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A cultura dos mitos: do regime de historicidade karajá e sua potência “fria”1 1 Agradeço a Lucybeth Arruda, Rodrigo Brusco e Marcela Coelho de Souza por terem pacientemente lido a versão inicial desse artigo, cuja forma atual deve muito a seus comentários.

The culture of myths: on the Central Brazilian Karajá’s regime of historicity and its “cold” potency

RESUMO

Esse artigo toma a caracterização de Lévi-Strauss das “sociedades frias” como inspiração para discutir o regime de historicidade karajá, um povo do Brasil Central. Sua mitologia narra um tempo da criação, onde diversos aspectos do mundo são criados e a humanidade adquire os conhecimentos que hoje a caracterizam enquanto tal. Já a ação no mundo atual não é criadora: antes, as ações fazem aparecer formas que já estavam lá, desde o princípio, pois inscritas pelo mito. Dessa maneira, as ações atuais fazem aparecer ou uma continuidade em relação aos tempos antigos, pois elicitam os mesmos nexos relacionais, ou uma ruptura marcada para com “a cultura”. Em um caso como no outro, o que é colocado em evidência é a potência “fria” de seu regime de historicidade, ou seu caráter contrahistórico. Para dar conta desse regime, escapando da ideia de história formulada em termos de mudança e continuidade, argumento que é preciso separar o problema da história do problema do tempo.

PALAVRAS-CHAVE
Inỹ-Karajá; mitologia; tempo; história

ABSTRACT

In this paper, I take Lévi-Strauss’ characterization of “cold societies” as an inspiration from which to discuss the central Brazilian Karajá’s regime of historicity. Their mythology narrates a time of creation when diverse aspects of the world are created and humanity acquires the knowledge that now characterizes it as such. Action in the actual world, on its turn, is not creative: they make appear forms that were already there, for inscribed by the myth. Actual actions therefore make appear either a continuity in relation to “ancient times”, for they elicit the same relational nexus, or a marked rupture in relation to “the culture”. In the one case or the other, what is evinced is the “cold” potency of their regime of historicity, its contra-historical character. To grasp this regime though escaping from the idea of history put in terms of change and continuity, I argue that it is necessary to set the problem of history apart from the problem of time.

KEYWORDS
Inỹ-Karajá; mythology; time; history

‘História’ é uma palavra traiçoeira que, passando por autoevidente, traz na bagagem muito mais do que declara; quanto mais quando acrescida do adjetivo “indígena”. A facilidade com que a expressão comunica elude a multiplicidade de sentidos a ela imputados: há quase tantos conceitos de “história” quantas vozes para enuncia-lo. Um dos exemplos mais emblemáticos dos mal-entendidos (nada produtivos, diga-se) que isso pode gerar é a antiga oposição entre povos “com” e “sem” história; oposição essa cuja crítica se tornou o cavalo de batalha de parte considerável da etnologia nos anos 1980. Algo como um compromisso ético, a valoração da história ou historicidade indígenas “equivalia a uma reatualização de reconhecimentos anteriores; o de que eles têm, por exemplo, alma, ou racionalidade” (Calavia-Sáez, 2005CALAVIA-SAÉZ, Oscar. 2005. “A terceira margem da história: estrutura e relato das sociedades indígenas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 57: 39-51.: 40).

Como alternativa à velha e infértil oposição, Lévi-Strauss havia proposto ainda em fins da década de 1950 que a questão poderia ser melhor apreendida pelo contraste entre “sociedades quentes” e “frias”. Mas seu propósito, como se sabe, foi “parcialmente negligenciado, parcialmente mal compreendido” (Maršálek, 2009MARŠÁLEK, Jan. 2009. Innovations and Temporality: Reflections on Lévi-Strauss’ “Cold Societies” and Our “Warming” Science. Theory of Science / Teorie vědy, v. 31, n. 3-4. pp. 133-143.: 134) por uma legião de críticos, cujos olhos estavam firmemente voltados para a afirmação de que os índios “têm” ou “estão” sim na história. Para Lévi-Strauss, entretanto, isso era ponto passivo e, por isso, a questão estava aquém do que deveria ocupar nossas reflexões. Seu intento era avançar no sentido do reconhecimento de que diferentes sociedades lidam de maneiras diferentes com essa “condição comum”. Tomando-a do ponto de vista da diversidade, seu movimento implicava que, “ao menos de direito, podem existir tantas formas de historicidade quanto de parentesco ou de religião” (Goldman, 1999GOLDMAN, Marcio. 1999. “Lévi-Strauss e os sentidos da história”. Revista de Antropologia, v. 42, n 1-2: 223-238.: 229).

É bem verdade que o debate em torno do contraste de Lévi-Strauss já há algum tempo está, com o perdão do trocadilho, frio. Se muitos já o criticaram, tantos outros já mostraram a inadequação ou a injustiça das críticas, apontando que Lévi-Strauss não recusa a história aos índios, que a perspectiva de seus críticos se assenta sobre premissas “quentes”, que os mitos são artefatos históricos e que a história pode operar como um mito (ver p. ex. Calavia-Sáez, 2005CALAVIA-SAÉZ, Oscar. 2005. “A terceira margem da história: estrutura e relato das sociedades indígenas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 57: 39-51.; Goldman, 1999GOLDMAN, Marcio. 1999. “Lévi-Strauss e os sentidos da história”. Revista de Antropologia, v. 42, n 1-2: 223-238.; Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and Its History. Oxford, Oxford University Press.; Harkin, 2009HARKIN, Michael E. 2009. “Lévi-Strauss and history”. In: WISEMAN, Boris (Org.). The Cambridge Companion to Lévi-Strauss. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 39-58.; Maršálek, 2009MARŠÁLEK, Jan. 2009. Innovations and Temporality: Reflections on Lévi-Strauss’ “Cold Societies” and Our “Warming” Science. Theory of Science / Teorie vědy, v. 31, n. 3-4. pp. 133-143.).2 2 Ou mesmo Overing (1995), cuja proposta, a despeito da incompreensão de base dos argumentos de Lévi-Strauss, caminha em paralelo aos escritos do autor. No entanto, a caracterização positiva que Lévi-Strauss faz dos regimes "frios" de historicidade permaneceu pouco explorada. Em parte, certamente, pelas limitações do próprio argumento; mas penso que há algo nele que mereceria maior atenção.

Nesse texto, parto da noção de “sociedades frias” como inspiração para descrever - ou antes esboçar - o regime de historicidade karajá. Meu foco inicial recairá sobre um material fundamental nos trabalhos de Lévi-Strauss, a mitologia; entretanto, não a tomarei por si mesma, mas em sua conexão com a ação humana atual mediada pelo estoque de formas convencionais que os Karajá chamam de seu “conhecimento” ou “cultura”. Mas há também formas não-convencionais, formas-Outro, e muitas vezes são elas que as ações das pessoas têm feito aparecer em um tempo em que os Karajá dizem viver “como os brancos”. Diante disso, a percepção corriqueira dos índios é a de que “a cultura está acabando”. É em relação a essas transformações, penso, que a discussão sobre a potência “fria” dos regimes de historicidade indígenas se faz mais pertinente.

HISTÓRIAS DO PASSADO

Para os Karajá3 3 Os Karajá são um povo falante de uma língua macro-jê (Davis, 1968). Assim como os Javaé e Ixỹbiòwa, eles se autodesignam como Inỹ. Os três povos falam variantes de uma mesma língua, o inỹrybè, que apresenta uma diferenciação da fala pelo sexo do falante (ver Ribeiro, 2012). As variantes feminina e masculina das palavras aparecem indicadas no texto por meio dos símbolos ♀ e ♂, respectivamente. , habitantes imemoriais da calha do rio Araguaia, só há uma única maneira para se referir a toda e qualquer história: dos relatos míticos sobre o começo do mundo à narrativa das artimanhas ou desventuras de um homem em uma pescaria, todo relato é uma ijàky ♀, ijyy ♂. A continuidade de natureza entre o passado mítico e o presente que o termo denuncia é constantemente por eles reafirmada: as narrativas sobre os tempos antigos são muito comumente acompanhadas de comentários como “isso aconteceu mesmo, não é mentira!”. Do ponto de vista karajá, a velha diferença entre “mito” e “história” carece de sentido e, quando se pergunta sobre sua história, suas respostas remetem sempre às suas histórias no plural, ou seja, em grande parte àquilo que chamamos de “mitos”.

A diferença entre relatos antigos e mais atuais é, antes, uma de gradação temporal. Os Inỹ apontam com precisão considerável que tal ou qual acontecimento teve lugar antes ou depois disso ou daquilo. O resultado dessa organização temporal, entretanto, não é uma sequência linear e homogênea ligando o começo do mundo ao aqui e agora, mas o reconhecimento de três grandes tempos.4 4 Enquanto algumas histórias são localizadas com precisão umas em relações às outras, outras são localizadas mais vagamente como tendo acontecido em um certo período de tempo (igualmente vago) entre dois acontecimentos ou momentos: das muitas histórias cujos protagonistas são animais, por exemplo, diz-se apenas que aconteceram “no tempo que Ànỹxiwè caminhava sobre este chão” (ver infra), sem se incomodar com a ordem relativa em que aconteceram. As narrativas sobre tempos remotos - nossos “mitos” - são chamadas de ihetxiu ijyy ♂ ou hàkỹna ijàky ♀, hỹỹna ijyy ♂, literalmente “histórias antigas”. Mas essas compreendem dois tempos distintos: o tempo primevo, anterior ao surgimento da humanidade verdadeira, e hàkỹna mahãdu bàdeku ♂, hỹỹna mahãdu bàdeu ♂, “o tempo dos antigos”, os ancestrais dos Inỹ atuais. Ainda que o primeiro tempo não seja nomeado, tal diferença é plenamente reconhecida pelos índios - assim como plenamente reconhecível pelo conteúdo das histórias. Em contraste como esses passados mais ou menos remotos, os Inỹ se reconhecem como vivendo “no tempo do pessoal de hoje” (wijina bòdu mahãdu bàdeku ♀). Esse tempo presente é tanto disjunto quanto conjunto em relação ao tempo dos antigos: em certos contextos, os Karajá se reconhecem como fazendo as mesmas coisas que seus ancestrais faziam, ao passo que, em outros, eles dizem que “está tudo diferente” ou que “a cultura está acabando”. Para compreender como essa diferença de contextos, apresentada em termos temporais, remete a uma teoria inỹ da história que não é ela mesma “temporal”, i.e., para a qual o transcurso do tempo é largamente indiferente, será necessário nos voltarmos para a maneira como a ação cotidiana opera uma mediação entre esses diferentes tempos, fazendo-os aparecer ora como pura continuidade ora como uma “ruptura”. Antes, porém, é preciso que nos detenhamos sobre o passado.

A DUPLA DISJUNÇÃO DO PASSADO MÍTICO5 5 A exposição que se segue do passado mítico karajá e o argumento a partir dela delineado é uma síntese do segundo capítulo de minha tese de doutorado (Nunes, 2016). Para fins de economia textual, e com o perdão do abuso da síntese, me limitarei a referenciar as narrativas por meio da numeração (M01, M02, e assim por diante) com que são identificadas em minha tese, em cujos anexos se encontram a íntegra das traduções das narrativas. Outras versões são citadas apenas quando apresentam variações importantes para o argumento. Para a leitora ou o leitor interessados na mitologia inỹ, remeto também aos compêndios de narrativas ou etnografias que registram uma quantidade significativa de histórias: Pimentel da Silva e Rocha (2006), Toral (1992: Anexos), Pappiani e Lacerda (2014), Pétesch (1992: Anexos), e Rodrigues (2008).

Kànỹxiwè ♀, Ànỹxiwè ♂ é o grande demiurgo transformador da mitologia inỹ. No começo de tudo, “antigamente, antes de conhecer, antes de começar a aparecer as coisas, os Karajá ou qualquer pessoa. Só existia Kanysiwe com a avó dele” (trecho de uma narrativa do finado Ijèsèbèri Karajá em Toral, 1992TORAL, André A. 1992. Cosmologia e Sociedade Karajá. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 14 - Anexos). Ele descobre o sexo, que não conhecia, ao violentar sua própria avó (M01). Como comentou o tradutor de uma versão registrada por Patrícia Rodrigues (2008: 51)RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.: “Devido a esse acontecimento, de Tanỹxiwè [pronúncia javaé] ter feito sexo com a própria avó, nós herdamos esse costume de fazer sexo, de produzir filhos, para aumentar a população, pois antes não tinha, era tudo por encanto. O exemplo de Tanỹxiwè foi seguido por várias espécies, os animais, os pássaros, todos os seres vivos da terra”.

Denunciado pelo Mutum, que presenciou a agressão, Ànỹxiwè mata o pássaro em vingança e depois abandona sua avó. Ele vai andando e encontra Myreikò ♀, Myreiò ♂, uma mulher inỹ, com quem se casa e passa a morar, na companhia também de sua sogra. Naquele tempo, o sol andava rápido demais; amanhecia e logo escurecia novamente. As pessoas sofriam muito. Certa feita, a sogra de Ànỹxiwè é pega pela escuridão quando estava na roça, tropeça em um tronco pontudo e corta a perna. De lá mesmo a velha reclamou: “Eu tenho um genro anõni ♀ e mesmo assim o tempo escurece comigo ainda aqui!”, ela falou com raiva. Ele era aõni6 6 O termo aõni se refere a uma gama de seres que povoam o cosmos inỹ atual, mas também a uma “potência-espírito” que caracteriza, além dos xamãs, todos os seres do tempo do primevo. ♂, por isso escutou e partiu novamente, agora para resolver tal problema. Transformou-se em um bicho morto, já inchado pela putrefação. Vários abutres diferentes se aproximam e, após constatarem que estava “realmente” morto, Rararèsa (o Urubu-Rei) desce sobre ele.

Com o embuste, Ànỹxiwè agarra o Urubu-Rei e, depois de alguma negociação, consegue se apropriar do sol (que era o grande cocar do abutre) e o coloca a andar vagarosamente pelo céu. Antes de soltá-lo, Ànỹxiwè corta o cabelo do Urubu-Rei. Os abutres eram todos parentes ascendentes dele - ilana (mb), ilabàtèrỹ (fz)... - e, por isso, fizeram bròtyrè para seu sobrinho, dando origem assim a esse comportamento cerimonial cuja presença na vida inỹ atual é notável.7 7 Em diversas ocasiões, um parente mais velho se submete ao mesmo processo pelo qual um parente descendente (no mais das vezes uma criança) está passando: para dar apenas um exemplo, quando o menino está sendo pintado todo de preto e tendo seu cabelo cortado no segundo dia de sua reclusão no Hetohokỹ (o ritual de iniciação masculina), vários de seus parentes irão cortar um pouco de seu cabelo ou pintar uma parte de seu corpo com o mesmo jenipapo. Tal comportamento cerimonial é presente em virtualmente todos os rituais inỹ, assim como pode acontecer em contextos cotidianos, embora com menor frequência. Conta-se que, naquele tempo, todos eles tinham longos cabelos. Foi por causa de Ànỹxiwè que eles ficaram com o cabelo curto: alguns, como o carcará, ficaram apenas com um topete, outros, como o urubu e o rarajiè, tiveram a cabeça completamente raspada. O Urubu-Rei ensinou muitas coisas para Ànỹxiwè, depois voou, foi embora. Quando ele ia subindo, Ànỹxiwè se lembrou de coisas que tinha esquecido de perguntar e, à medida que sobe, o grande abutre vai lhe respondendo: como se pesca o pirarucu, como se faz canoa (Toral, 1992TORAL, André A. 1992. Cosmologia e Sociedade Karajá. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 7 - Anexos; Pétesch, 1992PÉTESCH, Nathalie. 1992. La Pirogue de Sable. Modes de Représentations e d’Organization d’une Société du Fleuve: Les Karajá de l’Araguaia (Brésil Central). Paris, tese de doutorado, Université de Paris X (Natèrre).: 450), onde se coloca o peixe pescado (Mabiore, 2014aMABIORE Karajá. 2014a. “Ynyxiwè, que trouxe o sol”. In: PAPPIANI, Angela & LACERDA, Maria P. (Orgs.). Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá. São Paulo, Ikorẽ, pp. 27-33.: 32), e como se faz roça (Rodrigues, 2008RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.: 54-55). Por fim, Ànỹxiwè lhe pergunta como se faz para trocar de pele. O Urubu-Rei responde, mas ele já estava muito longe, de modo que tudo que o demiurgo pode escutar foi um burburinho parecido com o barulho do vento. As árvores escutaram, por isso elas sempre renovam suas folhas; também as cobras, a aranha caranguejeira, o grilo tysibryri e o camaleão, por isso trocam de pele. Já os Inỹ não escutaram e por isso as pessoas morrem, em lugar de se renovar sempre (M02).

Depois de roubar o sol, equilibrando a duração do dia e da noite, Ànỹxiwè continuou morando com sua família por um tempo, mas logo partiu novamente. Todos os episódios narrados até agora tiveram lugar no extremo rio abaixo. Dalí, Ànỹxiwè parte em uma longa caminhada rio acima8 8 Nas versões que registrei, a caminhada de Ànỹxiwè se inicia no extremo rio abaixo (iraru) e segue em direção à montante (ibòkò ♀, ibòò ♂). Em versões javaé (Toral, 1992; Rodrigues, 2008), ele sai de algum lugar próximo às cabeceiras do Araguaia e vai descendo o rio até seu extremo norte, que corresponderia à atual cidade de Belém. , ao longo da qual opera uma série de transformações que vão imprimindo no mundo as características que apresenta hoje.

Uma característica marcante daquele tempo era um regime universal de comunicação. Nas palavras de Mahuèdèru, “diz que, antigamente, os animais eram gente e falavam nossa língua, os animais terrestres, as aves”; “Antigamente só havia uma língua, não sei quando isso mudou. As árvores falavam em inỹrybè com as pessoas, e assim também os peixes e os animais terrestres” (Kabitxỹna; 2014KABITXỸNA Karajá. 2014. “Biu-mỹ ijyy - história da chuva”. In: PAPPIANI, Angela; LACERDA, Maria Paula. (Orgs.). Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá. São Paulo, Ikorẽ, pp. 35-39.: 35). Os animais conversam com as pessoas, contam-lhes coisas, ou as enganam, por vezes fazem sexo, casam-se e têm filhos com os humanos. Há histórias, inclusive, que envolvem apenas protagonistas animais e cujos desfechos comumente narram a origem de certas características atuais de algumas espécies - como o casco do tracajá feito da colagem dos fragmentos de sua carapaça primordial que fora quebrada, ou dos olhos da onça, feitos de resina de jatobá em substituição a seus originais danificados em uma desaventura (ver Ribeiro, 2012RIBEIRO, Eduardo R. 2012. A Grammar of Karajá. Illinois, tese de doutorado, Universidade de Chicago.: 116-125; Tèwahura, 2014TÈWAHURA Karajá. 2014. Hãlòè e Wariri - a luta da onça e do Tamanduá. In: PAPPIANI, Angela & LACERDA, Maria P. (Orgs.). Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá. São Paulo, Ikorẽ, pp. pp. 57-69.).

Em sua caminhada, além da transformação da paisagem e de outros aspectos do mundo, Ànỹxiwè também transforma os vários animais que vai encontrando pelo caminho. À beira do rio, ele observa que os peixes não tinham nadadeira, de modo que as pessoas os pegavam com as próprias mãos, sem dificuldades. Ele então coloca nadadeira nos peixes, para que eles possam fugir, assim como esporão em algumas espécies e dentes em outras (como a piranha), para que pudessem se defender. Daí em diante, as pessoas precisaram aprender a pescar para se alimentar. Depois ele segue caminhando e transformando os animais em... animais - em inequivocamente animais: o cesto wèriri que um grupo de mulheres levava para colocar frutas, ele gruda em seu papo, transformando-as em camaleão (kurè ♀, urè ♂); ele dá um remédio para deixar rouca a bela voz de um grupo de cantores que estavam à beira de um lago, transformando-os no pássaro jacu-cigano (hãtana) - a coifa plumária com a qual aqueles homens se adornavam se torna então as penas eriçadas da cabeça da ave. Alguns são enganados pelo demiurgo, que lhes toma certos objetos doravante característicos da humanidade: ele convence o Lagartixa a trocar seu bom machado por um feito de barro, imprestável, e depois o transforma em lagartixa (Mabiore, 2014bMABIORE Karajá. 2014b. “Ynyxiwè e a criação dos animais”. In: PAPPIANI, Angela & LACERDA, Maria P. (Orgs.). Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá. São Paulo, Ikorẽ, pp. 41-49.: 42-43); ele troca a canoa de madeira do Pato por uma feita de barro, que logo derrete quando é colocada na água, e o transforma nesse animal aquático (Pétesch, 1992PÉTESCH, Nathalie. 1992. La Pirogue de Sable. Modes de Représentations e d’Organization d’une Société du Fleuve: Les Karajá de l’Araguaia (Brésil Central). Paris, tese de doutorado, Université de Paris X (Natèrre).: 452). Como comentou um narrador, “no tempo em que todos eram gente, os pássaros e todos os animais, ele os transformou em bicho.9 9 No original, rairòdunỹ-, verbo formado pela sufixação do verbalizador -nỹ à palavra iròdu, “animais terrestres” (termo que se contrapõe às aves, nawàki ♀, nawii ♂, e aos peixes, kàtura ♀, àtura ♂). Foi Ànỹxiwè mesmo que fez isso, foi andando por vários lugares e os transformando” (M05).

Ànỹxiwè extrai a humanidade desses seres do tempo primordial, que eram a um só tempo gente e camaleão, gente e lagartixa, gente e pato... É rigorosamente impossível saber se os Jacu-Ciganos que cantavam à beira de um lago eram pescadores em forma de pássaro ou pássaros em forma de gente; essa diferença era interna ao JacuGente: seus aspectos humano e bicho superpunham-se intensivamente (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de campo, n. 14/15: 319-338.). Ànỹxiwè vem, então, e rouba uma parte desses seres, externalizando as diferenças que os constituíam internamente, produzindo gradativamente um estado atual em que há intervalos discretos entre as formas-inỹ e as formas-bicho. Mas o mito antevê o resultado das operações do demiurgo. Se os cantores eram uma multiplicidade intensiva Jacu-Gente, eles já eram referidos com o nome do pássaro e já eram habitantes da margem do lago, i.e., já apresentavam características atuais da espécie. O mito antecipa a transformação por vir. Renan Hãburunatu, de quem primeiro escutei uma narrativa sobre a caminhada de Ànỹxiwè, comentou que o demiurgo não estava “transformando” aqueles com quem encontrava em animais; ele estava arrumando, corrigindo, ou consertando as coisas que não estavam como deveriam. E narrava o pensamento de Ànỹxiwè antes de suas ações: “Isso não está certo! Vocês não são gente, vocês são” jacu-cigano, lagartixa, camaleão... A forma jacu-cigano já estava, de alguma maneira, presumida no Hãtana mítico.

A afirmação de que, naquele tempo, os animais eram gente e falavam diz algo também, é certo, sobre a humanidade primeva: os Inỹ do tempo em que Ànỹxiwè andava sobre esse chão eram outra coisa ou mais (ou menos) que humanos, pois também eles podiam conversar com os animais. A própria mulher de Ànỹxiwè era Inỹ, mas se casou com um aõni, um tipo de conjunção impossível nos tempos de hoje. Antes disso, ela é protagonista de uma saga em que, dentre outras coisas, entra com seu filho na barriga do Socó-Boi (o menino sai de lá todo pintado, como a ave), faz uma árvore gigantesca descer até o chão para que possa subir nela, negocia chuva com um habitante do mundo do alto, seu filho se transforma em um pássaro e a abandona, e ela, por fim, se casa com o Raposa, ao chegar na aldeia dos animais (M08).

O fim desse tempo primordial será, justamente, marcado pelo eclipsamento dessa “transparência pré-cosmológica originária” (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de campo, n. 14/15: 319-338.: 332), o que a mitologia inỹ sintetiza em dois eventos principais. Primeiro, a chegada de Ànỹxiwè à aldeia dos animais, onde lhes rouba o fogo (M10). Esse parece ser o evento de transformação derradeira: dali em diante, nenhum animal é mais gente, nenhum animal fala. A caminhada de Ànỹxiwè é antes um tempo que um evento, uma imagem desse tempo primordial. Segundo, a primeira humanidade é extinta em função da revelação de um segredo ritual - o episódio, tanto quanto o local, são conhecidos como inỹ wèbòhòna. Dois meninos em reclusão iniciatória durante o Hetohokỹ (o grande ciclo de iniciação masculina) contam para sua mãe um segredo masculino, mas são denunciados por um velho - que escutou tudo, deitado no canto da casa - aos homens que voltavam da pescaria. Como resultado, os homens cavam dois grandes buracos na praça ritual, ateiam fogo e lançam todas as pessoas dentro. Os dois meninos são os únicos a sobreviver. Eles se casam com as mulheres periquito, que eram criação de seus sobrinhos uterinos e, tempos depois, partem rumo ao Araguaia - essa aldeia se localizava do outro lado da Ilha do Bananal, junto ao rio Javaés (M11). Quando chegam lá, encontram a humanidade verdadeira, que havia acabado de emergir do Berahatxi - o Fundo do Rio, patamar inferior do cosmos - para habitar as margens do Araguaia (M12).10 10 Para uma análise mais detalhada do surgimento da humanidade verdadeira e, por um lado, a diferenciação dos três povos inỹ e, por outro, a distinção entre os Inỹ e os ixỹju, povos estrangeiros, ver Nunes (2018; 2019). É a partir daí que os Inỹ se espalham, ocupando uma larga porção da calha desse rio.

A saída do Fundo do Rio marca o início do “tempo dos antigos”, hỹỹna mahãdu bàdeu ♂. Se no tempo primevo tudo era contínuo (Lévi-Strauss, 2004LÉVI-STRAUSS, Claude. 2004 [1968]. O cru e o cozido. São Paulo, Cosac & Naify.), agora os intervalos discretos entre os seres já estão constituídos. A humanidade verdadeira aí inaugurada, entretanto, ainda que discreta em relação a outras gentes - os vários aõni, os povos estrangeiros, os animais -, ainda não possuía muitos dos elementos que caracterizam a condição propriamente inỹ, e essa é a tônica das histórias sobre esse tempo: elas narram como esses conhecimentos, rituais e outros elementos foram aprendidos ou apropriados. Os enfeites e unções corporais, assim como certos produtos de roça, foram tomados dos Wèrè e dos Tapirapé (M12); a agricultura foi ensinada pelo povo celeste de Tainahakỹ, o Homem-Estrela (M14); o ritual de iniciação xamânica foi ensinado a um xamã por um aõni (M18); a divisão entre os grupos de praça de cima (ibòò ♂), do meio (itya ♂) e de baixo (iraru) é consequência da maneira assim repartida como Biuraxi e seus companheiros desceram do patamar superior do cosmos para a aldeia de Sanawè, e foram eles que ensinaram como fazer a festa da primeira colheita (M15).

Ao contrário do tempo primevo, não há um evento que marque claramente o fim do “tempo dos antigos”: nele se passaram acontecimentos remotos como os acima narrados, tanto quanto outros mais recentes, por vezes historicamente localizáveis. A diferença entre os “tempos”, assim, não é cronológica: ainda que sejam sequenciados, cada tempo é um mundo de caraterísticas particulares e, por isso, poderiam ser mais precisamente chamados de tempos-mundos;11 11 O próprio termo que traduzo aqui por “tempo”, bàdeu ♀, é formado pela sufixação da posposição temporal -u ♂ ao substantivo bàdè, uma partícula usada em expressões para paisagens, biomas, clima e fenômenos meteorológicos, assim como para tempo (no sentido da duração), mundo e território - além de humor, de maneira análoga a quando dizemos em português que “o tempo fechou”. é isso que figura em primeiro plano. Mais importante que o que vem antes ou depois do que é a potência particular que uma ação evoca: tudo que operacionaliza essa transparência pré-cosmológica do mito, poderíamos dizer, tem lugar no tempo-mundo primevo, aquele em que, como descreveu Mahuèdèru, ixỹ isỹruhukỹ rỹiramỹhỹ, “as pessoas estavam perto da transformação”; entre os Karajá como em virtualmente toda América do Sul indígena, esse é o caso do xamanismo e do ritual.12 12 Esse são dois aspectos sobre o quais não vou me deter aqui. Quanto ao xamanismo, não é preciso muito para mostrá-lo; para não apinhar exemplos, veja-se a vívida e belíssima descrição de Davi Kopenawa sobre a transparência em relação aos xapiri que tem lugar em seus transes (Kopenawa e Albert, 2015). De outro lado, é digno de nota que a demonstração de Lévi-Strauss sobre a “colaboração entre sincronia e diacronia” que caracteriza as “sociedades frias” (ver infra) recorra justamente ao ritual, cujo sistema “tem por função superar e integrar três oposições: a da diacronia e da sincronia; a das características periódica e aperiódica que uma e outra podem apresentar; e enfim, no seio da diacronia, aquela do tempo reversível e do tempo irreversível, pois, ainda que o presente e o passado sejam teoricamente distintos, os ritos históricos transportam o passado ao presente [...]: dos heróis míticos, podemos verdadeiramente dizer que eles retornam, pois toda sua realidade está em sua personificação” (Lévi-Strauss, 1962: 314 - grifos meus). Essa afirmação caberia bem ao caso karajá, para os quais argumentei (Nunes, 2016) que o ritual, colocando homens e espíritos em conjunção, opera um regime transformativo que coloca os homens “perto da transformação”, o que equivale a uma espécie de presentificação do tempo primevo.

As narrativas que vimos até aqui dão conta do surgimento daquilo que, em seu conjunto, os Inỹ chamam de seu bàdèdàkỹnana ♀, bàdèdỹỹnana ♂, seu “conhecimento” ou “cultura”. No tempo atual, ao contrário, nada mais é criado, e tudo que as ações das pessoas podem fazer é replicar, ou atualizar as formas que já estão dadas, pois sua origem está inscrita no passado mítico. Ações que não replicam essas formas não são vistas como “inovação”, no sentido do desenvolvimento ou aprimoramento das formas de se fazer algo, mas como um distanciamento em relação à condição propriamente inỹ. Um comentário de Mahuèdèru ao final de uma narrativa é significativo quanto a isso:

Essa não é uma história nova, não, é antiga. Uma história antiga, muito antiga, sobre como, antigamente, nós existíamos, sobre como nós começamos. Já nós, somos gente nova. Nós estamos bem, os brancos estão aí, temos roupas, não nos falta nada. Nós estamos nos tornando como os brancos.13 13 Tori usè inỹ boho rakurukumỹhỹ. O verbo rakuruku- ♀, roruku ♂, é uma forma plural do verbo runỹ-, “sentar-se”, que é usado em vários contextos com o sentido de “tornar-se”. Já eles [os antigos] não, eram inỹ de verdade [inỹtyhyhykỹ]: ficavam pelados, as mulheres escondiam suas partes com inỹtu [um tipo de tanga de entrecasca]. Os que sabiam faziam rede de algodão para si. Suas redes eram muito boas, bem alvas quando novas, depois iam sujando. Aqueles que sabiam se cobriam com algodão.

Lévi-Strauss caracteriza as “sociedades frias” como sistemas que “funcionam em uma espécie de zero absoluto de temperatura [...] ‘histórica’” (Lévi-Strauss e Charbonnier, 2010LÉVI-STRAUSS, Claude ; CHARBONNIER, Georges. 2010[1959]. Entretiens avec Claude Lévi-Strauss. Paris, Les Belles Lettres.: 38), apresentando “uma tendência a se manter indefinidamente em seu estado inicial” (ibidem: 34). Antes que negar a história aos índios, como muitos críticos supuseram14 14 Para Lévi-Strauss, “todas as sociedades humanas têm uma história, igualmente longa para cada uma delas pois esta história remonta às origens da espécie” (Lévi-Strauss e Charbonnier, 2010: 39). “Nesse sentido, é tão cansativo quanto inútil acumular argumentos para provar que toda sociedade está na história e que ela muda: é a própria evidência” (LéviStrauss, 1962: 310). , o que o autor visava eram as diferentes “atitudes subjetivas que as sociedades adotam diante da história, às maneiras variáveis com que elas a concebem” (Lévi-Strauss, 1998LÉVI-STRAUSS, Claude. 1998. “Voltas ao passado”. Mana - estudos d Antropologia Social, v. 4, n. 2: 107-117.: 108). Para as “sociedades frias”, a mitologia tem um papel central, pois o passado mítico é “concebido como modelo intemporal, mais que como uma etapa do devir” (Lévi-Strauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 313). De comportamentos cerimoniais, conhecimentos e técnicas a características anatômicas das espécies animais, o caso karajá mostra, tudo tem sua origem inscrita no mito, que aparece, portanto, como um fundo contra o qual as ações atuais têm lugar - voltarei a isso logo abaixo. A “história mítica”, dessa forma, apresenta

o paradoxo de ser simultaneamente disjunta e conjunta em relação ao presente. Disjunta, porque os primeiros antepassados eram de uma outra natureza que a dos homens contemporâneos: aqueles foram criadores, estes são copistas; e conjunta porque, desde o surgimento dos ancestrais, nada mais ocorreu além de fatos cuja recorrência periodicamente apaga a particularidade. Falta demonstrar como o pensamento selvagem consegue não apenas ultrapassar essa dupla contradição, mas retirar dela a matéria de um sistema coerente em que uma diacronia, de qualquer forma domada, colabora com a sincronia, sem risco de que entre elas surjam novos conflitos (Lévi-Strauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 313).

As histórias karajá que vimos até aqui dão conta justamente dessa disjunção; mas ela é, com efeito, dupla. Os habitantes do tempo primevo eram de outra natureza que os Inỹ atuais pois, naquele tempo, todos eram aõni, todos estavam “perto da transformação”; já os antigos, sendo de mesma natureza que seus descendentes contemporâneos, foram criadores, pois é a eles que remonta a origem do ‘conhecimento’ ou ‘cultura’ inỹ que as ações das pessoas atuais replicam. Resta ver no que precisamente a “criação” e a “cópia” consistem.

CRIAÇÃO E INVENÇÃO

Todos os mitos que vimos narram a “origem” (kòraru ♀, òraru ♂) de algo. Mas essa “criação”, na grande maioria dos casos, não é uma “invenção”, uma criação ex nihilo (ver Viveiros de Castro, 2004VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2004. “Exchanging Perspectives: The Transformation of Objects into Subjects in Amerindian Ontologies”. Common Knowledge,v. 10, n. 3: 463-484.). O dia longo é uma transformação do dia curto; as espécies animais atuais são uma redução dos animais-aõni primordiais. Criação é roubo, transformação, transferência. Ou ela não é nada mais do que uma elicitação: o que é “criado” já estava lá, por assim dizer, desde o princípio. A começar pelo próprio mundo. Não há uma história de como ele começou. No princípio de tudo, só existiam Ànỹxiwè e sua avó. Ou melhor, já existiam Ànỹxiwè e sua avó; e os animais, e a humanidade primeva… Na história do roubo do sol, quando Ànỹxiwè corta o cabelo do Urubu-Rei, a narradora diz que “seus bròtyrè”, i.e., seus parentes abutres, se submetem espontaneamente ao corte; e é por isso que existe bròtyrè hoje. Mas isso acontece espontaneamente, ninguém os instrui sobre como devem fazer. Tudo se passa como se o conhecimento sobre bròtyrè já existisse, mesmo que ninguém nunca tivesse feito: ele é apenas elicitado. De modo análogo, os animais transformados por Ànỹxiwè já tinham os nomes e algumas das características dos membros atuais de suas espécies. O Raposa já corria mais que os outros, a Anta já era pesada, o Tamanduá já comia formiga, a Onça já era um predador feroz, o Macaco-Prego já era traquina e o Tracajá já gostava de ficar se esquentando ao sol. Cada animal mítico “já era antes o que iria ser depois” (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de campo, n. 14/15: 319-338.: 324); o que Ànỹxiwè faz, de certo modo, é elicitar uma forma animal que já estava lá, desde o princípio, ao mesmo tempo que eclipsa sua potência aõni - como disse Renan, ele estava apenas “corrigindo” ou “arrumando” as coisas.

Por vezes o mito faz um caminho tortuoso: ele parece precisar eliminar algo para, mais à frente, poder narrar sua origem. Os primeiros humanos viviam demasiadamente “perto da transformação” e, por isso, precisam ser radicalmente eliminados para que a humanidade verdadeira possa sair do Fundo do Rio tèròwy-mỹ, “em substituição a eles”, diz uma narradora. Um dos exemplos mais emblemáticos quanto a isso é o do Hetohokỹ, o grande ciclo ritual de iniciação masculina, cuja origem é narrada da seguinte maneira:

M16: A origem do Hetohokỹ

Uma mulher estava há três meses de resguardo após o nascimento de seu filho. De repente, ela sentiu uma vontade enorme de comer peixe. Durante a noite, desceu para a praia e encontrou um grupo de homens do povo Wyry, que a levou para sua aldeia. Lá, as mulheres lhe enfeitaram e lhe alimentaram com peixe cozido para encerrar seu resguardo. Então ela ficou entre os Wyry, se casou e teve dois filhos. Quando os meninos já estavam crescidos, ela anuncia ao marido que vai leva-los à sua antiga aldeia para que seus irmãos mais velhos fizessem uma festa do Hetohokỹ para inicia-los. O marido vai junto, mesmo sua mulher insistindo para ele não ir, e acaba morto secretamente por seus cunhados logo antes do início da reclusão dos meninos. Terminado o ritual, os meninos saem da reclusão já iniciados, como jyrè.

A festa já era realizada pelo povo extinto em inỹ wèbòhòna15 15 Cf. supra, a história do povo extinto após a revelação de um segredo masculino por dois meninos em iniciação - eles estavam, justamente, sendo iniciados em uma festa de Hetohokỹ. , e acabou junto com eles. Foi preciso, então, que uma mulher desrespeitasse o resguardo e terminasse esquecendo-se dos seus, para posteriormente retornar e pedir a seus irmãos que fizessem a festa para seus sobrinhos. E eles simplesmente fazem a festa: o esquecimento que pesa sobre o Hetohokỹ é subitamente revogado pelo mito.

Um último caso digno de nota é o da origem dos brancos. Há uma história sobre o encontro dos Karajá com os Tori Uhu, os primeiros brancos que penetraram o vale do Araguaia (M22). Mas os brancos já estavam presumidos lá, no princípio de tudo: Ànỹxiwè rouba um machado de ferro do Lagartixa, e a pá da Ema - instrumento esse para o qual, ao contrário do machado, nem sequer havia um equivalente nativo. Na mitologia Javaé, até itens tecnologicamente mais complexos como espingarda e mesmo automóveis são trazidos do fundo do rio pelos Ijèwèhè, o povo de Ànỹxiwè (Rodrigues, 2008RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.: 49). A existência dos brancos já estava presumida. Então, dois irmãos gêmeos, filhos de uma mulher humana e de dois pais aõni diferentes - Ànỹxiwè e o Mucura -, vão em busca de seu pai (Ànỹxiwè), que lhes entrega armas de fogo e os manda embora, um para montante e outro para jusante, onde se tornam os ancestrais dos brancos16 16 Algumas versões karajá dizem que os brancos são descentes do filho de Mucura, ao passo que o filho de Ànỹxiwè seria ancestral dos Inỹ (Donahue, 1982: 47-9; Pétesch, 1992: 462-4); em versões javaé, ambos os gêmeos são ancestrais dos brancos (Rodrigues, 2008: 61-5; Lourenço, 2009: 97-101), de modo que Ànỹxiwè é tori labiè, “avô dos brancos” (Rodrigues, 2008: 65). Na versão publicada por Lourenço, Ànỹxiwè (Tanỹxiwè, em Javaé) é o primo mais novo de Kujỹ (2009: 98) - a autora diz ainda que “o próprio herói é a expressão da diferença [entre índios e brancos] porque seus avôs eram brancos” (ibidem: 100). . Só então, o discurso mítico estaria pronto para dar conta do aparecimento dos não-indígenas: “seu lugar”, para lembrar a célebre passagem de Lévi-Strauss, “estava, de certo modo, reservado” (1993: 66). Para narrar a origem de qualquer coisa, o mito precisa inscrevê-la no princípio, de modo que seu aparecimento seja apenas a transformação ou a simples elicitação de algo que “já estava lá”.

De modo análogo, a ação criativa propriamente humana consiste em fazer aparecer uma forma já dada. É interessante, nesse sentido, o uso que os Inỹ fazem da palavra “original”. Em português, o termo pode se referir a algo como um “certificado de origem” (quando se diz que um produto é original, por exemplo), mas também àquilo que é inovador, fruto do exercício da criatividade. O uso que os Inỹ fazem da palavra diverge radicalmente desse segundo sentido, aproximando-se mais do primeiro. Um objeto original é aquele que é fabricado de acordo com sua estética convencional, em termos do formato, das cores, dos materiais convencionais etc. Hoje, as pontas de flecha para matar peixes são feitas com um pequeno pedaço de ferro, mas a original é com osso. A madeira original para se fazer o arco é o patxi, e para se fazer a canoa, o landi. Na falta de kàtara ♀, àtara ♂ (um tipo de concha de mexilhão de água doce), o original, faz-se o brinco masculino dohoruè com um pedaço de CD. Diz-se, também, que pessoas são “originais” quando elas agem de maneira ityhyre - “correta” ou “exemplar”. De um velho que é um grande agricultor, pescador e um dos únicos a ainda esculpir canoas de madeira à machado, além de ser imputado como grande conhecedor “da cultura”, ouvi várias vezes se dizer que ele é “original”.

Original, em suma, é aquilo que por definição não é inventado: é o que remete à origem, é a elicitação de uma forma dada. A invenção, por sua vez, está sempre além ou aquém da humanidade verdadeira. No tempo primevo, por exemplo, há coisas que foram inventadas: para mencionar apenas uma, Ànỹxiwè cria as nadadeiras, esporões e dentes dos peixes - ele observou como as pessoas pegavam os peixes facilmente com a mão, então “pensou em colocar nadadeira na calda deles”, diz a história. Se o tempo primevo é o tempo da criação (ou o tempo das origens, talvez fosse mais preciso dizer), é porque ele é disjunto em relação ao presente: Ànỹxiwè, assim como outros, ‘criava’ as coisas (inventivamente, ou apenas elicitando-as), mas só podia fazê-lo porque era aõni - algo que os narradores não cansam de enfatizar.17 17 No meio da longa saga de Hãwyy Wènõna, a protagonista faz sua irmã mais nova aparecer subitamente - ela estava muito distante da aldeia, no meio do mato, então como poderia fazer sua irmã aparecer lá? A narradora se mostra perplexa com o feito da protagonista, e conclui: anõni ratxi!, “Ela era anõni!” (anõni ♀; aõni ♂). Ademais, o que aí foi criado aparece hoje como uma forma convencional.

Já no tempo atual, é certo, há muito que é inventado. Mas essas ações criativas “não originais” - que alteram os padrões de respeito e vergonha, ações antissociais ou imorais etc. - não são entendidas como uma fonte de transformação ou inovação da “cultura”: em outras palavras, elas não são tomadas prospectivamente como uma origem possível. Antes, elas elicitam formas não convencionais, o que pode aparecer de maneiras variadas. Pessoas com comportamentos inusitados ou excessivos são comumente chamadas de “loucas” (itxỹtè)18 18 Como um rapaz que, em dada ocasião cerimonial, usou a tinta do jenipapo para desenhar uma genitália feminina em seu tórax, em lugar de ornamentar-se com os padrões gráficos inỹ, o que provocou muitas risadas: “ele é doido” (itxỹtè). A questão, claramente, não era de pudor, mas do caráter inventivo de sua ação: ele se pintou com algo que não era uma pintura. ; falar português, comer a comida dos brancos e assistir televisão elicitam formas-branco, provocando assim a percepção de que “está acabando”, de que “está tudo diferente”. O exemplo prototípico talvez seja o do xamanismo. Enquanto o trabalho dos curadores é mediado por formas convencionais, a feitiçaria é tida como uma prática inventiva. Os curadores não inventam nada: eles aprendem com outros curadores e com seus aõni auxiliares - em última instância, são esses últimos que identificam a doença e que curam, e o xamã, nesse sentido, é mais bem um intermediário. Já os feiticeiros estão sempre desenvolvendo novos malefícios, cuja inovação é parte importante de seu poder letal: os feitiços são “invenção dos feiticeiros”, os Karajá costumam dizer.19 19 Ademais, por sua aliança transumana, os xamãs são ditos eles próprios serem aõni. Isso é particularmente marcante no caso dos feiticeiros, que enxergam suas vítimas (por vezes um parente próximo) não como pessoas, conta-se, mas como “bichos”. Somos remetidos, assim, novamente ao tempo primordial, um tempo-aõni. Em resumo, a criação, no mito e no mundo atual, está sempre situada além (ou aquém) da humanidade verdadeira. A ação propriamente humana, inỹ, não é baseada na invenção, mas se reconhece na replicação, na elicitação de formas já dadas, na atualização de um “original”.

A CULTURA DOS MITOS

A ação humana, portanto, tem parâmetros claros, e isso coloca aos Inỹ a possibilidade de avaliar cada ato em termos do que ele é capaz de elicitar: há maneiras certas e erradas de se fazer as coisas. Esse contraste é marcado recorrentemente. Diz-se que algumas coisas são/estão kòbiti ♀, òbiti ♀, uma palavra que tem um significado de retidão, corretude. De outras coisas, diz-se que são/estão ehadu, uma adaptação fonética do português “errado” à língua karajá. Quando cheguei à aldeia Santa Isabel no início de 2014, a festa do Hetohokỹ estava ameaçada de não acontecer. O ritual havia sido interrompido pela mãe dos iniciandos em virtude da morte recente de uma parente próxima. Abalada pelo luto, ela disse que não patrocinaria mais a festa. Sua atitude, porém, foi duramente criticada. As pessoas diziam que, apesar de também estarem muito tristes com a morte da jovem, aquilo estava ehadu pois, uma vez que o Hetohokỹ começa, ele não pode parar: diferentemente de outros rituais20 20 No caso das danças de Aruanã, por exemplo, uma morte autoriza a família a mandar esses espíritos embora e queimar suas máscaras, dando fim ao ritual (ver Rodrigues, 2006). , o luto é respeitado e depois a festa segue. “Isso é lei!”, “na nossa lei é assim”, “isso é da cultura”, diziam.

“Correto” é aquilo que elicita uma forma propriamente humana. Ou, dito de outro modo, é aquilo que está de acordo com as “leis da cultura”. É digno de nota o vocabulário ‘legalista’ que os Inỹ usam para falar de sua cultura: ela é algo que tem “leis”, “regras”, “normas”. Ouve-se com frequência os karajá usarem essas palavras para se referir ao modo correto, apropriado, de agir em qualquer situação dada: de se portar em determinado momento do ritual, a maneira como um marido deve tratar uma esposa e vice-versa, as responsabilidades dos chefes perante a comunidade etc. Como me disse certa vez Gedeon Ijàraru, “o branco não tem cultura certa, que nem o índio. O branco não tem cultura”. Uma “cultura certa”, com inúmeras prescrições e proscrições. Os brancos, é certo, tem leis, muitas leis, mas elas são de natureza radicalmente distinta. No mais das vezes, elas são seguidas por força de obrigação - não nos resta muitas opções -, mas concordar ou não com a normatividade vigente é toda uma outra questão. E podemos discordar delas por serem elas mesmas o produto da ação e da responsabilidade humanas: feitas por pessoas, supostamente para o bem comum e para viabilizar e organizar a vida em sociedade - o velho problema contratualista -, elas podem e devem ser mudadas para acompanhar a caminhada incessante da história.

Aos Inỹ, igualmente, não resta muitas opções senão seguir as “regras de sua cultura”. Mas suas leis não se fundam em contrato. Por que os homens se dividem em grupos de praça de cima, do meio e de baixo? Por que foram assim divididos que os habitantes do Mundo do Alto desceram, quando Sanawè e seus companheiros os pegaram. Por que as pessoas fazem bròtyrè para seus parentes descendentes? Porque os abutres assim fizeram quando Ànỹxiwè cortou o cabelo do Urubu-Rei. E mesmo quando não há uma história que dê conta de algo em específico, diz-se que se deve agir daquela maneira por ser òbiti ♂, “correto”, por ser “uma regra da nossa cultura”. As leis inỹ, em suma, são parte da dimensão do mundo que se apresenta para os humanos atuais como dada, inata (Wagner, 1981WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. Chicago and London, The University of Chicago Press.). A “antiguidade”, nas palavras de Lévi-Strauss, é “colocada no absoluto, pois ela remonta à origem do mundo” (1962: 313).

Por isso a maneira como os Inỹ falam de sua “cultura” dá a impressão de que se trata de um estoque fechado e aparentemente imutável de elementos como sua língua, os rituais, um conjunto de ornamentos e unções corporais, padrões de comportamento bem determinados de pessoas em relações recíprocas específicas, uma rígida divisão de gênero etc. Um estoque fechado, justamente porque dado.21 21 Um estoque fechado de direito, mas não de fato, melhor deixar claro; é por ser remetido ao domínio do dado que o estoque de elementos que conforma a “cultura” aparece como fechado. Mas novas “leis” podem surgir, conquanto se “descubra” que ‘sempre estiveram lá’. Assim como o estoque corrente de elementos certamente não é imemorialmente idêntico a si mesmo: muito do que hoje aparece como uma “lei” é já a incorporação como dado de algo que outrora foi uma invenção ou inovação - voltarei a isso mais adiante. Não estando no domínio da ação e da responsabilidade humanas, essas leis não poderiam se transformar, ou melhor, ser deliberadamente alteradas. Nos tempos atuais, as ações das pessoas em muitas ocasiões não se pautam pelas “regras da cultura”, mas seguem o modo dos brancos. Hoje praticamente não se planta mais roça, e a comida de base vegetal é em sua imensa maioria adquirida no comércio local; os recém-casados não têm mais uma relação de respeito/vergonha e evitação para com os sogros tão marcada quanto no tempo dos antigos. Enfim, haveria ainda uma infinidade de outros exemplos. Muitos jovens, quando criticados pelos mais velhos sobre a maneira como estão fazendo determinada coisa, respondem dizendo que hoje não estamos mais no tempo dos antigos - como ouvi certa vez um rapaz responder à sua mãe, wiji 2015 bàdè nỹimỹhỹde! 2015! (“Estamos em 2015!”). O ano atual virou uma expressão corrente para se referir a esse afastamento em relação ao modo de vida dos antigos. Mas quando se deparam com isso, os Inỹ não dizem que sua cultura está mudando, e sim que ela ixawi-mỹ roimỹhỹre, “está acabando”. Dada, a cultura não pode ser transformada, mas sim perdida (ver Nunes, 2013NUNES, Eduardo S. 2013. “Socialidades alternativas: sobre o conceito de cultura dos Karajá de Buridina”. Arquivos do CMD, v. 1, n. 1: 92-112.).

FORMAS

Os elementos que, para os Inỹ, constituem sua “cultura” - uma gama ampla de coisas que vão desde objetos a modos de relação - correspondem àquilo que chamo de formas. O foco, aqui, não recai sobre a aparente concretude ou materialidade desses elementos (que podem soar como ‘coisas’ que ‘são cultura’ ou ‘são da cultura’); trata-se antes de uma estética, em um sentido amplo, de um conjunto de convenções formais que codifica a maneira específica como ações e relações precisam aparecer para dar a ver as pessoas como semelhantes ou diferentes entre si. Como diz Marilyn Strathern, “as relações só são reconhecidas se elas assumem uma forma particular. [...] A objetificação requer necessariamente a assunção de uma forma; o conhecimento precisa se fazer conhecer de uma maneira específica. [...] Isso só pode ser feito por meio de uma estética apropriada” (1988: 180-181 - grifo original omitido e outro adicionado por mim).22 22 Vale aqui uma citação mais extensa: “Objectification necessarily requires the taking of a form; knowledge has to be made known in a particular way. Now Westerners apprehend as symbolic a relationship between an item an what it ‘expresses’, as we imagine a shell valuable depicting a child, for the relationship between its ‘things’ each with their own form. Where Melanesians personify relations - endow valuables with human attributes and human capabilities as they do individual people - they must instead make the form appear. For a body or mind to be in a position of eliciting an effect from another, to evince power or capability, it must manifest itself in a particular concrete way, which then becomes the elicitory trigger. This can only be done through the appropriate aesthetic. My argument is that relations are objectified in a few highly constrained ways. Only certain specific forms of interaction will be taken as evidence of the successful activation or maintenance of relationships. In being conventionally prescribed these are reified: they-inthemselves hold evidence of the successful outcome” (Strathern, 1988: 180-181).

O comportamento cerimonial bròtyrè é uma forma-inỹ porque apresenta uma estética específica segundo a qual se pode reconhecer que relações determinadas foram ativadas: uma pessoa mais velha que se submete ao mesmo processo que um parente próximo mais novo - geralmente uma criança -, compartilhando da mesma substância (cortar o cabelo com a mesma tesoura, se pintar com o mesmo jenipapo, comer da mesma comida) como maneira de apoiar e de diminuir a vergonha daquele ou daquela em prol de quem se faz o ato (ver Nunes, 2016NUNES, Eduardo S. 2016. Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.: 216-226). É uma forma que evidencia um vínculo de parentesco, de uma distância determinada, entre duas pessoas humanas. Um homem pescando em sua canoa pode ser uma forma-inỹ, na medida em que evidencia a relação com sua mulher, dando-o a ver como um marido, pois os maridos pescam para alimentar suas esposas e filhos. Um latenira - capacete plumário usado pelos meninos que vão ser iniciados no Hetohokỹ - é uma forma-inỹ porque objetifica uma série de relações: entre o menino e seus pais, destes com outros parentes por meio dos quais eles podem obter as penas e a estrutura do capacete etc. Um homem que bebe e agride seus parentes é uma forma-Outro, pois evidencia um comportamento amoral e agressivo que é característico não da condição inỹ, mas daquela dos ixỹju (“povos estrangeiros”), por exemplo. Ao elicitar essa forma, ele se dá a ver como um diferente, como um não-parente.

Se as formas são dadas, parte da dimensão inata do mundo, ser-se humano é um estatuto que necessita ser constantemente produzido, justamente porque não está garantido. As formas são dadas, mas nada garante a priori que determinada ação vá elicitar uma forma-inỹ, e não uma forma-Outro: em um contexto determinado, é preciso fazer a forma apropriada aparecer. O processo do parentesco, no mundo atual, replica o processo de constituição da humanidade verdadeira no mundo do mito: o fundo contra o qual a humanidade se constrói é a alteridade (Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. “Atualização e contra-efetuação do virtual: o processo do parentesco”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 401-455.; 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “O problema da afinidade na Amazônia”. In: VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 87-180.). Por isso mesmo, talvez, as histórias sejam tão presentes na vida cotidiana; por isso mesmo, talvez, eventos aparentemente banais desencadeiem narrativas sobre o início dos tempos; por isso mesmo, talvez, personagens ou eventos míticos sejam tão frequentemente usados como medida de comparação para comportamentos imorais, extravagantes, excessivos.

As formas são aqueles “gatilhos elicitatórios” de que fala Strathern, elementos convencionais que, existindo em número reduzido, servirão como evidência de que uma relação foi ativada de uma de maneira determinada (Strathern, 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. London, University of California Press.: 180) e, assim, aqueles nela envolvidos sabem-se humanos um para o outro - ou diferentes um em relação ao outro. Elas estão intimamente ligadas àquilo que José Kelly chamou de performance, pois, se “o status da pessoa que age é sempre revelado pela ação de outra” (2011: 125), essa revelação consiste na elicitação de uma forma - ver também Kelly e Matos (2019)KELLY, Jose; MATOS, Marcos A. 2019. “Política da consideração: ação e influência nas Terras Baixas da América do Sul”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 25, n. 2: 391-426.. Assim, fazer-se humano para outros humanos é uma performance incessante, na qual é preciso fazer as formas apropriadas, convencionais, aparecerem. Assim como a alteração, seja como uma performance malsucedida seja como uma ação intencional, é a elicitação de formas não convencionais, ou convencionalmente Outras. Nessa medida, as formas estão também intimamente ligadas à constituição da subjetividade que, como mostrou Anne-Christine Taylor, “é primariamente uma questão de refração” (2012TAYLOR, Anne-Christine. 2012 [1996]. “O corpo da alma e seus estados: uma perspectiva amazônica sobre a natureza de ser-se humano”. Cadernos de Campo, n. 21: 213-228.: 217).

Uma “imagem”, é claro, que pode incluir palavras, objetos, posições… Nesse sentido, as famosas bonecas de barro ritxoko ♀, ritxoo ♂, podem ser vistas como uma objetificação de parte do estoque de formas convencionais inỹ.23 As ceramistas moldam no barro homens pescando, mulheres com potes de água ou ralando mandioca, meninos em iniciação adornados e sentados sobre seus bancos cerimoniais, mulheres em trabalho de parto, cenas rituais em que figuram os parentes bròtyrè, assim como imagens de homens e mulheres (geralmente sentados) pintados e adornados, dentre muitas outras cenas da vida cerimonial e cotidiana. A imagem de um homem sentado em sua canoa e levando uma tartaruga, fruto de sua pescaria, é uma forma na medida em que codifica uma série de relações (entre o homem e sua mulher, seus filhos, seus sogros) que, se ativadas de maneira apropriada, darão a ver aquele homem como um pescador, um marido/pai/genro para sua mulher/filhos/sogros, em suma, como um homem inỹ.

A imagem das bonecas de barro como objetificação de formas inỹ é particularmente interessante pela diferença evidente que apresenta em relação às ações das pessoas atuais. Hoje, não se vê homens pescando tartaruga em canoas de maneira, mas sim em embarcações de alumínio movidas a motor de popa; as técnicas utilizadas são basicamente as mesmas dos regionais, e não mais aquelas dos antigos (flecha e mergulho). Comparada à aparente “hibridez” das ações atuais, a imagem moldada em cerâmica poderia parecer mais uma “purificação figurativa”24 24 Tomando a ideia de “purificação” em analogia a Latour (1994). que uma figuração realista. No entanto, o que é objetificado não é um objeto, ou elemento, mas sim relações: não o homem pescando, mas o nexo de relações particular que a pesca implica. Portanto, mesmo se valendo de instrumentos dos brancos (barcos, gasolina, linhas de nylon), a pesca masculina é um gatilho elicitatório que faz a forma-marido aparecer, do mesmo modo como faziam os antigos.

Vimos que o passado mítico é disjunto em relação ao presente, pois ele é o tempo da criação: o que ele narra, em uma palavra, é a origem da “cultura”. Mas ele é também conjunto ao presente, pois “desde o surgimento dos ancestrais, nada mais ocorreu além de fatos cuja recorrência periodicamente apaga a particularidade” (Lévi-Strauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 312-313). Que as pessoas atuais sejam “copistas”, como colocou Lévi-Strauss, responde àquela disjunção tanto quanto a essa conjunção: agir de acordo com as “regras da cultura” é fazer aparecer uma forma já dada, pois já estava lá, inscrita no começo de tudo. Mas o ato de “copiar” não refere à replicação perfeita de si mesmos ao longo do tempo - a fantasia impossível da autoidentidade -, mas à habilidade de se fazer reconhecer relações determinadas (marido-esposa, genro-sogra, pai-filho/a) a partir de uma estética específica: uma forma.

É nesse sentido que, retomando a formulação de Lévi-Strauss, ‘a sincronia colabora com a diacronia’. A continuidade, diz ele, “não admite nem orientação, nem grau” (1962: 313). O passado mítico é concebido como “modelo intemporal, antes que como etapa do devir” (ibidem: 312), pois remete ao domínio do inato, do dado (Wagner, 1981WAGNER, Roy. 1981. The invention of culture. Chicago and London, The University of Chicago Press.).25 25 Daí também a ausência de um sujeito histórico transcendental: difratada entre uma pluralidade de variantes - pois cada pessoa conta a história que ouviu de sua avó ou avô, de modo que seria mais apropriado falar das histórias karajá, como eles fazem, e não d“A história karajá” -, a história indígena é narrada entre a primeira e a terceira pessoa do plural (a “nossa história” é sempre a história de Outros, demiurgos, animais, espíritos...). Essa falta “de um sujeito que seja narrador e agente da história, seria talvez distintiva de uma história ‘fria’, mas que convive sem problemas como uma consciência de mudança” (Calavia Sáez, 2005; 43) A continuidade em relação a ele, portanto, não aparece como um movimento cronologicamente orientado, mas como um fundo contra o qual se faz hoje, como se fazia ontem, as mesmas formas aparecerem. Pelo mesmo motivo, ela não admite gradação: não há coisas “mais culturais” que outras, mas sim coisas que “são da cultura”, que “são uma lei para nós”, e coisas que não são, pois são cultura/conhecimento (bàdèdỹỹnana ♂) de outrem. Fazer uma forma aparecer é uma questão de história, mas não de tempo.

O TEMPO DESLOCADO

Isso não é dizer que tal dinâmica relacional não tenha nenhuma relação com a maneira como o transcurso do tempo é percebida, ou nenhum efeito sobre ele. Assim como o passado mítico, pois articulada a ele, a maquinaria da ação humana opera algo como uma compressão intensiva do tempo, na medida em que fazer recorrentemente as mesmas formas aparecerem ‘apaga sua particularidade’. Não é possível pensar o mito separado da ação humana atual pois, se cada ação precisa fazer uma forma aparecer, então o mito precisa inscrever tudo no início do mundo, esse fundo intensivo de virtualidade a partir do qual é possível narrar origens. O lugar dos brancos, dizia Lévi-Strauss, estava de certo modo reservado; pois sua inserção nos nexos relacionais indígenas requeria a assunção de formas que, projetadas no domínio do dado, necessariamente apareceriam como ‘já estando lá’, desde o princípio.

Algumas características do conhecimento/cultura inỹ apresentam efeito correlato. As próprias pessoas, caberia dizer, se substituem umas às outras ao longo do tempo, o que é particularmente visível na combinação entre o sistema de transmissão de nomes em geração alternada (os nomes dos avós são passados para os netos) com o fato de que só há dois termos de parentesco para todas as pessoas a partir da geração G+2: todos são avós (wàlahi) e avôs (wàlabiè ♂). Com já havia notado Dietschy, “o fenômeno das gerações alternadas [...] contribui para o encurtamento do tempo social” (1977DIETSCHY, Hans. 1977. “Espace sociale et ‘afiliation par sexe’ au Brésil central (Karajá, Tapirapé, Apinayé, Mundurucú) ». Actes du XLII congrès des Américanistes, 2: 297-308.: 299)26 26 Como parte desse ‘fenômeno’, Dietschy enumera ainda a sucessão do cargo de deridu e iòlò ♂ (algo como posições de chefia ocupadas por crianças) igualmente entre gerações alternadas e o uso dos termos wàlahi (“avó”) e wàlabiè ♂ (“avô”) para referência recíproca entre avós e netos, i.e., uma pessoa chamaria seus próprios netos de “avô” e “avó” - quanto ao último ponto, cabe notar que Dietschy, cuja pesquisa data da década de 1960, foi um dos únicos a registrar tal uso dos termos. : “meu avô Wasuri”, portanto, é necessariamente uma pessoa já atualizada diversas vezes. Esse efeito, para ser mais preciso, não é exatamente um “encurtamento” do tempo - pois isso implicaria ainda tomá-lo em sua extensão -, mas sua “compressão intensiva”, por assim dizer. Tal efeito se faz sentir particularmente nos relatos cujos detalhes permitem uma datação aproximada, mas nos quais os narradores identificam positivamente um protagonista que, dado sua idade (ou a de seus netos), não poderia estar vivo naquele momento: é rigorosamente impossível saber se o protagonista era aquela pessoa específica ou seu avô, ou seu tataravô. Impossível tanto quanto irrelevante; pois, afastado no tempo, “meu avô Wasuri” é sempre a composição de suas atualizações, antes que uma pessoa individual. Diante disso, a ideia tantas vezes repetida de que “foram nossos avós que nos ensinaram” ganha um sentido mais profundo, relacionando o presente ao ‘passado intemporal’ - ou contratemporal, talvez seria melhor dizer -, antes que referindo à mera percepção difusa de uma continuidade ‘histórica’.

Quando a humanidade verdadeira sai do Fundo do Rio, todos os outros índios (ixỹju) saem também - também eles já estavam presumidos, desde o princípio. Depois de um período em todos viveram juntos e pacificamente sob o comando de “nosso avô Woubèdu”, um homem inỹ, a provocação de um desses povos dá início a um período de guerra generalizada. Algum tempo depois, “nosso avô Teribrè” parte em uma expedição de vingança ao assassinato de seu pai, derrota o povo Wèrè e, assim, de um só golpe dá aos Karajá o domínio sobre o vale do Araguaia e institui a divisão entre os três povos inỹ (ver Nunes, 2018NUNES, Eduardo S. 2018. “O povo do rio: variações míticas e variações antropológicas sobre a origem e diferenciação dos grupos inỹ”. Tellus, v. 18, n. 36: 9-38.). Aqui como em outros lugares, o mito marca claramente o que aconteceu antes ou depois do que, mas é impossível dizer qual o lapso temporal entre os feitos de Woubèdu e Teribrè, ou entre Teribrè e os Inỹ atuais. A julgar pelas características da narrativa, a expansão inỹ sobre o Araguaia talvez não seja um evento extremamente remoto; mas a composição de pessoas que é “nosso avô

Teribrè” retroprojeta seus feitos para o momento ‘imediatamente posterior’ à saída do Fundo do Rio. Mais uma vez, a precisão temporal é tanto impossível quanto irrelevante, pois a organização sequencial dos eventos não responde à métrica da cronologia, mas à lógica do mito: é preciso que a primeira humanidade tenha sido extinta para que outra, verdadeiramente humana, pudesse surgir; é preciso que os povos estrangeiros emergissem do Fundo do Rio junto com o pessoal de Woubèdu para que uma humanidade propriamente inỹ pudesse tomar forma.

O que isso implica é que a maquinaria do mito como da ação humana atual, antes que “obliterarem” o tempo, como disse Lévi-Strauss, o deslocam para fora do campo de atenção. Não seria necessário dizer que tal efeito de compressão intensiva transforma o tempo, que é por definição extensivo, em algo diferente de si mesmo.

CONTEXTOS

As ações das pessoas atuais, elicitando nexos relacionais particulares, fazem aparecer formas inỹ já dadas, pois inscritas pelo mito no princípio de tudo. ‘Inovações’ podem assim ser reabsorvidas, na medida em que podem ser colocadas à serviço da elicitação de formas convencionais. Sendo uma questão de performance, entretanto, nada garante de antemão que uma ação determinada logrará fazer a forma pretendida aparecer; mais ainda, ações podem intencionalmente fazer aparecer formas-Outro. O “tempo do pessoal de hoje” é mostra disso. Tais ações, em lugar de colocar sincronia e diacronia em colaboração, evidenciam uma ruptura, fazendo os Inỹ perceberem a si mesmos como pessoas que “estão se tornando como os brancos”, pois “a cultura está acabando”.

A percepção desse devir é contextual, não apenas porque tanto formas-inỹ quanto formas-branco são feitas hoje aparecer27 27 Ver, a esse propósito, as discussões recentes sobre mistura (Nunes, 2012; 2014) e antimestiçagem (Kelly, 2011; 2016). , mas também em outro sentido: é no contexto abrangente de relação aos e englobamento pelos brancos que as transformações atuais aparecem, aos olhos dos Inỹ, como uma ruptura. Tomemos, por exemplo, o caso de certos itens e práticas rituais. Os colares mỹrani, uma espécie de gravata ostentando padrões gráficos inỹ, é hoje produzido invariavelmente com miçangas, em substituição às contas vegetais tingidas usadas pelos antigos. O item fundamental de pagamento dos parentes bròtyrè na festa de primeira alimentação da criança é hoje o sabão em barra. E o mastro tòò, que atualmente é fincado no pátio ritual para ser disputado no ápice da iniciação masculina por duas turmas de homens em oposição, era outrora deitado em uma vala aberta na areia.28 28 Conta-se que, no tempo dos antigos, a festa do Hetohokỹ era também realizada nas aldeias de verão nas praias. Como o tamanho desses acampamentos era menor que o das grandes aldeias atuais, o próprio mastro era mais curto; e a diferença de terreno implicava um outro formato para a disputa, com o mastro estendido em uma vala na areia.

Ainda que as miçangas sejam um item estrangeiro que só pode ser acessado por meio dos brancos, os Karajá não dizem que, por que as usam, “a cultura está acabando”. Ao contrário, os colares mỹrani são esteticamente muito apreciados, compondo a ornamentação ritual que aparece como uma imagem forte da condição inỹ. O efeito transformativo das contas de vidro, que certamente há, é eclipsado por seu efeito humanizador, pois elas são muito eficazes como gatilhos elicitatórios para fazer uma forma humana aparecer. Algo similar poderia ser dito até dos pedaços de CD eventualmente usados para a produção dos brincos masculinos. Se essa prática é comumente alvo de críticas, é sobretudo porque os brincos assim produzidos são considerados feios - a origem não-indígena da matéria prima parece ter menos relevância aqui.

Já o uso de sabão em barra como pagamento dos parentes bròtyrè na festa de primeira alimentação da criança é mais comumente criticado. No passado, o pagamento era feito em itens usados na ornamentação ritual, sobretudo a penugem de mergulhão (dura), a resina vegetal owoji ♂ e o óleo de tucum (tari). Esses itens são mais difíceis de se conseguir hoje e por isso, dizem, foram substituídos nesse contexto pelo sabão em barra - cuja equivalência ao óleo de tucum como item de higiene corporal por excelência os Inỹ fazem notar. Essa inovação é vez por outra apontada como evidência de que, no tempo do pessoal de hoje, “está tudo diferente”. No entanto, trata-se de uma inovação já algo convencionalizada: o pagamento dos parentes bròtyrè nessa festa deve ser feito com sabão em barra, e não outro item qualquer.

Por fim, a mudança no formato da disputa em torno do mastro tòò na iniciação masculina é muito raramente alvo de comentários. Com efeito, um esquecimento bastante amplo parece pesar sobre ela: apenas algumas poucas pessoas mais velhas contam isso, sem riqueza de detalhes. Essa mudança não é relaciona às transformações de sua vida contemporânea, em proximidade aos brancos, e não parece colocar aos Inỹ nenhum ‘problema de continuidade’. Cabe notar que a narrativa de origem do Hetohokỹ dá conta do motivo de sua realização (a mulher que volta com seus filhos crescidos para que seus irmãos os iniciem), mas não da longa sequência formalizada que compõe o ritual. Cada iniciação masculina, assim, faz aparecer as mesmas formas - uma variedade delas com efeito - que já estavam lá, presumidas na festa inaugural, eclipsando suas transformações de formato.29 29 Transformações no plural, pois a disputa do mastro tòò não é a única mudança que o ritual sofreu ao longo do tempo. Poderia citar rapidamente um outro exemplo: um feixe de folhas de palmeira espinhenta (hederubò) é amarrado ao mastro frontal da Casa Grande, construção temporária onde os meninos em iniciação ficam reclusos. Em Santa Isabel, as folhas são amarradas com o mastro ainda no chão, e só depois ele é erguido; em Fontoura, primeiro a casa é erguida e depois um homem escala até o topo para amarrar o hederubò. Tal diferença de procedimento não passa despercebida, e os homens de Santa Isabel dizem que sua maneira de fazer é a correta. No entanto, um registro do ritual de Santa Isabel em fins da década de 1980 (Souza Filho, 1987) mostra que também lá, até não muito tempo atrás, o hederubò só era atado ao mastro frontal depois que a casa era erguida. Uma vez incorporada, tal inovação aparece como sempre tendo estado lá: “é assim que deve ser feito, eles fazem errado”, dizem dos homens de Fontoura. E essas duas mudanças citadas certamente não devem ser as únicas.

Já o uso da língua portuguesa, o consumo de comida industrializada e a educação escolar (que alterou o padrão de afastamento entre jovens de ambos os sexos característico do tempo dos antigos), para manter a lista de exemplos curta, prontamente evidenciam aos Karajá que eles estão “se tornando como os brancos”. O devir-branco é inextricável ao tempo do pessoal de hoje; mas o contexto dos rituais o coloca como fundo, fazendo a relacionalidade do parentesco aparecer como figura. O que está em foco aí são múltiplos nexos de relação entre pessoas reciprocamente humanas, e o que é de interesse são os efeitos de magnificação (Sztutman, 2012SZTUTMAN, Renato. 2012. O profeta e o principal. A ação política ameríndia e seus personagens. São Paulo, Edusp.) resultantes de coisas como a extração de um bom pagamento por uma performance de bròtyrè, a generosidade dos patrocinadores de uma festa, o esplendor da ornamentação de filhos e netos ou a sincronia perfeita de movimentos e a execução vocal impecável de um par de dançarinos de aruanã. A inovação é eclipsada nesses contextos rituais, em uma palavra, pois eles valem-se delas para operacionalizar nexos relacionais convencionais, i.e., formas-inỹ.

Mas o português, fala-se com os brancos (no cotidiano da aldeia, a língua nativa é franca), e o interesse dos karajá em mandar seus filhos à escola é sobretudo de que eles aprendam essa língua estrangeira30 30 Ao menos na aldeia de Santa Isabel, onde cada vez mais pessoas têm colocado seus filhos nas escolas públicas da cidade vizinha (São Félix do Araguaia-MT), cujas as aulas são em português - a escola da aldeia é criticada, nesse sentido, pois a maioria dos professores são Karajá e as aulas, assim, são ministradas em sua língua. Em outras aldeias, como Buridina, a escola é tida de outro modo, pois integra um projeto de “resgate cultural”, sendo bastante valorizada como um local onde “se ensina a cultura para as crianças” (Nunes, 2012). ; as comidas industrializadas precisam ser compradas, o que requer idas regulares à cidade. Por isso as ações que esses processos envolvem comumente fazem formas-branco aparecer. A diferença de contexto é uma diferença entre nexos relacionais. Veja-se, por exemplo, o caso de povos que entretém relações duradouras, como no Alto Xingu. As inovações decorrentes da incorporação de conhecimentos de diferentes povos foram absorvidas em um complexo regional, de modo que, em analogia ao fraseamento karajá, aparecem hoje como coisas “da cultura”; mas para os Kĩsêdjê, um povo vizinho, a incorporação de elementos xinguanos levou eventualmente a um movimento revivalista de sua “cultura” jê, caracterizado pela reafirmação de suas formas próprias sobre as formas-xinguanas. Esse movimento, entretanto, é algo seletivo: algumas festas xinguanas, por exemplo, continuam a ser realizadas e são levadas muito a sério, pois são eficazes; e sua presença, positivamente assumida, não é tomada pelos Kĩsêdjê como problemática. Curiosa e altercontextualmente, eles se referem ao tempo anterior a seu movimento revivalista, quando eram “xinguanizados”, como um tempo em que eram “índios puros”; pois hoje, dizem, estão “virando brancos” (Coelho de Souza, 2010COELHO DE SOUZA, Marcela. 2010. “A vida material das coisas intangíveis”. In: COELHO DE SOUZA, Marcela; COFFACI DE LIMA, Edilene. (Orgs.). Conhecimento e Cultura: Práticas de transformação no mundo indígena. Brasília, Athalaia, pp. 205-228.: 103-107). Se ambos esses processos de transformação são em tudo análogos, as diferentes implicações das relações para com seus vizinhos e os brancos, i.e., os diferentes contextos, fazem-nos aparecer de maneiras muito distintas.31 31 Esses contextos, cabe notar, nem sempre são sincrônicos e, nesse caso, sua ordem relativa é igualmente importante. Pois foram os Kĩsêdjê já “xinguanizados”, aquelas pessoas específicas e com uma história específica, que passaram a se aproximar dos brancos e a “virar brancos”; caso os processos tivessem ocorrido na ordem inversa, é mais que razoável supor que as relações com brancos e xinguanos não se dariam da mesma forma.

TRANSFORMAÇÕES

Que a historicidade karajá consista em fazer recorrentemente as mesmas formas aparecerem não implica que não haja mudanças ao longo do tempo: os exemplos acima o mostram. E isso, certamente, não é característica apenas do “tempo do pessoal de hoje”. “Os antigos” também tinham seus próprios antigos, e seria ingenuidade supor que, entre uns e outros, o conhecimento/cultura inỹ tenha permanecido perfeitamente idêntico a si mesmo. A etnografia terá sempre de se haver com isso, pois o presente tanto quanto o passado (que só pode ser acessado no presente) são estruturas em transformação (Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An Amazonian Myth and Its History. Oxford, Oxford University Press.: 24). Ademais, o passado não é algo que já aconteceu e já acabou, mas um estado logicamente anterior e presente, pois está em uma relação dialética com o mundo atual - do passado, podemos dizer que continua passando. Se os antigos (pessoas concretas que morreram há muito, ancestrais dos Inỹ atuais) já acabaram, o “tempo dos antigos” é presente; se a ação humana moralmente apropriada é aquela capaz de evidenciar formas-inỹ, e se as formas são por definição do tempo dos antigos (no sentido de sua origem), então esse “tempo” tampouco é um ‘passado histórico’. O passado narrado hoje é contingente aos nexos relacionais presentes.

O que quero dizer com isso é que embora as formas (sejam elas convencionais ou não convencionais) se transformem ao longo do tempo, sua imagem atual aparecerá sempre como já estando dada, desde o princípio. O mesmo vale para as inovações - veja-se a presença de objetos de metal já nas narrativas do tempo primevo, antes mesmo do mito narrar a origem dos brancos. Absorvidas pelo mito ou incorporadas à cultura (o que são duas maneiras de dizer a mesma coisa), as mudanças ou inovações são contraefetuadas como parte do fundo virtual contra o qual a ação humana opera: fazer uma forma aparecer é uma operação de atualização (sensuDeleuze, 1988DELEUZE, Gilles. 1988. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Graal.). E isso, é claro, vale não apenas para as invenções. A atualização é um processo de diferenciação, de modo que fazer recorrentemente as mesmas formas aparecerem implica em sua constante transformação: o conhecimento/cultura inỹ é contraefetuado no curso de sua própria atualização por meio de formas convencionais. No entanto, o que esse processo evidencia é algo muito distinto de um “devir histórico”, no qual as sucessivas transformações aparecem como um registro da passagem do tempo. O conhecimento/cultura inỹ é contraproduzido como dado, e a convenção tanto quanto a invenção fazem as formas aparecer como sempre tendo estado lá, desde o princípio.

O processo de reabsorção mítica das inovações, presume-se, leva tempo; talvez séculos, ou talvez não tanto quanto seria de se esperar: de uma geração a outra, coisas que os mais velhos diziam não estar sendo feitas da maneira adequada podem aparecer como sempre tendo sido assim: “isso é uma lei, para nós”.32 32 Veja-se, por exemplo, o caso da transformação da forma da disputa pelo mastro tòò e, sobretudo, da sequência de fixação das palhas do hederubò no mastro frontal da Casa Grande, em um lapso temporal de aproximadamente 30 anos (supra, nota 29). Veja-se também o caso piro, para os quais os modos e hábitos dos antigos, que um dia foram seu “pessoal de hoje”, aparecem como absolutamente impróprios (Gow, 1991). Talvez, ainda, certas inovações não sejam jamais contraproduzidas como dadas. Não é possível saber, pois a efetividade de sua reabsorção é a contraface da capacidade das ações humanas em elicitar certas formas; e essa capacidade, por seu turno, só pode ser pensada em relação a contextos específicos. Sendo um processo tentativo, há sempre a possibilidade de que fazer aparecer certas formas-Outro não resulte em sua reabsorção mítica. Certas inovações podem ser esquecidas; outras podem colocar no horizonte a possibilidade de uma transformação mais radical. É só a posteriori, pelo reconhecimento de seus efeitos, que será possível saber.

As transformações decorrentes do engajamento indígena com o mundo dos brancos não raro são formuladas como implicando em um “aquecimento” de sua história. Isso talvez seja verdadeiro, até certo ponto, no sentido de que não apenas hábitos e relações se transformam, mas também os índios se apropriam de modos de conhecer típicos dos brancos;33 33 Penso mais especificamente na importância para suas lutas políticas contemporâneas do conhecimento histórico, com seus documentos e datas, que em certos contextos apresenta caráter evidencial. resta saber até que ponto essa apropriação não seria um “esfriamento” da história documental, sua reabsorção pelos modos de criatividade indígenas, e não o contrário. Mas na medida em que a percepção que os índios têm dessas transformações comumente evidencia, a seus olhos, que estão “perdendo a cultura”, o que sua contemporaneidade exacerba é antes a potência “fria” de seus regimes de historicidade.

O efeito entrópico das transformações coloca sim uma questão, pois enquanto uma inovação não for reabsorvida como dada pelo mito, ela aparecerá como uma ruptura. E algumas dessas rupturas foram outrora como são hoje muito duras (a situação contemporânea no Brasil é uma triste e muito preocupante mostra disso), processos traumáticos que por vezes acarretam a morte de um tempo-mundo34 34 A exemplo de como Ailton Krenak se refere ao efeito letal do desastre do rompimento da barragem de Mariana sobre o rio Doce: “faz um ano e meio que esse crime - que não pode ser chamado de acidente - atingiu nossas vidas de uma maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (Krenak, 2019: 42). . Não seria necessário dizer que é preciso considerar essas questões com a maior seriedade. As historicidades indígenas, evidentemente, estão em constante transformação, como efeito mesmo da dinâmica de atualização e contraefetuação das formas. Mas tomar a feição que essas transformações assumem contemporaneamente, especialmente no contexto das relações com os brancos, como sinônimo de seu “aquecimento” seria apreender os regimes de historicidade “frios” por meio de teorias ainda demasiado “quentes”.

Os Karajá só podem falar hoje do “tempo dos antigos” da maneira como falam porque ele acabou, porque hoje “está tudo diferente”. Se esse não fosse o caso, talvez ainda assim eles falassem de um “tempo dos antigos”, mas a relação dele para com seu mundo atual seria certamente diferente. De todo modo, o que se pode concretamente dizer é que essa ruptura evidencia outra coisa que um ‘devir histórico’.

A HISTÓRIA LONGE DO TEMPO

O contraste entre “sociedades quentes” e “frias” formulado por Lévi-Strauss chamava atenção para o fato de que a percepção dos chamados “primitivos” como povos “sem história” é simplesmente um efeito de sua apreensão por um regime de historicidade alheio: é apenas do ponto de vista das “sociedades quentes”, que interiorizam “resolutamente o devir histórico ao fazê-lo motor de seu desenvolvimento” (1962: 310), que outras ‘sociedades’ poderiam assim aparecer. A história é uma ‘condição comum’, mas as maneiras como ela é considerada variam: há, em uma palavra, diferentes regimes de historicidade. Lévi-Strauss sublinha sempre que o termo “primitivo” é inapropriado para descrever essas sociedades cujo “passado é tão antigo quanto o nosso, pois remonta às origens da espécie” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1960]. “O campo da antropologia”. In: LÉVISTRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 11-43.: 38). Mas em outro sentido, não pela consideração que delas é feita, mas pela que fazem de si próprias, o termo serviria bem para descrevê-las.

As sociedades que chamamos “primitivas” não o são de maneira alguma, mas gostariam de sê-lo. Sonham-se primitivas, porque seu ideal seria permanecer no estado em que os deuses ou os ancestrais as criaram no início dos tempos (Lévi-Strauss e Eribon, 2005LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier. 2005 [1988]. De perto e de longe. São Paulo, Cosac & Naify.: 177-178)

O argumento sobre as sociedades “frias” desenha uma espécie de arcaísmo em reverso: não mais aquela projeção sobre certos povos de um esquema “quente” de classificação, no qual as noções de progresso e história se enraizavam firmemente, e cujo caráter ilusório foi denunciado pelo mesmo Lévi-Strauss (2008)LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008 [1952]. “A noção de arcaísmo em etnologia”. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo, Cosac & Naify, pp. 113-131.; mas uma própria ao pensamento indígena, no qual esses povos, tomando a si próprios como objeto de reflexão, colocam “as instituições que se dão” (1962: 309) a serviço da perpetuação de seu estado arcaico, no sentido de primevo, primordial: aquele cuja criação a mitologia narra. Essa “perpetuação”, é certo, não equivale a manutenção de uma autossemelhança perfeita ao longo do tempo, mas a continuada re-produção deste estado, que é contraefetuado por meio de sua própria atualização, i.e., na medida em que as ações das pessoas fazem formas convencionais aparecerem. Mas as formas, como argumentei, aparecem sempre como já estando lá desde o princípio, pois esse ‘estado primordial’, que os Karajá identificam com seu conhecimento/cultura (bàdèdỹỹnana ♂), é projetado para o domínio do dado. O arcaísmo em reverso desenhado por Lévi-Strauss, nesse sentido, guarda ainda muito de sua potência.

Mas ele não resolve tudo. Não tanto em função de que o presente, marcado por um devir-branco, apareça em muitos contextos como uma “ruptura” em relação a esse ‘estado primordial’. Segundo entendo, que as transformações contemporâneas provoquem nos Karajá a percepção de que “hoje está tudo diferente”, de que “a cultura está acabando”, é evidência da potência “fria” de seu regime de historicidade, antes que de seu “aquecimento”. Mas a história para Lévi-Strauss (ou pelo menos um de seus sentidos) “é a realidade da entropia contra a qual organismos e estruturas precisam lutar constantemente” (Harkin, 2009HARKIN, Michael E. 2009. “Lévi-Strauss and history”. In: WISEMAN, Boris (Org.). The Cambridge Companion to Lévi-Strauss. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 39-58.: 48 - ver também Almeida, 1999ALMEIDA, Mauro W. B. 1999. “Simetria e entropia: sobre a noção de estrutura em Lévi-Strauss”. Revista de Antropologia, vol. 42, n. 1-2: 163-198.). O arcaísmo em reverso, o “sonho” das “sociedades frias” de permanecer em seu ‘estado primordial’, é assim caracterizado como uma ilusão: “Naturalmente, elas se iludem e não escapam à história mais do que as outras. Mas se submetem a essa história de que desconfiam, de que não gostam” (LéviStrauss e Eribon, 2005: 178). Essa recusa das “sociedades frias” à história, a cujos efeitos elas resistem “desesperadoramente” (Lévi-Strauss: 2013: 38), aproxima o argumento de Lévi-Strauss daquele de Clastres - como notaram Overing (1995)OVERING, Joanna. 1995. “O mito como história: um problema de tempo, realidade e outras questões”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 1, n. 1: 107-140. e Goldman (1999)GOLDMAN, Marcio. 1999. “Lévi-Strauss e os sentidos da história”. Revista de Antropologia, v. 42, n 1-2: 223-238.. Antes que “contra a história”, entretanto, regimes “frios” de historicidade como o dos Karajá são contrahistóricos, pois a questão não é recusar ou não a mudança, a possibilidade ou não da manutenção de uma autossimilaridade perfeita, mas a maneira como esses regimes fazem a imagem de uma continuidade aparecer.

O problema de fundo, me parece, é aquele do tempo: da história pensada como transcurso do tempo, do devir histórico formulado em termos de mudança e continuidade (ou seja, do próprio devir formulado como “histórico”). Em muitas discussões antropológicas, com efeito, a própria noção de tempo passa muitas vezes não examinada; ele é assumido como uma propriedade do mundo, cujo fluxo incessante e direcionado serve como medida das mudanças - o tempo como entropia, ou a entropia como tempo. É sua aparência inelutável, no fim, que faz com que regimes de historicidade que não tomam o tempo como conatural à história pareçam resistir a ele. Essa “topologia da dimensão-tempo”, por exemplo, se encontra na base dos argumentos de Gell (2014: 42)GELL, Alfred. 2014. A antropologia do tempo. Construções culturais de mapas e imagens temporais. Petrópolis, Vozes., para quem a própria noção de “‘repetição’ periódica inevitavelmente implica a ideia de extensão linear do tempo”, remetendo à “recorrência diacrônica de eventos [...] estruturalmente idênticos” (ibidem.: 31). Ao argumento de Lévi-Strauss de que “o ritual é uma máquina para a destruição do tempo”, Gell objeta que isso é uma hipérbole, “já que não é o tempo que é destruído, mas seus efeitos” (id.: 34). Ora, que diferença, senão seus efeitos, o tempo pode fazer? Esse tipo de objetivismo nada acrescenta à questão que nos ocupa, se é que tem algum interesse. O próprio tempo, tomado fenomenologicamente, não é uma medida padrão: uma hora, a depender das circunstâncias, pode passar em um minuto, ou durar uma eternidade. Nem mesmo o parâmetro físico é tão seguro quanto parece, e a física quântica há muito abriu sua ortodoxia a outras possibilidades.35 35 Mais precisamente, desde a teoria da relatividade geral de Einstein, que demonstrou ainda em 1915 que o tempo não tem existência independente do espaço e que o espaçotempo é deformado pela massa, de forma que sempre apresenta alguma curvatura - ele nunca é uma superfície plana e lisa; o que implica que, de lugar a lugar, o tempo varia e anda com diferentes velocidades. A física quântica complexificou ainda mais as coisas, prescindindo completamente da variável t em suas equações: o mundo quântico é um mundo sem tempo (Rovelli, 2014 - ver também Prigogine e Stengers, 1984). Esse tempo que corre silente, linear e irreversivelmente sob muitas noções de história é mais bem um reflexo ou consequência (um efeito, justamente) da imagem que as "sociedades quentes" fazem de si mesmas. É preciso separar o problema da história do problema do tempo.

Em uma passagem bem conhecida, Lévi-Strauss diz que “a verdadeira questão não é saber quais resultados reais [as “sociedades frias”] obtém, mas qual intenção durável as guia” (1962: 310). Mas ao colocar o tempo de lado, os ‘resultados reais’ voltam ao primeiro plano; pois se “a imagem que fazem de si mesmas é uma parte essencial de sua realidade” (id., ibid.), então esses resultados, ou efeitos, só podem ser reais - e os efeitos, ademais, não podem não interessar. Aqui, me parece, a interessante sugestão do ‘arcaísmo em reverso’ encontra seu limite, e talvez a própria noção de “sociedades frias” perca sentido: como muitas das grandes questões, ela de certo modo só foi posta para ser superada.

Dizer que os índios têm sim consciência da passagem do tempo seria uma obviedade - tanto quanto é dizer que eles ‘tem’ ou ‘estão’ na história. Mas a mim não parece nada óbvio que tal pressuposição universalista e materialista deva ser um elemento igualmente valorado por todos os regimes de historicidade. Aos Karajá, importa sim a relação de anterioridade relativa; mas ela, como disse, é mito-lógica e não cronológica. Com a atenção voltada muito mais para a capacidade das ações elicitarem determinados nexos relacionais, eu diria que, para eles, no que concerne à história, a passagem do tempo carece de importância.

  • 1
    Agradeço a Lucybeth Arruda, Rodrigo Brusco e Marcela Coelho de Souza por terem pacientemente lido a versão inicial desse artigo, cuja forma atual deve muito a seus comentários.
  • 2
    Ou mesmo Overing (1995)OVERING, Joanna. 1995. “O mito como história: um problema de tempo, realidade e outras questões”. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 1, n. 1: 107-140., cuja proposta, a despeito da incompreensão de base dos argumentos de Lévi-Strauss, caminha em paralelo aos escritos do autor.
  • 3
    Os Karajá são um povo falante de uma língua macro-jê (Davis, 1968DAVIS, Irvine. 1968. “Some Macro-Jê relationships”. International Journal of American Linguistics, v. 1, n. 34: 42-47.). Assim como os Javaé e Ixỹbiòwa, eles se autodesignam como Inỹ. Os três povos falam variantes de uma mesma língua, o inỹrybè, que apresenta uma diferenciação da fala pelo sexo do falante (ver Ribeiro, 2012RIBEIRO, Eduardo R. 2012. A Grammar of Karajá. Illinois, tese de doutorado, Universidade de Chicago.). As variantes feminina e masculina das palavras aparecem indicadas no texto por meio dos símbolos ♀ e ♂, respectivamente.
  • 4
    Enquanto algumas histórias são localizadas com precisão umas em relações às outras, outras são localizadas mais vagamente como tendo acontecido em um certo período de tempo (igualmente vago) entre dois acontecimentos ou momentos: das muitas histórias cujos protagonistas são animais, por exemplo, diz-se apenas que aconteceram “no tempo que Ànỹxiwè caminhava sobre este chão” (ver infra), sem se incomodar com a ordem relativa em que aconteceram.
  • 5
    A exposição que se segue do passado mítico karajá e o argumento a partir dela delineado é uma síntese do segundo capítulo de minha tese de doutorado (Nunes, 2016NUNES, Eduardo S. 2016. Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.). Para fins de economia textual, e com o perdão do abuso da síntese, me limitarei a referenciar as narrativas por meio da numeração (M01, M02, e assim por diante) com que são identificadas em minha tese, em cujos anexos se encontram a íntegra das traduções das narrativas. Outras versões são citadas apenas quando apresentam variações importantes para o argumento. Para a leitora ou o leitor interessados na mitologia inỹ, remeto também aos compêndios de narrativas ou etnografias que registram uma quantidade significativa de histórias: Pimentel da Silva e Rocha (2006)PIMENTEL DA SILVA, Maria S.; ROCHA, Leandro M. 2006. Linguagem especializada. Mitologia Karajá. Goiânia, Editora UCG., Toral (1992: Anexos)TORAL, André A. 1992. Cosmologia e Sociedade Karajá. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro., Pappiani e Lacerda (2014)PAPPIANI, Angela; LACERDA, Maria Paula. 2014. Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá. São Paulo, Ikorẽ., Pétesch (1992: Anexos)PÉTESCH, Nathalie. 1992. La Pirogue de Sable. Modes de Représentations e d’Organization d’une Société du Fleuve: Les Karajá de l’Araguaia (Brésil Central). Paris, tese de doutorado, Université de Paris X (Natèrre)., e Rodrigues (2008)RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago..
  • 6
    O termo aõni se refere a uma gama de seres que povoam o cosmos inỹ atual, mas também a uma “potência-espírito” que caracteriza, além dos xamãs, todos os seres do tempo do primevo.
  • 7
    Em diversas ocasiões, um parente mais velho se submete ao mesmo processo pelo qual um parente descendente (no mais das vezes uma criança) está passando: para dar apenas um exemplo, quando o menino está sendo pintado todo de preto e tendo seu cabelo cortado no segundo dia de sua reclusão no Hetohokỹ (o ritual de iniciação masculina), vários de seus parentes irão cortar um pouco de seu cabelo ou pintar uma parte de seu corpo com o mesmo jenipapo. Tal comportamento cerimonial é presente em virtualmente todos os rituais inỹ, assim como pode acontecer em contextos cotidianos, embora com menor frequência.
  • 8
    Nas versões que registrei, a caminhada de Ànỹxiwè se inicia no extremo rio abaixo (iraru) e segue em direção à montante (ibòkò ♀, ibòò ♂). Em versões javaé (Toral, 1992TORAL, André A. 1992. Cosmologia e Sociedade Karajá. Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Rodrigues, 2008RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.), ele sai de algum lugar próximo às cabeceiras do Araguaia e vai descendo o rio até seu extremo norte, que corresponderia à atual cidade de Belém.
  • 9
    No original, rairòdunỹ-, verbo formado pela sufixação do verbalizador -nỹ à palavra iròdu, “animais terrestres” (termo que se contrapõe às aves, nawàki ♀, nawii ♂, e aos peixes, kàtura ♀, àtura ♂).
  • 10
    Para uma análise mais detalhada do surgimento da humanidade verdadeira e, por um lado, a diferenciação dos três povos inỹ e, por outro, a distinção entre os Inỹ e os ixỹju, povos estrangeiros, ver Nunes (2018NUNES, Eduardo S. 2018. “O povo do rio: variações míticas e variações antropológicas sobre a origem e diferenciação dos grupos inỹ”. Tellus, v. 18, n. 36: 9-38.; 2019)NUNES, Eduardo S. 2019. “Espíritos, corpos e cantos inimigos: notas sobre guerra, troca e ritual entre os Karajá no Brasil Central”. R@U, v. 11, n.2: 196-225..
  • 11
    O próprio termo que traduzo aqui por “tempo”, bàdeu ♀, é formado pela sufixação da posposição temporal -u ♂ ao substantivo bàdè, uma partícula usada em expressões para paisagens, biomas, clima e fenômenos meteorológicos, assim como para tempo (no sentido da duração), mundo e território - além de humor, de maneira análoga a quando dizemos em português que “o tempo fechou”.
  • 12
    Esse são dois aspectos sobre o quais não vou me deter aqui. Quanto ao xamanismo, não é preciso muito para mostrá-lo; para não apinhar exemplos, veja-se a vívida e belíssima descrição de Davi Kopenawa sobre a transparência em relação aos xapiri que tem lugar em seus transes (Kopenawa e Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras.). De outro lado, é digno de nota que a demonstração de Lévi-Strauss sobre a “colaboração entre sincronia e diacronia” que caracteriza as “sociedades frias” (ver infra) recorra justamente ao ritual, cujo sistema “tem por função superar e integrar três oposições: a da diacronia e da sincronia; a das características periódica e aperiódica que uma e outra podem apresentar; e enfim, no seio da diacronia, aquela do tempo reversível e do tempo irreversível, pois, ainda que o presente e o passado sejam teoricamente distintos, os ritos históricos transportam o passado ao presente [...]: dos heróis míticos, podemos verdadeiramente dizer que eles retornam, pois toda sua realidade está em sua personificação” (Lévi-Strauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 314 - grifos meus). Essa afirmação caberia bem ao caso karajá, para os quais argumentei (Nunes, 2016NUNES, Eduardo S. 2016. Transformações karajá: os “antigos” e o “pessoal de hoje” no mundo dos brancos. Brasília, tese de doutorado, Universidade de Brasília.) que o ritual, colocando homens e espíritos em conjunção, opera um regime transformativo que coloca os homens “perto da transformação”, o que equivale a uma espécie de presentificação do tempo primevo.
  • 13
    Tori usè inỹ boho rakurukumỹhỹ. O verbo rakuruku- ♀, roruku ♂, é uma forma plural do verbo runỹ-, “sentar-se”, que é usado em vários contextos com o sentido de “tornar-se”.
  • 14
    Para Lévi-Strauss, “todas as sociedades humanas têm uma história, igualmente longa para cada uma delas pois esta história remonta às origens da espécie” (Lévi-Strauss e Charbonnier, 2010LÉVI-STRAUSS, Claude ; CHARBONNIER, Georges. 2010[1959]. Entretiens avec Claude Lévi-Strauss. Paris, Les Belles Lettres.: 39). “Nesse sentido, é tão cansativo quanto inútil acumular argumentos para provar que toda sociedade está na história e que ela muda: é a própria evidência” (LéviStrauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 310).
  • 15
    Cf. supra, a história do povo extinto após a revelação de um segredo masculino por dois meninos em iniciação - eles estavam, justamente, sendo iniciados em uma festa de Hetohokỹ.
  • 16
    Algumas versões karajá dizem que os brancos são descentes do filho de Mucura, ao passo que o filho de Ànỹxiwè seria ancestral dos Inỹ (Donahue, 1982DONAHUE, George. 1982. A contribution to the ethnography of the Karajá indians of central Brazil. Charlottesville, Tese de Doutorado, Universidade da Virgínia.: 47-9; Pétesch, 1992PÉTESCH, Nathalie. 1992. La Pirogue de Sable. Modes de Représentations e d’Organization d’une Société du Fleuve: Les Karajá de l’Araguaia (Brésil Central). Paris, tese de doutorado, Université de Paris X (Natèrre).: 462-4); em versões javaé, ambos os gêmeos são ancestrais dos brancos (Rodrigues, 2008RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.: 61-5; Lourenço, 2009LOURENÇO, Sonia R. 2009. Brincadeiras de Aruanã: performances, mito, música e dança entre os Javaé da ilha do bananal (TO). Florianópolis, tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina.: 97-101), de modo que Ànỹxiwè é tori labiè, “avô dos brancos” (Rodrigues, 2008RODRIGUES, Patrícia M. 2008. A caminhada de Tanỹxiwè: uma teoria Javaé da história. Illinois, tese de Doutorado, Universidade de Chicago.: 65). Na versão publicada por Lourenço, Ànỹxiwè (Tanỹxiwè, em Javaé) é o primo mais novo de Kujỹ (2009: 98) - a autora diz ainda que “o próprio herói é a expressão da diferença [entre índios e brancos] porque seus avôs eram brancos” (ibidem: 100).
  • 17
    No meio da longa saga de Hãwyy Wènõna, a protagonista faz sua irmã mais nova aparecer subitamente - ela estava muito distante da aldeia, no meio do mato, então como poderia fazer sua irmã aparecer lá? A narradora se mostra perplexa com o feito da protagonista, e conclui: anõni ratxi!, “Ela era anõni!” (anõni ♀; aõni ♂).
  • 18
    Como um rapaz que, em dada ocasião cerimonial, usou a tinta do jenipapo para desenhar uma genitália feminina em seu tórax, em lugar de ornamentar-se com os padrões gráficos inỹ, o que provocou muitas risadas: “ele é doido” (itxỹtè). A questão, claramente, não era de pudor, mas do caráter inventivo de sua ação: ele se pintou com algo que não era uma pintura.
  • 19
    Ademais, por sua aliança transumana, os xamãs são ditos eles próprios serem aõni. Isso é particularmente marcante no caso dos feiticeiros, que enxergam suas vítimas (por vezes um parente próximo) não como pessoas, conta-se, mas como “bichos”. Somos remetidos, assim, novamente ao tempo primordial, um tempo-aõni.
  • 20
    No caso das danças de Aruanã, por exemplo, uma morte autoriza a família a mandar esses espíritos embora e queimar suas máscaras, dando fim ao ritual (ver Rodrigues, 2006RODRIGUES, Patrícia M. 2006. “Vida cerimonial e luto entre os Javaé”. Revista de Estudos e Pesquisas - FUNAI, v. 3, n. 1/2: 107-131.).
  • 21
    Um estoque fechado de direito, mas não de fato, melhor deixar claro; é por ser remetido ao domínio do dado que o estoque de elementos que conforma a “cultura” aparece como fechado. Mas novas “leis” podem surgir, conquanto se “descubra” que ‘sempre estiveram lá’. Assim como o estoque corrente de elementos certamente não é imemorialmente idêntico a si mesmo: muito do que hoje aparece como uma “lei” é já a incorporação como dado de algo que outrora foi uma invenção ou inovação - voltarei a isso mais adiante.
  • 22
    Vale aqui uma citação mais extensa: “Objectification necessarily requires the taking of a form; knowledge has to be made known in a particular way. Now Westerners apprehend as symbolic a relationship between an item an what it ‘expresses’, as we imagine a shell valuable depicting a child, for the relationship between its ‘things’ each with their own form. Where Melanesians personify relations - endow valuables with human attributes and human capabilities as they do individual people - they must instead make the form appear. For a body or mind to be in a position of eliciting an effect from another, to evince power or capability, it must manifest itself in a particular concrete way, which then becomes the elicitory trigger. This can only be done through the appropriate aesthetic. My argument is that relations are objectified in a few highly constrained ways. Only certain specific forms of interaction will be taken as evidence of the successful activation or maintenance of relationships. In being conventionally prescribed these are reified: they-inthemselves hold evidence of the successful outcome” (Strathern, 1988STRATHERN, Marilyn. 1988. The Gender of the Gift: Problems with Women and Problems with Society in Melanesia. London, University of California Press.: 180-181).
  • 23
    Em parte, pois as cerâmicas também retratam personagens do tempo primevo e seres como os aruanãs mascarados.
  • 24
    Tomando a ideia de “purificação” em analogia a Latour (1994)LATOUR, Bruno. 1994. Jamais fomos modernos. São Paulo, Editora 34..
  • 25
    Daí também a ausência de um sujeito histórico transcendental: difratada entre uma pluralidade de variantes - pois cada pessoa conta a história que ouviu de sua avó ou avô, de modo que seria mais apropriado falar das histórias karajá, como eles fazem, e não d“A história karajá” -, a história indígena é narrada entre a primeira e a terceira pessoa do plural (a “nossa história” é sempre a história de Outros, demiurgos, animais, espíritos...). Essa falta “de um sujeito que seja narrador e agente da história, seria talvez distintiva de uma história ‘fria’, mas que convive sem problemas como uma consciência de mudança” (Calavia Sáez, 2005CALAVIA-SAÉZ, Oscar. 2005. “A terceira margem da história: estrutura e relato das sociedades indígenas”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 20, n. 57: 39-51.; 43)
  • 26
    Como parte desse ‘fenômeno’, Dietschy enumera ainda a sucessão do cargo de deridu e iòlò ♂ (algo como posições de chefia ocupadas por crianças) igualmente entre gerações alternadas e o uso dos termos wàlahi (“avó”) e wàlabiè ♂ (“avô”) para referência recíproca entre avós e netos, i.e., uma pessoa chamaria seus próprios netos de “avô” e “avó” - quanto ao último ponto, cabe notar que Dietschy, cuja pesquisa data da década de 1960, foi um dos únicos a registrar tal uso dos termos.
  • 27
    Ver, a esse propósito, as discussões recentes sobre mistura (Nunes, 2012NUNES, Eduardo S. 2012. No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO). Brasília, Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília.; 2014NUNES, Eduardo S. 2014. “O constrangimento da forma: transformação e (anti)hibridez entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO)”. Revista de Antropologia, v. 57, n. 1: 303-345.) e antimestiçagem (Kelly, 2011KELLY, Jose. 2011. State Healthcare and Yanomami Transformations: a symmetrical ethnography. Tucson, Arizona University Press.; 2016KELLY, Jose. 2016. Sobre a antimestiçagem. Desterro, Cultura & Barbárie.).
  • 28
    Conta-se que, no tempo dos antigos, a festa do Hetohokỹ era também realizada nas aldeias de verão nas praias. Como o tamanho desses acampamentos era menor que o das grandes aldeias atuais, o próprio mastro era mais curto; e a diferença de terreno implicava um outro formato para a disputa, com o mastro estendido em uma vala na areia.
  • 29
    Transformações no plural, pois a disputa do mastro tòò não é a única mudança que o ritual sofreu ao longo do tempo. Poderia citar rapidamente um outro exemplo: um feixe de folhas de palmeira espinhenta (hederubò) é amarrado ao mastro frontal da Casa Grande, construção temporária onde os meninos em iniciação ficam reclusos. Em Santa Isabel, as folhas são amarradas com o mastro ainda no chão, e só depois ele é erguido; em Fontoura, primeiro a casa é erguida e depois um homem escala até o topo para amarrar o hederubò. Tal diferença de procedimento não passa despercebida, e os homens de Santa Isabel dizem que sua maneira de fazer é a correta. No entanto, um registro do ritual de Santa Isabel em fins da década de 1980 (Souza Filho, 1987SOUZA FILHO, Odilon João de. 1987. “A ‘festa da casa grande’ dos karajá (3)”. Publicações do Museu Histórico de Paulínia, n. 34: 76-83.) mostra que também lá, até não muito tempo atrás, o hederubò só era atado ao mastro frontal depois que a casa era erguida. Uma vez incorporada, tal inovação aparece como sempre tendo estado lá: “é assim que deve ser feito, eles fazem errado”, dizem dos homens de Fontoura. E essas duas mudanças citadas certamente não devem ser as únicas.
  • 30
    Ao menos na aldeia de Santa Isabel, onde cada vez mais pessoas têm colocado seus filhos nas escolas públicas da cidade vizinha (São Félix do Araguaia-MT), cujas as aulas são em português - a escola da aldeia é criticada, nesse sentido, pois a maioria dos professores são Karajá e as aulas, assim, são ministradas em sua língua. Em outras aldeias, como Buridina, a escola é tida de outro modo, pois integra um projeto de “resgate cultural”, sendo bastante valorizada como um local onde “se ensina a cultura para as crianças” (Nunes, 2012NUNES, Eduardo S. 2012. No asfalto não se pesca. Parentesco, mistura e transformação entre os Karajá de Buridina (Aruanã - GO). Brasília, Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília.).
  • 31
    Esses contextos, cabe notar, nem sempre são sincrônicos e, nesse caso, sua ordem relativa é igualmente importante. Pois foram os Kĩsêdjê já “xinguanizados”, aquelas pessoas específicas e com uma história específica, que passaram a se aproximar dos brancos e a “virar brancos”; caso os processos tivessem ocorrido na ordem inversa, é mais que razoável supor que as relações com brancos e xinguanos não se dariam da mesma forma.
  • 32
    Veja-se, por exemplo, o caso da transformação da forma da disputa pelo mastro tòò e, sobretudo, da sequência de fixação das palhas do hederubò no mastro frontal da Casa Grande, em um lapso temporal de aproximadamente 30 anos (supra, nota 29). Veja-se também o caso piro, para os quais os modos e hábitos dos antigos, que um dia foram seu “pessoal de hoje”, aparecem como absolutamente impróprios (Gow, 1991GOW, Peter. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and history in Peruvian Amazon. Oxford, Oxford University Press.).
  • 33
    Penso mais especificamente na importância para suas lutas políticas contemporâneas do conhecimento histórico, com seus documentos e datas, que em certos contextos apresenta caráter evidencial.
  • 34
    A exemplo de como Ailton Krenak se refere ao efeito letal do desastre do rompimento da barragem de Mariana sobre o rio Doce: “faz um ano e meio que esse crime - que não pode ser chamado de acidente - atingiu nossas vidas de uma maneira radical, nos colocando na real condição de um mundo que acabou” (Krenak, 2019KRENAK, Ailton. 2019. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras.: 42).
  • 35
    Mais precisamente, desde a teoria da relatividade geral de Einstein, que demonstrou ainda em 1915 que o tempo não tem existência independente do espaço e que o espaçotempo é deformado pela massa, de forma que sempre apresenta alguma curvatura - ele nunca é uma superfície plana e lisa; o que implica que, de lugar a lugar, o tempo varia e anda com diferentes velocidades. A física quântica complexificou ainda mais as coisas, prescindindo completamente da variável t em suas equações: o mundo quântico é um mundo sem tempo (Rovelli, 2014ROVELLI, Carlo. 2014. The order of time. New York, Riverhead Books. - ver também Prigogine e Stengers, 1984PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. 1984. A nova aliança. Brasília, Editora da UnB.).
  • FINANCIAMENTO: A pesquisa empírica que subsidiou a elaboração desse texto foi parcialmente financiada por uma bolsa de doutorado e taxa de bancada concedidas pelo CNPq de 2012 a 2016.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2020
  • Aceito
    22 Abr 2021
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