Acessibilidade / Reportar erro

O tempo do mutirão: sentidos e (re)arranjos de família e casa entre mutirantes em um bairro periférico de São Paulo

The time of “mutirão”: meanings and (re)arrangements of family and home among community workers in a peripheral neighborhood of São Paulo

RESUMO

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste I é um movimento social de luta por moradia que historicamente, desde a década de 1980, obtém atendimento para famílias militantes via mutirão autogestionário. O aqui denominado ‘tempo do mutirão’ refere-se a uma marcação temporal por parte dos mutirantes do período de duração do mutirão, desde o alcance da pontuação necessária e a decisão em de fato integrar uma demanda específica, passando por todo o processo de obra e chegando à mudança para a nova casa. Este artigo discute as inter-relações entre os termos família e casa a partir de narrativas de mutirantes da Leste I, sobre seus (re)arranjos familiares e domésticos durante e depois do mutirão a fim de realizar algumas reflexões etnográficas sobre as relações entre Estado e movimentos de moradia no atendimento habitacional a essas famílias.

PALAVRAS-CHAVE
Casa; família; gênero; movimentos de moradia; sofrimento

ABSTRACT

The Leste I Landless Workers’ Movement is an urban social movement which struggles for housing. Since the 1980´s, the movement provides support for its activists families through an autonomous self-regulated collective organization of jointed effort called “mutirão” in Brazilian Portuguese. That said, the “time of mutirão” is a concept produced by the activists in order to frame duration of a mutirão. This “time of mutirão” includes the moment they get the needed score, passing by the decision of their integration and inclusion by a specific demand, then the long process of the construction work to the point of moving to the new house. This article discusses the inter relations over the terms of family and house from narratives of the mutirantes of Leste I about their domestic and family (re)arrangements during and after the mutirão, with the purpose to point out some ethnographic reflections over the relations between the State and the urban social movements for housing in the housing service for these families.

KEYWORDS
House; family; gender; urban social movements for housing; suffering

INTRODUÇÃO

Falar de casa é também falar de família. Os dois termos costumam ser pensados socialmente em estreita relação, na qual uma família é definida pela casa que habita. Não por acaso, diante das dificuldades históricas de famílias pobres habitantes da cidade de São Paulo em obter uma moradia digna, regularizada legalmente e que lhes ofereça melhores condições de vida, o sonho da casa própria se tornou central para elas.

Com o intuito de organizar e mobilizar famílias nessas condições para que conseguissem efetivar esse sonho, a partir da década de 1980 foram constituídos na cidade os chamados movimentos de moradia, movimentos sociais de caráter popular e de luta por moradia que articulam famílias de baixa renda com o objetivo de obterem atendimento definitivo por programas habitacionais públicos.

Este artigo tem como foco etnográfico a análise de narrativas de famílias pertencentes a um movimento de moradia específico, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra Leste I (doravante Leste I), sobre o qual versa minha tese de doutorado (Filadelfo, 2015FILADELFO, Carlos. 2015. A luta está no sangue: família, política e movimentos de moradia. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.), da qual apresento aqui um recorte à luz de desenvolvimentos analíticos posteriores. A Leste I tem atuação na zona leste de São Paulo e historicamente, desde a década de 1980, obteve atendimento para famílias militantes via mutirão autogestionário, mecanismo de construção de empreendimentos habitacionais que conta com a mão de obra das próprias famílias no controle e execução das obras, com recursos municipais, estaduais e federais.1 1 A numeração no nome do movimento serve para diferenciálo do Movimento Sem Terra Leste II. Essa distinção numérica se deu pelo fato deles terem uma atuação política correspondente à divisão territorial da Igreja Católica. Na década de 1980, a zona leste de São Paulo era dividida pela Arquidiocese de São Paulo em duas regiões episcopais: a Leste I, com sede no bairro do Belém, e a Leste II, centralizada em São Miguel Paulista (cf. Filadelfo, 2015).

Cabe destacar que família é um termo constante e fundamental para a Leste I. De maneira geral, famílias 2 2 Ao longo deste artigo, termos e expressões que possuam um uso particular para meus interlocutores serão grafados em itálico, a exemplo de famílias. Reservarei o uso de aspas duplas para termos e expressões descritos e analisados em seus contextos de enunciação. é um termo utilizado para se referir genericamente às bases desses movimentos, que neles ingressam visando obter casa própria. O termo é utilizado frequentemente pelos agentes sociais deste campo. Paralelamente, os empreendimentos e unidades habitacionais (casas e apartamentos) obtidos costumam ser nomeados conquistas. Cada conquista costuma ser definida pelo número de unidades habitacionais ou de famílias atendidas, tornando “casa” e “família” sinônimos.

Ainda que haja uma tendência, uma vez atendida, que a família corresponda ao grupo doméstico ora constituído, que irá habitar uma unidade habitacional adquirida, há enormes variações a esse arranjo3 3 Outros antropólogos já mostraram, em distintos contextos etnográficos, que nem sempre família e grupo doméstico são coincidentes e descrevem o mesmo arranjo social; ou seja, que a coabitação não necessariamente produz uma família. Ver, por exemplo, Almeida (1986), Fonseca (2000) e Fortes (1974). . A multiplicidade aqui elencada não se dissolve quando há o atendimento, mas continua orientando os novos arranjos familiares, habitacionais, afetivos.

Há uma marcação temporal por parte dos mutirantes do período de duração do mutirão, desde o alcance da pontuação necessária4 4 A partir do momento em que alguém entra no grupo de origem, a porta de entrada do movimento, ele se filia, passa a pagar uma mensalidade e é cadastrado como uma família a partir de uma declaração de renda e do número de integrantes de sua família e está sujeito ao critério de pontuação para obter atendimento. Atualmente, os critérios de pontuação adotados pela Leste I em relação às famílias dos grupos de origem são (cf. Cartilha do Regulamento Interno): Ocupação - Participação no ato da ocupação (10 pontos); Ocupação - Por cada dia de ocupação (5 pontos); Passeata (5 pontos); Reunião (1 ponto); Contribuição paga em dia (1 ponto). e a decisão em de fato integrar uma demanda específica,5 5 As famílias dos grupos de origem são contabilizadas e passam a compor uma lista de espera para atendimentos futuros. Quando há um novo empreendimento habitacional, é formada uma demanda, constituída de famílias de diversos grupos de origem. E quando finalmente há o atendimento, é o número de unidades habitacionais que determinará o número de famílias a serem atendidas. Quando há o atendimento, as famílias tendem a não mais participar do movimento, a não ser que sejam coordenadores. passando por todo o processo de obra e chegando à mudança para a nova casa (ou, mais precisamente, apartamentos nos casos aqui analisados). A esse período poderíamos chamar de ‘tempo do mutirão’.6 6 A inspiração para essa formulação também decorre da noção de tempo de acampamento explorada por Nashieli Rangel Loera (2009: 23) em sua pesquisa sobre o MST: “O tempo de acampamento é um código social do mundo das ocupações de terra, na medida em que além de uma medida cronológica é também, um demarcador de prestígio, de status, um princípio organizador e ordenador das relações sociais, e um requisito para conseguir um lote de terra, tanto para participantes das ocupações e acampamentos de sem-terra, para os dirigentes das organizações que promovem as ocupações e para as autoridades encarregadas das desapropriações de terra, conformando assim uma fórmula social entendida e compartilhada por todos aqueles que fazem parte desse mundo social particular, o das ocupações de terra”.

Elaborada a partir das narrativas das famílias mutirantes, a expressão tempo do mutirão pode ser inicialmente definida a partir de algumas características: a demora do atendimento (quase sempre como resultado das ações de agentes e instituições estatais), o sofrimento, conflitos e solidariedades intrafamiliares e a série de atributos e reputações, pessoais e coletivos, necessários para a luta e a permanência no mutirão.

O tempo do mutirão nas narrativas e conversas com os mutirantes se revela como um período em que as relações entre as famílias e entre elas e os coordenadores são cotidianas e mais intensas. Por isso, a análise desse tempo constitui uma possibilidade de aprofundamento de elementos em torno da luta e da conquista da casa própria, ao mesmo tempo em que descortina outras relações próprias ao mutirão a partir, principalmente, das perspectivas dos mutirantes de um conjunto habitacional ao término do processo de mutirão: o Unidos Venceremos, construído com recursos financeiros da Companhia Metropolitana de Habitação (COHAB), instituição habitacional da prefeitura da cidade de São Paulo.

Com efeito, este artigo discute as inter-relações entre os termos família e casa a partir de narrativas de mutirantes da Leste I, sobre seus (re)arranjos familiares e domésticos durante e depois do mutirão a fim de realizar algumas reflexões sobre as relações entre Estado e movimentos de moradia no atendimento habitacional a essas famílias.

“AQUI ERA SÓ MATO”: TRABALHO E SOFRIMENTO NO MUTIRÃO

Tanto o Unidos Venceremos como outro conjunto habitacional - Paulo Freire - foram construídos em uma gleba no distrito de Cidade Tiradentes, mais precisamente no bairro Prestes Maia, região periférica da zona leste de São Paulo. As famílias, quando se referem ao período de definição do terreno e início da obra, definem o bairro a partir de expressões como “aqui só era mato”, “aqui não tinha nada” ou ainda “aqui era só terra”, o que de certa forma se aproxima das narrativas frequentes de moradores de bairros periféricos acerca do início do seu processo de ocupação e formação, presentes em parte da bibliografia que discute o padrão de segregação centro-periferia na cidade de São Paulo.7 7 Como, por exemplo, Caldeira (1984) que intitula o capítulo do clássico livro da antropologia urbana produzida sobre São Paulo - A política dos outros - sobre a formação do bairro de Jardim das Camélias de “A ordem é ‘morar no mato’”, como exemplo de um processo histórico de periferização da cidade, com áreas ociosas e sem serviços e infraestrutura sendo ocupados por parcelas pobres da população. Para análises sobre o processo histórico de constituição das periferias paulistanas, em contraposição às áreas centrais, por expansões sucessivas ocasionadas pela autoconstrução, ver também Caldeira (2000), Kowarick (2000), Rolnik (1997) e Villaça (1998).

Em grande medida, essas expressões também se referem a condições urbanísticas precárias, mas há aqui uma especificidade: elas são utilizadas como forma de mostrar o enorme esforço tanto pessoal como coletivo de trabalho no mutirão, assim como de se mudar para uma região onde não haveria nada ou menos do que seus locais anteriores de moradia ofereciam.

Nessa fase inicial do tempo do mutirão, em que só havia mato, muitas famílias desistiram, ao passo que outras persistiram. A desistência ou persistência das famílias são movimentos que se fazem continuamente em todas as etapas até a conquista da casa própria. Com o início da obra, muitos se animam, mas a constante demora faz outros desistirem a qualquer momento.

E assim se iniciou a atuação das famílias no mutirão, atuação essa definida por um termo frequentemente utilizado: “trabalho”. Trabalhar no mutirão é costumeiramente tratado como tarefa árdua, difícil, cansativa, de muito sofrimento, em que se verte muito suor e muitas lágrimas, pela incerteza dos seus resultados. Muitos falavam como era difícil trabalhar todo sábado, domingo e feriado, embaixo de sol ou de chuva. “Sofrimento” é a palavra-chave para se acompanhar uma série de percepções acerca desse tempo do mutirão. Em geral, os que persistem tendem a considerar que “valeu a pena” tanto “trabalho”, tanto “sofrimento” e tanta “luta” ou como me disseram três mutirantes: “Vale a pena você entrar em algo que é seu, que você conquistou com seu suor”, “Depois de pronto, ai que lindo, esquece todo o sofrimento” e

Todo mundo trabalhando. Foi uma luta, foi uma luta. E felizmente hoje eu estou morando e me sinto com muita honra, estou muito feliz de estar morando aqui (...) Pelo sofrimento que nós tivemos, eu não pensava de hoje estar morando, mas Deus é bom, hoje eu estou morando, estou na minha casa, não é verdade?

Além de todo o sofrimento vivenciado corporalmente nas tarefas do mutirão, há outra dimensão fundamental para o trabalho no mutirão recorrente entre os mutirantes e exemplificada na narrativa acima: as relações intrafamiliares. Ao longo da pesquisa realizada, foi possível perceber que a ideia de família é elaborada necessariamente como uma certa unidade produzida tanto por conflitos como por união e mais do que isso, como a participação no movimento e nas reuniões acentuam esses conflitos ou solidariedades. O mesmo ocorre no tempo do mutirão, mas com ainda maior intensidade, já que a ou o mutirante deve trabalhar todos os fins de semana, tempo geralmente reservado à família.

Tatiana, por exemplo, me contou sobre o apoio fundamental de seu marido e de seus filhos, mas também a ocorrência de brigas por suas ausências. Os apoios ocorrem não só em formas de incentivos à participação, mas também participando junto, em um revezamento entre marido e esposa nos horários de trabalho no mutirão. Esse revezamento envolve também outros familiares, como pais e mães, irmãos e irmãs e filhos e filhas. Portanto, ainda que na participação no movimento o termo família costume ser utilizado para se referir principalmente a uma única pessoa, representante do grupo doméstico a ser constituído na nova casa, no mutirão o termo pode passar, com mais frequência do que antes, a aglutinar efetivamente outras pessoas que também morarão com a ou o mutirante. Voltarei a esse ponto mais à frente.

Por outro lado, tanto trabalho intenso obviamente não se restringe às relações intrafamiliares, mas coloca todos em relações tanto de solidariedades como de conflitos, levando a divisões ou aproximações internas ao conjunto do mutirão. Os trabalhos feitos nem sempre são os mesmos, assim como podem ser pensados em modulações distintas de sofrimento infligido. O termo trabalho costuma, portanto, ser usado também para diferenciações, às vezes até em hierarquizações, sobre o verdadeiro sofrimento no tempo do mutirão.

O trabalho no mutirão enseja uma série de relações que causam conflitos e solidariedades, ocasionando divisões internas. Portanto, não é só de uma tensão com o Estado do que se trata aqui, mas também de muita luta e sofrimento não só pessoais, mas que passam pela família e envolvem a todos os participantes, ainda que com intensidades distintas. As distinções de gênero e algumas relações familiares permitem descortinar ainda mais detidamente essas tensões em torno do trabalho no mutirão.

GÊNERO E FAMÍLIA NO MUTIRÃO

Há uma maioria de mulheres no movimento, assim como no mutirão. Essa maior quantidade é não só cotidianamente perceptível como aparecia espontaneamente em quase todas as entrevistas que realizei. Essa maior presença é justificada por uma concepção generalizada de que as mulheres seriam portadoras privilegiadas dos atributos da luta, em detrimento dos homens. Essa distinção de gênero não parte simplesmente de atribuição de qualidades distintas a homens e mulheres, mas de intersecções entre gênero e parentesco que ocasionam uma sobreposição da caracterização da mulher como mãe e com maiores preocupações e cuidados com a família, a casa e os filhos, o que justificaria seu maior interesse e comprometimento em participar do movimento de moradia8 8 Utilizo gênero aqui como categoria descritiva, no sentido proposto por Strathern (1981) e apropriado por Piscitelli (2006: 31-2) como “um modo de criar e expressar diferenças que assume, nesta e em outras culturas, um forte valor metafórico. Essa perspectiva - levando em conta que as distinções entre características consideradas femininas e masculinas são utilizadas para comentar, hierarquizando, diversos aspectos do social - retém uma dimensão da ideia de gênero como princípio de organização social; no entanto, não supõe que gênero tenha o mesmo significado e papel estrutural em todas as sociedades. Nessa abordagem, gênero é pensado como categoria descritiva, isto é, passível de uma descrição atenta aos significados e às maneiras como opera em contextos particulares. Compreender como o gênero participa do social exige refletir sobre o modo como essas conceitualizações são acionadas em relações específicas”. .

Com efeito, durante o processo de mutirão foi marcante a maior presença de mulheres como titulares de suas famílias. Segundo Adriana, coordenadora geral do mutirão, da Leste I e uma das coordenadoras da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, cerca de 80% dos titulares do mutirão eram mulheres. Das 100 famílias, a maioria, cerca de metade, é de mulheres separadas, geralmente com filhos, aproximadamente 10 famílias são homens solteiros e o restante formado por casais, majoritariamente com filhos.

Nesse sentido, a maior presença de mulheres leva a uma percepção de que se o mutirão é um tempo de muito sofrimento, para elas o sofrimento é ainda maior, considerando o fato de que o trabalho é muito pesado e braçal, para o qual os homens seriam mais aptos a realizar9 9 Sobre a centralidade das mulheres na luta por moradia, em especial no trabalho em mutirões de construção de casas, em outros contextos periféricos (Florianópolis e Lisboa), ver Canella (2020). .

Mesmo em narrativas de homens mutirantes, aparece uma série de avaliações morais negativas a que os homens costumam estar sujeitos, o que mostra uma caracterização generalizada do homem como menos lutador do que as mulheres. Qualificativos como “bebedor”, “irresponsável”, como alguém que não tem “coragem” como as mulheres, “preguiçosos”, “folgados”, dentre outros, são frequentemente utilizados em referência aos homens. Mas há uma fonte de conflitos entre maridos e as esposas que participam do mutirão em torno de ciúmes, muito recorrente nas narrativas dos mutirantes, que pode chegar a situações extremas.

Assim, em relação às mulheres casadas, a participação no mutirão e no movimento implica riscos de conflitos conjugais, podendo levar à desistência da mulher ou mesmo à separação conjugal. Esses riscos são sempre atribuídos à resistência dos homens à participação de suas esposas e sua prolongada ausência da casa. Segundo relatos, há muitos casos de homens que sentem ciúmes por acreditar que suas esposas estão encontrando outros homens no mutirão ou que se ressentem de sua ausência em casa ou ainda que não acreditam que o mutirão será bem-sucedido e que a participação da mulher não levará a nada.

O incômodo e os ciúmes de muitos homens pelo fato de suas esposas devotarem tanto tempo ao mutirão e às ações do movimento parecem ser justificados por um entendimento que as mulheres estariam quebrando uma hierarquia de gênero no interior da família, definidora de uma divisão sexual do trabalho em que as mulheres deveriam se ater ao domínio doméstico e os homens ao domínio público, conforme sugerido por recorrentes avaliações de mutirantes sobre esses maridos ciumentos. Tudo se passa como se houvesse uma desestabilização da lógica masculina atribuída à família. As mulheres no mutirão e nas ações públicas do movimento quebram uma suposta fixidez das relações conjugais quando vão ao domínio público.

Já vimos como alguns mutirantes desqualificam o trabalho dos homens, que perderiam para as mulheres em capacidade e disposição de trabalho. Mas claro que havia maridos que participavam ativamente do trabalho do mutirão, ainda que em minoria quantitativa. Por outro lado, esses homens eram muitas vezes elogiados por não permitirem que suas esposas sofressem tanto para a conquista de algo que, afinal, era de toda a família, incluindo esposa, marido e filhos.

Do ponto de vista dos poucos homens que participaram efetivamente do mutirão, há uma preocupação com o sofrimento da mulher, ao passo que se mostra que se tem os atributos necessários para o trabalho, para a luta, como “acreditar”.

Embora fossem os titulares que mais participassem, geralmente as mulheres, havia uma distinção entre primeiro e segundo titular. No caso de casais, essa distinção geralmente se referia a esposa e marido, mas o segundo titular também poderia se referir a irmãos, irmãs, filhos, filhas, pais, mães e outros parentes, que não necessariamente iriam morar no empreendimento. Esse apoio de parentes podia ser visto como muito positivo, principalmente se fosse o marido, mas também podia levar a avaliações morais negativas.

Segundo Adriana, por exemplo, em muitos casos os pais dos mutirantes querem participar pelos filhos das atividades e garantir pontuação para eles. Segundo ela, os filhos têm que lutar por eles mesmos, aprender o valor da luta, já que eles é que vão ser os donos da moradia futuramente, por herança. Deu um exemplo do que aconteceu no mutirão. Uma “mutirante folgada” (ela usou o termo muitas vezes) raramente ia ao mutirão e às reuniões, mas seu avô ia no lugar, o que era moralmente negativo.

É encarado como fundamental que os mutirantes, principalmente as mulheres, recebam “ajuda” e apoio no trabalho do mutirão de parentes, seja pelo desgaste físico seja por impossibilidades concretas de comparecer, como por causa de seus empregos. Mas essa ajuda não pode substituir plenamente a participação de quem vai efetivamente morar.

Para que não apenas as pessoas que sempre participaram, ou mais propriamente as mulheres, trabalhassem sozinhas e para que toda a família (unidade doméstica) que fosse residir no Unidos Venceremos compreendesse e se envolvesse no processo do mutirão, algumas ações foram implementadas pela coordenação.

Essas atividades eram basicamente festas realizadas no terreno do mutirão em que se convidava todos os integrantes das famílias que viriam morar no empreendimento. O objetivo era fazer um trabalho com a família, com o “núcleo familiar”, o que se revestia de importância, uma vez que nos outros mutirões só se trabalhava com o titular, geralmente a mulher. Assim, houve um esforço de se trazer os filhos, maridos e esposas dos mutirantes para essas festas, para que eles conhecessem o trabalho do mutirão e para que todos os futuros vizinhos se conhecessem de antemão a fim de investir na futura boa convivência.

Em relação a maridos descrentes do trabalho das mulheres, a coordenação dedicava especial atenção. Pedia para as mulheres trazerem os maridos, para mostrar o trabalho que suas esposas estavam fazendo e as fotos das diferentes etapas do mutirão, o que os surpreendia por descobrirem que suas mulheres trabalhavam com tarefas difíceis como ferragem e concretagem. Conversava com eles para lhes mostrar que o que estava sendo feito não era fácil e convidá-los para participar da obra. Graças a esse esforço, muitos maridos passaram a trabalhar na obra, muitas vezes substituindo suas esposas. Todo esse esforço foi tido como gratificante e gerou uma situação de trabalho diferente de outros mutirões, onde a maioria da mão de obra era constituída apenas de mulheres.

Segundo Adriana, essas festas eram momentos também de prestar contas para os filhos, para que eles pudessem acompanhar o trabalho que suas mães estavam fazendo e, quando fossem morar ali, valorizassem o empreendimento e os pais que estavam saindo nos finais de semana para vir para o mutirão.

Mas não são só as lógicas de parentesco no interior de uma família que influenciam a participação do mutirão. A coordenação do movimento e do mutirão também influencia os arranjos familiares. Atenta aos riscos de conflitos conjugais, a coordenação reivindicou e conseguiu junto à COHAB que a escritura da nova casa própria ficasse prioritariamente com a mulher, mesmo nos casos em que o homem ganhasse mais. Isso para evitar muitos casos relatados de homens que, uma vez obtida a casa própria, vendia o imóvel. Uma assumida maior vinculação da mulher enquanto mãe com a casa, a família e com o cuidado com os filhos é também tida como fundamental na orientação de políticas públicas habitacionais.

A orientação para que o novo apartamento ficasse em nome da mulher também ocasionou conflitos conjugais e a necessidade de intervenção do movimento. Pedro se separou da mulher durante o mutirão, mas queria morar lá e ela queria passar o apartamento para seu tio, algo ilegal além de moralmente repreensível. Assim, o movimento interveio em favor de Pedro, que teve que negociar o dinheiro que o tio de sua esposa já havia pagado para a compra do apartamento e hoje já mora no empreendimento.

Percebe-se como o tempo do mutirão tem impacto nas relações intrafamiliares e é por elas impactado. Conflitos conjugais, tensões com filhos podem levar a rearranjos familiares e, por outro lado, a permanência no mutirão depende dos conflitos ou solidariedades no interior do “núcleo familiar”. Mas esses rearranjos familiares podem ser também percebidos quando diferentes famílias são postas em relação e se combinam umas às outras no tempo do mutirão.

REARRANJOS FAMILIARES NO MUTIRÃO

A polissemia do termo família, que na participação no movimento tende a ser identificado a uma única pessoa, representante de uma família, e que no tempo do mutirão começa a se referir também a uma unidade doméstica que irá residir ou já reside em um dos apartamentos conquistados, é ainda mais ampliada quando pensamos os recorrentes casos de separações conjugais, mas também de casamentos ocorridos entre mutirantes.

Nas entrevistas realizadas e nas visitas ao Unidos Venceremos e conversas com suas famílias, muitas histórias sobre separações conjugais se repetiam reiteradamente. Essas separações podem ser lembradas e descritas como mais um marcador da longa duração e do sofrimento do tempo do mutirão, tendo ocorrido por desgastes da relação, ciúmes, conflitos, traições e outros problemas variados. Quando essas separações ocorrem envolvendo arranjos intrafamiliares, conflitos entre marido e esposa externamente ao mutirão, diz-se que “a separação foi fora do mutirão”. Essa expressão revela que muitas separações se dão no mutirão ou por causa dele.

A intensidade do convívio no mutirão levou a traições, a separações, mas também a casamentos, a “muitas histórias”. Uma delas, em particular, era lembrada por muitos mutirantes como um caso de separação marcante. Sílvia se separou durante o mutirão, em 2005. Ela que havia feito a inscrição no movimento e quando sua família foi selecionada para compor a demanda, ela colocou o marido como segundo titular, mas era ele quem ia e trabalhava no mutirão mais frequentemente para que ela pudesse tomar conta dos filhos, que ainda eram pequenos. Com o tempo, ela se separou porque o marido “arrumou uma outra pessoa daqui do mutirão mesmo”.

A outra mutirante, que se envolveu com o marido de Sílvia, também era casada à época e seu marido também chegou a trabalhar no mutirão. Foram, portanto, dois casais de mutirantes que se separaram formando um novo casal que também viria a morar no Unidos Venceremos e vizinho de Sílvia. Atualmente, o novo casal já tem um filho e o marido acabou se distanciado de seus filhos mais velhos, do primeiro casamento, causando inclusive problemas com uma das filhas, mais próxima ao pai, que teria ficado muito “revoltada” e era motivo de muita preocupação por parte de Sílvia. Apesar de ter sofrido muito pelo “baque”, depois da separação, Sílvia me disse: “Eu comecei a vir [para o trabalho no mutirão] e tocar a vida, eu e meus filhos, agora já adultos”.

A separação leva a um rearranjo da família anterior do marido e de sua nova, ainda que Sílvia considere que de certa forma seu marido é membro das duas famílias, uma vez que os seus filhos estão com ela: “antes ele era presente, carinhoso, mas quando saiu de casa se dedicou mais à outra família”. Esse rearranjo não é só de pessoas que compõem cada família, mas também de afetos, principalmente em relação à sua filha “revoltada”.

Com a separação, Sílvia começou a participar ativamente no mutirão, substituída às vezes por sua filha mais velha. A separação, segundo ela e muitos dos mutirantes, foi causada “pelo mutirão” e levou a uma redefinição da composição de duas famílias. Podemos afirmar que houve um processo, portanto, de duas refamiliarizações (Comerford, 2002) a partir de uma separação e um casamento.

Outro caso de casamento também permite pensar esses processos de refamiliarizações. Maristela (que se separou por ciúmes do marido de sua participação no mutirão), com três filhos, conheceu Hugo, também mutirante, durante as obras, e resolveram morar juntos. Como os dois correspondiam a duas famílias diferentes conseguiram, cada um, um apartamento. A decisão conjunta dos dois foi residir em apenas um dos apartamentos e deixar o outro para os filhos dela. Duas famílias do mutirão que se combinaram, originando em um plano apenas uma família, dividida em duas casas e, em outro plano, duas famílias, que partilham de laços de parentesco, mas que estão em casas diferentes, constituindo dois distintos grupos domésticos, diferente do que estava previsto no início do mutirão.

Assim, a participação no mutirão acaba gerando conflitos e aproximações entre membros das famílias, regulando laços conjugais, ora os dissolvendo ou os colocando em risco, ora os produzindo, levando a redefinições dos limites de uma família atendida. Podemos, portanto, falar em refamiliarizações, já que não se trata apenas de unidades discretas e corporadas, que são feitas ou desfeitas, mas arranjos que são continuamente modificados, cujas fronteiras nem sempre são claramente discerníveis.

Há vários tipos distintos de arranjos familiares no mutirão e acompanhar alguns dos sentidos de família contribui para um maior entendimento de arranjos concretos, mas altamente variáveis de pessoas classificadas como pertencentes a famílias específicas.

Das chamadas 100 famílias do mutirão Unidos Venceremos, há uma acentuada multiplicidade de arranjos familiares, tornando impossível chegar a um único modelo de família. No entanto, essa constatação não deve ser utilizada analiticamente em favor de um abandono de um esforço de verificar os diferentes modelos e seus impactos no mutirão. A multiplicidade de arranjos familiares e a polissemia do termo “família” merecem ser descritas.

No geral, cada família ocupa um apartamento, mas com diferentes arranjos domésticos. Se considerarmos família como coincidente com o grupo doméstico residente em um apartamento do mutirão, existem famílias conjugais (com filhos ou sem filhos), unidades mãe-filhos, muito tematizadas pela bibliografia sobre família e classes populares10 10 Para um balanço bibliográfico sobre o tema, ver Fonseca (2000), cujo trabalho também inspirou algumas terminologias aqui utilizadas. , apartamentos com integrantes de três gerações de uma mesma família (avós, filhos e netos), solteiros e solteiras, um caso de duas irmãs e outro de uma união homoafetiva entre duas mulheres e a filha de uma delas de um relacionamento anterior.

Há assim vários modelos de família e grupos domésticos encontrados no mutirão. Mas a definição de família para a Leste I e no mutirão e mesmo para as instituições habitacionais estatais independe de sua unidade habitacional anterior ou de múltiplos arranjos que fogem à equação uma casa, uma família. O que define a família, neste caso, como unidade, é sua contabilização como coincidente com uma unidade residencial.

Por outro lado, não só casamentos e separações podem levar a uma redefinição dos limites de uma família, que pode em certos momentos compreender duas ou mais unidades residenciais, dentro e fora do mutirão, com filhos que moram fora, por exemplo, ou pais que se separam e um mora no mutirão e outro fora dele.

Quando eu perguntava a alguém quem era sua família, sem qualquer especificação, querendo me referir à unidade doméstica no mutirão, havia sempre uma dúvida de como me responder. Josiane, por exemplo, quis saber se eu estava me referindo à atual, residente no mutirão, ou aos seus pais e irmãos, que residiam em outros locais da cidade de São Paulo. Como verifiquei muitas vezes, não é somente a coabitação que define as conceitualizações nativas de família. Geralmente, quando não há coabitação atual o termo é utilizado primordialmente para se referir a pais e irmãos, com quem já se coabitou em algum momento da vida. Mas os limites de família também podem ser ampliados para agregar cunhados e cunhadas, sobrinhos, sobrinhas e, em alguns casos, mesmo primos, primas, tios e tias e outros parentes com quem nunca se coabitou.

Diferentes famílias residenciais no mutirão podem também ser consideradas apenas como parte de uma única família, como no caso de Afonso. Ele é casado com uma mulher que tem mais um irmão e uma irmã também residentes no mutirão. As duas irmãs e o irmão residem cada um com seus cônjuges e filhos, formando cada um uma família, mas isso não impede Afonso de se referir ao seu cunhado e às suas cunhadas e seus cônjuges e filhos que moram no mutirão como parte de sua “família”, que ainda inclui outros parentes de sua esposa que residem fora do mutirão. Afonso, por sua vez, ainda tem sua mãe e seu pai que também residem em outro apartamento do mutirão, também seus familiares portanto, mas que constituem uma família do mutirão distinta.

Como o caso de Afonso, também há outros de irmãs casadas que residem cada uma em um apartamento e são em um aspecto consideradas famílias distintas, em outro parte de uma mesma “família”. Há também casos de pais e filhos, em que cada um reside em um apartamento diferente.

E há o interessante caso de Virgínia, natural do estado do Ceará, onde morava até recentemente com sua mãe e uma de suas irmãs. Duas irmãs dela moravam em São Paulo há bastante tempo. Com a morte de sua mãe e da irmã com quem morava, ela resolve vir para São Paulo: “Daí eu morava no Ceará, daí acabou minha família lá, faleceu minha mãe, faleceu minha irmã que morava lá comigo. Aí eu tinha duas irmãs aqui”. Uma das irmãs morava no litoral paulista com os filhos e o neto e a segunda morava sozinha na Cidade Tiradentes. Virgínia preferiu morar com a segunda irmã e logo teve contato com o movimento, conseguiu pontuação e trabalhou no mutirão, em revezamento com essa irmã, que acabou por vender seu pequeno apartamento e vir morar com ela no Unidos Venceremos.

É justamente o fim de sua “família” no Ceará que anima Virgínia a vir para São Paulo ficar perto de sua irmã, com quem ela é responsável por produzir uma família no mutirão, extraordinariamente constituída por duas irmãs solteiras. Embora ela não tenha se referido em nenhum momento ao grupo doméstico constituído por ela e por sua irmã como “família”, para o mutirão e para a COHAB as duas são uma única família. No Ceará houve uma desfamiliarização para que no mutirão houvesse uma familiarização.

OUTRAS FAMILIARIZAÇÕES NO MUTIRÃO

Os sentidos atribuídos à noção de família não se restringem a relações de afinidade e consanguinidade ou à coabitação, mas também contribuem para um entendimento de outras relações sociais no interior do mutirão.

Há esforços contínuos da coordenação de coletivização das famílias no mutirão a partir de recursos discursivos, da pontuação, do trabalho, da gestão moral, dentre outros aspectos. Em muitos sentidos é possível afirmar que essa coletivização é produzida cotidianamente pelas próprias famílias no tempo do mutirão, uma vez que em alguns momentos se considera que todos ali estão unidos na luta pela casa, no sofrimento do mutirão, nas incertezas sobre o resultado de tanto esforço e mesmo nos conflitos e solidariedades intrafamiliares. Mas é claro que essa união é muitas vezes mais um ideal a ser perseguido do que uma realidade propriamente dita, já que há uma série de hierarquias, distinções e conflitos entre os mutirantes.

Mas esses ideais de união e de igualdade aparecem muito fortemente em algumas narrativas. Maristela, por exemplo, falando a respeito do fato de haver mais mulheres do que homens trabalhando no mutirão, tece a seguinte narrativa:

Aqui não é um grupo só de mulher, aqui não tem esta separação, “Ah, porque é mulher não vai carregar areia”, “Ah, porque é mulher não vai fazer isso.”, não, é tudo mesma coisa [...] Tudo junto, o homem cava o buraco, mulher também vai cavar o buraco, e vai carregar pedra, vai carregar pedra não na mesma quantidade, mas vai carregar, então mutirão é assim, não é separado, é uma família mesmo, tudo junto, misturado... Então a gente não tinha como isolar, e era uma coisa... Aquilo que eu queria e ele queria, mas não queria vir, então alguém tinha que vir, então eu vinha. É uma família. Tem, tem gente que se dá bem, tem outros que não se dá bem, depois de repente fica todo mundo bem, aí você fala uma coisa, não concordam, e só porque eu não concordei, ficou de cara feia para mim, tenho que concordar com você, é assim, aí depois com o tempo você volta a falar comigo, aí vai para frente, é assim.

O fato de não haver separação no trabalho, entre homens e mulheres, leva à formulação de que o mutirão é uma família. No entanto, ainda que Maristela esteja pensando em termos de igualdade de condições, de união no trabalho, essa família não está isenta de conflitos, é como se sua unidade fosse produzida justamente por múltiplas relações de solidariedade e conflito, o que é coerente com as abordagens que vimos até aqui que definem a noção de família. Essa ideia de que esse tempo produz uma familiarização do mutirão é muito recorrente e pode ser mais aprofundada por outros casos.

Como há muitas famílias aparentadas no mutirão e muitas relações de amizade são produzidas ao longo do tempo do mutirão, muitos parentes e vizinhos optam por morar próximos uns dos outros, desde que tenham a pontuação alta o suficiente para permitir esse tipo de escolha. Ricardo, no entanto, não tem parentes consanguíneos ou afins no mutirão e não considera ter amigos mais próximos do que outros, então não escolheu seu apartamento baseado em quem ia morar próximo:

Então, eu não fiz isso não assim, até mais porque eu conheci, conheço todos eles que trabalharam no mutirão, e eu não tenho parente aqui. Então, para mim, todo mundo é parente. É como se fosse uma família.

Dois aspectos importantes sobre familiarização emergem do que Ricardo pontuou. Primeiro que parentes e amigos do mutirão podem obedecer às mesmas regras de avizinhamento a fim de manutenção de relações muito próximas, de afeto e solidariedade. Entre eles, com certeza há uma maior familiarização do que em relação ao total de famílias do mutirão. Como Ricardo não mostra ter relações especiais desse tipo com outras famílias, ele trata todos ali como “parentes” e o conjunto dos moradores como uma única “família”. Assim, há uma série de familiarizações ocorridas como consequência do tempo do mutirão. Não só vários modelos de famílias (residentes no mutirão) são produzidos, como outras “famílias” envolvendo parentes, amigos e mesmo pessoas externas ao mutirão, como também uma grande família é produzida abarcando todo o mutirão.

Essa grande familiarização do mutirão também é percebida por um esforço coletivo de se cuidar de todas as crianças para que principalmente suas mães pudessem trabalhar no mutirão, uma vez que não tinham com quem deixá-las nos fins de semana:

Eu tinha minha filha, que hoje tem 15 anos, então ela participou muito assim, a gente vinha trabalhar, então tinha lugar para gente deixar as crianças da gente, eles ficavam tudo ali no CEU. Tinha uma equipe que cuidava dos nossos filhos para gente poder trabalhar

Uma comissão das famílias foi criada para cuidar das crianças e o Centro Educacional Unificado (CEU) Inácio Monteiro, equipamento educacional municipal localizado próximo ao mutirão, cedeu seus espaços para que elas pudessem brincar. Tatiana fala não só em seus filhos, de maneira individualizada, mas em “crianças da gente”. Outra formulação até mais recorrente para se referir a essas crianças é “os filhos do mutirão”, mostrando uma indistinção entre os filhos de cada família e tratando todos eles como parte de um mesmo coletivo, de uma mesma grande família11 11 Cláudia Fonseca (2006) já havia assinalado como a própria noção de infância em contextos urbanos periféricos, de grupos populares, é ampliada a partir de frequentes práticas coletivas de cuidado e circulação de crianças, não restritas ao grupo doméstico em função de adversidades socioeconômicas cotidianas, que constroem e fortalecem redes de relações sociais (parentesco, amizade, vizinhança, dentre outras). .

Tratar o mutirão como uma “família” implica também utilizar terminologias de parentesco para se referir aos integrantes do mutirão. Adriana, em especial, por ser a coordenadora do mutirão e ter a responsabilidade de gerir todas as famílias e de apoiar a todos na obra e em relação a vários possíveis problemas, muitas vezes era tratada como “mãe”.

Ainda que Adriana seja uma mãe para todos, esse papel pode não ser legitimado por mutirantes que não reconhecem todo seu apoio, que a criticam, o que ocasiona um enorme esforço de fortalecimento de uma reputação de seriedade e honestidade. Os papéis de mãe e de coordenadora ora se confundem ora são vigorosamente separados pelos mutirantes, fazendo com que o esforço de familiarização do mutirão, com Adriana à frente, esteja longe de ser um processo definitivo e harmonioso.

O idioma de parentesco e sobre família ainda pode ser utilizado para outros participantes do mutirão, mesmo não coordenadores ou famílias, como a assessoria técnica, contratada pelo movimento para coordenar tecnicamente a obra, cujos integrantes não são classificados apenas como técnicos por Pedro:

[...] as arquitetas, engenheiros, pessoas boas também, não entraram aqui só como arquiteto e como engenheiro, entraram aqui também como amigo, como pai e mãe também para auxiliar não só no bloco e no cimento, mas auxiliar também na alegria, com palavra.

O tempo do mutirão também tem marcações a partir de ciclos de reprodução familiar (nascimento e crescimento dos filhos, casamentos e separações) e também por mortes sentidas não individualmente, nem por uma única família, mas por toda a grande família do mutirão.

Mas se muitas dessas marcações temporais levam em conta sofrimentos, dificuldades e muito trabalho. Muitos mutirantes também falam de boas recordações sobre o tempo do mutirão, pensado como um tempo de muita união, de divertimento, de alegrias nos momentos intensos de convívio, fosse naqueles momentos extraordinários como de festas e confraternizações, fosse nas refeições coletivas nos intervalos de obra, quando se comia, conversava e se ria coletivamente. Por outro lado, se todos esses processos de familiarização são causados pela união de alguns grupos ou de toda a coletividade de participantes no mutirão, a todo tempo também são questionados e problematizados por integrantes dessas mesmas “famílias” durante o tempo do mutirão, colocando em risco todo o trabalho acumulado durante tantos anos.

REFLEXÕES SOBRE A CASA CONQUISTADA

Já vimos em várias das narrativas apresentadas expressões que consideram o apartamento conquistado depois de tanta luta como uma “vitória” ou uma “conquista” a serem celebradas, resultado de muito esforço próprio, mas também consequência de processos de familiarização. Muitos agradecem a Deus por finalmente estarem morando na sua “casa”.

Embora cada família resida fisicamente em um apartamento, é o termo “casa” que é muito mais utilizado para se referir a essa objetificação (Strathern, 2006STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, SP: Editora da Unicamp.)12 12 Para Strathern (2006: 267), objetificação é “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação.”. Alfred Gell (1998) realiza um interessante exame sobre a obra Gênero da Dádiva, de Marilyn Strathern, que explora a acepção de relações da autora. De acordo com este autor, Strathern analisa o sistema de relações de troca na Melanésia, tomado como sistema ideal e não real, pensando essas relações como sendo necessariamente entre termos, mas os próprios termos são constituídos a partir das relações nas quais participam. Assim, os termos trocados (objetos) ou os responsáveis pelas trocas (pessoas) são objetificações das relações, só adquirem sentido e forma a partir da análise das múltiplas relações nas quais estão inseridos. de uma série de relações, ideias e pessoas fundamentais para a sua conquista. No entanto, uma vez conquistada e depois da família se mudar para lá, a casa também continua sendo conceitualizada a partir de variadas relações, pessoas e ideias, bem como por sua materialidade.13 13 Para perspectivas etnográficas que tratam a casa não apenas na sua materialidade, mas focalizam as interrelações entre seus aspectos físicos, pessoas e ideias, explorando as diferentes maneiras pelas quais casas e pessoas se conectam, ver Carsten e Hugh-Jones, (1995).

O Unidos Venceremos é constituído de 100 apartamentos de dois quartos muito parecidos, a única diferença é que há dois modelos com distinta disposição de uma pequena varanda. Por outro lado, cada andar se apoia no andar inferior sem um sistema de sustentação para todo o prédio, o que não permite que se derrube paredes, que colocaria em risco a estrutura de cada bloco. Com isso, independente da composição de cada família e de seus ciclos de desenvolvimento, não há a possibilidade de se construir novos quartos ou de ampliar espaços em caso de solteiros ou de famílias reduzidas.

No entanto, no vizinho mutirão Paulo Freire o projeto foi desenvolvido com uma estrutura metálica, o que permitiu uma ampla variação de arranjos espaciais dos apartamentos. Com efeito, quando visitei alguns apartamentos do Paulo Freire, conheci enormes variações como pessoas solteiras que preferiram ficar com dois quartos, sendo o segundo para hospedar parentes, ou um caso de uma senhora que trabalhava como costureira autônoma que transformou o segundo quarto em sua oficina. Havia sempre um esforço de separação de filhos homens e mulheres em quartos distintos, nos casos de três quartos. Também conheci um apartamento, em que a mutirante, casada e com duas filhas que lá residiam, optou por fazer uma cozinha maior, que ia da frente ao fundo do apartamento, tendo uma pequena sala e o quarto das filhas de um lado e o quarto do casal do lado oposto. A cozinha era, assim, o maior cômodo do apartamento, segundo ela pelo fato de que era “baiana” e as pessoas de seu estado tratarem a cozinha como a principal parte da casa. Havia ainda famílias que tinham planos futuros de derrubar ou construir paredes para continuar com rearranjos espaciais a partir de casamentos, nascimento de filhos ou de filhos com filhos que lá iam morar.

Já no Unidos Venceremos tamanha variação não era possível, o que ocasionou, ainda que em reduzida escala, situações de filhos homens dormindo na sala, principalmente se houvesse filhos e filhas, com prioridade para ficar no quarto dada às filhas. Por outro lado, ainda que um apartamento de dois ou de três quartos seja pensado tanto pela COHAB como pela assessoria técnica como adequado para uma família nuclear com filhos, havia muitos arranjos que fugiam a esse modelo.

A casa conquistada também não pressupõe um arranjo familiar fixo e estanque de duração variável, como por exemplo nos casos de uma família conjugal com filhos, em que inicialmente coabitam pai, mãe e filhos e, com o casamento dos filhos, eles saem e vão morar em outros locais ou mesmo entrar em um novo mutirão que é muito recorrente. Ou seja, a casa não pode ser pensada apenas como a materialização de etapas de ciclos de desenvolvimento doméstico (Fortes, 1974FORTES, Meyer. 1974. “O ciclo do desenvolvimento do grupo doméstico”. Cadernos de Antropologia 6. Brasília: Editora Universidade de Brasília.), mas também como parte de uma configuração de casas (Marcelin, 1996MARCELIN, Louis H. 1996. A Invenção da Família Afro-Americana: família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado. Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.), interligada a residências de outros integrantes da família extensa, além de ser um espaço de trânsito de parentes, que podem lá residir durante períodos de duração variável.Nesse sentido, há casos em que mutirantes tomam para si a criação de netos, quando os pais estão passando temporadas fora, seja a trabalho ou em um caso de filha presa. Essas avós podem, assim, morar com outros filhos solteiros e netos, filhos de seus filhos que estão residindo fora. Quando os filhos retornam, os netos podem continuar morando com as avós ou retornar para morar com os pais.

Há também alguns casos de mutirantes que cedem o apartamento para que filhos casados e com filhos lá residam. Pedro, por exemplo, é filho de uma mutirante que trabalhou no Unidos Venceremos. Como ela se casou durante o processo, ela estava residindo com seu novo marido na casa dele. Como Pedro havia casado recentemente e tinha um filho pequeno, sua mãe o deixou morar lá. Esse arranjo era visto por Pedro como provisório, até ele ter condições de arcar com o pagamento de um aluguel ou conseguir uma vaga em um mutirão futuramente.

Se os apartamentos são inseridos em uma configuração de casas envolvendo casas de parentes diversos que podem morar no mutirão ou fora dele, na qual há relações de solidariedade e de trânsito de pessoas, como a circulação de crianças, o mesmo também acontece com apartamentos no interior do próprio mutirão entre vizinhos que se tornaram amigos no tempo do mutirão. Em caso de solteiros e solteiras ou mães e pais desempregados, é comum que amigos e vizinhos se solidarizem e doem comida ou os convidem para fazer refeições juntos. Assim como pessoas idosas têm ajuda de vizinhas e vizinhos em certas tarefas domésticas ou para atividades que exijam algum tipo de esforço ou deslocamento para longe do mutirão. Também há casos de vizinhas que cuidam dos filhos pequenos quando suas mães vão trabalhar ou têm compromissos que podem tomar muito de seu tempo.

Muitos mutirantes são naturais de outros estados e vêm para São Paulo “tentar a sorte” e ficam em casas de parentes provisoriamente. O mesmo acontece no Unidos Venceremos e os apartamentos se tornam moradia temporária de parentes que se deslocam a São Paulo.

Mesmo quando os filhos não moram mais com seus pais mutirantes, estes celebram o fato de terem conseguido a casa, que poderá ser herdada pelos seus descendentes, que terão condições melhores de moradia.

Assim, a casa conquistada, por maiores limitações materiais que possua, é uma objetificação de múltiplas relações e rearranjos familiares, das pessoas que nela residem e por ela transitam e de ideias que a qualificam como um espaço merecido de conquista, de compensação de uma vida de esforços e sacrifício e de melhores condições existenciais para os mutirantes e para seus descendentes.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a efetivação da conquista habitacional, costuma haver uma preocupação generalizada com o risco de que todo o processo de luta e mutirão possa se tornar em vão, com o fim dos ideais coletivos ou, poderíamos falar, o risco de desfamiliarização do mutirão. É uma concepção frequente de que após as famílias se mudarem, elas se tornam muito “individualistas”.

Os mutirantes associam o individualismo ao fim do tempo do mutirão, quando havia mais convivência, conversa e alegria. Há uma certa nostalgia estrutural (Herzfeld, 2008HERZFELD, Michael. 2008. Intimidade cultural: poética social no Estado-Nação. Lisboa, Portugal: Edições 70.) desse tempo anterior para o qual houve tanto sofrimento, mas também muita solidariedade, muito apoio mútuo.

De certa forma, o risco do individualismo, de desfamiliarização, é paralelo ao risco de se tratar a casa conquistada como uma simples mercadoria e não uma dádiva produtora de coletividades. Todos os esforços de coletivização, ou de familiarização, pressupõem ideias em torno da união, do esforço coletivo e da valorização da luta e de seus resultados, de suas conquistas. Vê-se, assim, como as relações, práticas e discursos em torno da ideia de família, a partir de sua acentuada polissemia, constituem uma rica chave analítica para se pensar os movimentos de moradia.

A participação no mutirão produz, portanto, relacionalidades (Carsten, 2000CARSTEN, Janet (ed.). 2000. Cultures of relatedness. New approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press.)14 14 Janet Carsten, em Cultures of Relatedness (2000) propõe o uso analítico de relatedness a fim de pensar parentesco não a partir de uma polarização entre biológico e social, como os estudos mais clássicos de parentesco fizeram, movimento analítico já denunciado por Schneider (1984). O uso de relatedness abre maiores possibilidades para abordagens etnográficas que não partam de pressupostos analíticos de parentesco, mas que, ao contrário, partam dos idiomas e práticas nativos acerca de conexões estabelecidas entre pessoas não apenas ligadas por consanguinidade e afinidade, descendência e alianças. Essa perspectiva orienta meu esforço etnográfico de compreender as famílias de mutirantes em seus próprios termos, inclusive de parentesco, mas também por outras formas de conexões. , que levam a contínuos processos de refamiliarizações em vários níveis e com pessoas com as quais não necessariamente se partilha de laços de parentesco ou com quem se coabita. Práticas de comensalidade, sofrimento conjuntamente, conflitos e solidariedades, afetos e convivência também produzem, assim como dissolvem, essas famílias continuamente.

O termo família, assim, adquire uma multiplicidade de sentidos e de usos. Ela corresponde a uma série de unidades, situacional e processualmente apreensíveis, mas cujas fronteiras raramente são discerníveis. Portanto, foi possível perceber que família, mais do que um termo polissêmico que é continuamente ressemantizado, corresponde também a arranjos concretos que estão em contínua mudança, que nunca são estanques e estáveis, ou seja, há também uma acentuada mutabilidade morfológica de família.

Todas essas afirmações sobre família e sua acentuada polissemia seriam impossíveis de serem apreendidas se fosse desconsiderado o fato de que é a luta pela casa própria que move todos essas dinâmicas de produção, dissolução e rearranjos familiares. Portanto, família e casa são termos que exprimem sentidos e descrevem realidades que, de fato, estão intimamente ligados, mas não apenas numa relação de sobreposição ou de intercambialidade.

Assim como família é produzida de várias maneiras, também pode-se dizer que a casa é reiteradamente produzida e continuamente ressignificada a partir de vários fatores. É claro que ela é definida muito em função de sua materialidade: de suas estruturas físicas, de sua localização e de suas dimensões e condições de abrigar bem ou mal mais ou menos pessoas, de seus valores monetários etc. Mas ela também é definida por uma série de ideias, pessoas e relações e complexifica ainda mais as noções de família.

Aos esforços para a obtenção da casa própria, a coordenação sempre defende que haja uma articulação com frentes, discursos e práticas mais políticas. É à política, que corresponde a saberes, relações entre agentes e coletividades dos mais diversos, práticas de oposição e composição e fundamentalmente a lutas mais amplas, que se articulam os desejos da casa própria (Filadelfo, 2017FILADELFO, Carlos. 2017. “Os sentidos de política na luta por moradia em São Paulo”. In: COMERFORD, John; BEZERRA, Marcos Otávio; PALMEIRA, Moacir (org.) Questões e dimensões da política. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, p. 125-140.). E o que conota a força política de um movimento junto ao Estado é justamente uma boa articulação entre os dois planos.

Porém, há uma predominância nas políticas públicas de se fazer essa associação entre família e casa, o que se por um lado não corresponde ponto por ponto a realidades concretas, por outro, traz uma outra perspectiva de análise que é a triangulação entre casa, família e vida.

Assim, a articulação entre o Estado e os movimentos acaba gerindo a vida dessas pessoas a partir da casa e da realização da moradia digna. Nesse sentido, podemos dizer que, no sentido foucaultiano (Foucault, 2005FOUCAULT, Michel. 2005. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.; 2008FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.), as políticas habitacionais correspondem a uma forma de biopolítica, na medida em que são parte de uma razão de governo mais ampla que tem como seu objeto de intervenção a população em seus sentidos biológicos, ou seja, a vida e os vivos. Intervenção não sobre corpos passivos, mas sobre corpos individuais e coletivos que a todo tempo estão definindo e reivindicando o que é vida.

Por outro lado, se há uma dupla captura dos sentidos de família e de casa pelo Estado e pelo movimento no atendimento habitacional, há sempre linhas de fuga de arranjos familiares e de ideias e realidades sobre a nova casa que muitas vezes não se enquadram perfeitamente nos objetivos propostos pelo Estado ou mesmo pelo movimento.

Nesse sentido, da mesma maneira que não se pode reificar e singularizar as noções e arranjos de casa, família e movimento, o mesmo ocorre em relação ao Estado, ou melhor, o conjunto de agentes e instituições estatais com os quais os movimentos de moradia interagem, sempre produzidos em ato. As relações familiares importam na participação no movimento, na sua própria produção e nas suas articulações com o Estado. O movimento e o Estado produzem famílias, mas as famílias também produzem e reproduzem continuamente o próprio movimento e o Estado no que se refere à produção habitacional popular.

É possível perceber a importância do Estado na produção, a todo tempo e de múltiplas maneiras, de sentidos e arranjos subsumidos no termo família. A produção de famílias se dá por definições legais, mas que são historicamente revistas e ressignificadas. Concomitantemente, ainda que haja definições legais, o que se entende por família está a todo tempo em disputa no interior do próprio Estado, a partir de suas diferentes agências, de seus diferentes funcionários e burocracias, das políticas públicas habitacionais, de vínculos partidários, de relações pessoais, mas com uma forte influência dos movimentos de moradia. Estes, desde a relação interna com suas famílias, passando por negociações e conflitos com agências e burocracias estatais, até mobilizações nacionais não só reivindicam a ampliação do atendimento habitacional e ajustes políticos e técnicos das políticas a partir dessas famílias, como também buscam uma adequação contínua a arranjos concretos familiares que devem ser incorporados e normatizados pelo Estado. Se o Estado tem uma importância fundamental na gestão e produção dessas famílias, os movimentos acabam atuando como intermediários entre o Estado e as famílias na produção de moradia.

A incorporação analítica das noções e arranjos concretos de família contribuiu para pensar e ampliar as relações entre Estado e movimentos de moradia. Assim, a etnografia aqui apresentada se atentou aos processos em ato, tal como ocorrem, e mostrou como esses três pontos de apoio, sempre instáveis, cambiantes e flexíveis, são dinâmicos e incapazes de serem facilmente classificáveis e tipologizados.

Todas essas relações visibilizadas e explicitadas a partir das famílias constituem socialidades que orientam as ações dos movimentos de moradia e contribuem para a compreensão de seus sentidos existenciais, relacionais e políticos, ou seja, do que é a luta por moradia digna em uma cidade tão desigual como São Paulo.

  • 1
    A numeração no nome do movimento serve para diferenciálo do Movimento Sem Terra Leste II. Essa distinção numérica se deu pelo fato deles terem uma atuação política correspondente à divisão territorial da Igreja Católica. Na década de 1980, a zona leste de São Paulo era dividida pela Arquidiocese de São Paulo em duas regiões episcopais: a Leste I, com sede no bairro do Belém, e a Leste II, centralizada em São Miguel Paulista (cf. Filadelfo, 2015FILADELFO, Carlos. 2015. A luta está no sangue: família, política e movimentos de moradia. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.).
  • 2
    Ao longo deste artigo, termos e expressões que possuam um uso particular para meus interlocutores serão grafados em itálico, a exemplo de famílias. Reservarei o uso de aspas duplas para termos e expressões descritos e analisados em seus contextos de enunciação.
  • 3
    Outros antropólogos já mostraram, em distintos contextos etnográficos, que nem sempre família e grupo doméstico são coincidentes e descrevem o mesmo arranjo social; ou seja, que a coabitação não necessariamente produz uma família. Ver, por exemplo, Almeida (1986)ALMEIDA, Mauro. 1986. “Redescobrindo a família rural”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.1, n.1: 63-83., Fonseca (2000)FONSECA, Claudia. 2000. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS. e Fortes (1974)FORTES, Meyer. 1974. “O ciclo do desenvolvimento do grupo doméstico”. Cadernos de Antropologia 6. Brasília: Editora Universidade de Brasília..
  • 4
    A partir do momento em que alguém entra no grupo de origem, a porta de entrada do movimento, ele se filia, passa a pagar uma mensalidade e é cadastrado como uma família a partir de uma declaração de renda e do número de integrantes de sua família e está sujeito ao critério de pontuação para obter atendimento. Atualmente, os critérios de pontuação adotados pela Leste I em relação às famílias dos grupos de origem são (cf. Cartilha do Regulamento Interno): Ocupação - Participação no ato da ocupação (10 pontos); Ocupação - Por cada dia de ocupação (5 pontos); Passeata (5 pontos); Reunião (1 ponto); Contribuição paga em dia (1 ponto).
  • 5
    As famílias dos grupos de origem são contabilizadas e passam a compor uma lista de espera para atendimentos futuros. Quando há um novo empreendimento habitacional, é formada uma demanda, constituída de famílias de diversos grupos de origem. E quando finalmente há o atendimento, é o número de unidades habitacionais que determinará o número de famílias a serem atendidas. Quando há o atendimento, as famílias tendem a não mais participar do movimento, a não ser que sejam coordenadores.
  • 6
    A inspiração para essa formulação também decorre da noção de tempo de acampamento explorada por Nashieli Rangel Loera (2009: 23)LOERA, Nashieli Rangel. 2009. Tempo de acampamento. Campinas, Tese de doutorado, Universidade de Campinas. em sua pesquisa sobre o MST: “O tempo de acampamento é um código social do mundo das ocupações de terra, na medida em que além de uma medida cronológica é também, um demarcador de prestígio, de status, um princípio organizador e ordenador das relações sociais, e um requisito para conseguir um lote de terra, tanto para participantes das ocupações e acampamentos de sem-terra, para os dirigentes das organizações que promovem as ocupações e para as autoridades encarregadas das desapropriações de terra, conformando assim uma fórmula social entendida e compartilhada por todos aqueles que fazem parte desse mundo social particular, o das ocupações de terra”.
  • 7
    Como, por exemplo, Caldeira (1984)CALDEIRA, Tereza P. R. 1984. A política dos outros. O cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Editora Brasiliense. que intitula o capítulo do clássico livro da antropologia urbana produzida sobre São Paulo - A política dos outros - sobre a formação do bairro de Jardim das Camélias de “A ordem é ‘morar no mato’”, como exemplo de um processo histórico de periferização da cidade, com áreas ociosas e sem serviços e infraestrutura sendo ocupados por parcelas pobres da população. Para análises sobre o processo histórico de constituição das periferias paulistanas, em contraposição às áreas centrais, por expansões sucessivas ocasionadas pela autoconstrução, ver também Caldeira (2000)CALDEIRA, Tereza P. R. 2000. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp/Ed. 34., Kowarick (2000)KOWARICK, Lúcio. 2000. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34., Rolnik (1997)ROLNIK, Raquel. 1997. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Fapesp; Studio Nobel. e Villaça (1998)VILLAÇA, Flávio. 1998. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel..
  • 8
    Utilizo gênero aqui como categoria descritiva, no sentido proposto por Strathern (1981)STRATHERN, Marilyn. 1981. “Self-Interest and the Social Good: Some Implications of Hagen Gender Imagery”. In: ORTNER, Sherry; WHITEHEAD, Harriet (ed.). Sexual Meanings. The Cultural Construction of Gender and Sexuality. Cambridge: Cambridge University Press. e apropriado por Piscitelli (2006PISCITELLI, Adriana. 2006. Jóias de família: gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais brasileiros. Rio de Janeiro: Editora UFRJ.: 31-2) como “um modo de criar e expressar diferenças que assume, nesta e em outras culturas, um forte valor metafórico. Essa perspectiva - levando em conta que as distinções entre características consideradas femininas e masculinas são utilizadas para comentar, hierarquizando, diversos aspectos do social - retém uma dimensão da ideia de gênero como princípio de organização social; no entanto, não supõe que gênero tenha o mesmo significado e papel estrutural em todas as sociedades. Nessa abordagem, gênero é pensado como categoria descritiva, isto é, passível de uma descrição atenta aos significados e às maneiras como opera em contextos particulares. Compreender como o gênero participa do social exige refletir sobre o modo como essas conceitualizações são acionadas em relações específicas”.
  • 9
    Sobre a centralidade das mulheres na luta por moradia, em especial no trabalho em mutirões de construção de casas, em outros contextos periféricos (Florianópolis e Lisboa), ver Canella (2020)CANELLA, Francisco. 2020. “Mulheres e luta por moradia Mudanças nas práticas associativas nas periferias de Florianópolis e Lisboa”. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, vol. 45, n. 251: 658-674. DOI 10.25247/2447-861X.2020.n251.p658-674
    https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020....
    .
  • 10
    Para um balanço bibliográfico sobre o tema, ver Fonseca (2000)FONSECA, Claudia. 2000. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS., cujo trabalho também inspirou algumas terminologias aqui utilizadas.
  • 11
    Cláudia Fonseca (2006)FONSECA, Claudia. 2006. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez. já havia assinalado como a própria noção de infância em contextos urbanos periféricos, de grupos populares, é ampliada a partir de frequentes práticas coletivas de cuidado e circulação de crianças, não restritas ao grupo doméstico em função de adversidades socioeconômicas cotidianas, que constroem e fortalecem redes de relações sociais (parentesco, amizade, vizinhança, dentre outras).
  • 12
    Para Strathern (2006STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia. Campinas, SP: Editora da Unicamp.: 267), objetificação é “a maneira pela qual as pessoas e as coisas são construídas como algo que tem valor, ou seja, são objetos do olhar subjetivo das pessoas ou objetos de sua criação.”. Alfred Gell (1998)GELL, Alfred. 1998. “Strathernograms, or, the semiotics of mixed metaphors”. In: The Art of Anthropology. Essays and Diagrams. London/ New Brunswick: The Athlone Press, p. 29-75. realiza um interessante exame sobre a obra Gênero da Dádiva, de Marilyn Strathern, que explora a acepção de relações da autora. De acordo com este autor, Strathern analisa o sistema de relações de troca na Melanésia, tomado como sistema ideal e não real, pensando essas relações como sendo necessariamente entre termos, mas os próprios termos são constituídos a partir das relações nas quais participam. Assim, os termos trocados (objetos) ou os responsáveis pelas trocas (pessoas) são objetificações das relações, só adquirem sentido e forma a partir da análise das múltiplas relações nas quais estão inseridos.
  • 13
    Para perspectivas etnográficas que tratam a casa não apenas na sua materialidade, mas focalizam as interrelações entre seus aspectos físicos, pessoas e ideias, explorando as diferentes maneiras pelas quais casas e pessoas se conectam, ver Carsten e Hugh-Jones, (1995)CARSTEN, Janet; HUGH-JONES, Stephen (orgs.). 1995. About the house. Lévi-Strauss and beyond. Cambridge: Cambridge University Press..
  • 14
    Janet Carsten, em Cultures of Relatedness (2000) propõe o uso analítico de relatedness a fim de pensar parentesco não a partir de uma polarização entre biológico e social, como os estudos mais clássicos de parentesco fizeram, movimento analítico já denunciado por Schneider (1984)SCHNEIDER, David. 1984. A Critique of the study of kinship. Ann Arbor, University of Michigan Press.. O uso de relatedness abre maiores possibilidades para abordagens etnográficas que não partam de pressupostos analíticos de parentesco, mas que, ao contrário, partam dos idiomas e práticas nativos acerca de conexões estabelecidas entre pessoas não apenas ligadas por consanguinidade e afinidade, descendência e alianças. Essa perspectiva orienta meu esforço etnográfico de compreender as famílias de mutirantes em seus próprios termos, inclusive de parentesco, mas também por outras formas de conexões.
  • FINANCIAMENTO: CNPq

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, Mauro. 1986. “Redescobrindo a família rural”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.1, n.1: 63-83.
  • CALDEIRA, Tereza P. R. 1984. A política dos outros. O cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos. São Paulo: Editora Brasiliense.
  • CALDEIRA, Tereza P. R. 2000. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo São Paulo: Edusp/Ed. 34.
  • CANELLA, Francisco. 2020. “Mulheres e luta por moradia Mudanças nas práticas associativas nas periferias de Florianópolis e Lisboa”. Cadernos do CEAS: Revista Crítica de Humanidades, vol. 45, n. 251: 658-674. DOI 10.25247/2447-861X.2020.n251.p658-674
    » https://doi.org/10.25247/2447-861X.2020.n251.p658-674
  • CARSTEN, Janet (ed.). 2000. Cultures of relatedness. New approaches to the study of kinship. Cambridge: Cambridge University Press.
  • CARSTEN, Janet; HUGH-JONES, Stephen (orgs.). 1995. About the house Lévi-Strauss and beyond. Cambridge: Cambridge University Press.
  • COMERFORD, John C. 2003. Como uma família: sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo rural Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • FILADELFO, Carlos. 2015. A luta está no sangue: família, política e movimentos de moradia São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.
  • FILADELFO, Carlos. 2017. “Os sentidos de política na luta por moradia em São Paulo”. In: COMERFORD, John; BEZERRA, Marcos Otávio; PALMEIRA, Moacir (org.) Questões e dimensões da política Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, p. 125-140.
  • FONSECA, Claudia. 2000. Família, Fofoca e Honra: etnografia de relações de gênero e violência em grupos populares Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS.
  • FONSECA, Claudia. 2006. Caminhos da adoção São Paulo: Cortez.
  • FORTES, Meyer. 1974. “O ciclo do desenvolvimento do grupo doméstico”. Cadernos de Antropologia 6. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
  • FOUCAULT, Michel. 2005. Em defesa da sociedade São Paulo: Martins Fontes.
  • FOUCAULT, Michel. 2008. Nascimento da biopolítica São Paulo: Martins Fontes.
  • GELL, Alfred. 1998. “Strathernograms, or, the semiotics of mixed metaphors”. In: The Art of Anthropology. Essays and Diagrams. London/ New Brunswick: The Athlone Press, p. 29-75.
  • HERZFELD, Michael. 2008. Intimidade cultural: poética social no Estado-Nação Lisboa, Portugal: Edições 70.
  • KOWARICK, Lúcio. 2000. Escritos urbanos São Paulo: Editora 34.
  • LOERA, Nashieli Rangel. 2009. Tempo de acampamento Campinas, Tese de doutorado, Universidade de Campinas.
  • MARCELIN, Louis H. 1996. A Invenção da Família Afro-Americana: família, parentesco e domesticidade entre os negros do Recôncavo da Bahia Rio de Janeiro, Tese de Doutorado. Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • PISCITELLI, Adriana. 2006. Jóias de família: gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais brasileiros Rio de Janeiro: Editora UFRJ.
  • ROLNIK, Raquel. 1997. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo São Paulo: Fapesp; Studio Nobel.
  • SCHNEIDER, David. 1984. A Critique of the study of kinship Ann Arbor, University of Michigan Press.
  • STRATHERN, Marilyn. 1981. “Self-Interest and the Social Good: Some Implications of Hagen Gender Imagery”. In: ORTNER, Sherry; WHITEHEAD, Harriet (ed.). Sexual Meanings The Cultural Construction of Gender and Sexuality. Cambridge: Cambridge University Press.
  • STRATHERN, Marilyn. 2006. O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a sociedade na Melanésia Campinas, SP: Editora da Unicamp.
  • VILLAÇA, Flávio. 1998. Espaço intra-urbano no Brasil São Paulo: Studio Nobel.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2020
  • Aceito
    03 Set 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com