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JUVENTUDES PERIFÉRICAS: ARTE E RESISTÊNCIAS NO CONTEMPORÂNEO

JUVENTUD PERIFÉRICA: EL ARTE Y LAS RESISTENCIAS EN CONTEMPORÁNEO

PERIPHERAL YOUTHS: ART AND RESISTANCE IN CONTEMPORARY

Resumos

Este artigo é fruto de uma pesquisa que tencionou colocar em análise os modos de vida de juventudes periféricas na constituição de forças de resistências que têm se dado no contemporâneo. Tratamos das forças que compõem uma periferia permeada de produções marginais e também de criações, tendo como campo de análise e de intervenção os trabalhos realizados por uma Organização Não Governamental, que trabalha com o ensino da arte musical dirigida a jovens. A pesquisa realizada abarcou vivências institucionais neste espaço, durante um período de nove meses, efetuando conversações com jovens que participam das oficinas de música e/ou que atuam como monitores. Os dados produzidos evidenciam que, em meio às produções que marginalizam os modos de vida nos territórios periféricos, assistimos à invenção de existências que escapam a essas forças marginais e que, no encontro com a arte, fazem consistir devires minoritários, mais especificamente, no caso deste estudo, devires periféricos.

juventudes; devir periférico; resistências; arte.


Este artículo es el resultado de una investigación que pretende cuestionar las formas de vida de juventudes periféricas y de fuerzas de resistencia que se dan en el contemporáneo. Fuerzas que conforman una periferia impregnada con producciones marginales y también de creaciones, que se analizan desde un trabajo de campo realizado en una Organización No Gubernamental com acciones dirigidas a la educación del arte musical para jóvenes. La investigación abarcó experiencias institucionales en este espacio, durante nueve meses, y también conversaciones con los jóvenes que participan en los talleres de música o actuando como monitores. Los datos muestran que, en medio de las producciones que marginan los modos de vida en estos territorios, asistimos a la invención de existencias de escape a las fuerzas marginales que, en reunión con el arte, consisten en devenires minoritarios, más concretamente, en el caso de este estudio, devenires periféricos.

juventud periférica; devenires periféricos; resistencias; arte.


This article is the result of a research that purposed an analysis of peripheral youth's lyfestiles in the formation of contemporary resistance forces. We treat the forces that make up an outskirt permeated of marginal productions and also creations, having as the field of analysis and intervention the work carried out by a non-governmental organization which works with the teaching of musical art directed to the young. The survey encompassed institutional experiences in this space, for a period of nine months, making conversations with young people who participate in music workshops and / or act as monitors of the same. The data produced show that among the productions that marginalize the ways of life in peripheral areas, we witnessed the invention of existences that escape from these marginal forces and that, in the encounter with art, make consist minority becomings, more specifically, in the case of this study, peripheral becomings.

youth; peripheral becomings; resistance; art.


Introdução

O presente artigo é fruto da pesquisa de mestrado intitulada "Pra não dizer que não falei das flores: jovens e resistências no contemporâneo", que tencionou colocar em análise os modos de vida de juventudes periféricas, ressaltando a constituição de forças de resistências que têm se dado no contemporâneo. Retirando a noção de resistências do lugar de oposição a um poder para pensá-la como criação e, portanto, numa relação cada vez mais intrínseca com as forças de captura do poder hegemônico, transitamos entre experiências tecidas por jovens em meio às produções que marginalizam os modos de vida nos territórios periféricos e à invenção de outras formas de existência que o encontro com a arte produz.

Por meio deste estudo nos aproximamos de jovens que residem em áreas periféricas da cidade de Niterói e que são alvos de um projeto social que traz como matéria-prima de trabalho a arte musical. Nosso intuito consistiu em acompanhar o modo como os referidos jovens, em seus processos de convivência coletiva e de aprendizagem da música, criam maneiras de viver e de combater uma dimensão do periférico que insiste em colocá-los no lugar de inúteis, de possíveis criminosos, de vítimas, entre outros contornos tecidos em meio aos mais diversos regimes de invisibilidades e também de visibilidades (Foucault, 1987Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes.) definidos principalmente pelos meios midiáticos dominantes, daquilo que consideram importante mostrar ou omitir.

A dimensão do periférico nesta pesquisa não se refere, portanto, ao modo como a periferia vem sendo tratada, ou seja, como exclusão. Aludimos, sim, à possibilidade de constituir, numa condição periférica, forças de invenção de outros modos de existência que efetuem embates com os modos de vida dominantes. Dessa maneira, não estamos opondo centro à periferia, mas afirmando que o capital opera, de forma fluida e temporária, processos de "perifericização" concomitantes à produção dos centros.

Na realização desta pesquisa, utilizamos como aportes as contribuições da Análise Institucional, apostando-se na pesquisa-intervenção como ferramenta de trabalho para o encontro com o campo. A pesquisa-intervenção rompe com um modo de fazer pesquisa, em geral pautado em categorias como a objetividade, a neutralidade científica e a precisão metodológica, deixando que ganhe evidência o percurso, isto é, o acompanhamento dos processos em jogo no andamento da pesquisa. Tal modo de fazer pesquisa emerge como um instrumento que nos possibilita interrogar os múltiplos sentidos cristalizados nas instituições, permitindo-se colocar em análise "...os efeitos das práticas no cotidiano institucional, desconstruindo territórios e facultando a criação de novas práticas". (Rocha & Aguiar, 2003, p. 68Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a produção de novas análises. Psicologia: ciência e profissão, 4, 64-73.). No sentido aqui proposto, o campo é tomado concomitantemente como campo de intervenção e de análise, em que o processo de se pensar sobre o tema desloca-se para um pensar junto com o campo e na relação que se tem com ele.

Na pesquisa efetuada, fizemos conexões com os trabalhos desenvolvidos por uma Organização Não Governamental (ONG) situada no bairro da Grota do Surucucu, em Niterói/RJ, chamada hoje de Espaço Cultural da Grota (ECG).

Primeiramente, este projeto, criado por uma professora aposentada que residia próxima à Grota, objetivava construir um espaço de convivência entre as crianças daquela localidade mediante uma horta comunitária que conjugava aulas de jardinagem, artesanato e reforço escolar. A inserção do ensino da música no projeto se deu, inicialmente, como mais uma das atividades oferecidas no espaço. Mas, com a morte da precursora do projeto, abdicam das atividades, até então, desenvolvidas e todo o investimento volta-se prioritariamente ao ensino da música. Em 2007, a Horta, como denominado o terreno onde eram realizadas tais atividades, transformou-se em Espaço Cultural da Grota. Por meio de parcerias institucionais, trabalha, hoje, com crianças e jovens de diversas faixas etárias principalmente através do ensino de música, da aproximação com experiências artísticas, da ampliação da diversidade cultural, da complementação e do reforço educacional, da profissionalização e da inserção no mercado de trabalho. Hoje acolhe alunos não somente moradores da Grota, mas também de localidades mais distantes1.

No campo musical, as crianças, adolescentes e jovens iniciam-se no projeto com aulas de flauta doce, visto que tal instrumento é de simples manuseio, baixo custo e facilitador do aprendizado de teoria musical. Após a iniciação, os alunos escolhem o instrumento que desejam estudar, dentre eles: violino, violoncelo, contrabaixo, viola de arco ou, ainda, canto, flauta transversa e percussão. Acrescentam-se, ainda, cursos/oficinas de produção e edição de áudio e vídeo; estes últimos ofertados de modo irregular em função de dependerem de professores voluntários ou incentivos financeiros advindos de parcerias com outras organizações.

No processo da pesquisa, construímos um diário de campo e realizamos entrevistas com alguns jovens que compunham o ECG. O diário era escrito após ou durante as reuniões de equipe, após conversas de corredor, durante a espera sentada no pátio, imersa em pensamentos acerca do que afligia a temática desta pesquisa, e em muitos outros momentos do cotidiano de vida da pesquisadora. Travamos conversações com jovens que, em sua maioria, integravam o grupo mais antigo do ECG. Outras conversas se deram quando íamos às reuniões de equipe ou da que nos faziam adentrar no funcionamento da organização. Além disso, muitas conversas aconteciam informalmente, fora de espaços estritos do trabalho.

Trabalhamos, assim, atentos ao plano que Guattari (2005)Guattari, F. & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes. denominou como micropolítico. Trata-se de um plano que se pretende processual, na medida em que uma sociedade não se define apenas do ponto de vista de uma macropolítica, mas também de sua micropolítica. Temos, então, duas dimensões e estas, embora apresentem diferentes lógicas, são inseparáveis. A dimensão macro concerne à realidade em suas formas já constituídas, por exemplo, as leis, o Estado, as instituições. No entanto, coexiste a essas mesmas leis, ao Estado e às instituições uma dimensão que Guattari nomeou de micropolítica, de natureza invisível, molecular. Tal dimensão diz respeito ao processo de constituição das formas de realidades, estando, as referidas realidades, em vias de se desfazer porque ensejam escapar a todos os instrumentos de codificação que se tornam dominantes nas formas sociais vigentes. Por isso, afirma o autor que a dimensão micropolítica é tecida pelas intensidades, pelo invisível e pela analítica da formação do desejo2 no campo do social, não se situando, portanto, num plano das representações, mas no nível das produções de subjetividades (Guattari & Rolnik, 2005Guattari, F. & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes.). Do mesmo modo, estivemos atentos aos processos macropolíticos em que a problemática da juventude se situa na sua relação com o campo social.

Portanto, como diz Guattari e Rolnik (2005)Guattari, F. & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes., as questões micropolíticas referem-se sempre a um plano criado a partir de uma coexistência entre formas e forças. As formas, sempre provisórias e emblemáticas de um plano de segmentaridade visível, da realidade em suas formas constituídas. O plano das forças é o plano da formalização do desejo, do invisível, onde não se tem unidades, mas intensidades. O mais importante é analisarmos aquilo que atravessa os diferentes planos, ou seja, sua transversalidade3.

Se a análise micropolítica se situa no cruzamento entre o plano das formas e o das forças, no caso de nossa pesquisa, ao nos aproximarmos das experiências que encontram no campo da arte uma máquina de combate à marginalização dos modos de vida ali criados, pudemos nos aliar a forças que engendram a invenção de novos modos de pensar o jovem e a pobreza no contemporâneo, isto é, naquilo que lhes é cotidiano, presente e devir, efetuando desvios nas acepções naturalizadas de juventude e de pobreza.

Apesar de entendermos que o contemporâneo é também composto de processos constituídos e formas já delineadas, insistimos em marcar o que nele é remetido à criação: a dimensão do que está acontecendo, do que está se transformando e, por conseguinte, daquilo que está em vias de diferir, como acentuou Pelbart (1993)Pelbart, P. P. (1993). A nau do tempo rei: 7 ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago. inspirado em Foucault. É um potente espaço-tempo de lutas que coexiste com a construção do presente, constituindo, assim, nossa aposta. Experimentamos, junto aos jovens da Grota, transitar em meio aos riscos dos deslocamentos e desestabilizações imprevisíveis que apareceram do e no campo, procurando desviar das arregimentações do poder constituídas como verdades absolutas e nos misturar com as criações de outros modos de estar no mundo. Ou seja, estivemos atentas às resistências que forjam outros modos de existência, como sinalizou Foucault (2009)Foucault, M. (2009). O sujeito e o poder. In H. L Dreyfus & P. Rainbow (Eds.), Michel Foucault: Uma Trajetória Filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica (pp. 231-249). Rio de Janeiro: Forense Universitária..

Dessa maneira, na esteira do autor, escapa-se a uma lógica que restringe tais práticas de resistências à lógica de oposição às forças de um poder, tornado central. Quem cria, resiste e, nesta direção, criação é movimento constante de concepções, conceitos, modos de vida.Estivemos, portanto, atentos às cadências menos óbvias das resistências, mas não menos importantes, entendendo que, no contexto atual, são mesmo outras as configurações de forças que conseguem produzir rupturas com as relações de poder hegemônicas.

Devir periférico

Nesta pesquisa, estivemos em contato com jovens que constituem uma juventude dita pobre e de risco. No entanto, no encontro com eles, fomos levados a fazer uma curva em nossa discussão e na maneira de conceber o modo de vida na periferia. No cruzamento com tais jovens, pudemos acompanhar, fosse nas suas falas, na forma como trabalham no ECG ou ainda, como geram e experimentam suas vidas, escapes a uma lógica que traduz e reduz a periferia ao lugar da pobreza. O discurso hegemônico, que pauta as ações no campo do social dirigidas aos setores periféricos, é o da falta, das carências, da inópia. Contudo, outros discursos e práticas, outras vozes, que não alheias a essa condição periférica, mas misturadas a ela, falam de vida e da criação de novas referências e territórios existenciais.

O discurso midiático e o grande número de pesquisas que se alinhavam com o campo social, em geral, afirmam, mesmo que criticamente, a falta de políticas dirigidas aos territórios periféricos, seja no campo da educação, da assistência social, da saúde, entre outros. Dão visibilidade aos processos de precarização da vida material, especialmente, ao extermínio da população que reside nesses territórios. Mesmo grande parte dos movimentos sociais ligados à discussão dos direitos humanos, nas lutas por melhorias nas condições de vida da população moradora das periferias, se limita à denúncia de violações de direitos, enfatizando as carências que permeiam tais territórios. Consideramos que essa luta tem sim sua importância, no sentido de ser crítica a certa alienação produzida principalmente pela mídia que vincula a vida na periferia à criminalidade e à descartabilidade. Todavia, nos questionamos se temos produzido algum desvio em relação à ordem dominante travando lutas que ainda focalizam exclusivamente as carências.

Os processos de marginalização atravessam o conjunto da sociedade. De suas formas terminais (como prisões, manicômios, campos de concentração) às formas mais modernistas (o esquadrinhamento social), esses processos desembocam numa mesma visão de miséria, de desespero e de abandono à fatalidade. Mas esse é apenas um dos lados do que estamos vivendo. Um outro lado é o que faz a qualidade, a mensagem e a promessa das minorias: elas representam não só pólos de resistência, mas potencialidades de processos de transformação que, numa etapa ou outra, são suscetíveis de serem retomados por setores inteiros das massas. (Guattari & Rolnik, 2005, p. 88)

Problematizando um discurso que associa e reduz a periferia à falta ou à fatalidade e tencionando romper com essa linha de produção, buscamos nos aliar às perspectivas que entendem os territórios periféricos como aqueles permeados também por redes potentes de afirmação da vida. O que estamos aqui denominando como Vida se enseja naquilo que Deleuze (1997)Deleuze, G. (1997). A imanência: uma vida. In J. Vasconcellos & E. Fragoso (Orgs.), Gilles Deleuze: imagens de um filósofo da imanência. (pp. 15-19). Londrina, PR: UEL. pôde desenvolver em sua obra.

Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entretempos, entre-momentos. (p. 3)

Nesta direção, interessou-nos atentar para as formas de enfrentamento hoje constituídas por juventudes periféricas. Para isso, estamos entendendo a periferia como aquilo que está à margem do centro, isto é, à margem (mas não marginalizado) de um certo modo de vida que pauta as relações humanas hoje. Numa condição de distanciamento do centro, mas não alheio e nem exterior a ele, a periferia abrange um campo mais afastado das principais esferas de controle social. Mesmo onde os braços do Estado não chegam a fim d=e fornecer condições salutares de educação, saúde, transporte, saneamento, lazer e cultura, um território pode se tornar profícuo à invenção da vida cotidiana.

A noção de periférico, aqui trabalhada, encontra-se, portanto, em consonância com Hardt e Negri (2005)Hardt, M. & Negri, A. (2005). Multidão: guerra e democracia na era do Império. Rio de Janeiro: Record. quando apontam a necessidade de produção e constituição de um devir periférico. Essa noção, segundo os autores, se faz possível em função de este segmento ter condições de engendrar processos de diferenciação potentes. Isto poderia ser viabilizado, justamente pelo fato de que tais setores se encontram mais distantes dos focos de poder, entendendo que isto não é garantia de criação dos referidos processos de diferenciação. Essa distância traria a possibilidade da produção de uma vida comum pautada na lógica do heterogêneo e do singular expressos nas formas de trabalho e vida.

Estamos entendendo os devires, nesse sentido, como pontos de passagem, como desvios possíveis que fazem estremecer a ordem hegemônica do mundo. O devir é, assim, sempre minoritário e todos somos potencialmente minoritários, na medida em que somos também constituídos por suas forças. Minoritário não no sentido de menor quantidade, mas daquilo que difere das hegemonias impostas pelo mundo em que vivemos. Como sinalizou Deleuze (1992)Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34., as minorias e maiorias não são definidas por ordens de grandeza. Para o autor, a maioria diz respeito aos modelos que balizam a existência, enquanto a minoria é sempre processo, devir.

Todo mundo, sob um ou outro aspecto, está tomado por um devir minoritário que o arrastaria por caminhos desconhecidos caso consentisse em segui-lo. ...O povo é sempre uma minoria criadora, e que permanece tal, mesmo quando conquista uma maioria: as duas coisas podem coexistir porque não são vividas no mesmo plano. (Deleuze, 1992, p. 214)

Devir-mulher, devir-criança, devir-periferia seriam focos de liberdade potencializadores de processos de singularização da vida, no sentido de empreender deslocamentos dos estratos representativos que formam nossa sociedade, que podem ou não compor a cada um de nós, que podem ou não compor esses jovens. Nessa perspectiva, pensar um devir periférico é dar passagem àquilo que em nós se constitui como um modo de ser periferia. Ativá-lo no sentido de alentar forças que, na porosidade do capital, o façam se abater e criar canais de invenção de novos campos de referência. Trata-se de ampliar artifícios de resistência, dando movimento e fazendo proliferar processos alternativos à tirania das formas de vida já prontas.

Os devires se referem, portanto, a polos de resistência em seus processos de transformação/subjetivação que transbordam ao modelo majoritário. Lazzarato (2006)Lazzarato, M. (2006). Resistência e criação nos movimentos pós-socialistas. In As Revoluções do Capitalismo (pp. 203-263). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. desenvolve seus estudos se apropriando da noção de que somos constituídos por estes processos de singularização, assim como pelas formas hegemônicas do poder. Pensar a periferia composta por um devir periférico seria trabalhar na perspectiva de uma coexistência entre as forças marginalizadoras da vida nesses territórios e também daquilo que, justamente nessa condição de estar à margem, faz reverberar outros modos de vida. Modos que confrontem com uma ordem social dominante no que se refere às instituições como família, infância, saúde, trabalho, entre outras.

Apropriando-se da arte como ferramenta na produção de novos campos de referência, nos deparamos com um projeto social que tem como aposta a ativação de processos estéticos da/na vida, da criação de territórios subjetivos que se aliem às forças da multiplicidade e da diferença. A ONG em que desenvolvemos a pesquisa tem realizado um trabalho, há mais de vinte anos, de aproximar meninos e meninas da Grota à experiência com a música clássica, contemplando o ensino de teoria musical, flauta doce, violino, violoncelo, contrabaixo e viola, principalmente.

Quando é operada esta inversão, de uma periferia lançada em guetos de exclusão para uma periferia formada por redes em que a falta ou carência é convertida em excesso, a partir do qual o sentido de periférico ganha uma nova expressão, o periférico é tomado por um devir. Como aponta também Guattari (1995)Guattari, F. (1995). Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (Vol. 3). Rio de Janeiro: Ed. 34., por um devir periférico que escapa aos processos de subjetivação dominantes, já que devir concerne sempre aos movimentos que expressam a potência de diferir.

O devir é da ordem do encontro, diz respeito aos interstícios e não às interseções. Não é um termo, portanto, que denomina uma imitação ou que segue uma lógica representativa. Devir-periferia é um encontro com aquilo que nos modos de vida periféricos pulsa como minoritário, como diferença, tendo, assim, uma potência de desestabilizar e permear a ordem hegemônica. Há devires que, segundo Foucault e Parnet (1998)Foucault, M. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo: Escuta., operam em silêncio, sendo quase imperceptíveis.

Enquanto estivemos inseridos no ECG, durante a convivência com estes jovens, sobretudo nas longas conversas com eles, percebemos que, nos seus relatos, nas histórias que nos contavam, em seus cotidianos, na ONG, algo, inevitavelmente, não passava pela periferia no que ela comporta de exclusão ou de marginalidade, mas a compunha como uma periferia que não se conseguia classificar, por escapar de qualquer modelo majoritário de análise. Não se tratava, desse modo, de um binarismo que opunha centro e periferia, mas de um hibridismo e, mais que isso, um encontro entre uma dimensão criadora e uma dimensão marginal da periferia.

Caberia aqui assinalar outro aspecto analisado e comungado entre esta pesquisa e os referidos jovens, sobre um sentido comumente apontado nos projetos dirigidos a eles que os colocam na condição de vulnerabilidade social ou em situação de risco. Eles nos indicam que tais categorias não abarcam o que compreendem como viver em territórios periféricos. Ou seja, as condições precárias de existência não necessariamente se coadunam com tais categorias. Isto porque a própria convivência comunitária aponta para a criação de outras redes de produção do comum que essas categorias invisibilizam sobre a vida na periferia.

Os jovens, quando perguntados acerca de que modo a ONG interfere na questão da vulnerabilidade social, responderam: "Lá tem vulnerabilidade como tem em qualquer lugar". E questionam sobre o que é ser vulnerável dizendo que, enquanto as pessoas não rejeitarem o termo "comunidade carente", essas comunidades serão sempre carentes. Quem nunca foi vulnerável nalgum momento da vida? Por que somente eles são rotulados como "os vulneráveis"? Dizem ainda que os meninos que estão "em risco" não chegam ao projeto, isto é, a ONG não atinge esses meninos. (Trecho do diário de campo - 13/07/2011)

Nessas redes quentes4, a situação de vulnerabilidade é convertida em formas de solidariedade que inventam outras maneiras de conexão com a vida social e que se expressam nos modos de compartilhar os cuidados com os filhos, de se relacionar entre eles, de trabalhar e de morar e que produzem um cotidiano que escapa das formas de trabalho e vida que o capital reproduz.

Nessa perspectiva, Santos (2008, p. 2)Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (15ª ed.). Rio de Janeiro: Record. nos atenta para o que ele denomina como experiência da escassez. Conforme o autor, uma parcela da população não tem acesso "às coisas, serviços, relações, ideias que se multiplicam na base da racionalidade hegemônica"; seria impossível garantir esse acesso no contexto de produção incessante de necessidades e racionalidades hegemônicas, que tem como efeito a desqualificação de outras necessidades ou racionalidades. Nessa medida:

Cada dia acaba por ser uma nova experiência da escassez. Por isso, não há lugar para o repouso e a própria vida acaba por ser um verdadeiro campo de batalha. Na briga cotidiana pela sobrevivência, o que há, mesmo, é uma luta, pois não há para eles negociação possível, já que, individualmente, não há força de negociação. A sobrevivência lhes é assegurada porque as experiências imperativamente se renovam... Ao lado da busca de bens materiais finitos, cultivam a procura de bens infinitos, como a solidariedade e a liberdade: estes, quanto mais se distribuem, mais aumentam. (Santos, 2008, p. 2Santos, M. (2008). Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal (15ª ed.). Rio de Janeiro: Record.)

Desse modo, a miséria não engendra apenas uma experiência de falta e de carência, mas também de produção que arranja outras formas materiais e imateriais de se sustentar e se

reinventar. O devir periférico, nesse sentido, conjuga justamente com o que Milton Santos evoca no trecho que destacamos acima, tratando-se de afirmar intensivamente tal produção imaterial nestes territórios.

No ECG, era comum escutarmos histórias sobre os meninos que chegaram à ONG sem a pretensão de estudar música, indicando que talvez esse nem fosse o maior atrativo, mas sim o próprio local, estabelecendo-se como um lugar que os acolhe e os agrega. A partir da experiência que tivemos nesta ONG, reafirmamos a dimensão própria a uma produção imaterial que ultrapassa o cultivo aos bens materiais de consumo, mas faz emergir novas configurações e modos de vida no encontro dos jovens com o ECG.

"A arte não serve para nada": uma estética da existência

A arte, no encontro com nosso corpo, se torna singular à medida que pode produzir em nós coisas antes não experimentadas. Ela comporta a potência de fazer diferir nossos modos de estar no mundo, através da criação e do rompimento com as prescrições que hoje enquadram nossas vidas a modelos com fronteiras tão bem demarcadas.

Buscamos, na pesquisa efetuada, colocar em análise a arte como um potente instrumento de transformação dos modos de vida vigentes. Estando na Grota, misturando-nos às vidas dos meninos que circulavam pelo ECG, contatamos um modo de compor com a arte permeado por forças de resistências.

Ao longo de décadas, a máquina capitalista vestiu muitas capas e máscaras. Seu funcionamento, por tantos anos, foi se moldando às modificações da sociedade e, de certo modo, assim como a economia, foi se flexibilizando. Mas não podemos nos deixar enganar e pensar que tal flexibilização se caracteriza por menos controle, mas sim pela vigilância permanente, que dispensa a externalidade de um sentinela a espreitar-nos, pois somos sentinelas dos outros e de nós mesmos. Fica evidente, então, que entendemos a máquina capitalista como uma engrenagem que, muito além de um sistema econômico, produz modos de viver e de estar no mundo coerentes com suas práticas.

O capital ultrapassou a dimensão material, deixando de se pautar prioritariamente em questões como a propriedade privada, os meios de produção e a mão-de-obra braçal, para funcionar cada vez mais numa dimensão virtualizada da produção. O capital financeiro passa a gerir toda sorte de movimentações no mercado, não dependendo da existência material do dinheiro. A máquina capitalista, então, se apropria de um campo imaterial, subjetivo e cada vez mais relacionado a produções invisíveis. Mais do que bens de consumo objetificáveis, vai produzir subjetividades que se aliem às suas forças no sentido de intensificar seu lucrativo sistema.

Sob o slogan da liberalização converte as nações e seus povos e, mais especificamente, a vida em reféns das vicissitudes ondulatórias e libertinas da "serpente" denominada capital financeiro. Este, em suas estratégias de modulação operatória, se constitui imanente aos processos de produção e reprodução social da existência, tentando neutralizar as lutas, que tenham como critério ético-político a produção da existência como problematização do presente e do porvir. (Neves, 2002, p. 49)

A banalização do consumo numa sociedade que vive a hegemonia de modos de subjetivação capitalísticos5 5 Guattari e Rolnik (2005) utiliza a expressão "capitalístico" em vez de capitalista, para denominar um modo de subjetivação e, portanto, não um sistema homogêneo, mas dominante de produção. não diz respeito apenas à enorme quantidade de apropriação e gasto com mercadorias, muitas vezes inutilizáveis em pouco tempo ou desnecessárias. Diz respeito principalmente ao consumo de bens imateriais, como a informação, a arte e os pensamentos. Nos dias de hoje, compra-se quase tudo, compra-se o corpo que se quer ter, paga-se para encontrar o companheiro amoroso pela internet, não se tem mais que se relacionar com as pessoas pessoalmente, bastando manter contato pelas redes sociais e programas de conversa virtuais. As relações, para além do consumo, vão se tornando também menos palpáveis.

A arte consumível, a arte voltada a uma lógica mercadológica, foi capturada por essa engrenagem. A universalização da arte e sua reprodução tornam-na útil ao capital, isto é, um bem como qualquer outro a ser consumido. Rolnik (2001)Rolnik, S. (2001). Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer. São Paulo em perspectiva, 15(3), 3-9. aponta para a separação produzida entre arte e vida no contemporâneo e afirma que, na trama da máquina capitalista, trata-se de uma exploração invisível de um bem também invisível: a vida.

Portanto, não basta que anunciemos a palavra "arte" para que estejam dadas as condições próprias à criação de processos de singularização. Como enfatiza Guattari (1986), a produção da subjetividade nos modos vigentes gera uma arte de vocação universal e, mais, se dispõe, inclusive, a tolerar territórios subjetivos que escapem relativamente aos modelos gerais de arte ou mesmo de cultura. Mais do que tolerar tais margens, os processos capitalistas têm se esforçado em ampliá-las, instaurando e propagando, por meio de um falso democratismo, arte e cultua segundo a lei de liberdade de trocas. Porém, omite-se que o campo social que recebe a cultura difundida não participa, integralmente, da cultura dominante. Nascem, então, os embates frente a essas formatações que reduzem arte e cultura a uma versão mercadológica. Estes embates implicam, em certa medida, agenciar outros modos de produção semiótica referentes à arte na sua dimensão de criação em estado nascente. Nesta direção:

A arte é um meio no qual tal estratégia incide com especial vigor, pois constitui um manancial privilegiado de potência criadora, ativa na subjetividade do artista e materializada em sua obra. Artistas são por princípio anômalos: subjetividades vulneráveis aos movimentos da vida, cuja obra é a cartografia singular dos estados sensíveis que sua deambulação pelo mundo mobiliza. (Rolnik, 2001, p. 4)

Tendo como matéria-prima de trabalho a arte musical, O ECG fez engrenar em sua história uma arte que não serve para nada6 6 Esta é uma fala que parte de um dos coordenadores do projeto e que, aqui, usamos como gancho para discutir a arte como ferramenta no jogo de forças entre poder e resistências. . Considerando tal sentido de inutilidade próprio a este trabalho, analisamos, coletivamente, a natureza de seus embates frente aos modos de vida vigentes das juventudes periféricas. Embates que oscilam e materializam polos, não excludentes, da arte como produto para o mercado e da arte como processo de transformação dos modos de vida. Polos estes que também operam uma inversão: de uma periferia lançada em guetos de exclusão para uma periferia formada por redes potentes.

Na ultrapassagem desses dilemas, encontramos uma multiplicidade de vínculos, variações e peculiaridades estabelecidas por jovens num trabalho que sofre a intercessão da arte: espaço de convivência, de profissionalização, de socialização, do exercício do lúdico e da expansão de habilidades artísticas. Apropriando-se da arte como ferramenta na produção de novos campos de referência, nos deparamos com um projeto que tem como aposta a ativação de processos estéticos da/na vida, da criação de territórios subjetivos que se aliem às forças da multiplicidade e da diferença.

Se o capital conseguiu produzir o que podemos chamar de uma miséria subjetiva, isto é, pouco se cria em termos de subjetividades, a arte pode, como salientou Caiafa (2000)Caiafa, J. (2000). Nosso século XXI: notas sobre arte, técnica e poderes. Rio de Janeiro: Editora Relume-Dumará., incorporar a produção de diferenças.

Eu, pelo menos, cheguei aqui com uma visão de mundo muito pequena. Não sabia se não tinha...Como eu disse, nunca pensei em ser professor de música, mas conhecia muito menos do que eu conheço. Então, hoje eu sei que eu posso fazer muita coisa, não tem que ser... Sabe assim? A minha condição hoje não determina que eu tenha que viver da forma que eu vivi, sempre passando necessidade. Eu posso fazer o que eu quiser, conhecer pessoas, conhecer lugares. O mundo é grande, eu posso fazer muita coisa. (Entrevistado, 2011)

Pensamos que, na experiência que tivemos com os jovens da Grota, essa produção de diferença foi colocada em movimento. Nas reuniões com a direção e a coordenação, diversas falas faziam circular o discurso sobre a dificuldade que os projetos sociais e políticas públicas que trabalham com a arte têm para angariar recursos. Para viabilizar o andamento dos trabalhos, batalha-se ano a ano por investimentos, muitas vezes escassos e precários (tendo que lidar com atrasos da verba, relatórios, prestação de contas, estatística, etc.), sustentando-se por meio de projetos com validades que, geralmente, não ultrapassam doze meses. "As pessoas querem o discurso objetivo e a arte é subjetiva. Serve para quê? Circulam falas como: "Eles achavam que a gente não servia para nada" ou "é difícil você convencer que um projeto é bom."". (Trecho diário de campo - 16/08/2011)

Em meio a uma série de projetos voltados à profissionalização ou suposta inserção de jovens no mercado de trabalho, fornecendo aulas de informática, línguas estrangeiras ou cursos mais tecnicistas como para garçom, jardineiro ou outros serviços gerais, ainda algumas iniciativas resistem em não seguir esta ordem. Projetos que têm como perspectiva a qualificação dos jovens costumam ter maior facilidade na briga por financiamento. Pudemos avaliar que ganhar destaque entre os demais, como um projeto social que tem a arte como ferramenta de trabalho, faz com que fissuras sejam produzidas na lógica, tornada dominante, de uma periferia que deve ficar no lugar onde está.

Como tais jovens vão viver de arte? Isso é política pública? Trabalhar com políticas públicas ligadas à arte no Brasil encontra dificuldades de inúmeras ordens. Desta forma, embora o trabalho da ONG hoje procure também profissionalizar os meninos especialmente como professores de música e que esta formação possa se configurar como um meio de sobrevivência, ela não consegue, por si só, se constituir como o trabalho principal para os referidos jovens que começam a ter que garantir seu próprio sustento. Assim, eles procuram outras fontes de renda, como orquestras com remuneração maior, tocar em casamentos, ou em outras festividades e eventos. Ainda que essas fontes de renda se encontrem articuladas com o oficio de músico, em contrapartida, elas os retiram da possibilidade de assumirem outros compromissos e lugares que atualmente a ONG necessita. Tal problemática se acirra quando participam de uma instituição que se organiza de modo predominantemente voluntário.

A aproximação com a arte, nesse caso, pôde permitir, num mundo pautado pelo consumo, que a existência insistisse de outras formas, persistindo no plantio de canteiros em lugares onde parecia que nada poderia brotar. Entretanto, por outro lado, se faz presente na ECG, sobretudo entre os monitores7 7 Os monitores são os jovens do ECG que se tornaram mestres no ensino de música nas escolas públicas da cidade por meio do projeto Multiplicando Talentos, que consiste em replicar a experiência da Orquestra de Cordas da Grota em outras comunidades com crianças e adolescentes, adotando-se um método próprio de iniciação musical. São alunos da rede pública, numa parceria que se consolida junto às escolas municipais e estaduais da cidade de Niterói e adjacências. , que se tornaram professores de música, uma tensão entre, de um lado, a profissionalização como uma finalidade primeira e, de outro, o exercício da arte musical como possibilitadora de um distanciamento estratégico que os afasta de uma ligação com a arte apenas em termos de utilidade. É como se o contato com a música os colocasse diante do mundo ora um tanto quanto desinteressados de seu caráter pragmático, ora endurecidos por necessitarem formalizar as relações entre trabalho e música. Encontrar essa coexistência, experimentada por eles de forma pouco pacífica, nos convoca a pensar sobre os perigos dessa profissionalização que põe uma finalidade na arte.

No caso do nosso campo de estudo, vimos o quanto desempenhar e desenvolver atividades marcadas pela interferência da arte e da cultura comporta de trabalho imaterial, já que, neste campo, não se trata apenas de executar tarefas, mas, principalmente, de concebê-las, criá-las. As matérias criadas produzem, por conseguinte, imaterialidades: sons, ritmos, performances, imagens, serviços, incidindo sobre algo também imaterial: a subjetividade humana. Ao ampliarmos tal análise, assinalamos que a condição de trabalho imaterial, assim como o seu conteúdo e resultado, consiste, eminentemente, na própria produção de subjetividade que atravessa tanto o processo de trabalho como o seu produto. Nisso, conclui-se que o trabalho necessita da vida como nunca, e seu produto afeta a vida numa escala sem precedentes.

Trabalhar com arte segundo essa dimensão de imaterialidade faria engrenar a potência de diferir, no campo desta lógica de mercado de que somos reféns dos domínios do controle. O trabalho com música e o trabalho da ONG não são diferentes nesse aspecto, ambos lidam com uma imaterialidade potente.

No que se refere ao discurso dos jovens entrevistados, essa questão aparece quando eles apontam que estar no ECG tocando não tinha nada a ver com trabalho, com dinheiro. Falavam sempre do espanto que foi para todos quando uma mulher resolveu pagar por eles terem tocado um dia numa festa. Insistiam em afirmar que aquilo não era trabalho.

A gente tocava por diversão, brincando, zoando um com o outro. Sempre foi assim: uma palhaçada atrás da outra. Essa era a curtição. A gente ia pra qualquer lugar. ... Até que teve uma vez que fomos tocar num lugar que seria pago. Nós nunca tínhamos ganhado dinheiro nenhum com música. Nem sabia que dava pra ganhar dinheiro. Tanto que, quando a mulher quis pagar a gente, a gente não quis aceitar. ... "Isso aqui não é trabalho". ... Porque a gente não sabia realmente que ganhava dinheiro com música. O barato era mesmo estar junto. (Entrevistado, 2011)

Era, para eles, diversão, um pretexto para estarem juntos, "falar besteira". O contágio que a música foi produzindo nesses meninos ia reverberando em seus corpos por meio da vontade de estar sempre no ECG, se encontrando, "fazendo um som", mas aquilo não os remetia a uma relação de obrigação. Tornar-se músico foi secundário, foi um efeito de tal processo.

era uma vida normal, não tinha plano de nada, não tinha nada na cabeça. Até muito tempo depois que nós começamos a tocar o violino, era só obrigação, a gente não tinha plano de estudar... Sabe o que era engraçado que eu lembro até hoje? Começamos a tocar violino, o projeto começou a ficar mais conhecido, então começou a vir repórter aqui na Grota. E o pessoal perguntava pra gente na entrevista com a câmera (?): "O que você vai querer ser quando crescer?". A gente com um violino na mão: "Pedreiro! Sei lá, ué..."; "Mas você não vai querer continuar na música?"; "Não!". A gente não fazia nem ideia. Tinha uns (isso aconteceu muito), o repórter falava assim pra gente: "Olha aqui: vou te perguntar isso e você vai falar isso.". Aconteceu muito. Até um tempo, a gente falava assim: "Não, não vou continuar na musica não.". Mas a gente era novinho. Só pra ver que a gente não tinha ideal nenhum, não tinha plano nenhum de vida. Era uma vida normal de um menino da favela que vive as aventuras da favela. (Entrevistado, 2011)

Por outro lado, um dos efeitos do trabalho realizado na ONG se apresenta a partir de um dilema que aparece estampado e presente entre os monitores, isto é, os jovens que hoje são professores do Espaço, que consiste, de um lado, em traçar uma perspectiva artística do trabalho pautada em valores coletivos e de ajuda mútuos e, de outro, que tende a garantir "nichos" de mercados relativos ao ofício de músico pautados na lógica do "cada um no seu quadrado". Uma lógica que vem operando uma divisão, disputa e que coloca em risco a direção de construção de um projeto comum entre eles e que cria, por vezes, oposições binárias.

Assim, esse tensionamento também habita o ECG, respingando ares da máquina capitalista entre o espaço de invenção de resistência e tornar a arte meio de inserção no mundo do trabalho, apaziguando a força disruptora da arte. Cabe-nos aqui afirmar, desse modo, que tais movimentos de capturas e resistências compõem o Espaço Cultural da Grota e as relações que o atravessam constantemente. Assim, apesar de toda potência que as forças de resistência insinuam na composição deste projeto, ele não está apartado do mundo em que vivemos e das relações que se instituem em nossa sociedade. Logo, operar um modo de vida, de trabalho e de relação com arte que interfira nos interstícios do poder hegemônico do capitalismo é um desafio presente entre os jovens com os quais nos misturamos no fazer desta pesquisa.

Apesar dos mencionados perigos, próprios ao modo de subjetivar dominante, encontrarmos tal dilema nos co-moveu imensamente, como se pôde discutir incansavelmente no grupo de pesquisa, sobretudo em um território constituído por uma população que, dominantemente, vive alijada dos serviços básicos como saúde e educação e também de políticas voltadas aos jovens, na sua grande maioria alvos da escassez de bens culturais e de lazer e que, além disso, não logram inserção no mercado de trabalho. Parte dessa co-moção deve-se à constatação de que, apesar de tantos obstáculos e disparidades, seus embates trazem a força de não sucumbir, de vez, à tentação crescente, aos valores individualistas, competitivos e de consumo apregoados nos modos de vida vigentes, força que resiste, altera e resgata, nas formas de trabalho por eles implementados, sua potência criadora.

A arte no ECG, assim, inventa resistências na medida em que consegue produzir rupturas no encontro com as vidas dos meninos que passam pelo espaço. Este encontro possibilita desmanchar fronteiras, desconstruir verdades e criar novos percursos para tais histórias, mais do que capturas.

Sendo assim, o ensino da música assume uma função produtiva, para além da educativa, no sentido de fazer movimentar as cristalizações fabricadas sobre as juventudes periféricas. Esses jovens, no encontro com a ONG, criaram novos sentidos e destinos, desatualizando os lugares a eles destinados de exclusão, pobreza e precariedade.

Considerações finais

Em meio a um momento potente de lutas que tomam outras formas e articulam outros modos de resistir, os jovens que permearam a presente pesquisa nos indicam constantemente práticas de resistências criadas nos territórios periféricos. Resistências cotidianas, muitas vezes silenciosas ou silenciadas, ou ainda, marginalizadas. Os referidos jovens nos mostraram que outras coisas podem e devem ser ditas acerca da vida na periferia e afirmam, não só em suas falas, mas também em seus cotidianos e no exercício da arte musical, novas geografias sobre uma condição periférica que não pertence somente a um território marginalizado da cidade.

Outras melodias são criadas por tais jovens, preenchendo suas vidas de potências. O som das cordas que sai da Grota permeia de vida aquele espaço através da arte e do encontro dela com a periferia. Não é qualquer orquestra, mas sim uma orquestra constituída também por um devir periférico, conjugando, em meio à música clássica, batidas, cores, olhares, gingados e figuras de uma mistura também periférica e singular.

Quando resolvemos tratar, nesta pesquisa, de jovens que habitam territórios periféricos, quisemos provocar um embate com as forças que situam, denominam e restringem esses territórios apenas como empobrecidos. Forças que caracterizam e afirmam o periférico como uma massa unívoca e homogênea. No encontro com essa periferia, pudemos constatar que as tantas riquezas produzidas e criadas pelos jovens da Grota com os quais nos deparamos nos impedem de designá-los como pobres. Os territórios periféricos são compostos por multiplicidades.

Afirmamos, portanto, que, para além de toda produção perversa que encarcera as juventudes periféricas a universalismos, estes sim severamente pobres, existe um campo complexo de forças. O atravessamento da arte, o encontro com a música, os deslocamentos físicos e subjetivos possíveis são parte do que nos legitima a afirmar que desvios foram construídos na vida de tais jovens. Desvios estes que colocam em xeque hegemonias do mundo em que vivemos.

Agradecimento

À CAPES, pelo apoio através de bolsa DS.

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  • 5
    Guattari e Rolnik (2005)Guattari, F. & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes. utiliza a expressão "capitalístico" em vez de capitalista, para denominar um modo de subjetivação e, portanto, não um sistema homogêneo, mas dominante de produção.
  • 6
    Esta é uma fala que parte de um dos coordenadores do projeto e que, aqui, usamos como gancho para discutir a arte como ferramenta no jogo de forças entre poder e resistências.
  • 7
    Os monitores são os jovens do ECG que se tornaram mestres no ensino de música nas escolas públicas da cidade por meio do projeto Multiplicando Talentos, que consiste em replicar a experiência da Orquestra de Cordas da Grota em outras comunidades com crianças e adolescentes, adotando-se um método próprio de iniciação musical. São alunos da rede pública, numa parceria que se consolida junto às escolas municipais e estaduais da cidade de Niterói e adjacências.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2012
  • Revisado
    14 Jul 2014
  • Aceito
    17 Ago 2013
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