RESUMO
O meu objetivo neste texto é apresentar um contraponto ao viés positivista que vem dominando o debate sobre ciência aberta e, assim, evidenciar alguns problemas e abrir espaço para um olhar mais plural e inclusivo sobre o assunto. Reflito sobre os três pontos centrais que marcam o debate sobre ciência aberta: (a) acesso aberto ao conhecimento produzido; (b) transparência nos processos de pesquisa; e (c) replicação e reprodutibilidade de pesquisas anteriores. Meu foco reside em conferir maior destaque à necessidade de uma visão plural e inclusiva de ciência alicerçada em pressupostos de alteridade.
Palavras-chave:
ciência aberta; alteridade; epistemologia; dados abertos; transparência em pesquisa
ABSTRACT
My objective in this text is to present a counterpoint to the positivist bias that has dominated the debate on open science and eventually highlight some problems and provide a more plural and inclusive perspective on the subject. I reflect on three key points that have pervaded the debate on open science, namely: (a) open access to the knowledge produced, (b) transparency in research processes, and (c) replication and reproducibility of previous research. My focus is on highlighting the need for a plural and inclusive view of science, one which is grounded on otherness assumptions.
Keywords:
open science; otherness; epistemology; open data; transparency in research
PALAVRAS INICIAIS
Desde quando assumi a posição de editor-chefe da Revista de Administração Contemporânea (RAC), deparei-me com um periódico que adotou há poucos anos a política de ciência aberta. Apesar de ainda serem poucos os periódicos, especialmente na área da administração, que tenham adotado essa política, penso que deixar a ciência mais acessível para todos é uma postura que deve ser defendida. Entretanto, ao ter contato com um conjunto de pessoas e textos sobre ciência aberta, percebi que uma parte do pensamento sobre o tema assume (ou quer determinar) uma posição totalizante. Isso significa dizer que há um entendimento sobre ciência aberta que está ancorado em uma perspectiva positivista (e suas derivações) de ciência em que seria possível estabelecer (na verdade, impor) um modelo fechado e único de como deve ser a prática de ciência aberta. Tal postura me preocupa, pelo simples fato de que tudo que se pretende total (geral) termina sendo excludente. Aí está o contexto para a pergunta que orienta minha reflexão: Seria possível uma forma perfeita e inequívoca de fazer ciência aberta?
O movimento de ciência aberta vem crescendo nas últimas duas décadas e faz parte do debate científico contemporâneo (e.g., Martins, 2020Martins, H. C. (2020). A importância da ciência aberta (open science) na pesquisa em Administração. Revista de Administração Contemporânea, 24(1), 1-2. http://doi.org/10.1590/1982-7849rac2020190380
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; McKiernan et al., 2016McKiernan, E. C., Bourne, P. E., Brown, C. T., Buck, S., Kenall, A., Lin, J., McDougall, D., Nosek, B. A., Ram, K., Soderberg, C. K., Spies, J. R., Thaney, K., Updegrove, A., Woo, K. H., & Yarkoni, T. (2016). Point of view: How open science helps researchers succeed. eLife, 5, e16800. https://doi.org/10.7554/eLife.16800
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). O debate está essencialmente em torno de três aspectos que envolvem (a) acesso aberto ao conhecimento produzido, (b) transparência nos processos de pesquisa e (c) replicação e reprodutibilidade de pesquisas anteriores (Martins, 2020; Mendes-da-Silva, 2019Mendes-da-Silva, W. (2019). Have we been transparent enough? Challenges in replicability and credibility in business research. Revista de Administração Contemporânea, 23(5), 1-6. http://doi.org/10.1590/1982-7849rac2019190306
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). Em suma, a ciência aberta busca tornar o fazer científico mais acessível e transparente. Parece-me haver pouco ou nenhum espaço para discussão de que a ciência deve caminhar no sentido de oferecer mais acessibilidade e transparência. Entretanto, o debate sobre como devemos entender ‘transparência’ com possibilidades de insubordinação à própria ideia de ética e a ‘imperiosa necessidade’ de replicação e reprodutibilidade de pesquisas científicas merece um olhar especial e um debate mais qualificado. O meu objetivo neste texto é apresentar um contraponto ao viés positivista (e.g., Aguinis, Cascio, & Ramani, 2017Aguinis, H., Cascio, W. F., & Ramani, R. S. (2017). Science’s reproducibility and replicability crisis: International business is not immune. Journal of International Business Studies, 48(6), 653-663. https://doi.org/10.1057/s41267-017-0081-0
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; Aguinis & Solarino, 2019; Mendes-da-Silva, 2019) que vem dominando o debate sobre ciência aberta de modo a evidenciar alguns problemas e abrir espaço para um olhar mais plural e inclusivo sobre o assunto. Reflito sobre os três pontos centrais mencionados acerca do debate sobre ciência aberta, dando maior destaque para a questão da necessidade de uma visão plural e inclusiva de ciência (Sousa-Santos, 2008Sousa-Santos, B. (2008). Um discurso sobre ciências. São Paulo: Cortez Editora.) que está alicerçada em pressupostos de alteridade (Peirano, 1999Peirano, M. G. S. (1999). A alteridade em contexto: A antropologia como ciência social no Brasil. Série Antropologia, 255. Brasília: UnB. Retrieved from http://dan.unb.br/images/doc/Serie255empdf.pdf
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).
ACESSO ABERTO AO CONHECIMENTO PRODUZIDO (OPEN ACCESS)
A necessidade de acesso aberto ao que é produzido no meio científico como forma de democratizar o conhecimento e oferecer oportunidades de melhorar as formas de vida (humana e não humana) parece ser um consenso entre os acadêmicos e vem se tornando política pública em alguns países (Harnad et al., 2008Harnad, S., Brody, T., Vallières, F., Carr, L., Hitchcock, S., Gingras, Y., Oppenheim, C., Hajjem, C., & Hilf, E. R. (2008). The access/impact problem and the green and gold roads to open access: An update. Serials Review, 34(1), 36-40. https://doi.org/10.1080/00987913.2008.10765150
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; Larivière & Sugimoto, 2018Larivière, V., & Sugimoto, C. (2018, October 24). Do authors comply when funders enforce open access to research? Nature, 562(7728), 483-486. https://doi.org/10.1038/d41586-018-07101-w
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). Uma das grandes dificuldades que se apresentam para que todo o conhecimento científico, especialmente por meio de artigos, esteja disponível para qualquer pessoa que tenha interesse está nos custos de operação dos periódicos (Harnad et al., 2008). Em meio à exigência para que revistas científicas contem com múltiplos profissionais para atuação em necessidades tecnológicas (e.g., sites e sistemas de submissão de artigos), editoriais (e.g., secretaria, diagramação, editoração) e de divulgação (e.g., mídias sociais, participação em eventos científicos), criou-se um mercado de editoração científica que movimenta bilhões de dólares anualmente (Larivière, Haustein, & Mongeon, 2015). Nesse mercado, alguns publishers chegam a lucrar mais do que empresas como Google ou Apple (Buranyi, 2017Buranyi, S. (2017, June 27). Is the staggeringly profitable business of scientific publishing bad for science? The Guardian. Retrieved from https://www.theguardian.com/science/2017/jun/27/profitable-business-scientific-publishing-bad-for-science
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). O processo é bem conhecido pelos acadêmicos. Pesquisadores pesquisam e escrevem artigos científicos (muitas vezes sem recursos) e submetem seus textos para revistas que figuram no catálogo dos publishers. Os artigos submetidos demandam o trabalho de outros acadêmicos (normalmente entre três e cinco) para ler e avaliar os textos recebidos buscando aferir qualidade científica e colaborando no desenvolvimento de novas ideias. Trata-se da conhecida revisão por pares (peer-review). Os autores e os revisores não costumam receber pagamentos por esses trabalhos realizados para os publishers. Entretanto, os publishers cobram valores significativos para que pessoas tenham acesso aos artigos publicados (Edwards & Shulenburger, 2013Edwards, R., & Shulenburger, D. (2013). The high cost of scholarly journals: (And what to do about it). Change: The Magazine of Higher Learning, 35(6), 10-19. https://doi.org/10.1080/00091380309604123
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). Aí está o segredo da lucratividade do negócio (Larivière et al., 2015) e da primeira barreira para a ciência aberta, acesso aos artigos publicados (Larivière & Sugimoto, 2018).
Alguns governos, com vistas a democratizar o conhecimento criado a partir de financiamentos a pesquisas geradas em seus países, também disponibilizam recursos para a taxa de processamento de artigos (APC) de modo que os artigos publicados não tenham custos para os leitores (Wingfield & Millar, 2019Wingfield, B., & Millar, B. (2019, April 10). How the open access model hurts academics in poorer countries. The Conversation. Retrieved from https://theconversation.com/how-the-open-access-model-hurts-academics-in-poorer-countries-113856
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). É importante mencionar que essas taxas podem custar entre dois e cinco mil dólares, o que parece ser um valor bem maior do que o real custo para a editoração de um artigo científico. Há também periódicos que cobram a taxa de processamento de artigo em outras duas situações. A primeira está relacionada ao que convencionamos chamar de periódicos predatórios (Bernardi, 2018Bernardi, S. (2018). A sombra das revistas predatórias no Brasil: Estudo mostra quantos pesquisadores do país publicam em periódicos com práticas suspeitas. Pesquisa FAPESP, (270). Retrieved from https://revistapesquisa.fapesp.br/a-sombra-das-revistas-predatorias-no-brasil/
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) que são revistas que cobram taxas para processamento de artigos que, na verdade, são a compra de um espaço para a publicação do artigo na revista. Muitos desses periódicos nem fazem o processo de avaliação por pares (ainda que digam que fazem nos seus sites). A segunda é de periódicos sérios que cobram a taxa realmente para custear o que é necessário para manter a revista e editorar os artigos. Nesses casos, o valor cobrado para os autores é bem menor do que os citados anteriormente e pode variar entre vinte e cem dólares.
Fora dos grandes publishers, das revistas predatórias e das revistas sérias que cobram taxas de processamento de artigos, temos exemplos como o predominante no Brasil. Aqui várias revistas científicas são custeadas por universidades, governo federal, governos estaduais ou associações como a ANPAD (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Administração) que patrocina a RAC, por exemplo. Nesses casos, não há custos para autores ou leitores. Diante do exposto, fica evidente que a denominação open access de artigos não significa necessariamente uma ciência que é aberta, democrática e justa. Este é um ponto de extrema relevância para uma defesa da ciência aberta. Isso envolve refletir sobre como é fazer ciência e democratizá-la em um contexto marcado por questões mercadológicas (Larivière et al., 2015Larivière, V., Haustein, S., & Mongeon, P. (2015). Big publishers, bigger profits: How the scholarly community lost the control of its journals. MediaTropes eJournal, 5(2), 102-110. Retrieved from https://mediatropes.com/index.php/Mediatropes/article/view/26422
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).
Um ponto que deveria avançar na ciência aberta é o questionamento e, por que não, a extinção da adoção de rankings para revistas científicas. Os rankings são um instrumento que alimenta o mercado da publicação científica (Nkomo, 2009Nkomo, S. M. (2009). The seductive power of academic journal rankings: Challenges of searching for the otherwise. Academy of Management Learning & Education, 8(1), 106-112. https://doi.org/10.5465/amle.2009.37012184
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) e atrapalha a democratização dos conhecimentos produzidos. Ao determinar o que é de ‘melhor’ ou de ‘pior’ qualidade a partir de uma marca (da revista), surge uma competição por alguns espaços de publicação que terminam sendo utilizados para fazer mais-valia (no sentido atribuído por Karl Marx). Um instrumento que vem sendo utilizado como forma de democratizar o conhecimento por meio de artigos científicos é o preprint (Larivière & Sugimoto, 2018Larivière, V., & Sugimoto, C. (2018, October 24). Do authors comply when funders enforce open access to research? Nature, 562(7728), 483-486. https://doi.org/10.1038/d41586-018-07101-w
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). Trata-se de disponibilizar um artigo em um repositório aberto antes ou simultaneamente à submissão do artigo para uma revista científica. Ainda que pareça ser uma boa ideia, ela apresenta dois problemas. O primeiro é que preprints não suprem a necessidade dos acadêmicos de fazer pontos (publish or perish), por não se tratar de uma publicação definitiva e não estar em um periódico de ‘prestígio’. O segundo é que existem áreas, como a administração, em que os artigos submetidos aos periódicos depois do processo de revisão por pares terminam tendo uma versão final (publicada) muito diferente da original (que está no preprint). Portanto, ter acesso ao preprint não significa, necessariamente (em algumas áreas), ter acesso a um material com conteúdo igual ao publicado.
TRANSPARÊNCIA NOS PROCESSOS DE PESQUISA
A ética na pesquisa científica é uma condição basilar (Bell & Bryman, 2007Bell, E., & Bryman, A. (2007). The ethics of management research: An exploratory content analysis. British Journal of Management, 18(1), 63-77. https://doi.org/10.1111/j.1467-8551.2006.00487.x
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). A transparência nos processos de pesquisa é uma forma de atender aos requisitos necessários para uma pesquisa cuidadosa com os aspectos éticos (Poth, 2019Poth, C. N. (2019). Rigorous and ethical qualitative data reuse: Potential perils and promising practices. International Journal of Qualitative Methods, 18. https://doi.org/10.1177/1609406919868870
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). Entretanto, não podemos reduzir a ética em pesquisa à transparência e nem transparência em acesso aberto à irrestrita abertura aos dados de pesquisa. A ideia de ter acesso aberto a todo e qualquer dado de pesquisa pode ter efeitos deletérios, assim como desconsidera alguns aspectos importantes da pesquisa científica em suas múltiplas possibilidades epistemológicas e metodológicas. Aqui começo a falar de alteridade. A alteridade é um princípio que sustenta todo o conhecimento produzido na antropologia (Peirano, 1999Peirano, M. G. S. (1999). A alteridade em contexto: A antropologia como ciência social no Brasil. Série Antropologia, 255. Brasília: UnB. Retrieved from http://dan.unb.br/images/doc/Serie255empdf.pdf
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) e tem grande valia para outras áreas como o direito (Tavares-Neto & Kozicki, 2008Tavares-Neto, J. Q., & Kozicki, K. (2008). Do “eu” para o “outro”: A alteridade como pressuposto para uma (re)significação dos direitos humanos. Revista da Faculdade de Direito UFPR, 47, 65-80. https://doi.org/10.5380/rfdufpr.v47i0.15735
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). De forma simples e direta, a alteridade significa reconhecer diferenças sem fazer juízo de valor sobre elas. Mas o que a alteridade tem a ver com a transparência e a ética na pesquisa científica? A resposta está em saber que o conhecimento científico não é produzido da mesma maneira entre todas as áreas do saber. Trata-se, portanto, de (re)conhecer que pressupostos teórico-metodológicos utilizados em áreas como ciências da natureza e saúde, por exemplo, podem não encontrar viabilidade e equivalência em outras áreas como a sociologia, a psicologia ou a administração. Se formos ainda mais criteriosos na questão da alteridade, perceberemos que mesmo em áreas como a administração, há múltiplas possibilidades de produção do conhecimento (Paes de Paula, 2016Paes de Paula, A. P. (2016). Beyond paradigms in Organization Studies: the circle of epistemic matrices. Cadernos EBAPE, 14(1), 24-46. https://doi.org/10.1590/1679-395131419
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; Sandberg & Alvesson, 2021Sandberg, J., & Alvesson, M. (2021). Meanings of theory: Clarifying theory through typification. Journal of Management Studies, 58(2), 487-516. https://doi.org/10.1111/joms.12587
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), ainda que algumas pessoas insistam que a administração seja um puxadinho das ciências naturais com esforços hercúleos de encontrar leis gerais por meio de modelos.
Ser transparente na pesquisa em administração não precisa ser sinônimo de ter todo e qualquer dado aberto. Estou falando, inclusive, para além de dados empresariais que possam ser classificados como ‘sigilosos’ em que apenas a menção de que são ‘estratégicos’ garante uma ‘boa’ justificativa de que não podem ser acessíveis. Será que a palavra ‘estratégico’ não pode carregar um conjunto de problemas éticos por parte da própria empresa e dos pesquisadores? Deixo aqui uma reflexão. Mas o meu ponto está um pouco mais adiante, ele se refere às consequências éticas de ter todo e qualquer tipo de dado aberto, como já mencionado por Martins (2020Martins, H. C. (2020). A importância da ciência aberta (open science) na pesquisa em Administração. Revista de Administração Contemporânea, 24(1), 1-2. http://doi.org/10.1590/1982-7849rac2020190380
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). É preciso respeitar as múltiplas formas de produção do conhecimento com suas potencialidades, limitações e implicações éticas (Bell & Bryman, 2007Bell, E., & Bryman, A. (2007). The ethics of management research: An exploratory content analysis. British Journal of Management, 18(1), 63-77. https://doi.org/10.1111/j.1467-8551.2006.00487.x
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).
Para ilustrar o meu argumento, vou apresentar dois exemplos, de mulheres vítimas de assédio sexual no local de trabalho e de casos de corrupção. Sobre o assédio sexual no local de trabalho surgem as seguintes questões. Será possível deixar as entrevistas abertas para qualquer pessoa ouvir ou ler (mesmo com a não identificação de nome e local de trabalho das pessoas)? Será que alguma vítima entrevistada gostaria de ler seu depoimento aberto em algum repositório de dados, ou ainda sendo utilizado em algum outro site ou mídia social? Será que tal situação não poderia causar mais problemas para as entrevistadas e problemas judiciais para os pesquisadores? Ainda que os pesquisadores seguissem as orientações de Chauvette, Schick-Makaroff e Molzahn (2019Chauvette, A., Schick-Makaroff, K., & Molzahn, A. E. (2019). Open data in qualitative research. International Journal of Qualitative Methods, 18. https://doi.org/10.1177/1609406918823863
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) de pedir autorização para divulgação dos dados em repositório aberto, será que, após a autorização, devido às consequências dessa acessibilidade às histórias, as entrevistadas não poderiam solicitar a retirada do conteúdo do repositório? Agora pensemos no caso de pesquisa sobre corrupção. Será que os pesquisadores teriam autorização para divulgação de vários dos dados obtidos? Com a divulgação dos dados, será que os pesquisadores e outras pessoas não poderiam correr risco de integridade física, uma vez que dependendo do contexto de corrupção pode haver grupos de crime organizado envolvidos?
A partir desses exemplos e das perguntas apresentadas, quero problematizar e relativizar que a abertura de dados seja considerada a principal ferramenta para transparência ou mesmo garantir uma postura ética em uma pesquisa. Cabe destacar que eu não estou desconsiderando os problemas relacionados à fabricação de dados e outros problemas operacionais de pesquisa (geralmente quantitativa) que são graves e precisam ser combatidos (Chawla, 2021Chawla, D. S. (2021, July 22). 8% of researchers in Dutch survey have falsified or fabricated data: Study of nearly 7,000 scientists also finds that more than half engage in ‘questionable research practices’. Nature. https://doi.org/10.1038/d41586-021-02035-2
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), mas chamar a atenção de que existem especificidades (alteridades) que precisam ser respeitadas. Caso contrário, a ciência aberta caminha para um paradoxo em que, para garantir transparência por meio de acesso de dados abertos (sem as devidas relativizações), termina excluindo um conjunto de pesquisas científicas que não se encaixam em um modelo que parece ser próprio apenas para conhecimentos produzidos em algumas áreas, temas ou perspectivas epistemológicas. Nesse sentido, parece ser de bom tom assumir uma posição em que a transparência por meio de dados abertos seja refletida amplamente e adotada por meio de níveis de abertura de dados (Chauvette, Schick-Makaroff, & Molzahn, 2019Chauvette, A., Schick-Makaroff, K., & Molzahn, A. E. (2019). Open data in qualitative research. International Journal of Qualitative Methods, 18. https://doi.org/10.1177/1609406918823863
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; Poth, 2019Poth, C. N. (2019). Rigorous and ethical qualitative data reuse: Potential perils and promising practices. International Journal of Qualitative Methods, 18. https://doi.org/10.1177/1609406919868870
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) considerando as especificidades de cada pesquisa.
REPLICAÇÃO E REPRODUTIBILIDADE DE PESQUISAS
Apesar de as ideias de replicação e reprodutibilidade serem bem conhecidas no meio científico, elas não representam uma questão central para todos os tipos de pesquisas que fazemos, especialmente nas ciências humanas e sociais. Na realidade, replicação e reprodutibilidade são uma questão relevante para uma forma de produzir conhecimento, as pesquisas de orientação epistemológica positivista e suas derivações como o funcionalismo (Sousa-Santos, 2008Sousa-Santos, B. (2008). Um discurso sobre ciências. São Paulo: Cortez Editora.). Esta observação é importante porque ela nos ajuda a entender um conjunto de implicações metodológicas que confunde muitos pesquisadores. É possível citar como influências do modo de pensar positivista-funcionalista a busca por generalizações, a criação e teste de hipóteses, o pressuposto de que fenômenos sociais estão subordinados a leis gerais (Donaldson, 2005Donaldson, L. (2005). Organization theory as a positive science. In C. Knudsen, H. Tsoukas (Eds.), The Oxford handbook of organization theory (pp. 39-62). Oxford: Oxford University Press.) e que as pesquisas são confiáveis apenas se for possível replicar os métodos utilizados e reproduzir resultados semelhantes a pesquisas anteriores. Portanto, replicação e reprodutibilidade de pesquisas científicas é uma agenda essencialmente positivista que, mais uma vez, representa UMA (e não a) forma de pesquisar e produzir conhecimento.
Do ponto de vista de ciência aberta, para mim, a defesa de que qualquer pesquisa deva ser replicável e reprodutível é uma maneira míope e totalizante de determinar que pressupostos de uma corrente epistêmica seja parâmetro para outras epistemologias e metodologias. Um exemplo clássico acerca desse debate está em torno das pesquisas de orientação qualitativa. Apesar de muita gente entender que pesquisa qualitativa seja quase que um conjunto de métodos complementares, na verdade, o termo ‘pesquisa qualitativa’ se trata de um grande guarda-chuva (Creswell, 2012Creswell, J. W. (2012). Qualitative inquiry and research design: Choosing among five approaches (3 ed.). Thousand Oaks: Sage Publications.; Stake, 2010Stake, R. E. (2010). Qualitative research: Studying how things work. New York: The Guilford Press.) que abriga múltiplas possibilidades epistemológicas e metodológicas. Sendo assim, o que une a diversidade de pesquisa sob o guarda-chuva da pesquisa qualitativa é o tipo de dado que elas utilizam, ou seja, os não numéricos ou textuais (no sentido lato sensu de texto) como preferem dizer alguns autores (Bispo, 2020Bispo, M. de S. (2020). Pesquisas qualitativas: Para além do método na pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. In R. de C. Fazzi & J. A. de Lima (Orgs.), Campos das Ciências Sociais: Figuras do mosaico das pesquisas no Brasil e em Portugal (pp.757-766). Petrópolis, RJ: Editora Vozes.). Portanto, a pesquisa qualitativa pode ser de diferentes orientações epistemológicas, inclusive de cunho positivista-funcionalista.
Desse modo, tanto os pesquisadores que trabalham prioritariamente com pesquisas quantitativas (que são predominantemente positivistas) quanto os pesquisadores que trabalham com pesquisas qualitativas de orientação positivista-funcionalista assumem que a replicação de métodos e a reprodutibilidade de resultados é algo importante para suas pesquisas (Aguinis et al., 2017Aguinis, H., Cascio, W. F., & Ramani, R. S. (2017). Science’s reproducibility and replicability crisis: International business is not immune. Journal of International Business Studies, 48(6), 653-663. https://doi.org/10.1057/s41267-017-0081-0
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; Aguinis & Solarino, 2019; Mendes-da-Silva, 2018Mendes-da-Silva, W. (2018). Promoção de transparência e impacto da pesquisa em negócios. Revista de Administração Contemporânea, 22(4), 639-649. https://doi.org/10.1590/1982-7849rac2018180210
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). Isso não é em si um problema, mas se torna desconfortável quando esses pesquisadores utilizam o argumento de ciência aberta para impor as suas preferências de pesquisa e visão de mundo sobre os demais pesquisadores que trabalham com outros paradigmas. A situação fica ainda pior quando o argumento central para a adoção da replicação e reprodutibilidade está no entendimento de que pesquisas qualitativas precisam demonstrar mais rigor (pela lógica positivista) ou assume que a subjetividade (que é uma condição fundamental para humanidade e a vida em sociedade) é uma fragilidade das pesquisas qualitativas. A objetividade e neutralidade clamadas pelos positivistas carregam nesses pressupostos inúmeras subjetividades (Sousa-Santos, 2008Sousa-Santos, B. (2008). Um discurso sobre ciências. São Paulo: Cortez Editora.).
A minha sugestão é que os aspectos da replicabilidade e reprodutibilidade não sejam considerados centrais para determinar que alguma pesquisa ou periódico seja classificado como adepto da ciência aberta, mas que sejam lembrados da sua importância para as pesquisas (geralmente quantitativas) de orientação positivista em que chegar a resultados semelhantes ou aferir os passos estatísticos de uma pesquisa se configura como algo relevante. Isso sem generalizar tal processo para outras formas de produção de conhecimento que não se alinham com esse pensamento. Caso contrário, limitaremos as possibilidades de fazer ciência e produzir conhecimento, assim como excluiremos posições clássicas (especialmente das ciências humanas e sociais) como, por exemplo, a da ‘imaginação sociológica’ de Wright Mills (1975Mills, C. W. (1975). A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar.), a ‘redução sociológica’ de Alberto Guerreiro Ramos (1966), ou ainda as múltiplas possibilidades de fenomenologia. Todas elas estão presentes em diversas pesquisas no campo da administração e não podem ser enlatadas nas ideias de replicação e reprodutibilidade.
PALAVRAS FINAIS
Como disse no início, penso que a ideia central da ciência aberta na qual o fazer científico seja mais acessível e transparente é importante. Entretanto, não podemos clamar por uma ciência aberta que se fecha para as múltiplas formas de produzir conhecimento. Ou seja, uma ciência aberta que mais parece uma jaula em que não há espaço para o diferente. Defendo que possamos ampliar o debate sobre ciência aberta de modo a encontrar caminhos que possam acolher as múltiplas formas de fazer ciência com as suas devidas especificidades. Para tanto, é preciso reconhecer as alteridades presentes nas diversas áreas do saber e nas várias maneiras de pesquisar e produzir conhecimento. É urgente que a ciência aberta avance no debate sobre a mercantilização do conhecimento científico (Larivière et al., 2015Larivière, V., Haustein, S., & Mongeon, P. (2015). Big publishers, bigger profits: How the scholarly community lost the control of its journals. MediaTropes eJournal, 5(2), 102-110. Retrieved from https://mediatropes.com/index.php/Mediatropes/article/view/26422
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). Além disso, é preciso que se pondere sobre regras muito rígidas que podem implicar posturas que afrontam a ética acadêmica, mesmo sob o argumento de promover a ética (caso da abertura total de dados). Por fim, penso ser pertinente pensar até que ponto a criação de cânones da ciência aberta não a transforme em uma ciência fechada e excludente. Evitar esse paradoxo é preciso!
REFERENCES
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Out 2021 -
Data do Fascículo
2022