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Relações estéticas dos catadores de material reciclável com a cidade: os passos da pesquisa

Aesthetic relations of the recyclable material collectors with the city: the research steps

Relaciones estéticas de los recolectores de material reciclables en la ciudad: los pasos de la investigación

Resumos

Este artigo apresenta e discute os procedimentos metodológicos adotados em uma pesquisa que objetivou investigar as relações dos catadores de material reciclável (CMR) de uma cidade de médio porte com a polifonia urbana. Para a produção de informações, cada CMR recebeu uma câmera fotográfica para registrar imagens das suas relações com a urbe. Em outro momento, em suas residências, foram realizadas conversas informais acerca das narrativas fotográficas por eles produzidas. Outro procedimento adotado para coleta de informações foi caminhar com os CMR durante suas atividades de catação, registradas por videografia e anotações em diário de campo. A análise dialógica do discurso possibilitou compreender as múltiplas cidades que coexistem na cidade e os vários modos como os CMR as significam.

pesquisa em psicologia; fotografia; cidade; dialogia; catadores de material reciclável


This article presents and discusses the methodological procedures used in a study that investigated the relationship of recyclable material collectors (CMR) of a medium-sized city with the urban polyphony. For the production of information, each CMR received a camera to capture images of their relations with the metropolis. In another moment, at their homes, informal talks were held about the photographic narratives produced by them. Another procedure adopted for data collection was to walk together with CMRs during their scavenging activities, which was recorded by videography and notes in a field diary. The dialogic discourse analysis enabled us to understand the multiple cities that coexist in the city and the various ways in which CMR signifies them.

psychology research; photography; dialogism; recyclable material collectors


Este artículo presenta y discute los procedimientos metodológicos adoptados en la investigación que tuvo como objetivo investigar las relaciones de los recolectores de material reciclables (RMR) de una ciudad de medio porte con la polifonía urbana. Para la producción de informaciones, cada RMR recibió una cámara fotográfica para registrar las imágenes de sus relaciones con la urbe. En otro momento, en sus residencias, fueron realizadas conversaciones informales acerca de las narrativas fotográficas por ellos producidos. Otro procedimiento adoptado para la colecta de informaciones fue caminar con los RMR durante sus actividades de recolección, esta actividad registrada a través de videografía y anotaciones en el diario de campo. El análisis dialógico del discurso realizado posibilitó comprender las múltiples ciudades que coexisten en la ciudad y los varios modos como los RMR lo significan.

investigación en psicología; método; fotografía; ciudad; dialogía; recolectores de material reciclable


ARTIGOS

Relações estéticas dos catadores de material reciclável com a cidade: os passos da pesquisa

Relaciones estéticas de los recolectores de material reciclables en la ciudad: los pasos de la investigación

Aesthetic relations of the recyclable material collectors with the city: the research steps

Daiani Barboza e Andrea Vieira Zanella

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis/SC, Brasil

RESUMO

Este artigo apresenta e discute os procedimentos metodológicos adotados em uma pesquisa que objetivou investigar as relações dos catadores de material reciclável (CMR) de uma cidade de médio porte com a polifonia urbana. Para a produção de informações, cada CMR recebeu uma câmera fotográfica para registrar imagens das suas relações com a urbe. Em outro momento, em suas residências, foram realizadas conversas informais acerca das narrativas fotográficas por eles produzidas. Outro procedimento adotado para coleta de informações foi caminhar com os CMR durante suas atividades de catação, registradas por videografia e anotações em diário de campo. A análise dialógica do discurso possibilitou compreender as múltiplas cidades que coexistem na cidade e os vários modos como os CMR as significam.

Palavras-chave: pesquisa em psicologia; fotografia; cidade; dialogia; catadores de material reciclável.

RESUMEN

Este artículo presenta y discute los procedimientos metodológicos adoptados en la investigación que tuvo como objetivo investigar las relaciones de los recolectores de material reciclables (RMR) de una ciudad de medio porte con la polifonía urbana. Para la producción de informaciones, cada RMR recibió una cámara fotográfica para registrar las imágenes de sus relaciones con la urbe. En otro momento, en sus residencias, fueron realizadas conversaciones informales acerca de las narrativas fotográficas por ellos producidos. Otro procedimiento adoptado para la colecta de informaciones fue caminar con los RMR durante sus actividades de recolección, esta actividad registrada a través de videografía y anotaciones en el diario de campo. El análisis dialógico del discurso realizado posibilitó comprender las múltiples ciudades que coexisten en la ciudad y los varios modos como los RMR lo significan.

Palabras clave: investigación en psicología; método; fotografía; ciudad; dialogía; recolectores de material reciclable.

ABSTRACT

This article presents and discusses the methodological procedures used in a study that investigated the relationship of recyclable material collectors (CMR) of a medium-sized city with the urban polyphony. For the production of information, each CMR received a camera to capture images of their relations with the metropolis. In another moment, at their homes, informal talks were held about the photographic narratives produced by them. Another procedure adopted for data collection was to walk together with CMRs during their scavenging activities, which was recorded by videography and notes in a field diary. The dialogic discourse analysis enabled us to understand the multiple cities that coexist in the city and the various ways in which CMR signifies them.

Keywords: psychology research; photography; dialogism; recyclable material collectors.

Introdução

Uma cidade é cunhada por diferentes vozes, signos, arquiteturas, trajetos, contradições. É espaço para o devaneio e a desilusão; é espaço para a dialogicidade, opressão, superação, resistências e para a reinvenção do/no cotidiano. Uma cidade é feita de pedras, mas também de afetos. É espaço de infinitas possibilidades, embora também as negue.

Véron (2008) assinala que, no ano de 1950, menos de um terço da população mundial era urbana. Contudo, "hoje, há pouco mais de meio século, metade da população mundial vive em cidades. Segundo as projeções das Nações Unidas, em 2030 a taxa da urbanização deverá superar 60% (Nações Unidas, 2004)" (Véron, 2008, p. 11). O autor destaca que esse contínuo crescimento populacional não é sinônimo de "progresso", uma vez que o desafio está na tessitura de cidades com desenvolvimento sustentável.

As discussões sobre os dilemas das cidades têm assumido, por conseguinte, cada vez maior importância, sendo foco de atenção de diversas áreas de conhecimento, entre elas a psicologia. Afinal, falar de cidades é falar de subjetividades, posto que pessoas fazem as cidades cotidianamente, assim como estas as constituem. As cidades, com suas linguagens plurais, conclamam ao convívio do inusitado, para além do supostamente "fixado" por suas delimitações territoriais. Cidades grandes, médias, pequenas, cercadas por mares ou por terra, concretas ou imaginárias; nelas, os sentimentos se mesclam, fomentam sonhos ou os mutilam.

Em Criciúma/SC, cidade de planícies, escolhida como lócus para a pesquisa aqui em foco, há lugares secretos para seus visitantes e até mesmo para as pessoas que a habitam. A vida pulsa incessantemente e seus signos demandam leitores atentos à polifonia que a conota. Este artigo apresenta e discute os procedimentos metodológicos adotados na tessitura da pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a que as autoras se filiam1 1 Este artigo apresenta parte da tese de doutoramento realizada pela primeira autora com orientação da segunda autora. . Empreendida com o objetivo de investigar as relações dos Catadores de Material Reciclável (CMR) com a cidade, a investigação permitiu constatar a pluralidade dessas relações que se entretecem com as trajetórias de vida de cada sujeito investigado, com os seus instrumentos de trabalho, nas relações com os atravessadores2 2 Os atravessadores compram o material dos CMR e revendem para as grandes indústrias. Para tanto, agregam mais valor ao MR, usando recursos que os catadores não dispõem em suas casas como, por exemplo, maquinário apropriado. , com familiares, com o lixo, com outros catadores, enfim,, com o espaço urbano onde exercem suas atividades e por onde transitam nas horas livres. Os resultados obtidos podem ser melhor compreendidos pela leitura da tese que lhe dá origem.

Neste artigo, elegemos como foco o próprio processo de pesquisa, em virtude da importância de se atentar não somente para o objeto de investigação, mas também para o próprio percurso da produção de conhecimentos científicos, suas vicissitudes e percalços. Revisitar as escolhas metodológicas após a conclusão da pesquisa consiste em oportunidade de estranhamento dos pesquisadores em relação ao supostamente conhecido. Aos leitores, por sua vez, é uma oportunidade de conhecer aquilo que em geral é omitido nos relatos de pesquisas fundadas sob a égide da "racionalidade indolente", conforme explicita Sousa Santos (2004), indolência esta traduzida "na ocultação ou marginalização de muita experiência e criatividade que ocorre no mundo e, portanto, no seu desperdício" (p.53).

Sobre a pesquisa e o pesquisar

Pesquisar implica escolhas teóricas, metodológicas e epistemológicas3 3 Sobre essas escolhas e suas implicações, ver textos compilados por Boaventura de Souza Santos (2004). . Pesquisar demanda escolher caminhos a serem trilhados, mas que ao longo do percurso poderão ser "(re)desenhados", como um trajeto inacabado que é preciso percorrer para abalizar seu itinerário. Tais escolhas metodológicas são mais adequadamente delineadas se tiverem como norte os objetivos a serem alcançados e se sua pertinência for constantemente analisada no decorrer do próprio processo. A esse respeito, consideram-se importantes as observações apresentadas por Alves (1991) e Biasoli-Alves (1988), a saber: "não há metodologias 'boas' ou 'más' intrinsecamente, e sim metodologias adequadas ou inadequadas para tratar um determinado problema" (Alves, 1991, p.58); assim como

não seria talvez necessário mudar a ótica com que se costuma analisar as estratégias de pesquisa: não mais considerá-las a priori como de maior ou menor valia, mas estudar e priorizar o acerto do método frente ao objeto e aos objetivos do projeto. (Biasoli-Alves, 1988, p.138)

Pesquisar, por sua vez, resulta em marcas na história dos sujeitos com os quais se pesquisa, bem como na do pesquisador, pois as múltiplas vozes com as quais dialogam se (des)encontram, se mesclam e fecundam outras. Isso porque as palavras "nascem, vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano de fundo das mil vozes que nos rodeiam" (Tezza, 1988, p. 55).

Por conseguinte, entende-se que tanto o pesquisador como os demais participantes da pesquisa têm papel ativo na produção de conhecimentos. O sujeito com o qual– e não sobre o qual– se pesquisa não é mero coadjuvante, posto que "não pode ser percebido e estudado como coisa, porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico" (Bakhtin, 2003, p. 400). Ademais, o discurso de um emerge em resposta ao outro e a este se destina, sendo esses discursos marcados pelas tensões com vozes sociais outras que participam e complexificam o diálogo. Em decorrência, o processo de produção de conhecimentos se caracteriza como dialógico e cabe ao texto produzido pelo pesquisador dar visibilidade a essa condição:

o texto do pesquisador não deve emudecer o texto do pesquisado, deve restituir as condições de enunciação e de circulação que lhes conferem as múltiplas possibilidades de sentido. Mas o texto do pesquisado não pode fazer desaparecer o texto do pesquisador, como se este se eximisse de qualquer afirmação que se distinga do que diz o pesquisado. (Amorim, 2006, p. 98)

Considerando esses fundamentos sobre o pesquisar e a partir de um permanente movimento exotópico, a pesquisadora principal percorreu, junto aos e com os sujeitos desta pesquisa, itinerários diversos, em uma perspectiva dialógica que a constituiu e concomitantemente aos sujeitos da pesquisa. O conceito de exotopia, que se refere à distância, exterioridade, "designa uma relação de tensão entre pelo menos dois lugares: o do sujeito que vive e olha de onde vive, e daquele que, estando de fora da experiência do primeiro, tenta mostrar o que vê do olhar do outro" (Amorim, 2006, p. 101). Desse modo, a pesquisadora esteve implicada no processo de pesquisar tentando compreender o olhar do outro– do CMR–, sua trajetória de vida, a leitura que faz da cidade, seus itinerários e o modo como nessa teia se subjetiva. Isso situado historicamente, em um momento datado e inscrito nas delimitações impostas pela pesquisa e pelas condições de sua produção.

A pesquisa foi realizada com seis CMR que residem e trabalham na cidade de Criciúma, situada ao sul de Santa Catarina. Os critérios de escolha dos CMR foram: pessoas que atuam na catação há pelo menos um ano, tê-la como principal ou exclusiva fonte de renda, e o desejo de participarem da pesquisa. Esses critérios foram adotados pela necessidade de os sujeitos da pesquisa se reconhecerem como catadores, assumindo esse lugar social na cidade. Participaram da pesquisa os seguintes CMR: Titi, Osmar, Maria Denis, Terezinha e o casal Zênia e Ximirruga. Os nomes verdadeiros dos CMR foram mantidos no texto da pesquisa, atendendo à solicitação dos próprios sujeitos. Como exceção, Titi e Ximirruga optaram ser citados pelos apelidos por serem mais conhecidos desse modo.

Foram realizados no mínimo 7 encontros com cada catador e, com alguns, esses encontros se estenderam até 20, conforme a necessidade. Os encontros aconteceram em diferentes momentos e com objetivos diversos, a saber: (a) convite à pesquisa, (b) o encontro com a câmera fotográfica, (c) o processo de catar imagens, (d) as fotos e o que elas narram, (e) das visitas domiciliares à saída de campo, e (f) revisitando as andanças. Esses seis momentos serão apresentados a partir dos registros imagéticos e escritos das informações produzidas no decorrer da pesquisa e registradas por meio de filmagens, fotografias e diário de campo, tendo como eixo as características dos encontros com os sujeitos participantes.

(a) O início: convite à pesquisa

A pesquisa de campo iniciou a partir de andanças da pesquisadora pela cidade. Ao cruzar, em uma via pública, com o casal Zênia e Ximirruga, a pesquisadora se apresentou e falou brevemente sobre pesquisa; eles ficaram interessados e a convidaram para ir à sua residência. Recomendaram, na ocasião, outra CMR para a pesquisa, Titi. Decidiu-se, então, conhecê-la, indo à sua casa. Titi também aceitou participar. Posteriormente a pesquisadora foi ao encontro de catadores que conhecera em investigação anterior. Foi assim que Terezinha e Osmar entraram em cena. Terezinha não só aceitou participar da pesquisa como acompanhou a pesquisadora até a casa de Amália que, por haver assumido a catação como "bico", apresentou a catadora Maria Denis, que também aceitou. Para convidar Osmar, a pesquisadora foi à sua casa, e este prontamente concordou em participar.

Com os aceites de Titi, Osmar, Maria Denis, Terezinha e do casal Zênia e Ximirruga, considerou-se suficiente o número de participantes para dar início ao processo de produção de informações. Importante destacar o modo como os convites foram acontecendo e as respostas obtidas. A imprevisibilidade, a indicação de outros, o acaso estiveram presentes e foram importantes para o delineamento desse momento da pesquisa. Em contrapartida, a frustração também teve seu lugar, tema ao qual faremos referência no item "as pedras no caminho".

(b) O encontro com a câmera fotográfica

Um segundo encontro foi realizado nos dias que se seguiram com todos os CMR que aceitaram participar da pesquisa. Nesse encontro, a pesquisadora levou a câmera fotográfica e enfatizou a autonomia que teriam em fazer escolhas em relação ao quê e onde fotografar a cidade. Foi disponibilizada uma câmera fotográfica manual, 35 mm, modelo EC70, contendo um rolo de filme Kodak Ultra Max 24 poses, e uma pilha alcalina Kodak AA de 1,5V cc para que, durante suas atividades laborais e horas livres, pudessem fazer registros imagéticos dos lugares pelos quais cotidianamente se lançam "catando vida". Foi combinado que a pesquisadora voltaria para pegar os filmes para revelação. Eles fizeram estimativas sobre o tempo que precisariam para fotografar, mas depois todos solicitaram mais tempo. Observando o ritmo de cada um, a pesquisadora retornou até a conclusão dessa etapa do fotografar. Cada retorno, mesmo no caso de que não houvessem concluído as fotos, constituía-se em nova oportunidade para conversar e compreender suas relações com a/na cidade.

Fotografar é atividade que objetiva um processo de criação (Kossoy, 2007). Ao fotografar, o sujeito escolhe o contexto, as condições, o ângulo da imagem a registrar, e plasma, na imagem produzida, a sua visão de mundo. O movimento de fotografar captura um instante e o resgata do fluxo incessante dos acontecimentos da vida, atribuindo-lhe importância4 4 Sontag (2004) afirma que "Fotografar é atribuir importância ... não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, de conferir valor a seus temas" (p.41). . Porém, os sentidos que poderão ser produzidos a partir da leitura da imagem são vários, a depender dos (des)encontros entre os olhares daquele que a produziu e daqueles que a leem.

Tassinari (2008) afirma que a fotografia transcende o instantâneo fotográfico por se constituir em uma linguagem que significa. O autor, ao analisar uma imagem fotográfica de Henri Cartier-Bresson, enfoca a fecundidade dessa obra, posto que

o instante que cada uma de suas fotografias eterniza não é o simples instante do clique da câmera, mas um instante grafado na própria fotografia, que dela não se desgruda, e que estabelece correspondências de toda sorte entre diferentes aspectos do mundo. (Tassinari, 2008, p. 10)

Contudo, para além do instante, o ato de fotografar aponta escolhas, (im)possibilidades, desvela ângulos e cenários diversos, textos, pretextos, subtextos e contextos. Eis a riqueza e a complexidade da utilização da fotografia em pesquisa, questão atualmente problematizada por pesquisadoras como Tittoni (2009), Gusmão e Jobim e Souza (2010), Spink (2011), entre outros.

(c) O processo de "catar" imagens

Pesavento (2008) destaca que estudar a cidade requer pensar a complexidade do urbano a partir de olhares que partam de um espectro multidisciplinar, posto que esta "carrega uma dimensão simbólica inegável, ... é polimorfa, polifônica, polissêmica" (p. 10). Cada lugar em que se transita na cidade suscita múltiplas possibilidades de leitura. A memória e o imaginário urbano também se fazem presentes no universo citadino. Contudo, cada pessoa olha para esse universo a partir de sua trajetória, do que conhece ou desconhece, das relações que estabelece com locais por onde transita e com os quais dialoga.

Os CMR, ao perambularem pela cidade em suas carroças, bicicletas, carrinhos ou mesmo a pé, percebem-na de diferentes ângulos. Registraram em imagens a cidade a partir do modo como a veem, como a (re)produzem e são afetados nesses trajetos. Suas narrativas fotográficas5 5 Dias, Girotto e Tittoni (2011), ao falarem sobre a utilização das narrativas fotográficas em pesquisas acadêmicas, afirmam que estas compõem um conjunto de informações visuais que desvelam um discurso sobre um olhar, o qual não só comporta uma escolha empreendida por aquele que fotografou, mas evoca sentidos outros, revelando visibilidades e invisibilidades a partir da composição de seu texto visual. revivem e revelam a polifonia da cidade. Os registros apresentaram suas trajetórias como peças de uma "colcha de retalhos" que precisariam ser "costurados" de mil maneiras para abarcar a complexidade de suas vidas, constituídas com diversas cores, linhas e texturas. As imagens produzidas pelos catadores ao fotografar a cidade aludiram tanto a lugares familiares como inusitados. Apresentaram narrativas do trabalho, das condições de moradia, de seus itinerários, dos problemas ambientais da/na cidade, do modo como veem os resíduos urbanos e como dele se apropriam, entre outros aspectos.

Cada um empreendeu a atividade de modo e em tempos diferentes. Maria Denis fez um planejamento prévio das imagens que "cataria" pela cidade, produzindo uma narrativa fotográfica sobre seu trabalho, suas condições de moradia, sobre como significa a cidade. Quanto à narrativa do trabalho de Titi, foi principalmente produzida pela filha adolescente que descreveu, em fotografias produzidas com a direção de Titi, o trabalho que a mãe desempenha ao retornar para casa com os produtos da catação. Zênia, preocupada com a falta de habilidade de seu marido no manuseio da câmera, tomou a iniciativa de fotografar com ambas as câmeras, a sua e a de seu marido. Osmar fotografou sua casa inacabada, o terreno onde armazena o material reciclável, seu bairro, a vizinha e, sobretudo, sua família. Terezinha foi a que levou mais tempo para produzir as imagens. As fotos que produziu enfatizaram suas precárias condições de moradia, o marido trabalhando e seu adoecimento, a bicicleta que ganharam, o filho, o terreno e uma criança da vizinha que às vezes ela ajuda a cuidar. Ao fotografarem a cidade, os CMR de certo modo plasmaram em imagens um pouco de si mesmos, pois "cada fotografia constitui um pedaço de autobiografia" (Bauret, 1992, p.105). Assim, expressaram a potência do uso da fotografia nas pesquisas em psicologia.

(d) As fotos e o que elas narram

As narrativas fotográficas produzidas por Zênia, Titi e sua filha, Osmar, Terezinha e Maria Denis foram revistas por eles assim que receberam as fotos reveladas. Esse re(ver) aconteceu em encontros individuais, em suas respectivas residências, quando, empolgados, falaram sobre as imagens produzidas. Cada encontro durou entre uma a duas horas e trinta minutos de conversa e todos foram registrados em vídeo. Como afirma Jobim e Souza (2003): "o sujeito que se coloca disponível para uma câmera sabe que a sua imagem ao descolar-se de si ganha uma existência própria e poderá, portanto, ser retomada por outras pessoas, desencadeando interpretações infinitas" (p.86). Os catadores foram esclarecidos sobre as formas como as filmagens seriam utilizadas nesta pesquisa e aquiesceram.

Cada encontro aconteceu do seguinte modo: a pesquisadora levou as fotografias reveladas aos CMR que, ansiosamente, a aguardavam para ver como as fotos haviam ficado. Depois de apreciarem espontaneamente as imagens, a pesquisadora solicitou que falassem sobre cada uma delas e sobre o significado das imagens para eles. Os catadores falaram sobre as imagens produzidas, sobre como se deu o processo de "captura" de tais imagens, as relações deles com os lugares registrados, como viam a cidade, como significavam o seu trabalho, suas relações com as ruas, com a arquitetura da cidade, as lojas, com o material reciclável, com os atravessadores, com a família, como lidavam com seu tempo livre, entre outros aspectos.

A conversa aconteceu de modo que eles se sentissem à vontade para expressar suas respectivas trajetórias como "catadores de imagens" e habitantes da urbe. A partir daquilo que diziam, na condição de audiência ativa, a pesquisadora atentamente acompanhava as imagens e os discursos, incentivando-os, por meio de palavras, do tom de voz, de olhares e gestos, a falarem sobre os percursos traçados. Desse modo, cada encontro caracterizou-se como diálogo a partir do discurso produzido por eles, sem perguntas pré-definidas, e pautado na premissa de "bons encontros" entre pesquisador e sujeito da pesquisa, no sentido empregado por Spinoza, concebidos como condição para o próprio pesquisar. Spinoza (2005) afirma que o modo como lidamos com o outro pode aumentar ou diminuir sua potência de agir no mundo. Desse modo, os bons encontros espinosianos pressupõem a liberdade de expressão, a autonomia, a capacidade argumentativa dos sujeitos e a tessitura de relações ético-afetivas que contribuem para potencializar formas de expansão e reinvenção da/na vida.

As emoções dos catadores ao verem suas fotos foram evidentes. Foi a primeira vez que fotografaram, à exceção de Titi, que relatou já ter tido uma câmera. Alguns fotografaram a partir dos acontecimentos que caracterizaram aquele dia, outros planejaram o que iriam fotografar com base em temáticas que gostariam de exprimir sobre a cidade, como problemas de ordem ambiental, estradas em condições precárias, descuido com a higiene e animais, a atividade de catação em seu cotidiano. Ver e falar sobre as fotografias possibilitou-lhes a leitura das imagens urbanas que constituem seu cotidiano, e que os constituem como sujeitos, assim como possibilitou à pesquisadora compreender seus itinerários na cidade, suas formas de resistência, suas relações com o trabalho, com o espaço doméstico, com os materiais coletados.

Os sujeitos da pesquisa trabalham com o que é considerado lixo. O vocábulo define "tudo aquilo que 'perdeu o valor' e pode ser jogado fora" e diz respeito a uma grande diversidade de resíduos sólidos. Intitula-se ainda como lixo o que foi descartado, mas que pode ser reaproveitado e reciclado. Os CMR fazem, no entanto, uma distinção: lixo são os resíduos não apropriados por eles em suas andanças na urbe, e material reciclável são os resíduos urbanos considerados como lixo por quem os rejeita, mas que eles podem comercializar.

Na medida em que fazem suas escolhas em relação ao lixo, os CMR produzem sentidos diversos e estabelecem relações estéticas e afetivas com o material recolhido: os objetos coletados assumem sentidos variados, marcados pelas afecções que engendram. Por exemplo, na casa de Terezinha, vemos canecas de diferentes cores e formatos, em parte doadas pela escola que frequentava seu filho e, em outra, encontradas por Terezinha e seu marido durante a catação, as quais, dispostas em uma das paredes, decoram a cozinha. A quantidade de canecas está muito além da necessidade de sua família e o que impressiona é o arranjo estético. À primeira vista, parece uma coleção, uma "instalação", tal como as presentes no universo das artes. Terezinha explica que a disposição das canecas na parede é devido à falta de espaço, mas percebemos que esta assume um caráter decorativo. Por outro lado, Terezinha explica que tem dificuldades com essa exposição das canecas, pois precisa lavá-las várias vezes devido à poeira que ali se acumula e ao fato de serem utilizadas diariamente.

As filmagens desses encontros com os CMR possibilitaram revisitar aqueles momentos de produção de discurso, sendo valioso material de pesquisa, posto que foram registrados, além da fala, diversos tons de voz, pausas, entonações, gestos, posturas. As filmagens consistiram em memória daqueles momentos em que cada um falou a partir das imagens fotográficas que produziram e da qualidade dos encontros cunhados com a pesquisadora.

(e) Das visitas domiciliares à saída de campo

Após os encontros para a leitura das fotografias, a pesquisadora retornou à casa de cada sujeito da pesquisa para acompanhá-los em suas andanças pela cidade enquanto trabalhavam. Com alguns deles, esse retorno se repetiu por motivos vários: algumas vezes não foi possível encontrá-los; em outras, chovia; outras, não iriam catar naquele momento por motivo de saúde ou porque aguardavam, em casa, o atravessador para vender os materiais, entre outros motivos. Além dessas adversidades, outras dificuldades marcaram essa etapa da pesquisa, fundamentalmente em virtude de não estarem habituados a serem filmados nessas circunstâncias. Apesar das dificuldades, o caminhar com eles e o registro fílmico de suas peregrinações pelas vias da cidade aconteceram com três catadores; outros dois optaram por não serem filmados, e a pesquisadora procedeu, após o caminhar, ao registro de suas observações em Diário de Campo.

Filmar essas caminhadas e percorrer as trajetórias na mesma velocidade dos catadores não foi fácil. Em alguns momentos, ainda com a máquina ligada, a pesquisadora precisou correr para alcançá-los; em outros, desligava a filmadora e seguia com eles. Diferente dos demais, Maria Denis organizou toda a atividade e dirigiu a pesquisadora durante as filmagens, indicando cenas a serem registradas, ângulos e posições da câmera.

(f) Revisitando as andanças

As filmagens produzidas nas andanças pela cidade foram revisitadas com os CMR em encontros em suas residências. Ao reverem-se na atividade de trabalho, olhavam atentamente as imagens e teciam comentários. Para eles, se verem trabalhando na cidade foi motivo de orgulho, por reconhecerem que a atividade que realizam a preserva. Para a pesquisadora, rever as imagens consistiu em oportunidade de rememorar as andanças em outro ritmo, distinto da velocidade com que os catadores coletam o MR. Embora não tenha sido possível filmar tudo ao longo das caminhadas, as imagens em movimento contribuíram para suscitar memórias dessa experiência impregnada de ritmos, emoções, descobertas.

Os procedimentos para tratamento das informações e análise dos dados

Várias foram as formas de produção e registro de informações para esta pesquisa: conversas, fotografias, filmagens, diário de campo. O tratamento dessas informações e análise dos dados, em decorrência, precisou ser diversificado. Para proceder à análise das conversas que foram filmadas, o primeiro passo implicou na transcrição, ou seja, na transformação de materiais sonoros em texto. Portelli (2007) sustenta que a transcrição não se constitui em reprodução do mesmo modo como na tradução. Ademais, a transcrição de fontes orais não é tarefa simples: ritmo, emoções, pausas, musicalidade, entonações diversas, entre outros aspectos encontram-se nas narrativas dos sujeitos. Desse modo, "uma lentidão pode significar uma ênfase ou uma incerteza; uma aceleração pode significar o desejo de omitir, mas também familiaridade e facilidade de expressão" (Portelli, 2007, p. 9).

Com relação às análises das caminhadas, procedeu-se do seguinte modo: mediante tabelas, foram registrados os lugares percorridos com os CMR na cidade, seus movimentos, suas relações com a/na cidade. Os principais temas que emergiram foram: trânsito (dificuldades e conflitos); meio ambiente (descarte inadequado dos resíduos urbanos); catação (coleta e seleção do MR); relação com os consumidores e os comerciantes (cooperação, indiferença, rejeição); e riscos à saúde, principalmente devido à não utilização de luvas. Para construção dos temas, foram revisitados os vídeos produzidos nas andanças pela cidade e os diários de campo.

Como procedimento de análise dos dados, recorreu-se à análise dialógica do discurso (AD). De acordo com Fernandes (2008), a AD a partir da perspectiva bakhtiniana tem como propósito evidenciar os sentidos do discurso considerando as condições sócio-históricas e ideológicas em que foram tecidos, cujas condições de produção abarcam os sujeitos e a sua situação social. Os sentidos são produzidos pelos sujeitos a partir da trama de relações sociais; portanto, são polifônicos, constituem-se na tensão entre múltiplas vozes e a dialogia que conota a comunicação humana. Tais vozes emergem de diferentes lugares sociais e de díspares discursos que se amalgamam no discurso de cada sujeito. Para Fernandes (2008), "a polifonia é um aspecto constitutivo dos diferentes discursos, e os sujeitos sofrem (trans)formações no cenário histórico-social que lhes possibilitam, pela dispersão dos sentidos, constituírem-se discursivamente" (p. 34).

Desse modo, o extraverbal e o verbal foram considerados, posto que "como a perspectiva de análise não separa conteúdo e forma (o percebido), a situação, o extraverbal integra-se ao enunciado, constituindo sua significação" (Da Ros, 2006, p. 227). Em decorrência, a pesquisadora procurou ler os subtextos, contextualizar os posicionamentos, compreender o sofrimento, o sonho interrompido, as resistências, a esperança, a complexidade de habitar uma cidade multifacetada que contribui para restringir a potência de agir no mundo dessas pessoas. Nessa perspectiva de análise, textos/pretextos/contextos não podem ser dicotomizados, uma vez que estão intimamente relacionados. Afinal, "o texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo" (Bakhtin, 2003, p. 401). Todo texto/contexto suscita novos sentidos, em um inesgotável campo em que murmuram inquietações, desejos, necessidades, embates, diálogos diversos, e assim constitui-se "o diálogo infinito e inacabável em que nenhum sentido morre" (Bakhtin, 2003, p. 409).

Ao analisar os dados, a pesquisadora imprimiu a sua posição singular na leitura dos textos imagéticos e das narrativas dos sujeitos da pesquisa. Contudo, esse "acabamento" produzido nas análises não coincide com o "inacabamento" da vida de cada sujeito investigado, posto que cada pessoa "vive cada instante de sua vida como inacabado, como devir incessante. Seu olhar está voltado para um horizonte sem fim. O sentido da vida para aquele que vive é o próprio viver" (Amorim, 2006, p. 96). Assim, o lugar da pesquisadora é exterior, não coincide com a vida dos CMR em seu devir incessante: é marcado por trajetos, lugares e condições específicos, assim como o são os lugares dos sujeitos da pesquisa. O encontro dessas diferenças, cunhadas nos vários momentos do pesquisar com os CMR, engendrou possibilidades de ressignificação desses lugares e condições, sendo a própria pesquisa lócus de relações éticas e estéticas necessárias à modificação do vivido.

As pedras no caminho: alguns percalços

Pesquisar implica o encontro com universos desconhecidos. O imprevisível se apresenta, apesar dos projetos que visam distanciá-los. A pesquisa, como a vida, caracteriza-se por diversificadas possibilidades e é factível delinear previamente alguns trajetos, porém outros serão somente conhecidos no decorrer do processo. Do mesmo modo, a pesquisa é marcada por situações negadas e outras realizadas e, nesse movimento, é o trilhar implicado que possibilita conhecer a poética da vida. Na investigação aqui relatada, cada "não posso" ou "não quero" impulsionou o encontro da pesquisadora com aqueles que quiseram tecer conjuntamente esta história. Percalços, porém, foram constantes, e são aqui apresentados de modo a dar visibilidade ao que costumeiramente não é apresentado nos relatórios de pesquisa, porém se apresentam como acontecimentos significativos para se compreender o pesquisar como acontecimento ético, estético e político.

Um casal de catadores com o qual a pesquisadora tencionava trabalhar não aceitou o convite para participar da pesquisa. Em outro bairro, o primeiro contato foi com uma catadora que conhecera em época anterior, porém ela havia deixado a catação. Ao sair do bairro, a pesquisadora foi abordada por dois policiais que apontaram uma arma diretamente na sua cabeça. Não apresentaram seus documentos de identificação. Revistaram o carro à procura de drogas e nada encontraram. Ao questioná-los sobre a abordagem inadequada que realizaram, disseram que tal procedimento era rotina, por ser ali uma área de traficantes. Irritado após o questionamento, um dos policiais começou a gritar de modo desrespeitoso.

Tempos depois, quando retornou ao bairro, a pesquisadora entrou em contato com outro catador que concordou em participar da pesquisa. Ao retornar à sua casa alguns dias após ter deixado com ele a câmera fotográfica, a filha contou que o pai ficou indignado ao entender que a universidade local apoiava a proibição gestada pela Lei municipal 4.580, sancionada em 2003, que coíbe o tráfego de veículos de tração animal em determinados espaços urbanos, afetando as condições de trafegabilidade e os modos de trabalho dos CMR na urbe. Então, ao associar a pesquisa àquela instituição de ensino, ele destruiu a câmera descartável, inutilizando as fotografias que havia sido produzido. Foi reiterada, nessa ocasião, a informação que essa pesquisa era vinculada a outra universidade, porém o material e a possibilidade de pesquisar com este CMR estavam perdidos.

Essas foram as principais adversidades no processo de pesquisar. Outros pequenos entraves foram superados com mais facilidade, e não são aqui apresentados por sua condição de certo modo rotineira para pesquisadores. Essas adversidades dão visibilidade a determinados acontecimentos e o modo como podem, em maior ou menor medida, obliterar a própria caminhada. Se as recusas ao convite para participar da pesquisa, por um lado, foram superadas com a força dos aceites, a arma apontada para a cabeça da pesquisadora repercutiu com maior intensidade, e foi preciso superar o impacto causado pela violência policial para seguir em frente. O calor da acolhida dos catadores contribuiu para isso, bem como o exemplo das diferentes formas de resistência dessas pessoas para sobreviverem e para realizarem seu trabalho. Trabalho que revela a potência e a luta pela vida por parte de quem é continuamente violado em seus direitos e em sua dignidade.

Um pouco do que a pesquisa possibilitou compreender

A cidade, para os CMR, está sob o signo do sofrimento, da resistência e da esperança. O sofrimento transforma-se em luta. A família é o alicerce e, ao mesmo tempo, o motivo para viver. As crenças religiosas contribuem para que não desistam das suas vidas. O espaço de trabalho dos CMR é a rua e em suas andanças pela urbe evidenciam as dificuldades que enfrentam e as desigualdades sociais que assolam nosso país. Uma das dificuldades encontradas é o trânsito: não existe um lugar apropriado para a circulação dos carrinhos. Ora circulam nas calçadas, disputando espaço com os pedestres, ora nas ruas, com dificuldade para acompanhar o ritmo dos carros.

Outra dificuldade diz respeito à não utilização de luvas. Embora seja um equipamento de segurança de primeira necessidade no trabalho que desempenham, os catadores precisam comprá-las, e esse é um dos aspectos que explicita o fato de serem relegadas à condição de utensílio supérfluo. Resistem também às luvas por uma questão cultural. Uma parcela pequena de catadores no Brasil está organizada em cooperativas e associações. A maioria trabalha de modo independente, como os sujeitos desta pesquisa. Se, por um lado, o trabalho individual os relega à própria sorte ou os mantém dependentes da caridade, por outro lado, as cooperativas e associações de certo modo apenas cumprem seus papéis, e pouco contribuem para a transformação das precárias condições de vida de seus associados.

A pesquisa realizada possibilitou compreender que são inúmeros os problemas enfrentados pelos CMR, porém sua contribuição às cidades é inegável. Eles transformam o que têm acesso nas lixeiras, ruas e terrenos baldios em decoração para suas casas, em objetos utilitários, em toneladas de MR a ser comercializado. Além disso, aceitam a doação de móveis velhos, consertam os eletrodomésticos que encontram, quase tudo é reaproveitado. O cobertor velho e puído que encontram os aquece, a roupa usada torna-se sua melhor roupa. Os sapatos jogados nas lixeiras em condições de uso são reutilizados. Colheres, garfos, copos, canecas, panelas podem se transformar no nada que vira um tudo. Nada para os que depositam nas lixeiras; tudo para aqueles que os recolhem e reutilizam. Os alimentos desperdiçados que ocupam as lixeiras também lhes servem.

As fotografias produzidas por eles para a pesquisa somam-se a esse universo de materiais com os quais se relacionam. As fotos produzidas por Zênia são as únicas imagens que possui de sua mãe e de seu marido6 6 Ximirruga, companheiro de Zênia, foi assassinado a facadas em frente à residência do casal em novembro de 2010. , e encontram-se cuidadosamente guardadas dentro da sua Bíblia. Ela as preserva como algo sagrado. Maria Denis guarda as fotos em seu quarto em uma caixa que contêm as fotos acumuladas ao longo de sua vida. Titi guarda as fotos dentro de uma caixa de sapatos. No armário da casa de Osmar, as fotos que produziu são guardadas com zelo por sua mulher que juntou as produções imagéticas dele às fotos de sua família quando se casou. As fotos de Terezinha foram levadas por ela à Prefeitura para ilustrarem os diversos memorandos que elaborou pedindo ajuda do governo municipal, mas lá disseram que a situação dela era igual a de tantos outros e que ela deveria esperar, esperar e esperar... Então, Terezinha levou as fotos para mostrar ao padre na Paróquia onde ganha cestas básicas e as fotos o sensibilizaram. Ela disse que já relatara as condições precárias de sua moradia tantas outras vezes, mas ao constatar as imagens ele conseguiu doações e fez uma nova casa para ela.

Considerações finais

Pesquisar é navegar por mares conhecidos e ao mesmo tempo desconhecidos, o que implica remar em diferentes direções, no confronto com as ondas, ventos, correntes marítimas, tendo em vista as planícies almejadas. A bússola/projeto indica a direção, mas a diversidade de movimentos a que o barco está sujeito o leva ora a navegar mais ao sul, ora mais ao leste, quiçá a oeste; em ritmos e condições variadas; ora a avançar, ora a recuar para novamente avançar ou tendo que modificar significativamente a direção. As diferentes condições e as escolhas adotadas na travessia visam ao encontro de planícies cuja pressuposição motivou a própria viagem. Mas a abertura aos imprevistos e a escuta atenta de seus sons e silêncios, da multiplicidade de vozes que o conotam, podem apresentar ao pesquisador possibilidades de encontros outros, de novos conhecimentos.

No caso da pesquisa aqui relatada, as escolhas metodológicas, algumas não previstas antes dos encontros com os sujeitos da pesquisa, foram fundamentais para a análise das relações estéticas dos CMR com a cidade, para a escuta de sua polifonia. A complexidade do tema escolhido demandou uma perspectiva interdisciplinar tanto no que se refere às escolhas teóricas como metodológicas. Outros caminhos poderiam ter sido trilhados, porém as trajetórias aqui relatadas, tendo em vista os resultados obtidos, podem ser consideradas como adequadas. Os percalços, por sua vez, consistiram em oportunidades para as mudanças necessárias ao sucesso da navegação. Em sendo reconhecidos, não em virtude do que impedem, mas do que podem vir a engendrar, são mais do que pedras no caminho: apresentam-se como condição para o movimento exotópico, necessário ao redimensionamento do processo, para a análise das escolhas feitas e de seus efeitos e, fundamentalmente, para o desenho de caminhadas outras.

Agradecimento

Pesquisa realizada com bolsa de estudos da CAPES.

Notas

Referências

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Recebido em: 25/09/2012

Revisão em: 24/11/2013

Aceite em: 09/02/2014

Daiani Barboza é Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com período sanduíche na Università degli Studi di Roma La Sapienza.Endereço: NUPRA - Núcleo de pesquisa em práticas sociais, relações éticas, estéticas e processos de criação. Universidade Federal de Santa Catarina, Campus Universitário. Bairro: Trindade. Florianópolis/SC, Brasil. CFH/Programa de Pós-Graduação em Psicologia. CEP 88040-970. E-mail: daianib@gmail.com Andrea Vieira Zanella é docente do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSC, bolsista em produtividade do CNPq. E-mail: avzanella@gmail.com

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  • 1
    Este artigo apresenta parte da tese de doutoramento realizada pela primeira autora com orientação da segunda autora.
  • 2
    Os atravessadores compram o material dos CMR e revendem para as grandes indústrias. Para tanto, agregam mais valor ao MR, usando recursos que os catadores não dispõem em suas casas como, por exemplo, maquinário apropriado.
  • 3
    Sobre essas escolhas e suas implicações, ver textos compilados por Boaventura de Souza Santos (2004).
  • 4
    Sontag (2004) afirma que "Fotografar é atribuir importância ... não há como suprimir a tendência, inerente a todas as fotos, de conferir valor a seus temas" (p.41).
  • 5
    Dias, Girotto e Tittoni (2011), ao falarem sobre a utilização das narrativas fotográficas em pesquisas acadêmicas, afirmam que estas compõem um conjunto de informações visuais que desvelam um discurso sobre um olhar, o qual não só comporta uma escolha empreendida por aquele que fotografou, mas evoca sentidos outros, revelando visibilidades e invisibilidades a partir da composição de seu texto visual.
  • 6
    Ximirruga, companheiro de Zênia, foi assassinado a facadas em frente à residência do casal em novembro de 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014

    Histórico

    • Recebido
      25 Set 2012
    • Aceito
      09 Fev 2014
    • Revisado
      24 Nov 2013
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