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RECONHECIMENTO E EXPANSÃO DE FRONTEIRAS NAS ABORDAGENS CRÍTICAS SOBRE DEFICIÊNCIA

As manifestações conhecidas como o movimento Occupy (Ocupe) tomaram conta da Europa no final de 2011. Originadas nos países da região norte do continente africano, as mobilizações envolveram contingentes significativos da população, propondo uma presença maciça nos espaços públicos, ocupando-os fisicamente e expondo alguns dos mais relevantes problemas da sociedade moderna (Harvey et al., 2012Harvey, D., Teles, E., Sader, E., Alves, G., Carneiro, H. S., Wallerstein, I., Safatle, V. (2012). Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas. São Paulo, SP: Boitempo.). Em diferentes locais os protestos destacaram temas como a democratização em países sob regimes de ditadura, o direito à participação popular, o acesso digno a emprego e educação e a organização econômica moderna.

A versão norte-americana com destaque em mídia, oOccupy Wall Street, lançou luz sobre a desigualdade social, a má distribuição de riqueza e poder e a falta de garantia dos direitos de uma grande parcela da população. Não por acaso, o impacto da economia global no cotidiano dos cidadãos passou a se tornar um campo fértil de questionamentos também das forças que sustentam - e as possíveis ou imagináveis soluções para superar - a invisibilidade de determinados grupos da população, em toda sua heterogeneidade. Assim, a referência à “ocupação” ganha um novo conjunto de estudos a partir de uma obra lançada em 2016, cujos autores abordam os temas presentes no movimentoOccupy, seus sentidos e relações na compreensão do fenômeno da deficiência.

O livro Occupying disability: critical approaches to community, justice and decolonizing disability (Ocupando a deficiência: abordagens críticas sobre comunidade, justiça e descolonização da deficiência, tradução nossa) organizado por Pamela BlockBlock, P., Kasnitz, D., Nishida, A., & Pollard, N. (Orgs.). (2016). Occupying disability: critical approaches to community, justice and decolonizing disability. Dordrecht, HO: Springer., Devva Kasnitz, Akemi Nishida e Nick Pollard é uma obra internacional sobre deficiência que reúne textos de trinta e nove autores de diferentes áreas, com uma diversidade de perspectivas críticas a respeito da deficiência.

Os autores colaboradores são oriundos de diferentes espaços de atuação profissional, acadêmica e de ativismo. Assim, suas perspectivas incluem a teoria, prática e experiência da deficiência. Os temas principais da obra incluem: as variações do conceito de ocupar; o ativismo da deficiência e o trabalho de descolonização; marginalização e minoritização; tecnologia; luta, criatividade e mudança. Seus objetivos convergem em considerar a deficiência não como patologia ou impedimento (impairment), mas como uma série de identidades e experiências sociais únicas. Tais experiências são configuradas a partir deum espectro das diferenças, ligadas a valores socioculturais, representações acerca da deficiência e barreiras ambientais.

A obra é dividida em três partes: 1) Descolonizando a deficiência; 2) Deficiência e comunidade; 3) Luta, criatividade e mudança. Ainda que não intencional, preserva-se uma ordem de temporalidade entre as partes - respectivamente passado, presente e futuro.

A primeira parte, 'Descolonizando a deficiência', foca no contexto das estruturas sociais de poder opressivo que criam e recriam a deficiência a partir da diferença como forma de controle. Para o enfrentamento dessa realidade, sustenta-se a ideia da descolonização proativa, em que é necessário o reconhecimento de se estar colonizado e de seus atravessamentos nos mecanismos do capacitismo.

Sobre os conceitos supracitados, o capacitismo, ou ableísmo (do inglês ableism), refere-se ao preconceito e discriminação contra pessoas com deficiência. Nesta concepção, a pessoa com deficiência é percebida pelo viés da falta, do déficit, sugerindo ser menos humana, capaz, produtiva e inteligente (Gabel & Connor, 2009Gabel, S. L., & Connor, D. J. (2009). Theorizing disability: implications and applications for social justice in education. In W. Ayes, T. Quinn & D. Stovall (Eds.), Handbook of social justice in education (p. 377-399). New York, NY: Routledge.). Em síntese, Valle e Connor (2014)Valle, J. W., & Connor, D. J. (2014). Ressignificando a deficiência: da abordagem social às práticas inclusivas na escola (F. de S. Rodrigues, trad.). Porto Alegre. RS: AMGH. definem o ableísmo como a crença de que as pessoas fisicamente aptas são superiores às pessoas com deficiência. Já o colonialismo, conforme abordado, não parte de uma mera metáfora. Trata-se de um fenômeno característico de um momento histórico em que os colonizadores ditavam ordens aos colonizados. Essa forma de relação é correspondente à ordem médica, que atualmente estabelece rótulos por meio dos diagnósticos e medicaliza a deficiência. Portanto, a proposta do livro é de romper com a colonização da deficiência, por compreender que esta tem se tornado cada vez mais medicalizada e a medicina cada vez mais capacitista.

A segunda parte é designada 'Deficiência e comunidade'. Constituída por oito capítulos, sustenta-se que a deficiência pode ser uma base para a comunidade. Esse conceito aparentemente simples, o de comunidade, é explorado no livro a partir das identidades sociais e atividades ocupacionais de seus componentes. A partir de um ponto de vista estruturalista, a comunidade comporta distintas características: pode ser real ou imaginária; definida internamente ou não possuir qualquer definição; ser física ou virtual. Nesse sentido, são citados exemplos de comunidades que combinam, de forma singular, aspectos geográficos e comunicacionais.

Alguns dos capítulos abordam os conflitos identificados na relação entre comunidade e ocupação - aqui tomada no sentido de trabalho ou o que se faz para viver. Nessa compreensão, o exercício profissional do terapeuta ocupacional ofertado às pessoas com deficiência é objeto de discussão, na medida em que repercute na vivência dos destinatários de tais serviços, em especial na construção de autonomia. A partir daí são destacados questionamentos quanto às possibilidades de que grupos de clientes/pacientes constituam uma comunidade como forma de movimento e participação social verdadeira.

Nessa parte do livro são discutidos outros contextos de relação de oferta de trabalho, como o planejamento educacional conjunto entre educadores e familiares de crianças com deficiência, bem como outras formas de constituição de comunidade.

A terceira parte, 'Luta, criatividade e mudança', agrega nove capítulos que contemplam diferentes formatos de escrita, como poemas, diálogos e imagens. Como evidencia o título, um dos principais temas tratados aqui é a luta. Seja na relação entre economia e acesso à tecnologia, ou na forma como um autor surdo/cego analisa sua rotina relacionada àqueles que lhe prestam os cuidados, os capítulos apresentam aspectos da vida humana que requerem atenção. Entres estes, fenômenos aparentemente simples, porém cruciais, como a comunicação. Não se trata de ser ouvido, de ter uma voz; há necessidade de que a comunicação ocorra de acordo com as singularidades dos diferentes grupos e que, dessa forma, estes se sintam representados. Considerando que as metáforas frequentemente priorizam qualquer um dos sentidos em detrimento de outros, visto que as palavras não são neutras, lutar traz à tona o que diferentes grupos sentem como necessário em suas experiências cotidianas.

Os organizadores do livro o situam, intencionalmente, naquilo que chamam de 'zona de desconforto'. Este é o terreno no qual reconhecem e respeitam os limites, as fronteiras, entre os diferentes discursos dos ativistas, pesquisadores e profissionais ligados à deficiência. Ao mesmo tempo, ampliam tais limites, empurrando-os e criando intersecções, sobreposições, até mesmo tensões entre diferentes perspectivas acerca da deficiência.

A compreensão do livro, em si, requer que se experimente a “zona de desconforto”. Uma concepção unificada do livro seria apenas parcial, considerando que o caráter anárquico presente na escrita, oriundo dos diferentes backgrounds dos autores, traduz a multiplicidade necessária para compor esta zona. Por meio dela, ocupar a deficiência corresponde a um sentido que permite agregar ideias até mesmo divergentes, de maneira que não sejam excludentes.

A expressão de tais ideias varia conforme os contextos históricos e culturais dos autores, os limites das profissões, as áreas acadêmicas de conhecimento e os meios de ativismo nas quais são originadas. Isso implica desafios tanto para quem produz conhecimento quanto para seus possíveis destinatários. Alguns autores, identificados como ativistas com deficiência, comunicam-se através de uma linguagem carregada politicamente. Já estudiosos do meio acadêmico expressam o conhecimento produzido de acordo com as premissas desse contexto, seguindo a linguagem científica. Como se observa, os editores da presente obra evitam a excessiva polarização binária para compreender a deficiência.

Se a ocupação comporta também um sentido de exercício profissional, expresso no livro a partir dos estudos e experiências de terapeutas ocupacionais, médicos, antropólogos e artistas, há de se considerar a importância dessa compilação de estudos à Psicologia. A produção nacional altamente centralizada no saber das ciências da saúde, partindo do pressuposto do modelo biomédico da deficiência, convoca essa área do conhecimento a debater e produzir conhecimento coerente com o modelo social de deficiência. Seja pelo questionamento do exercício profissional, da formação acadêmica ou da produção científica, transitar pela 'zona de desconforto' se traduz como um exercício fértil - se não essencial - à Psicologia.

Referências

  • Block, P., Kasnitz, D., Nishida, A., & Pollard, N. (Orgs.). (2016). Occupying disability: critical approaches to community, justice and decolonizing disability Dordrecht, HO: Springer.
  • Gabel, S. L., & Connor, D. J. (2009). Theorizing disability: implications and applications for social justice in education. In W. Ayes, T. Quinn & D. Stovall (Eds.), Handbook of social justice in education (p. 377-399). New York, NY: Routledge.
  • Harvey, D., Teles, E., Sader, E., Alves, G., Carneiro, H. S., Wallerstein, I., Safatle, V. (2012). Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas São Paulo, SP: Boitempo.
  • Valle, J. W., & Connor, D. J. (2014). Ressignificando a deficiência: da abordagem social às práticas inclusivas na escola (F. de S. Rodrigues, trad.). Porto Alegre. RS: AMGH.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2017
  • Aceito
    23 Out 2017
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