhamento, avaliação e diagnóstico do TDAH. Embora a literatura considere que nesse processo de diagnóstico do referido transtorno deve ser feito a partir do estudo do comportamento da criança e que a escola e a família têm papel decisivo no processo, o que se verifica é a ausência de diálogo entre os envolvidos. Nos casos relatados, o diagnóstico foi feito sem que se compreendessem as múltiplas determinações presentes no processo de ensino-aprendizagem escolar. Relatórios enviados pela escola que sintetizam em poucas linhas o que a criança não faz – sem que sejam discutidas práticas pedagógicas subjacentes – foram instrumentos decisivos para o aumento da dosagem do medicamento. Contraditoriamente, quando os referidos documentos evidenciam o desenvolvimento de habilidades e capacidades, não se verifica a redução da dose ou a suspensão da administração.

O capítulo aborda o caráter fetichizador atribuído por algumas professoras e mães à medicação: umas e outras têm dificuldades em reconhecer o papel da escola na promoção da aprendizagem e do desenvolvimento da criança. O texto evidencia a função quase excessivamente disciplinadora da educação, expressa na "normatização atitudinal" dos alunos, bem como a percepção das crianças sobre os motivos que as levaram ao consumo do metilfenidato (uma das crianças afirma que toma Ritalina "Pra ficar quietinho!"). O capítulo revela, ainda, as dúvidas e angústias de professores tanto em relação ao diagnóstico do TDAH quanto sobre os reais ganhos do uso do metilfenidato. Algumas professoras mostram-se convencidas da ausência de uma doença que justifique o não aprender. Isso se expressa em falas como: "Ele é igual aos outros. Eu chamo a atenção de vários alunos e dele também".

Por fim, no último capítulo, "A caminho do 'desconhecido mundo novo'", (Boarini & Borges, 2009) fazem uma alusão ao livro "Admirável mundo novo", ficção escrita em 1932 por Aldous Huxley. Nessa obra o autor menciona o "soma", substância química que acalma e garante a harmonia e felicidade à sociedade. Tal prática é hoje muito mais do que parte de um antigo livro de ficção: a busca por soluções rápidas e pouco trabalhosas constitui um novo padrão a ser seguido, no qual os psicotrópicos, disponíveis em qualquer farmácia, têm papel central. As autoras questionam, assim, os limites de intervenções que têm no cloridrato de metilfenidato a solução dos problemas vividos pela criança no interior da escola: por um lado, tal prática desconsidera a complexidade das relações sociais vigentes no capitalismo contemporâneo e limita as possibilidades de se agir sobre suas reais causas; por outro, a ciência ainda não tem clareza acerca dos efeitos futuros da adesão a tratamentos psicotrópicos, sobretudo de longo prazo. Como bem assinalam as autoras, é preciso pensar se, com práticas que buscam soluções imediatas para problemas complexos, a humanidade não corre o risco de estimular a abertura da "Caixa de Pandora" que se encontra sob seu domínio.

Recebido em 30/04/2010

Aceito em 13/05/2010

  • Endereço para correspondência:

    Nádia Mara Eidt
    Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho–UNESP
    Departamento de Psicologia
    Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01
    CEP 17033-360, Bauru-SP, Brasil
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    Boarini, M. L. & Borges, R. F. (2009). Hiperatividade, higiene mental e psicotrópicos: enigmas da caixa de Pandora. Maringá, Eduem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2010
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