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Oliveira Vianna uma antecipação teórica

ARTIGOS

Oliveira Vianna uma antecipação teórica* * Trabalho apresentado num Seminário de Teoria Política (curso de pós-graduação), dirigido pelo Prof. Dr. Francisco C. Weffort, da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 1972.

Robert H. Srour

Professor de sociologia e política e coordenador técnico-pedagógico das Faculdades Objetivo (Instituto Universitário Paulista); pós-graduado em sociologia na Universidade de São Paulo

"Nove décimos da nossa população é

dependente...: párias, sem terra,

sem lar, sem justiça e sem direitos."

Oliveira Vianna

1. INTRODUÇÃO

A exemplo de Augusto Comte, Oliveira Vianna acredita na viabilidade de uma revolução ideo lógica, de uma "revolução de cima". Seus pontos de confluência, contudo, não se esgotam aí. Pos tula um novo tipo de homem, cuja consciência recobriria os interesses da coletividade nacional, (2k superando a estreiteza da mentalidade individualista-liberal. Uma minoria seleta constituiria, assim, o governo dos melhores, única forma possível de democracia no Brasil. Uma nova visão de mundo estearia a ação histórica dessa elite: a ideologia da organização tecnocientífica. As estruturas do Estado deveriam dar ampla margem à participação do setor profissional, isento de facciosismos e modelado pela racionalidade funcional. Propõe, por conseguinte, o abandono da ideologia e das formas liberal-democráticas, em favor de uma forma de organização política de tipo autoritário.

A fundamentação teórica, contudo, imbuída de realismo epistemológico, é discutível. Mas os pressupostos emergem com clareza quando referidos à conjuntura mundial do entre-duas-guerras. De fato, embora se arvore em paladino da adoção de formas genuínas, rigorosamente brasileiras, de organização sociopolítica, Oliveira Vianna informa-se de um quadro de referência que lhe serve de paradigma manifesto: o modelo anglo-saxão, com referências ocasionais aos países do Eixo. Com efeito, essas sociedades industriais avançadas, de complexa estrutura, recrutam, para as funções dirigentes, um pessoal altamente especializado, criando assim as bases para uma ideologia onde as decisões-chave tendem a sair do domínio da população em geral, para afunilar-se em setores restritos. A justificação de tal procedimento reside na complexidade crescente dos problemas do mundo atual, e na necessidade de uma especialização adequada (sofisticação do instrumental) para apreendê-los e solvê-los. De tal sorte que se evidencia, ipso facto, a incapacidade do cidadão comum - não aparelhado para o desempenho eficaz de tais tarefas - para a participação política. A competência técnica deverá substituir a competência parlamentar que, além de inadequada, não é representativa das forças vivas do País.1 1 Oliveira Vianna, Francisco José de. Problemas de politica objetiva. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1947. p. 182, 225.

A preocupação de Oliveira Vianna aponta para uma explicitação teórico-ideológica da legitimidade desta elite tecnocientífica. Sabemos que tal elite inscreve-se numa estrutura legal ou burocrática e que sua autoridade assenta numa dupla base: no fato de ter sido estabelecida, reconhecida e aceita; no fato de sua competência ter sido avaliada por critérios objetivos. Oliveira Vianna propende a demonstrar que a efetivação, no poder, desta elite, é a única opção viável, pois condizente com a configuração histórico-estrutural brasileira. Todavia, cabe notar que o autor confunde, amiúde, processo de burocratização e processo de tecnocratização. Não diferencia - pois não cogita de fazê-lo - a qualificação específica para funções administrativas das qualificações para funções tecnocientíficas.

Em outras palavras, a democracia liberal está definitivamente superada. É preciso denunciála e substituí-la. O princípio da autoridade deve obter precedência em relação ao princípio da liberdade. O modelo orgânico brasileiro é o da democracia autoritária, na feliz expressão de Goebbels, isto é, uma democracia fundada na autoridade e não mais na liberdade.2 2 Oliveira Vianna, Francisco José de. O idealismo da constituição. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 149. Algo sem dúvida bem parecido à idéia avançada dos nossos dias de democracia social. Opera-se o desvinculamento na obtenção dos direitos sociais e políticos: esses viriam do beneplácito do Estado (seu aparato tecnoburocrático) que cuidaria da alocação dos recursos para a sua efetiva vigência. Recobre-se o paternalismo estatal com o manto do planejamento social; o processo político é descartado como disfuncional no processo técnico da planificação; o consenso torna-se primordial ao nível do Estado, pois planejar é ver a globalidade: a variável política desequilibra o sistema, introduz personalismos e interesses menores.

Deste modo, a ciência é a fonte legitimadora do exercício do poder; o verdadeiro é aquilo que é adequado aos fatos observados, e não nos é possível conhecer além do que nos é dado observar. Ficamos, contudo, ao nível da aparência, pois esta visão objetivista é meramente descritiva, não apanhando os mecanismos íntimos, o porquê da organização dos fenômenos. A realidade social não é apenas aquilo que se vê, pois a ação normativa dos atores é também perpassada por um sentido subjetivo. Este é apreensível ao nível da ideologia e da ação histórica dos agentes, que não são meramente precipitadoras da inevitabilidade dos processos, mas criadoras dentro de limites dados.

Levando às últimas conseqüências o raciocínio da postura epistemológica realista, desembocamos não só numa ideologia conservadora, mas numa visão alienante do real. A insistência de Oliveira Vianna em adequar as instituições políticas ao direito costumeiro, gestado pelas práticas cotidianas do povo-massa, é uma forma de ratificar a herança colonial. De vez que a estabilidade da "psicologia dos povos" (complexos culturais) se perpetua através do "inconsciente coletivo", como se estivesse impressa ou se contivesse "nos genes das próprias raças formadoras" .3 3 Oliveira Vianna, Francisco José de. Instituições politicas brasileiras. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1955. p. 97-9, 120-2. 4 Ibid., p. 53-63. Aliás, o repertório das idéias, a ótica e o referencial, são alienígenos; não por isso seriam invalidados, mas contaminariam, afinal, a percepção das virtualidades históricas específicas do Brasil. A ação humana é teoria e prática, reconhecimento do terreno, projeto social e intervenção na realidade: o vir-a-ser, produto de um engajamento político-ideológico, dificilmente se conforma à perspectiva de uma simples chancela do passado. Poderíamos então arriscar: não seria antes preciso, ao decifrar e assumir a "razão das gerações mais antigas", batalhar pela consecução de objetivos qué importam a negação do estatuto colonial?

A análise de Oliveira Vianna, contudo e a nosso ver, é muito linear, pouco diferenciada (visão homogênea da realidade brasileira) e persistente na utilização de categorias explicativas não historicizadas, pois pretensamente decalcadas de uma realidade em si mesma e transcendental, a "consciência coletiva". Outrossim, pretendemos estabelecer seus parâmetros e configurar sua concepção ideológica.

2. O DIAGNÓSTICO DE UMA "FALSA CONSCIÊNCIA"

Entendemos por ideologia um sistema de idéias e de juízos, descritivo, explicativo, interpretativo ou justificativo da situação social de um grupo, fundado em valores; é um conjunto coerente de percepções e representações, elaborado e difundido por atores sociais que procuram influenciar o curso histórico da sua sociedade. Em outros termos, é um sistema logicamente articulado, intelectualmente satisfatório, uma doutrina clarificadora e justificadora (perspectiva do mundo de uma dada coletividade), referida a interesses imediatos concretos; a ideologia reagrupa um certo número de pessoas, dando-lhes consciência grupai (nós) e delimita fronteiras em relação a outros grupos (in-group versus out-group); provoca a ação histórica do grupo que identifica, pois pretende dobrar o curso da história no sentido desejado (caráter voluntário).5 5 Rocher, Guy. Sociologia geral. Lisboa, Editorial Presença, 1971. v. 4, p. 204-11. A ideologia portanto não recobre todo o campo da cultura, como juga Marx.6 6 Gurvitch, Georges. As classes sociais. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1970. p. 56-7. Para este, com efeito, a ideologia só existe para a classe dominante: é a percepção da situação que a classe dominante tem, de acordo com a sua posição e os seus interesses. Assimilada pelas demais classes, torna-se alienante, pois visualiza o mundo através de uma ótica viciada, desfigurando o real. Entendida assim, a ideologia é uma "falsa consciência", instrumento de reafirmação do status quo.

Contudo, podemos crer na possibilidade da emergência de uma contra-ideologia, resultado de uma explicação sistemática da situação de uma classe dominada. Esta, então, constituiria uma "consciência clara", isto é, uma ideologia capaz de se contrapor à da classe dominante, sem pretender, não obstante, abarcar a "consciência verdadeira", o conhecimento científico (entendido como plena objetividade). Assim, a "consciência clara" seria uma "tomada de consciência" por parte dos dominados. O modelo marxista conduz à crença do "fim das ideologias" quando define a "ideologia proletária" como superação de todas as alienações e coincidente com a verdade científica.7 7 id. ibid. p. 60.

Oliveira Vianna escreveu a maior parte de sua obra numa conjuntura muito especial, marcada, no mundo, pelo ascenso do corporativismo e, no Brasil, pela tendências centralizadoras que apontavam para a necessidade de fortalecimento do aparato estatal. Suas análises e propostas não podem ser desvinculadas, portanto, das formas estruturais vigentes, dos valores e símbolos que permeavam o universo mental da época. Ademais, denunciar artificialismos, incongruências e utopias, constituía-se como a lúcida "consciência possível" das elites dirigentes. Mas seria esta atitude adequada à perpetuação dos privilégios? Acreditamos que Oliveira Vianna formulou de forma contundente certos encaminhamentos do processo político, e pecou por excesso de zelo ao verbalizar e clarificar perspectivas institucionais que melhor medrariam na sombra e no silêncio. Senão, vejamos o que nos diz.

2.1 O "idealismo utópico" das elites8 8 Oliveira Vianna. Idealismo... prefácio e p. 7-112.

Hoje, como ontem, predomina uma mentalidade que "sonha" a democracia e a liberdade no Brasil. Este espírito despreza as experiências vividas, o fracasso redondo do modelo liberal-democrático, justificando a ironia de Nabuco: "Uma pura arte de construção no vácuo: a base são as teses e não os fatos; o material, idéias - e não homens; a situação, o mundo - e não o país; os habitantes, as gerações futuras - e não as atuais."9 9 Id. p. XII. Nenhuma constituição vingou, nenhuma subsistiu na sua pureza. Pois eram construções que não se apoiavam sobre bases objetivas. O problema da democracia no Brasil sempre foi mal posto: pretendia-se reeditar modelos exógenos, centrados na organização do sistema eleitoral e na verdade do voto, fenômenos totalmente alheios à nossa realidade. No Brasil, o problema fundamental não é o do voto, mas a organização da opinião. Temos que suprir pela ação consciente do indivíduo e do Estado, e até onde for possível, aquilo que a nossa evolução histórica ainda não nos pode dar: estrutura, organização, consciência coletiva.

Há uma patente dicotomia entre instituições políticas e meio social, entre legalidade e realidade. A inspiração dos elaboradores dos códigos políticos brasileiros não deriva nem reflete as condições reais do País, mas paradigmas forasteiros. Eis a raiz do idealismo utópico. É uma questão de falta de educação cívica e política. Eis porque há uma inadequação entre o aparelhamento constitucional e as classes sociais. Idealismo utópico é, pois, um conjunto de aspirações políticas, um sistema doutrinário, que está em desacordo com as condições efetivas da sociedade que pretende reger. Este descompasso explica o baixo rendimento da organização política, que tende à esterilidade. Explica, também, a geração de resultados opostos às premissas de "paz, justiça, ordem, tranqüilidade, prosperidade, progresso, civilização, governo do povo pelo povo, regime de opinião, democracia, liberdade, igualdade, fraternidade".10 10 Ibid. p. 11.

Somente o idealismo orgânico (visão antecipada da evolução futura, calcada na análise dos fatos do passado) é legítimo; é idealismo fundado na experiência; a utopia está inscrita nas elaborações que não expressam o possível devir, tornando-as fantasmas vazios, fúteis quimeras. Mas "é muito pequeno o poder da vontade humana como agente modificador da marcha das sociedades. Esta evolui per se e seleciona, elimina, os ideais que não se conformam, nem se adaptam à sua evolução".11 11 Ibid. p. 309, citando Engenieros. No Brasil, os pensadores são déracinés, evocam sempre estranhas terras, outros sóis, insólitas guerras de classes, numa terra farta onde sobra o pão.12 12 Ibid. p. 311, 314.

Assim, o apego ao idealismo utópico que não se apoia na observação do povo e do meio, é a razão única do fracasso da organização sociopolítica brasileira. As elites brasileiras são "marginais" porque distanciadas do conhecimento da terra, educadas que foram em universidades estrangeiras ou em centros educacionais imbuídos de idealismo utópico. São elites cujos modos de pensar, sentir e agir, eram euro-americanos: "gerações de daltonizados", para quem a realidade nacional se apresentava deformada. Poucos escaparam deste destino: o pequeníssimo núcleo da "reação conservadora" no Império tinha o sentido do poder central, a consciência dos grandes objetivos do Estado; eram os "homens de 1 000", um escol de individualidades superiores, dotadas geneticamente de espírito público.13 13 Ibid. p. 18-9 e Instituições... p. 394-5.

Há dois postulados fundamentais que devem constituir os objetivos supremos do Estado: a organização da autoridade pública (organização da ordem legal) e a hegemonia do poder central (consolidação da unidade nacional), sem os quais toda ideologia política é utópica. Mas as elites brasileiras estavam deslumbradas com as prodigiosas criações institucionais euroamericanas. Mergulhavam inconseqüentemente nos debates sobre o desenvolvimento do princípio democrático e a organização das garantias individuais (padrão francês); na imitação do constitucionalismo e do parlamentarismo (padrão inglês); na transposição do federalismo e das liberdades locais (padrão norte-americano). Todas as nossas academias superiores, todas as nossas sociedades políticas, nossa alta imprensa, certas sociedades literárias, transformaram-se em centros doutrinários de irradiação do idealismo utópico. Com a tradição criada, o costume foi formado, e os centros da cultura nacional tornaram-se legítimos focos de ideais alienígenas. As várias aspirações liberais (democracia, república, federação, constitucionalismo, parlamentarismo) transbordavam do domínio das convicções individuais para o campo objetivo dos programas de partido. No Império, pretendiam limitar as prerrogativas do Poder Moderador, impingindo-lhe a soberania do Parlamento; pretendiam larga descentralização, com reforço das garantias legais face ao poder central. Eram preocupações primárias, infantis, pois somente o governo central pode assegurar as liberdades individuais num país de dimensões continentais, de população disseminada, dispersiva, rarefeita, pela falta de fatores de integração social e política. Na Constituição de 1824, além do mais, o princípio do regime parlamentar está contido, e somente o temperamento voluntarioso e autoritário de D. Pedro I não lhe deu realidade. O grande mito do momento era então a democracia liberal.

O Brasil Imperial soube contornar o desafio da descentralização política, de forma sensata, mantendo um país unitário e centralizado; os interesses privados e escusos da política e dos partidos não conseguiram subordinar a autoridade do Imperador, de vez que os ministros não se tornaram responsáveis pelos atos do Moderador (este continuou irresponsável). Em contraposição aos liberais de todas as estirpes (exaltados, históricos, radicais, republicanos menos os progressistas), erguia-se os grandes vultos do conservadorismo, cujos projetos eram de sadio idealismo orgânico. Os radicais, por exemplo, flutuando em pleno idealismo utópico, tornaram-se, inconscientemente, sonhadores perigosos à ordem pública, pois advogavam a abolição do Moderador, do Conselho de Estado, da vitaliciedade do Senado, da Guarda Nacional, da escravatura, a representação das minorias, a eleição direta, a descentralização política, a elegibilidade dos presidentes de província, a polícia eletiva. Foram apenas sensatos ao ferirem o problema da liberdade civil, propondo a separação da magistratura e da polícia, e a nomeação dos juízes inferiores pelos tribunais superiores.

O Império notabilizou-se pelo voto selecionado, impondo a restrição censitária ao sufrágio generalizado. Pode-se lamentar apenas que as bases para a condição da renda eram demasiadamente baixas. Para ser fecundo, o censo deve ser alto.

O que falta à população brasileira é o sentimento dos interesses comuns, a prática da solidariedade e da cooperação. Razão pela qual, o self-government é uma aberração. Uma polícia eletiva e uma justiça saída da população são formas de condenar as pessoas à morte certa pelo trabuco do banditismo clânico. Basta citar os desmandos do Ato Adicional e os horrores do Código do Processo Criminal de 1832, quando os clãs se digladiavam em conflitos particulares e partidários (assassínios, chacinas, saque dos vencidos).

Se não fora a intervenção do "poder pessoal", no Império, a vontade do monarca interferindo no jogo dos partidos, um deles ter-se-ia eternizado no poder em verdadeira oligarquia, condenando o outro à eternidade do ostracismo político. Somente os grandes estadistas conservadores fizeram obra realista, pois bateram-se pelas prerrogativas do "poder pessoal" do monarca, pela unidade do Império, pela centralização política, pela supremacia do poder central. Sua concepção política exerceu a função de um verdadeiro idealismo orgânico.

O mal está todo no espírito de clã que anima a sociedade de alto a baixo e cujas manifestações perniciosas impregnam toda a vida social e institucional. Na esfera política, sua revelação específica tem o nome de "politicalha" ou "política de partido". No fundo de cada brasileiro, há um politiqueiro em latência, justamente porque há nele sempre um homem de clã. Explica-se assim a atitude tradicionalmente contraditória dos políticos liberais: suas pregações generosas se esgotavam nas portas do poder, pois eram homens de partido, e portanto de clãs, logo politiqueiros intolerantes. Suas posturas liberais resultavam do quixotismo (intelectualismo livresco e fantasioso) que conflitava com o espírito partidário. Pois o quixotismo é de origem latina (razão de nosso idealismo utópico), enquanto o espírito de clã é criação genuína brasileira.

Mas enquanto o Império se caracterizou pelo primado do Poder Moderador, a República (Primeira e Segunda) teve o primado do Poder Legislativo. A Constituição de 1891 resumiu o que havia de mais liberal na época, misturando, de forma heterogênea, o democratismo francês, o liberalismo inglês e o federalismo norte-americano. Porém, em verdade, esta Constituição nunca foi posta em prática: como as crianças mal nascidas, morreu do mal de sete dias. Também, nenhuma classe social encarnou os ideais republicanos, daí sua falência.

O abalo provocado pela Abolição converteu boa parte da elite política - constituída na sua maioria pelos "desplantados" da Abolição - em membros da nova indústria do emprego público. As aspirações orientavam-se todas para as funções eletivas e administrativas, gerando uma autêntica burguesia burocrática.

A Constituição republicana fracassou porque seu idealismo não correspondia às exigências da realidade nacional. Todo o mecanismo do regime estabelecido girava em torno da presunção da existência de uma opinião pública organizada, donde a instituição basilar, o sufrágio universal. Contudo, não existia opinião pública arregimentada e militante. No Brasil, diversamente da Inglaterra, não existiam associações voluntárias, capazes de atuar como grupos de pressão. Ademais, não existia solidariedade de classe, nem classe organizada, exceto as Forças Armadas. Daí derivam o monopólio dos órgãos do poder pelas pequenas parcerias politicantes, que entre si distribuíam os cargos públicos; as câmaras unânimes; a onisciência do Presidente da República; pois as classes desorganizadas não conseguiam impor-lhe seus pontos de vista. Os governos atuavam no vácuo, sem a preponderância de uma opinião pública organizada, basculando necessariamente para governos partidários; logo, governos de facção; governos de clã; maus governos.

Contudo, o problema não era obrigar os governos a serem patrióticos, mas estabelecer ó regime de opinião. Para assegurar a independência a uma enorme massa de párias, os meios mais eficazes não serão nem o sufrágio universal, a eleição direta, o voto secreto, a autonomia local, mas meios de natureza econômica e social: o estabelecimento da pequena propriedade; um sistema de arrendamentos a longo prazo ou um regime de caráter enfitêutico; a difusão do espírito corporativo e das instituições de solidariedade social; uma organização judiciária expedita, pronta e eficaz; uma magistratura autônoma, com força moral e material para dominar o arbítrio dos mandões locais.

2.2 "Marginalismo" ou realismo das elites?

Várias teses, repetidas com persistência, travejam o pensamento de Oliveira Vianna. Constituem uma elaboração bastante coerente e sistemática, embora sujeita a contradições ocasionais e certos exageros de linguagem que são modos de enfatizar seu "grito de alerta". Analisemos por parte.

Sua concepção de poder repousa numa visão consensual do Estado-nação, pois não entende a existência dele senão pela presença da consciência dos interesses coletivos. Onde não houver consciência nacional, não haveria nação, razão pela qual a ação deliberada do centro decisório faz-se mister para dar consistência ao País. O Estado é o demiurgo para a nação, através da intervenção de uma elite, racialmente seleta, porém, a um tempo, dependente deste mesmo Estado, para sua formação.14 14 Oliveira Vianna. Instituições... p. 379-83, 391-2, 398-400. O raciocínio volta sobre si.

O Estado é o único organismo capaz de expressar os interesses gerais, e o conflito que se desenha não está entre classes que .pretendem impor sua dominação para configurar o sistema estatal segundo os seus interesses, mas entre interesses individuais - que são sempre cegos e egoísticos - e interesse coletivo. A chave da problemática está em constituir uma elite imbuída de "senso da nação", depositária do "complexo democrático da nação". Pois o Brasil, diferentemente dos países europeus, não é campo de embates classistas, já que as classes não estão formadas.15 15 Oliveira Vianna. Idealismo... p. 99-100 e Instituiç ões... p. 340-2, 358.

Novamente, confrontamo-nos com uma definição que não prescinde do apelo à consciência. Mas Oliveira Vianna não chega a conceituar a "classe em si", nem a "nação em si". Sem a consciência, os indivíduos são amorfos e atomizados e o País tem um povo, não uma nação.16 16 Oliveira Vianna. Instituições... p. 380. O problema parece-nos mal posto, pois Oliveira Vianna não formula os indicadores objetivos que poderiam desdizê-lo: seu raciocínio é axiomático. Uma classe é, de fato, um grupo legalmente aberto, mas de fato semifechado, delimitado em termos antagônicos a outros grupos (classes sociais), solidário em decorrência de sua condição ocupacional, econômica e legal (valores, significados e normas), com posição diferenciada dentro da estrutura social e que depende do conjunto da situação (há correspondência entre seus vários vínculos: profissionais, econômicos e jurídicos), cônscio apenas parcialmente de sua própria unidade e existência e portanto organizado em parte.17 17 Sorokin, Pitirin A. O que é uma classe social? In: Estrutura de classes e estratificação social. Organização de A. R. Bertelli, M.G.S. Palmeira e O.G.C.A. Velho. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969. p. 77-8. De tal sorte que a organização de sua "vanguarda" é indicadora da consciência de classe. Ora, a ação partidária no Império (tomando por base os antecedentes históricos para percebermos a existência ou não das classes) embora não indique uma pugna entre classes antagônicas, é uma clara demonstração da defesa de interesses coletivos (frações de classe e/ou grupos intraclassistas) e não um mero embate de corrilhos de campanário (a não ser nos períodos de calmaria, o que é muito comum alhures). Citemos o movimento da Independência, com o choque entre "portugueses" e "brasileiros", posteriormente, com o alijamento dos primeiros, a luta franca pelo poder entre o "grupo maçónico" (democrático-constitucional) e o "grupo Andrada" (autoritário); citemos o embate entre absolutistas-áulicos (Colunas do Trono) e os liberais (Jardineira) no apagar das luzes do Primeiro Reinado; citemos o conflito entre os liberais-exaltados (Sociedade Federal), os liberais-moderados (Sociedade Defensora) e os restauradores (Sociedade Militar) nos primórdios do período regençial; citemos a luta surda entre progressistas de Feijó (futuro Partido Liberal) e os regressistas de Bernardo de Vasconcelos (futuro Partido Conservador) durante a menoridade de D. Pedro II; citemos a campanha da Maioridade, expressiva manobra liberal para alcançar o poder, contra os divididos conservadores; citemos o trabalho de bastidores dos áulicos de Aureliano Coutinho contra o grupo parlamentarista de Honório Hermeto, nos primeiros anos do governo pessoal de D. Pedro II; a dissidência praieira-liberal de Pernambuco com seus motivos antilusitanos, seus anseios libertários, seu projeto descentralizador; citemos o grave dissídio entre liberais e conservadores na questão da extinção do tráfico negreiro e a reação comum ao Bill Aberdeen; citemos as divergência programáticas (e não eram declamatórias) entre liberais-históricos, liberais-progressistas e saquaremas; posteriormente entre liberais e radicais; e ainda, republicanos; lembremos a ação da Maçonaria na Questão Religiosa; a reação nacional à Questão Christie; a perturbadora e delicada Campanha Abolicionista; as inquietações permanentes e as manifestações reiteradas da Questão Militar ("fardas" versus "casacas").

Muitos deles eram movimentos sociais: tinham uma organização nitidamente estruturada e identificável, cuja finalidade explícita era agrupar membros para a defesa ou a promoção de objetivos precisos, e eram ativos em praça pública. Poderíamos fazer o seu processo, identificar quem representavam, em nome de quem falavam, quais os interesses que protegiam ou defendiam (definição do grupo reivindicador). Poderíamos delimitar seus adversários, acompanhar a resistência oferecida, caracterizar o grau de proselitismo, perceber as mudanças de orientação (definição do grupo opositor). Poderíamos decifrar o apelo a valores superiores, aos grandes ideais justificadores, em suma, apontar as razões invocadas para motivar sua ação (definição da verdade de base).

Eram projetos político-institucionais que, embora defendidos no seio da mesma classe dominante (proprietários de terras e de escravos), correspondiam a interesses diversos das frações componentes. Havia, porém, uma unidade de vistas fundamental, uma ideologia inclusiva que vinculava os vários grupos e identificava a "aristocracia rural": a vontade manifesta de preservar a estrutura de produção escravista (ver a reação quase unânime à promessa de D. Pedro I, em 1827, de extinguir o tráfico negreiro; ver o não-respeito à Lei de Feijó, em 1831, declarando livres os negros desembarcados). Sobre esta estrutura repousavam, fecundando-a, as demais: de privilégios, de expropriação do excedente econômico, de dominação.

A existência da classe dominante, é claro, não justifica, ipso facto, a existência das outras; uma entretanto não escapa. Pois as classes só existem em relação umas com as outras. Uma classe vive em função da outra, estabelecendo relações de oposição, assimétricas, relações de dominação-subordinação, porque relações de exploração. Assim, as classes são complementares e antagônicas.18 18 Stavenhagen, Rodolfo. Estratificação social e estrutura de classes. In: Estrutura de classes... p. 133-4. Se a classe dominante existe, seu "suporte" ou "classe simétrica" também existe: os escravos; sua organização de vanguarda seriam os quilombos que recuperam a identidade do negro como agente negador do sistema.

Uma segunda preocupação que delineamos em Oliveira Vianna versa sobre a preexistência da consciência nacional para a constituição de uma nação. Notemos, de passagem, o apego a definições formalistas na abordagem do real. Como negarmos a existência desta consciência e, por extensão, de uma nação que sobreviveu a sangrentas revoltas (Confederação do Equador, Cabanagem, Farroupilha, Balaiada, Sabinada, Praieira, Guerra Federalista, Revolta da Armada, Canudos, Contestado, Revolução Paulista, para só citarmos as mais clássicas), a várias guerras (Cisplatina, contra Oribe e Rosas, contra Aguirre, Tríplice Aliança, I e II Guerra Mundial), a inúmeras crises (Abdicação, Maioridade, Bill Aberdeen, Questão Christie, Questão Religiosa, Questão Servil, Questão Militar, República, Encilhamento, Funding Loan, Salvações Militares, movimentos tenentistas, Revolução de 30, Intentona Comunista, Golpe de 37, derrubada do Estado Novo, suicídio de Getúlio Vargas, golpes do Mal. Lott, renúncia de Jânio Quadros, derrubada de João Goulart) ? O Brasil teve motivos de sobra para explodir em pedaços. Como explicar conjunturas tão diversas e tão perigosas à unidade nacional? Uma consciência nacional, como também uma consciência de classe, forja-se na adversidade, no campo da ação histórica. Objetivamente, ao sabor das refregas, uma consciência nacional se constituiu. Agentes sociais desempenharam um conjunto de atividades que se destinavam a provocar, intensificar, refrear ou impedir transformações da organização social no seu todo ou de algumas de suas partes. Eis o indicador preciso da existência de uma nação.

2.3 Dicotomia ou congruência do País legal/ País real?

Outra tese central de Oliveira Vianna é a da incompatibilidade entre o aparato institucional e a realidade social.19 19 Idealismo.., prefácio. Parte do pressuposto que a democracia liberal foi introduzida desde os primórdios da Independência. Seria talvez uma figura de linguagem, pois os textos do autor são aí contraditórios: afirma repetidamente, de um lado, a existência legal de uma oclocracia (governo da plebe), mas confessa de outro, o primado do Poder Moderador no Império e a onisciência e onipresença do Presidente da República depois de 1889.20 20 Ibid. p. 48, 106 e Instituições... p. 343. Contudo, a importância e a repercussão da tese são bastante conhecidas para que esta mereça todo o respeito.

Houve efetivamente uma dicotomia entre modelo de Estado e formação econômico-social no Brasil? Se a resposta for afirmativa, isto explica o fracasso das tentativas de organização ao nível do Estado? Neste caso, tivemos uma crise de elites?

Numa análise detida das obras de Oliveira Vianna (Instituições políticas brasileiras, Evolução do povo brasileiro, O idealismo da constituição, Problemas de política objetiva), notase uma franca admiração pelo aparato legal do Império. O que desagrada ao autor são os programas "liberais" e as propostas republicanas.21 21 Idealismo... p. 39, 57-9. Com respeito à oclocracia a alegação é improcedente: no Império eram excluídos das eleições primárias (art. 92 da Constituição de 24)22 22 Campanhole, Adriano & Campanhole, Hilton Lobo. Todas as constituições do Brasil. São Paulo, Editora Atlas, 1971. os menores de 25 anos, os filhos que estivessem na companhia de seus pais, os criados de servir, os monges, os que não tivessem de renda líquida anual 100 mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou empregos (para os eleitores de província a exigência já era de 200 mil réis); na República Velha, o sufrágio, embora não censitário, era restrito: estavam excluídos os mendigos, os analfabetos, as praças de pré, os monges (art. 70 da Constituição de 91). No fim do Império, calculam-se uns 150 mil eleitores numa população de 14 milhões; nas eleições de 1894 para a presidência (vitória de Prudente de Morais) , numa população de 15 216 mil habitantes, houve 328 mil eleitores; em 1930, numa população de 32 891 mil habitantes, houve 1 841 mil eleitores (vitória de Júlio Prestes).23 23 Carvalho, Delgado de. Organização social e política brasileira. Rio de Janeiro, Distribuidora Record, 1969. p. 257-8. Assim, no fim do Império um pouco mais de 1% da população votava; no fim da Primeira República, 5,5% da população votava. É difícil crer que a vontade da plebe prevalecia. Isto sem contarmos os votos de cabresto que constituíam a maior parte.

Com respeito à configuração do poder, vejamos: no Império, havia o primado do Poder Moderador conjugado com a chefia do Poder Executivo em mãos do Imperador. O Moderador é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo do País e é a chave de toda a organização política (art. 98); a pessoa do Imperador é inviolável, e sagrada: ela não está sujeita a responsabilidade alguma (art. 99); o Imperador exerce o Poder Moderador nomeando os senadores, convocando a Assembléia Geral extraordinariamente, sancionando os decretos e resoluções da Assembléia Geral, aprovando e suspendendo inteiramente as resoluções dos Conselhos Provinciais, prorrogando ou adiando a Assembléia Geral, dissolvendo a Câmara dos Deputados nos casos em que o exigir a salvação do Estado, nomeando e demitindo livremente os ministros de Estado, suspendendo os magistrados, perdoando e moderando as penas impostas, concedendo anistia (art. 101). Ademais, o Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus ministros de Estado (art. 102). São suas principais atribuições: convocar a nova Assembléia Geral, nomear bispos e prover os benefícios eclesiásticos, nomear magistrados, prover os empregos civis e políticos, nomear os comandantes da Força de Terra, e Mar, e removê-los, nomear embaixadores e demais agentes diplomáticos e comerciais, dirigir as negociações políticas com as nações estrangeiras, fazer tratados de aliança ofensiva e defensiva, de subsídio e comércio, declarar a guerra e fazer a paz, conceder cartas de naturalização, conceder títulos, honras, ordens militares e distinções em recompensa de serviços feitos ao Estado, expedir os decretos, instruções e regulamentos adequados à boa execução das leis, decretar a aplicação dos rendimentos destinados pela Assembléia aos vários ramos da administração pública, conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos Concílios e Letras Apostólicas, e quaisquer outras constituições eclesiásticas, prover a tudo que for concernente à segurança interna e externa do Estado.

Na República Velha, cujo presidencialismo foi amiúde comparado a um Império sem coroa, exerce o Poder Executivo o Presidente da República (art. 41), competindo-lhe privativamente (art. 48): sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e resoluções do Congresso; expedir decretos, instruções e regulamentos para sua fiel execução; nomear e demitir livremente os ministros de Estado; exercer ou designar quem deva exercer o comando supremo das forças de terra e mar, administrar o Exército e a Armada e distribuir as respectivas forças; prover os cargos civis e militares de caráter federal; indultar e comutar as penas nos crimes sujeitos à jurisdição federal; declarar a guerra e fazer a paz; dar conta anualmente da situação do País ao Congresso Nacional, indicando-lhe as providências e reformas urgentes em mensagem; convocar o Congresso extraordinariamente; nomear os magistrados federais; nomear os membros do Supremo Tribunal Federal e os ministros diplomáticos; nomear os demais membros do Corpo Diplomático e os agentes consulares; manter as relações com os Estados estrangeiros; declarar, por si, ou seus agentes responsáveis, o estado de sítio em qualquer ponto do território nacional; entabular negociações internacionais, celebrar ajustes, convenções e tratados. Os ministros de Estado não são responsáveis perante o Congresso, ou perante os tribunais, pelos conselhos dados ao Presidente da República.

Aliando o sufrágio restrito e os imensos poderes dos governantes, podemos crer ainda numa democracia? O poder e as instituições legais sempre foram oligarquizadas: no Império, a coisa é clara, citando apenas em apoio as amplas faculdades do Moderador, as compressões eleitorais e as câmaras unânimes; na República, aprofundemos a análise através do Regulamento Cesário Alvim e da "política dos estados" ou "dos governadores".

Os vícios e a tendência elitista do sistema eleitoral imperial não foram corrigidos pela República, embora se tenha alargado o sufrágio e tornado direto o voto. O eleitorado continuará restrito e controlado, a oposição amordaçada. Em junho de 1890, promulga-se o Regulamento Alvim, também chamado lei de arrocho. A mesa eleitoral é reinstituída. Compunha-se de cinco membros e era presidida pelo presidente da Câmara Municipal, que designava os quatro mesários. A eleição fazia-se por maioria relativa, com o voto a descoberto. A mesa eleitoral é que apurava os votos e lavrava a ata respectiva. Finalmente, a Câmara Municipal da capital do estado procedia à apuração terminal, à vista das cópias autênticas das atas. Os presidentes de estado não tinham dificuldade em impor suas listas, notadamente para a Constituinte, quando nomearam Intendentes nos municípios, em virtude da dissolução das municipalidades. Contudo, a representação das minorias (velha problemática do Império) foi facultada por alguns estados que corroboraram a Lei Rosa e Silva de 1904, que possibilitava o reconhecimento da oposição e a eleição de alguns de seus membros. Na maior parte dos estados, entretanto, não havia oposições organizadas; quando muito, as minorias integravam o partido único estadual. Durante toda a República Velha avolumaram-se as críticas aos abusos, fraudes, e ao engodo eleitoral. Com efeito, à semelhança do Império, as eleições eram meras formalidades que não expressavam senão a vontade das oligarquias encasteladas no aparato institucional. A panaceia universal passou a ser a reivindicação do voto secreto, o que, sem dúvida, demandaria apenas uma reformulação e/ou sofisticação das manipulações.

De outra parte, o presidencialismo estabelecido pela Constituição de 1891 prestou-se a toda sorte de excessos de autoritarismo. Campos Sales consolidou a República no plano financeiro e político, ao elaborar uma doutrina de reforço franco do Poder Executivo, explicitando apenas os preceitos constitucionais. O governo é definido como poder forte em mãos do Chefe de Estado, responsável pela "alta gestão dos negócios gerais da comunidade".24 24 Campos Sales. Manifestos e mensagens, 1898-1902. Discurso de 31 de outubro de 1897. Rio de Janeiro, Nacional, 1902. p. 11. Somente o Executivo pode fazer um bom governo, pois pode estabelecer diretrizes coerentes e zelar por seu cumprimento. As medidas legislativas não podem dispensar na sua elaboração a interferência do critério do poder encarregado da administração. Os corpos deliberantes têm necessidade que sua iniciativa seja esclarecida e dirigida. E, pela natureza de suas prerrogativas, cabem os encargos desta tarefa ao Executivo. Quanto ao poder judiciário, não lhe é permitido fazer política ou ter partido; não deve portanto embaraçar a política da situação, nem criar óbices à ação administrativa.

Assim, o sistema presidencial pressupõe o primado do Presidente da República "cuja autoridade legal ou moral jamais deverá desaparecer atrás de seus ministros".25 25 Id. p. 22. Os próprios partidos políticos devem subordinar seus interesses à nação, encarnada no Chefe de Estado, razão pela qual é preciso acabar com as grandes reuniões políticas, onde a maioria delibera, pois a política é a esfera de ação de minorias, "é uma função que pertence a poucos e não à coletividade".26 26 Campos Sales. Da propaganda à presidência. São Paulo, 1908. p. 244. Esta visão elitista conduziu à procura da estabilização do poder das oligarquias estaduais. Assim é que para enfrentar o problema da duplicidade de diplomas, as intermináveis disputas e o choque das ambições, Campos Sales promoveu a reforma do regimento interno da Câmara dos Deputados (órgão encarregado da verificação dos poderes dos deputados, senadores, presidentes e vice-presidentes). Estabeleceu que o presidente das reuniões preparatórias da nova Câmara Federal passaria a ser, não o mais velho dos candidatos diplomados, mas o presidente da sessão anterior. Também definiu o que se devia compreender por diploma legal ou presumidamente legítimo: a ata geral da apuração da eleição, assinada pela maioria da câmara municipal competente para apurá-la. O presidente provisório da nova câmara nomearia, então, uma comissão de cinco membros - da qual fazia parte - para julgar da validade dos diplomas, enquanto entre os candidatos diplomados se sorteariam as comissões de inquérito que estudariam as eleições litigiosas. É inútil ressaltar que a poderosa "Comissão dos Cinco", a serviço do governo (pois o presidente da última sessão legislativa era geralmente elemento de confiança do Presidente da República), depurava os candidatos oposicionistas, isto é, somente reconhecia os candidatos que as comissões executivas dos partidos estaduais situacionistas indicavam. Face a este reconhecimento automático dos candidatos dos governos locais, onde prevalecia a "maior presunção de legitimidade",27 27 Carta de Campos Sales a Rodrigues Alves. In: Silveira Peixoto. A tormenta que Prudente de Morais venceu. Curitiba, Guaíra, 1942. p. 331. o Governo federal obtinha irrestrito apoio dos governos estaduais e de suas bancadas federais. Configurava-se um sistema de reciprocidade ao nível estadual/federal, correspondente, de forma ampliada, ao nível clientelismo/coronéis e coronéis oligarquias estaduais. Era a "política dos governadores", fundada nos serviços mutuamente prestados. Enquanto a autonomia estadual era garantida pela União, com o controle das nomeações federais entregue às oligarquias, os estados asseguravam ao Presidente da República ampla maioria parlamentar, cega adesão a seus projetos, total apoio em suas medidas.

Contudo, é interessante notar que este compromisso não se estendia às pequenas unidades da federação: os grandes estados, sob a hegemonia de Minas e São Paulo, controlavam todo o processo político. O sistema tinha por centro de gravidade os estados de peso econômico e demográfico maior, expresso no domínio eleitoral e através das possibilidades de intervenção federal (art. 6.º da Constituição) nos outros estados.

Naturalmente, a vida representativa estagnou. A vida pública converteu-se num jogo escuso de iniciados. As faculdades para a participação política eram outorgadas pelo pequeno grupo que detinha as alavancas de comando. Assim, a serviço do Catete, isto é, do eixo Minas-São Paulo ("política do café com leite"), subordinavam-se passivamente as situações estaduais. O que temos de fato na república das oligarquias é a "centralização dos grandes estados". O presidencialismo assumiu as feições dadas pelo cadinho da "política dos governadores".

Ademais, à degola sistemática das oposições, às arbitrariedades, justapos-se o desequilíbrio dos três poderes federais, com o predomínio do Executivo. Também, o largo poder do Chefe de Governo permitiu-lhe contínua interferência no campo estadual, através de inúmeras intervenções. De fato, a soberania cabia apenas à União, mandatária da vontade paulista e mineira, isto é, dos interesses cafeeiros.

Por isso, percebemos liames orgânicos entre formas jurídicas e organização política, entre aparato legal e funcionamento efetivo. As garantias expressas para os cidadãos na Constituição e nas leis eleitorais são burladas, mutiladas por outros dispositivos inscritos nos próprios textos. O que se pode afirmar é que esses são ambíguos, contraditórios e pretensamente liberais. Mas esta definição chancelaria em última instância a idéia da montagem de um regime liberal-democrático no Brasil. Acreditamos que as dubiedades aparentes, as possibilidades de fraude, a indeterminação do art. 6.º da Constituição de 1891 (amplamente remodelado em 1926 com o alargamento total da esfera de ação do Governo federal nos estados), não são ocasionais, mas deliberadas: configuram um Estado Oligárquico, apenas encoberto por uma fraseologia democrática, concessão legitimadora ao nível nacional e internacional. Uma ditadura aberta sempre deflagra tensões e resistências; uma ditadura disfarçada por órgãos esvaziados de conteúdo e constituídos por um simulacro democrático, demanda muita argúcia para ser diagnosticada e denunciada. Além do mais, o Estado Oligárquico dispõe de meios de controle social que não permitem a veiculação, em profundidade, de desafios à ordem estabelecida. As próprias campanhas pró-voto secreto ou contra a advocacia administrativa agem dentro dos parâmetros do sistema, o revigoram e legitimam: propõem a dinamização do marco institucional, sua "modernização", sem afetar-lhe os alicerces. Oliveira Vianna não se insere exatamente neste caso, pois aponta para o abandono de mecanismos secularmente eficientes de controle social: os favores, as ameaças, as sanções econômicas e físicas, o esforço de persuasão (manipulação das informações), a "máscara democrática". Seu Estado Autoritário não tem a seiva do maquiavelismo das elites: é direto, inteiriço, sem apelo promocional.

O que confere direito de cidadania a uma política é sua prática: podemos negar às elites brasileiras capacidade de adaptação, de perpetuação? Houve uma continuidade de domínio traçada desde o Império até aqui; um entrelaçar de interesses com as grandes companhias estrangeiras; um compasso harmonioso com as Forças Armadas que operaram como braço regulador das mudanças de equilíbrio. Os quadros institucionais foram recompostos e atualizados para melhor alicerçar o poder oligárquico.

2.4 Acuidade perceptiva e/ou contribuição teórica substancial?

Oliveira Vianna não formulou previsões científicas, mas distinguiu-se por seu profetismo. Ao criticar os antecedentes da sociedade brasileira, denunciou as ambigüidades, falhas e contradições do seu presente: descreveu-as e julgou-as. Propôs a partir desta visão crítica um modelo de Estado que, a seu ver, se coadunava com a realidade social. Sua reflexão ancora na adesão a idéias, valores e crenças: é de inspiração ideológica, é uma ordem de pensamento de caráter metacientífico. Estabeleceu-se como inspirador duma orientação, procurando influir no curso da história. Não escapa ao voluntarismo político, embora afirme que seu papel é de quem desvenda os mecanismos íntimos do real para descobrir os caminhos da estrutura institucional correspondente; pois anuncia o futuro e não expõe suas possíveis vias, o leque do possível e do provável, mas a única opção que se lhe apresenta como viável. Não se preocupa em deslindar os diferentes fatores, condições e agentes que poderiam alterar o processo que ele julga haver apreendido. Indica tão-somente o sentido inelutável da história. Seu determinismo é finalista. Seu encaminhamento não relativiza as situações, parece operar a um nível a-histórico. Ademais, valoriza o futuro de forma otimista. Sem dúvida, Oliveira Vianna é um homem engajado, apela para juízos de valor, mas compromete-se perante a história. Suas indicações não foram desperdiçadas, pois sua voz ecoou nas elites militar, burocrática e tecnocrática. Razão pela qual somos tentados a acreditar que possuiu uma admirável intuição.

Mas, convenhamos, um projeto político é mais um diagnóstico do presente e de suas virtualidades do que um refazer do passado. O sentido coesivo - a consciência comunitária nacional que Oliveira Vianna não encontra - está inscrito nas articulações das estruturas dos interesses; por exemplo, no Exército, cuja existência é definida pela preservação da ordem nacional, de vez que as tentativas separatistas e/ou de forte autonomização das unidades federadas punham em xeque a sobrevivência da organização com o surgimento de corpos paralelos (Forças Públicas Estaduais). Aliás, a consolidação da República foi, antes de mais nada, uma empresa militar. Também, a constelação dos estados federados configura, em miniatura, o sistema capitalista global, como se fosse um sistema solar: partes interligadas pela força de gravidade do núcleo hegemônico (eixo São Paulo-Minas). De fato, o café integrou os vários brasis: a exploração da periferia foi fator de amálgama (as regiões satelitizadas forneciam mão-de-obra barata, pequenos mercados de consumo, divisas fortes através de suas exportações não cobertas por um correspondente fluxo de mercadorias importadas do estrangeiro). Ademais, a urbanização crescente do século XX alterou, a fundo, os padrões culturais delineados por Oliveira Vianna.

Concordamos que não se decreta a democracia, mas tampouco se têm genético-culturalmente "padrões democráticos"; a democracia é uma aprendizagem diária. As contingências históricas e a ação dos agentes determinam o projeto social a ser adotado. Nada é irreversível. O próprio "efeito-demonstração" é fator de perturbação das variáveis estabelecidas. Como então extrair dum passado de arbítrio e manipulação um "modelo adequado"? Alegando total saturação empírica e eternizando padrões autoritários.

A bem da verdade, Oliveira Vianna muito fez para demonstrar bem pouco: que as estruturas brasileiras reais se dispunham como na organização interna de uma empresa capitalista, isto é, em moldes antidemocráticos. Seu erro foi não perceber que as instituições correspondiam às exigências nacionais e internacionais: funcional e realmente autoritárias, superficialmente e para curiosos distanciados da cultura política brasileira, imitações euro-americanas. De outro modo, como justificar o desempenho dos políticos brasileiros, porta-vozes de seus interesses de grupo? A explicação aventada de quixotismo e xenofilia trilha mais os caminhos do panfleto do que da análise científica. O importante não é o que se diz, mas o que se faz. Oliveira Vianna espanta-se face às contradições freqüentes entre os dizeres dos homens públicos brasileiros e suas condutas efetivas, como se espanta face à duração do idealismo utópico e das instituições formalmente democráticas.28 28 idealismo... p. 59. Não há motivo: os políticos brasileiros nunca cogitaram de uma real participação das massas, só faziam apelo a seu aplauso; ao instalarem ilusões, instalavam comportamentos, legitimavam sua dominação. Nossos políticos foram os demiurgos da ideologia, no sentido marxista da "falsa consciência", lançando seu ópio às massas embevecidas. Seus "fracassos constitucionais" duraram 65 anos no Império e 39 anos na República Velha. A realização mais aproximada do modelo de Oliveira Vianna - o Estado Novo - durou apenas oito anos. Estaria ele em desacordo com a cultura política das nossas elites? Ou a fórmula anterior não estava ainda suficientemente desgastada?

Se houve crise de elites (crise de hegemonia) e conseqüente e clara passagem da autoridade para a elite institucional-militar, permitindo um revigoramento das formas de dominação, parece-nos mais viável situar o fato entre 1964 e 1968, e não entre 1930 e 1937.

3. O GOLPE SANEADOR E O ESTADO NOVO

Segundo Oliveira Vianna, a Carta de 37 instituiu uma República democrática e representativa, porém com poder maior atribuído ao Chefe de Estado em relação ao que lhe cabia nas constituições precedentes.29 29 Id. p. 117. Reagiu-se contra a preponderância da Câmara dos Deputados (o "parlamentarismo às avessas do Segundo Reinado" e a "política dos governadores" da Primeira República depõem contra esta crença). O órgão legislativo se havia tornado um óbice à eficiência da administração pública, pelo seu espírito faccioso, por sua esterilidade, por seu desinteresse pela coletividade.30 30 Ibid. p. 122. O esvaziamento do Legislativo, aliás, acompanha uma tendência verificada em todo o mundo. O próprio presidente dos EUA detém em suas mãos um poder de decisão já extraconstitucional. O Parlamento, cada vez mais, está sendo reduzido ao papel de caixa de ressonância. As funções do Estado têm-se ampliado fortemente, principalmente em virtude do fato de o Estado ter-se tornado investidor e produtor, não somente de serviços, mas de bens de produção. Passou de Estado-guardião para Estado-empresário. Assim, o Legislativo se vê reduzido à função de legitimação e não à de gerente, todas enfeixadas pelo Executivo. Ou, em outras palavras, chancela as iniciativas da presidência da República, funcionando como válvula de segurança para a liberação de tensões: aparentemente o debate é autorizado.

Mas, para Oliveira Vianna, a culpa maior do descrédito do Legislativo recai sobre os numerosos grupos políticos que perderam sua verdadeira significação política, isto é, deixaram de ser associações de interesse público para se transformarem em camarilhas organizadas para assaltar o Tesouro Nacional.31 31 Ibid. p. 122. Quais as exatas fronteiras entre o interesse nacional defendido pelos partidos e o estrito interesse partidário com sua seqüela de proveitos pessoais, suas pequenas ambições? Face a partidos de patronagem, partidos de comitês, os limites não são evidentes, dificultando a análise.

Para Oliveira Vianna a questão é clara, os interesses são demarcáveis: de campanário versus nacionais. Na Inglaterra e nos EUA os partidos políticos têm sempre um programa real e não formal a realizar. Fazem-se eco de interesses ou aspirações gerais.32 32 Ibid. p. 182. No Brasil, sempre foi o contrário: os partidos, nas palavras de Nabuco, não passavam "de cooperativas de empregos ou seguros contra a miséria".33 33 Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. Citado por Oliveira Vianna. In: Idealismo... p. 183. Estamos no terreno da mutualidade cujos objetivos não transcendem os interesses dos próprios membros. Somente em graves momentos políticos tornam-se "verdadeiras organizações de interesse público".34 34 Idealismo... p. 188-9. Aos partidos, portanto, não cabe a função representativa, pois não representam interesses coletivos. Esta função deve ser confiada às corporações econômicas, às corporações de cultura, às corporações religiosas e, especialmente, às associações de classe. Nada mais justo e lógico, pois, que se pusesse termo a esta ficção ridícula. E Oliveira Vianna aplaude a extinção dos partidos em 1937.35 35 Id. p. 191, 194-5.

Contudo, valeria notar que a experiência que se veio a fazer da representação classista, na vigência da Constituição de 1934, não chegou a ser animadora. Através dos sindicatos e organizações de classe, teve uma clara tendência governista. Atuou fundamentalmente no sentido de obter as boas graças do Executivo que corporificava realmente o Estado. As representações proletárias temiam a polícia, as outras temiam represálias econômicas e autoridades fiscais. Podemos então crer na coincidência dos interesses classistas e políticos? É pouco provável que se confundam sempre, e isto explica a necessidade de representações autônomas, classistas nos órgãos de classes, políticas nos corpos políticos.36 36 Barbosa Lima Sobrinho. Presença de Alberto Torres. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968. p. 364.

Oliveira Vianna ainda aponta a responsabilidade do regime de representação proporcional como motivo do fracasso dos partidos da década de 30. Condena sua multiplicação e seu fracionamento, retirando-lhes significado político.37 37 Idealismo... p. 122. Não fere a problemática da polarização ideológica e da aglutinação de massas efetivadas pela Ação Integralista Brasileira e pela Aliança Nacional Libertadora. Apenas indica que a Câmara dos Deputados, pós 34, havia-se transformado em centro de agitações estéreis, que irradiavam do Parlamento para a praça pública e para o seio das massas. De outra parte, as "máquinas" partidárias dos estados mais ricos haviam aumentado, acintosamente, suas milícias policiais, apetrechando-as com armamento pesado.38 38 Id. p. 123.

Esta situação questionava a soberania do Brasil, o prestígio do governo central, os interesses fundamentais da ordem pública e da integridade nacional. A ameaça radicava nos estados em iminência de secessão. Só um golpe de estado, enérgico, incisivo, seria capaz de cortar o mal pela raiz. O 10 de novembro veio salvar a nação.39 39 Ibid. p. 124.

A organização política assumiu novas feições, de acordo com o que as experiência pregressas estavam aconselhando.40 40 Ibid. p. 124. A nova política constitucional orientou-se pelo aumento do poder e da competência da União, pelo primado do Executivo federal em face dos outros poderes, federais e estaduais, pelo reconhecimento de novas fontes de opinião pública. Ficou definitivamente assentado o princípio da soberania da União: sua competência legislativa foi ampliada; seu direito de intervenção obteve maior campo de ação e maior eficiência; as organizações policiais estaduais foram declaradas reservas do Exército Brasileiro e subordinadas; os estados perderam o direito ao uso de bandeiras, escudos, armas e hinos, fortalecendo assim o papel dos símbolos nacionais como agentes de unificação moral dos grupos.41 41 Ibid. p. 128.

Destaca-se, ademais, a constituição do Conselho da Economia Nacional, de tipo corporativo e técnico, que poderia, mediante consulta plebiscitária, adquirir competência legislativa e se configurar como poder. Mas o elemento central da constituição outorgada continua sendo a figura do Presidente da República declarada "autoridade suprema do Estado". Desta sorte, não vigora mais o princípio do equilíbrio dos poderes estabelecido na Constituição de 91 (art. 15), nem o da separação dos seus órgãos, estabelecido na Constituição de 34 (art. 3.º). O Presidente passa a dirigir a política interna e externa, promove e orienta a política legislativa e superintende a administração nacional. É, pois, o foco do poder, sem preâmbulos, renovando a tradição imperial. Suas faculdades são excepcionais: é o chefe supremo das Forças Armadas; na defesa da ordem interna, fica liberto da dependência, em que estava nas constituições republicanas anteriores, da formalidade da autorização do Parlamento - cabe-lhe agora a competência privativa para decretar, de seu próprio, as providências que julgar necessárias à defesa da ordem pública e do regime. Pode ordenar a suspensão das garantias asseguradas pela Constituição e mesmo a detenção dos membros da Câmara dos Deputados ou do Conselho Federal (antigo Senado), sem ou antes da autorização destes dois órgãos. Recupera o antigo direito imperial de dissolver a Câmara, apelando para o pronunciamento das urnas para a aprovação de suas medidas. Desta maneira, o Chefe de Estado não precisa mais sujeitar-se a "negociar" com os grupos partidários: encarna os valores supremos da nacionalidade. Seus poderes, além do mais, são enormemente ampliados quanto à sua competência regulamentar propriamente dita (a lei, quando de iniciativa do Parlamento, limita-se a preceituar sobre a substância e os princípios da matéria legislada, cabendo a legislação complementar ao governo) e quanto à sua competência legislativa (edita decretos-lei, livremente, sobre a organização do governo e da administração federal, o comando supremo e a organização das Forças Armadas nos períodos de recesso do Parlamento ou por delegação expressa deste). Também lhe foi conferido o poder de controlar a atividade normativa ou regulamentar do Conselho da Economia Nacional: é o Presidente da República quem aprova o conteúdo das normas. O próprio direito de iniciativa dos projetos de lei cabe, em regra, ao Chefe do Governo e não ao Parlamento.42 42 Ibid. p. 128, 131-2, 135-6, 139.

Tendencialmente, o Conselho da Economia Nacional deveria assumir o lugar do Parlamento, cercado de sua constelação de instituições técnicas, estas e o Conselho exclusivamente constituídos pelos representantes das agremiações profissionais e das grandes categorias econômicas.

Esta é a única maneira de evitar o descompasso entre os interesses regionais e os interesses da coletividade nacional. Outrora, sob o regime da Constituição de 91, o Presidente da República - encarnando a nação - eliminava a influência avassaladora dos grupos estaduais fazendo câmaras suas, pela intervenção ostensiva nas eleições e no reconhecimento dos poderes. Era então o único meio de ressalvar os interesses maiores do poder federal.43 43 Ibid. p. 150-1. Na verdade, a simples investidura na presidência da República não infunde por encanto os valores da nacionalidade a homens de partidos estaduais, sustentados e legitimados por suas greis: assimilam-se os interesses do café com leite aos interesses nacionais, fazendo algumas concessões menores e funcionais para os demais. Numa configuração de dominação não é sempre esta a fórmula?

Mas, a Constituição de 34, instituindo a Justiça Eleitoral, confiando a magistrados a superintendência e o julgamento de todo o processo eleitoral, estreitara os limites de intervenção do Presidente da República. Oliveira Vianna considera que o Executivo nacional estava condenado à alternativa de submeter-se à vontade dos Executivos estaduais, apoiados por suas brigadas militarizadas, ou restaurar a soberania nacional, restaurando a força, o prestígio e a ascendência da autoridade central. Justifica-se assim, mais uma vez, o golpe brusco, oportuno e resoluto, de 37. Mas onde haurir esse poder? Na própria legitimidade do Presidente da República, encarnação da soberania nacional, porque é ele o único escolhido por um círculo eleitoral cujos limites coincidem com os do próprio território nacional. A singularidade do processo da investidura autoriza o Presidente, e somente ele, a exprimir o pensamento do País e agir em seu nome44 44 Ibid. p. 151-4. . É preciso, sem dúvida, fazer ressalvas: o Exército torna-se o único verdadeiro sustentáculo deste Estado unitário; os interesses dos centros dinâmicos do sistema econômico-social absorvem as atenções do Chefe de Estado.

Para Oliveira Vianna, o Presidente da República substitui as funções imperiais de representante supremo e corporificação viva do País. Nem um partido nacional, nem um círculo eleitoral único corrigiriam o inconveniente dos deputados serem delegados das oligarquias estaduais. O Presidente escapa a este destino.45 45 Ibid. p. 154.

Assim, a Constituição de 37 não pertence ao tipo dos governos ditatoriais, nem anti-democráticos, pois reza que o poder político emana do povo e o princípio de elegibilidade é mantido, porém indireto, e embora o Presidente nomeasse 1/3 dos membros do Conselho Federal (10 sobre 30; 20 são indicados pelas Assembléias Estaduais), e fosse eleito indiretamente pelo Conselho da Economia Nacional, pelo Parlamento e pelas câmaras municipais. De qualquer maneira, a eleição do Presidente da República emana de fontes populares. Ainda que armado de poderes excepcionais, ele não é um ditador46 46 Ibid. p. 159, 161. (em outras partes de sua obra, repetidamente, Oliveira Vianna define o Estado Novo como governo ditatorial).47 47 Problemas... p. 195, 214.

O processo eleitoral, por si só, define a equação da democracia48 48 Idealismo... p. 161. (Oliveira Vianna reiteradas vezes condenou este simplismo). Mas quem assegura a lisura das eleições, já que o problema é de liberdades civis? A Justiça Eleitoral. Contudo, isto não exclui as manipulações ao nível do segundo grau. Ademais, as ditaduras, quando lançam mão do expediente eleitoral, são sempre brindadas com esmagadoras maiorias, se não, a rigor, com unanimidades que não convencem ninguém. Mas Oliveira Vianna tem trunfos: o caráter democrático da "polaca" é dado pelo apelo direto à opinião pública - que será preciso organizar - através dos plebiscitos, promovidos nas ocasiões graves. Todavia, ressalva que não confia no processo plebiscitario e prefere um corpo eleitoral selecionado pelo censo alto e constituído pelos órgãos representativos das corporações profissionais e culturais.49 49 Id. p. 163.

A exemplo das demais constituições, a de 37 assegura todos os direitos e garantias fundamentais à pessoa humana e ao cidadão. Os únicos limites lhe são impostos pelo "bem público e as necessidades da defesa do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como pelas exigências da segurança da Nação e do Estado". (Art. 123.) Sobre a iniciativa individual: "A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir, no jogo das competições individuais, o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado". (Art. 135.)50 50 Ibid. p. 165-6.

Segundo Oliveira Vianna, o sentido da Constituição de 37 é o da democracia social ou, melhor, da democracia corporativa, sem embargos das concessões que nela se fazem ao plebiscito e ao sufrágio universal, instituições remanescentes da velha democracia liberal.51 51 Ibid. p. 216. Os princípios que consagrou e as instituições admitidas não o surpreenderam: por quase todos eles vinha se batendo na sua obra de publicista: pela instituição de um governo central poderoso; pela redução do papel do Parlamento, em favor da colaboração mais estrita das classes produtoras nos conselhos do governo e da generalização dos conselhos técnicos; pela organização corporativa da economia nacional; pela derrogação do princípio da separação dos poderes e pela conseqüente ampliação dos poderes legislativos do Executivo; pela descentralização autárquica como corretivo da descentralização territorial e federativa; pela eleição do Presidente da República por um corpo eleitoral especial, e não pelo sufrágio universal; pela sindicalização profissional como forma de organização das categorias produtoras e não como agente de luta de classes; pela reação contra os partidos políticos e, conseqüentemente, pela instituição e organização de novas fontes de opinião.52 52 Ibid. p. 171.

Por isso tudo, um paralelo se impõe pela atualidade das coordenadas delineadas. Excluindo a organização corporativa da economia nacional - nos dias de hoje substituída pela "internacionalização do mercado interno" e pela articulação direta das grandes organizações econômicas com os responsáveis pela política econômica governamental - o resto confere com o molde gerado pela redefinição política dos fins da década de 60.

4. O MODELO POLÍTICO PROPOSTO

A origem de todas as deficiências na organização política e constitucional está no plágio dos modelos exógenos: "fazer como os ingleses", no Império; "fazer como os americanos", na República. A eliminação dos governantes, dos "patifes" acusados de todos os males, é uma pressuposição falsa que não permitirá superar os descalabros e desatinos. Não será a oposição que se considera capaz de "salvar a pátria", criar "um grande movimento nacional", realizar em toda sua grandeza "as promessas do regime" que nos faça "sair disto", a panaceia. Isto nada mais é senão messianismo político sem sentido e "preconceito da superioridade cívica dos oposicionistas". Os erros da situação política do Brasil são conseqüências do rudimentarismo da cultura política do povo a quem cabe a responsabilidade da direção do País.53 53 Problemas... p. 29, 31, 38.

Três princípios se impõem como essenciais à integração definitiva da nacionalidade: o da unidade política; o da continuidade administrativa; o da supremacia da autoridade central. Esta última não se refere apenas ao Executivo, mas também ao Judiciário. O Poder Legislativo, na sua modalidade parlamentar, é de importância secundária. A fórmula seria então: um Poder Executivo forte; ao lado dele e contra ele um Poder Judiciário ainda mais forte.54 54 Id. p. 39.

Aqui está a divergência de fundo do modelo autoritário de Oliveira Vianna e de ambos os moldes de 37 e de 68. As manifestações atuais oriundas de importantes setores do Poder Judiciário, sujeito às pressões e coação potencial do Executivo, são atestados de que a exemplo de Oliveira Vianna - um jurista - a magistratura, sem se erguer propriamente contra o sistema revolucionário, pronuncia-se sobre o difícil exercício da Justiça. A independência dos agentes deste poder é necessária e essencial, já que a vitaliciedade e inamovibilidade foram suspensas por medida revolucionária. Com efeito, tornamse imprescindíveis à proteção das garantias individuais e dos direitos humanos. Oliveira Vianna estaria hoje todo presente nestas manifestações de inconformismo, oriundas "de dentro" do sistema.

No Império, o que obstou ao regime parlamentar tornar-se uma calamidade nacional foi apenas o "poder pessoal" do monarca. Para corrigir os males do parlamentarismo, foi preciso corrompê-lo, abrasileirando-o pela célebre máxima de Itaboraí, formulada em contraposição à do programa liberal: "o rei reina, governa e administra", o que equivalia, na prática, à negação do próprio regime parlamentar.55 55 Ibid. p. 51. Mas, cabe indagar, esta reelaboração, este rearranjo do regime, não é marca de originalidade e perspicácia política?

Procedimento idêntico é proposto por Oliveira Vianna para ser adotado no tocante ao presidencialismo, isto é, seria preciso deformá-lo, abrasileirá-lo. O Poder Judiciário, tornado exclusivamente federal, deveria ser investido de uma força e de uma autonomia estendidas até o máximo das suas possibilidades, ou então seria preciso criar um quarto poder, tal como o antigo Poder Moderador que, sendo vitalício, também teria o direito de iniciativa que o Poder Judiciário não tem.56 56 Ibid. p. 51, 54. Esta opção, em Oliveira Vianna, abre possibilidades de congruência de seu modelo com o do Movimento de 31 de Março, já que a organização militar, como corporação, poderia assumir este papel institucionalmente.

Oliveira Vianna tem muita simpatia pelo pensamento revisionista de Alberto Torres, que se funda nas seguintes premissas: o povo brasileiro não tem capacidade de direção política; o Brasil precisa realizar uma política orgânica e nacional e só o Estado pode ter sua iniciativa; a Constituição obsta a consecução desta política, donde a necessidade de reformá-la para capacitar o Estado a agir. Cinco pontos capitais devem ser feridos: o mandato do Presidente seria ampliado para oito anos (Oliveira Vianna acha necessário 10 anos); sua eleição passaria a ser feita por um corpo selecionado de eleitores; o Senado teria em seu seio uma representação classista; a União teria ampliada sua faculdade de intervenção nos estados; a criação do Poder Coordenador. Embora Torres mantenha o sufrágio universal, este é apenas um meio de revelação do sentimento popular, não um meio de direção governamental. O Estado governa para o povo e não pelo povo: "o corpo alimenta; não inspira nem dirige o cérebro".57 57 Ibid. p. 62-4. O Conselho Federal, entidade de poderes quase majestáticos, e os seus diversos representantes estaduais e municipais formam o Poder Coordenador. Este Conselho Federal é eleito pelos demais poderes federais e pelos próprios membros: 20 membros vitalícios, eleitos pelas duas Casas do Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal, que só perderiam o cargo por força de sentença judicial. Seus poderes versariam sobre: a autorização e intervenção do Presidente nas províncias; resolução de conflitos entre os poderes federais, ou entre estes e as autoridades provinciais e municipais; apuração das eleições para a presidência e verificação dos poderes dos senadores e deputados; questões de duplicatas de poderes, inconstitucionalidade das leis e atos dos vários poderes; fiscalização da organização do trabalho; feitura da política econômica; declaração da nulidade dos atos do governo; faculdade de cassar a autonomia das províncias e imposição da perda do cargo, por incapacidade administrativa, aos presidentes de províncias, embora eleitos por sufrágio popular.58 58 Barbosa Lima Sobrinho. op. cit. p. 361.

A maior parte destas idéias são encampadas por Oliveira Vianna que se solidariza com a falta de reverência à democracia demonstrada por Torres. Considera fútil a crença na soberania do povo e na "ciência difusa das maiorias populares"; ratifica a necessidade de um poder político vitalício, entre os poderes políticos temporários, para dar consistência e estabilidade à República; reitera seu postulado que o grande problema da liberdade no Brasil não é o da liberdade política, mas sim o da liberdade civil; advoga o culto do Estado e da autoridade, considerando a obediência ao Estado, fonte de força, grandeza e domínio.59 59 Problemas... p. 66, 76, 87, 119.

Com respeito aos partidos, será preciso reformulá-los. Preliminarmente, organizar as classes econômicas (as que produzem e contribuem) e desenvolver seu espírito de solidariedade e cooperação no campo econômico, porque este espírito se transmudaria com facilidade para o campo político.60 60 Id. p. 139-40. Desta sorte, o partido político constitui um epifenómeno das corporações. Confunde-se representação política com organização de interesses econômicos, propositadamente, pois no Brasil não se conquistam os votos: estes já são destinados de antemão ao candidato dos coronéis. A análise de Oliveira Vianna não diferencia o País, no tempo e no espaço. Suas variáveis são sempre as mesmas, suas categorias explicativas deduzidas de um mesmo quadro de referência.

Assim, a solução para o Brasil está na formação de Centros Industriais, Associações Comerciais, Sociedades Agrícolas, Sindicatos Agrícolas ou Comerciais, Cooperativas Rurais de qualquer tipo, enfim, na constituição de corporações capazes de polarizar a solidariedade e os interesses econômicos. Os canais de participação política seriam dados através dos Conselhos Técnicos, pois governar é um problema de direção técnica.61 61 Ibid. p. 165, 174.

Trata-se, portanto, de refundir o aparelho governamental, dando relevo ao aparato tecnocientífico. As elites político-partidárias demonstraram sua incapacidade técnica para realizar a obra da administração e do governo; seu papel deverá resumir-se a "fazer pressão" sobre organismos competentes. O ciclo dos parlamentos oniscientes está encerrado.62 62 Ibid. p. 177-8. Mas é possível, numa democracia, substituir a visão inclusiva das relações de forças, dos interesses, a sensibilidade para a apreensão do conjunto que é o dado primacial da condição do político, pela visão parcial, especializada, do técnico? Para Oliveira Vianna, a colaboração das classes profissionais organizadas, na fase técnica de elaboração dos projetos de lei, é suficiente. Posteriormente, será preciso obter a adesão do povo às leis:63 63 Ibid. p. 195, 198-9. a ação pedagógica do Estado se encarregará da tarefa. Há, sem dúvida, neste último ponto, um extraordinário paralelo a fazer com a atuação no âmbito da persuasão popular desenvolvida pelos últimos governos revolucionários.

A composição destes Conselhos Técnicos, cujas funções consultivas se desdobrariam em jurisdicionais e administrativas, seria de "competências", "especialistas", "técnicos", escolhidos por força da própria lei nas esferas da alta administração, nos centros de cultura especializada e principalmente no seio das associações de classe. "Práticos" e "entendidos", donos de um saber versado em detalhes práticos e particularidades regionais, devem ser consultados.64 64 Ibid. p. 208.

A presença estrutural destes Conselhos não se consubstanciaria apenas nas assessorias ministeriais, mas em autarquias com poderes legislativos, executivos e judiciários. Os Conselhos por sua vez procederiam a inquéritos (pesquisas) nos centros técnicos particulares, nos grupos de interesses organizados, nas associações de classes, antes de emitir qualquer parecer ou sugestão, pois estes deveriam constituir verdadeiros anteprojetos de lei ou de regulamento.65 65 Ibid. p. 220, 224.

Coroando esta estrutura tecnoburocrática, estaria a figura do Presidente da República, homem de visão panorâmica que apreende o conjunto e suas relações, desempenhando o papel antes atribuído aos políticos e estabelecendo as diretrizes gerais que ordenariam o País. Oliveira Vianna realmente profetizou os atuais encargos da presidência da República.

Com respeito à configuração da distribuição do poder ao nível nacional, Vianna preconiza a "desconcentração organizada", isto é, ao invés da descentralização federativa, os estados não teriam direitos privativos face à União e somente lhes seriam reconhecidos os direitos concedidos para o fim de melhor gestão dos interesses locais. Deste modo, o poder central subordinaria todos os organismos através de delegados especiais, cujas funções seriam reguladas segundo o tipo de estado e o tipo de município. Assim, ninguém terá direitos contra a nação, e a legitimidade do Estado, da classe ou do cidadão, será dada pela concordância com o interesse nacional.66 66 Ibid. p. 278-9.

Os estados que não tiverem os recursos mínimos para atender ao custeio dos serviços mais elementares da administração deverão ter sua regalia autonômica cassada pela União. (Este direito de intervenção federal foi estabelecido a partir da Constituição de 34, art. 9.º.)67 67 Ibid. p. 281.

Propõe Oliveira Vianna a constituição de um poder político vitalício, novo órgão da soberania nacional, o Conselho Nacional,, como instituição de controle e coordenação dos outros poderes e dos interesses gerais, dotado de funções deliberativas, consultivas e judiciárias. Seria composto de 15 a 21 membros, escolhidos entre personalidades eminentes nos vários domínios do conhecimento, especialmente nas ciências sociais. Sua eleição se realizaria através de um corpo selecionado de eleitores entre os membros do próprio Conselho, do Tribunal de Contas Federal, do Supremo Tribunal Federal, da Câmara Federal (20 delegados). Seriam membros natos do Conselho Nacional os ex-presidentes da República.68 68 Ibid. p. 281-2. A proposta constitui uma espécie de fonte para os atifais projetos de formação de um Conselho Constitucional.

A Câmara Federal seria mantida apenas como "expressão simbólica da liberdade política", extinguindo-se o Senado.69 69 Ibid. p. 285. O papel do Congresso Nacional após a reordenação política revolucionária nada deixa a desejar ao projeto de Oliveira Vianna. Seriam estabelecidas (como o foram hoje) prescrições sobre as incompatibilidades entre os que exercem cargos de eleição ou de nomeação, de maneira a coibir o revezamento dos postos eletivos e os males do nepotismo.

A eleição do Presidente da República se faria por um corpo de eleitores constituído pelo próprio Presidente e seus ministros de Estado, pela Câmara Federal, pelo Conselho Nacional, pelo Supremo Tribunal Federal, pelos Tribunais Regionais, pelos Tribunais de Contas federal e estaduais, pelos presidentes de estado e seus secretários de estado e por membros das Assembléias Legislativas.70 70 Ibid. p. 290. O atual colégio eleitoral é mais restrito, pois é composto apenas dos membros do Congresso Nacional e de delegados das Assembléias Legislativas dos estados (delegação mínima de quatro membros).

A magistratura unificada, assim como o processo, a justiça gratuita e o juiz acessível, seriam garantias para a liberdade civil dos cidadãos.71 71 Ibid. p. 290, 292. Oliveira Vianna elude o problema da dominação de classe na sua idealização de uma magistratura isenta. Aliás, a idéia conecta-se com o pressuposto cientificista que orienta a crença na competência técnica substitutiva da competência político-parlamentar.

As eleições sofreriam a intervenção soberana da magistratura em todas ás fases do processo eleitoral; haveria uma legislação eleitoral única, de caráter federal; o censo alto seria o critério de capacidade eleitoral para as eleições federais, e o sufrágio generalizado o seria para os Conselhos Municipais; distinguir-se-ia entre a capacidade de eleger a capacidade de ser eleito, a partir do estabelecimento de condições rigorosas de cultura e idoneidade moral.72 72 Ibid. p. 293.

A revogação dos mandatos para os representantes do Poder Legislativo seria aceita e recomendada. A autonomia municipal deveria desaparecer, com a função executiva reservada a um mandatário do poder estadual.73 73 Ibid. p. 294. Ambas as tendências são atuais.

Em suma, os problemas da organização política brasileira poderiam ser resumidos através de alguns conceitos-chave: autoridade e disciplina, concentração e unidade. É de um Estado forte que o Brasil precisa. Mas não nos moldes totalitários do partido único, pois não há aqui atmosfera para a constituição de uma mística viva e orgânica, mística que justificaria o monopólio dos cargos públicos, conferido aos membros deste partido. A fórmula brasileira demanda o Presidente único, isto é, o Presidente que não divide com ninguém a sua autoridade, em quem ninguém manda; o Presidente soberano, exercendo seu poder em nome do País e somente perante ele responsável. Seria uma autoridade não dependente dos Grandes Eleitores dos estados, como na Primeira República, nem subordinada aos partidos, pois justamente colocada acima deles. A nação será dirigida do alto, num sentido totalitário, com o Presidente agindo como uma força de agregação e unificação. Assim se atenderia ao desejo íntimo do povo que anseia pela "apartidarização" dos executivos, corporificando o mote de Feijó: "o governo não conhece partidos". Getúlio Vargas já havia conseguido isto ao eliminar os intermediários entre ele e o povo. Os únicos vínculos entre a sociedade o Estado seriam as corporações, fontes legítimas da opinião pública. Fundar-se-ia uma "democracia profissional", assentada em grupos profissionais - homogeneamente organizados - ao invés dos partidos políticos - grupos heterogeneamente organizados.74 74 Idealismo... p. 202, 208-9, 211-4. Voltaremos assim às origens: à consciência coletiva, comunitária; à solidariedade mecânica de Durkheim. O governo é uma função de elite e das elites; cabe portanto às elites elegerem os agentes supremos do governo.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Oliveira Vianna inspirou-se no paradigma anglo-saxão e bonapartista, e o reelaborou com subsídios corporativistas. Seu projeto político tem grandeza e originalidade, mas parte da premissa do fracasso das tentativas de organização ao nível do Estado. Teria isto procedência? Se a prática política é o aferidor da adequação do modelo, como considerar fracassada uma organização capaz de rearranjar-se sem abalos estruturais? Mudanças políticas no Brasil houve, e muitas, mas de equilíbrio, ou seja, modificações em certas partes do sistema, sem implicar sua transformação: as tensões foram constantemente dissolvidas através dos ajustamentos, das adaptações sucessivas. Três momentos, três mudanças estruturais contudo se destacam: a passagem do antigo sistema colonial português à órbita de dominação econômica inglesa (independência política); o Estado Novo; o ordenamento político-institucional dos anos 60. É curioso notar, porém, que, embora resultem duma acumulação de tensões, embora afetem a natureza do sistema inteiro, não foram rupturas sangrentas, não foram negações do passado em nome dum futuro imprevisível, foram de um "radicalismo conservador" (se nos for permitida esta insólita junção de conceitos): foram revoluções políticas, não sociais. Donde uma capacidade ímpar de superar os escolhos por parte das elites, uma capacidade adaptativa prestes a abdicar do poder desde que se mantenham os privilégios e a estrutura de apropriação do excedente econômico: D. Pedro I confiscou a independência em seu proveito, prendendo e exilando toda a liderança brasileira; tornou-se sujeito da história contra seus próprios agenciadores; foi acuado e levado a renunciar ao poder depois de principalmente haver pretendido atentar contra a estrutura de produção (promessa aos ingleses da extinção do tráfico negreiro); Vargas foi apresentado, depois do Plano Cohen, como o único ser vivente capaz de obstar o caos; as Forças Armadas, nos conturbados anos terminais da década passada, se dispuseram a salvaguardar os valores superiores da nacionalidade face à ameaça dos contestatarios esquerdistas. Os acontecimentos foram recebidos com naturalidade e muito leve espanto: a extirpação do abscesso produziu a vertigem do alívio.

No Brasil, o poder central nunca foi fraco, nem o domínio oligárquico sofreu uma solução de continuidade. A participação política do povo foi vedada, efetiva e legalmente, ou, pelo menos, manipulada e desvirtuada. O governo sempre foi elitista e os interesses dominantes foram sistematicamente confundidos com os interesses coletivos. Não houve artificialismo das instituições, pois elas sempre corresponderam às exigências nacionais e internacionais. Assim, a indagação a ser feita não é por que o Brasil fracassou na sua organização política, mas como o Brasil pode enfrentar, sem sobressaltos de importância, as necessidades de adequação às conjunturas internacionais (vínculos de dependência) e aos novos modelos de desenvolvimento. Presidiu o processo de mudança uma ideologia conservadora, isto é, uma ideologia que apoia o status quo mas que aceita, quando absolutamente imprescindíveis, mudanças de equilíbrio. A existência, no passado brasileiro, da democracia liberal, não é questão fechada e a propalada dicotomia entre aparato legal/ institucional e formação econômico-social revela mais da aventura ensaística do que da observação criteriosa. Em outros termos, o aparente paradoxo e/ou a ambigüidade congênita se resolve ao nível do poder: oligarquizado ontem, oligarquizado hoje.

Ao invés de acreditarmos nos transplantes institucionais de modelos exógenos, não valeria talvez investigar se a absorção e reestruturação das formas organizacionais alheias correspondiam a uma modalidade nova de legitimação, um modo de manipulação e de dominação mais condizente com a realidade social? Não podemos esquecer que o Brasil, como área periférica, sofre o impacto das grandes mudanças que perpassam os núcleos hegemônicos do sistema capitalista. Em seu trato com as nações compradoras, o Brasil está à mercê das flutuações econômicas e ideológicas; vê-se compelido a uma certa "atualização funcional", embora precise preservar suas formas peculiares coadunadas com a sua especificidade. Tanto assim que, excluídas as fórmulas declamatórias, porque universalistas, os mecanismos verdadeiros de decisão prescindiam de tais preâmbulos.

Desta sorte, não houve crise de representatividade, ao nível das disposições legais, pois as elites se auto-representavam e quando muito emergiam como fruto da manipulação eleitoral. E longe de acreditarmos nesta, como decorrência da inadequação do modelo político às exigências do "país real", preferimos evidenciar através dos próprios sistemas eleitorais suas implicações necessárias de fraude. Com efeito, anômalo no Brasil é o sistema que não mantém o simulacro eleitoral que opera como lenitivo, ou elemento de suavização das contradições, ou ainda fator de neutralização das tensões. O exemplo do Estado Novo, gerando insurportáveis resistências, é instrutivo; a própria prática revolucionária atual soube tirar dele perfeitos ensinamentos. A "legitimidade eleitoral" constituiu-se como pedra angular da mitologia brasileira contemporânea.

Assim também, o artificialismo não está na criação dos partidos, como apontava Oliveira Vianna, mas na sua supressão. A preocupação, realmente pertinente, está em saber se podem transformar-se em veículos para o poder, ou se são sustentáculos do sistema, ou se são meras "agências eleitorais", ou se, finalmente, são suportados pelo próprio Estado como forma de mitificação. Pois o mito da liberal-democracia não foi tão operante que convenceu gerações de juristas de profundo saber e teóricos de envergadura? Oliveira Vianna, ao denunciar a "falsa consciência" das elites, enredou-se na na reificação da ideologia, atribuiu-lhe uma existência independente dos seus criadores. O diagnóstico, porém, é menos valioso que o resultado profético da obra: à sua luz, o processo político atual se Uumina, ganha contornos agudos; Oliveira Vianna foi um notável precursor, o teórico de um Estado tecnoburocrático, controlado pelas Forças Armadas.

  • 1 Oliveira Vianna, Francisco José de. Problemas de politica objetiva. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1947. p. 182, 225.
  • 2 Oliveira Vianna, Francisco José de. O idealismo da constituição. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 149.
  • 3 Oliveira Vianna, Francisco José de. Instituições politicas brasileiras. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1955. p. 97-9, 120-2.
  • 5 Rocher, Guy. Sociologia geral. Lisboa, Editorial Presença, 1971. v. 4, p. 204-11.
  • 6 Gurvitch, Georges. As classes sociais. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1970. p. 56-7.
  • 8 Oliveira Vianna. Idealismo... prefácio e p. 7-112.
  • 14 Oliveira Vianna. Instituições... p. 379-83, 391-2, 398-400.
  • 15 Oliveira Vianna. Idealismo... p. 99-100 e Instituiç
  • ões... p. 340-2, 358.
  • 16 Oliveira Vianna. Instituições... p. 380.
  • 19Idealismo.., prefácio.
  • 21Idealismo... p. 39, 57-9.
  • 22 Campanhole, Adriano & Campanhole, Hilton Lobo. Todas as constituições do Brasil. São Paulo, Editora Atlas, 1971.
  • 23 Carvalho, Delgado de. Organização social e política brasileira. Rio de Janeiro, Distribuidora Record, 1969. p. 257-8.
  • 24 Campos Sales. Manifestos e mensagens, 1898-1902. Discurso de 31 de outubro de 1897. Rio de Janeiro, Nacional, 1902. p. 11.
  • 26 Campos Sales. Da propaganda à presidência. São Paulo, 1908. p. 244.
  • 28idealismo.. p. 59.
  • 33 Nabuco, Joaquim. O abolicionismo.
  • Citado por Oliveira Vianna. In: Idealismo... p. 183.
  • 34 Idealismo... p. 188-9.
  • 36 Barbosa Lima Sobrinho. Presença de Alberto Torres. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968. p. 364.
  • 37Idealismo... p. 122.
  • 47 Problemas... p. 195, 214.
  • 48 Idealismo... p. 161.
  • 53 Problemas.. p. 29, 31, 38.
  • 59 Problemas... p. 66, 76, 87, 119.
  • 74 Idealismo... p. 202, 208-9, 211-4.
  • *
    Trabalho apresentado num Seminário de Teoria Política (curso de pós-graduação), dirigido pelo Prof. Dr. Francisco C. Weffort, da Universidade de São Paulo, no segundo semestre de 1972.
  • 1
    Oliveira Vianna, Francisco José de.
    Problemas de politica objetiva. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1947. p. 182, 225.
  • 2
    Oliveira Vianna, Francisco José de. O
    idealismo da constituição. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1939, p. 149.
  • 3
    Oliveira Vianna, Francisco José de.
    Instituições politicas brasileiras. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1955. p. 97-9, 120-2.
    4 Ibid., p. 53-63.
  • 5
    Rocher, Guy.
    Sociologia geral. Lisboa, Editorial Presença, 1971. v. 4, p. 204-11.
  • 6
    Gurvitch, Georges.
    As classes sociais. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1970. p. 56-7.
  • 7
    id. ibid. p. 60.
  • 8
    Oliveira Vianna.
    Idealismo... prefácio e p. 7-112.
  • 9
    Id. p. XII.
  • 10
    Ibid. p. 11.
  • 11
    Ibid. p. 309, citando Engenieros.
  • 12
    Ibid. p. 311, 314.
  • 13
    Ibid. p. 18-9 e
    Instituições... p. 394-5.
  • 14
    Oliveira Vianna.
    Instituições... p. 379-83, 391-2, 398-400.
  • 15
    Oliveira Vianna.
    Idealismo... p. 99-100 e
    Instituiç ões... p. 340-2, 358.
  • 16
    Oliveira Vianna.
    Instituições... p. 380.
  • 17
    Sorokin, Pitirin A. O que é uma classe social? In:
    Estrutura de classes e estratificação social. Organização de A. R. Bertelli, M.G.S. Palmeira e O.G.C.A. Velho. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1969. p. 77-8.
  • 18
    Stavenhagen, Rodolfo. Estratificação social e estrutura de classes. In:
    Estrutura de classes... p. 133-4.
  • 19
    Idealismo.., prefácio.
  • 20
    Ibid. p. 48, 106 e
    Instituições... p. 343.
  • 21
    Idealismo... p. 39, 57-9.
  • 22
    Campanhole, Adriano & Campanhole, Hilton Lobo.
    Todas as constituições do Brasil. São Paulo, Editora Atlas, 1971.
  • 23
    Carvalho, Delgado de.
    Organização social e política brasileira. Rio de Janeiro, Distribuidora Record, 1969. p. 257-8.
  • 24
    Campos Sales.
    Manifestos e mensagens, 1898-1902. Discurso de 31 de outubro de 1897. Rio de Janeiro, Nacional, 1902. p. 11.
  • 25
    Id. p. 22.
  • 26
    Campos Sales.
    Da propaganda à presidência. São Paulo, 1908. p. 244.
  • 27
    Carta de Campos Sales a Rodrigues Alves. In: Silveira Peixoto.
    A tormenta que Prudente de Morais venceu. Curitiba, Guaíra, 1942. p. 331.
  • 28
    idealismo... p. 59.
  • 29
    Id. p. 117.
  • 30
    Ibid. p. 122.
  • 31
    Ibid. p. 122.
  • 32
    Ibid. p. 182.
  • 33
    Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. Citado por Oliveira Vianna. In:
    Idealismo... p. 183.
  • 34
    Idealismo... p. 188-9.
  • 35
    Id. p. 191, 194-5.
  • 36
    Barbosa Lima Sobrinho.
    Presença de Alberto Torres. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1968. p. 364.
  • 37
    Idealismo... p. 122.
  • 38
    Id. p. 123.
  • 39
    Ibid. p. 124.
  • 40
    Ibid. p. 124.
  • 41
    Ibid. p. 128.
  • 42
    Ibid. p. 128, 131-2, 135-6, 139.
  • 43
    Ibid. p. 150-1.
  • 44
    Ibid. p. 151-4.
  • 45
    Ibid. p. 154.
  • 46
    Ibid. p. 159, 161.
  • 47
    Problemas... p. 195, 214.
  • 48
    Idealismo... p. 161.
  • 49
    Id. p. 163.
  • 50
    Ibid. p. 165-6.
  • 51
    Ibid. p. 216.
  • 52
    Ibid. p. 171.
  • 53
    Problemas... p. 29, 31, 38.
  • 54
    Id. p. 39.
  • 55
    Ibid. p. 51.
  • 56
    Ibid. p. 51, 54.
  • 57
    Ibid. p. 62-4.
  • 58
    Barbosa Lima Sobrinho. op. cit. p. 361.
  • 59
    Problemas... p. 66, 76, 87, 119.
  • 60
    Id. p. 139-40.
  • 61
    Ibid. p. 165, 174.
  • 62
    Ibid. p. 177-8.
  • 63
    Ibid. p. 195, 198-9.
  • 64
    Ibid. p. 208.
  • 65
    Ibid. p. 220, 224.
  • 66
    Ibid. p. 278-9.
  • 67
    Ibid. p. 281.
  • 68
    Ibid. p. 281-2.
  • 69
    Ibid. p. 285.
  • 70
    Ibid. p. 290.
  • 71
    Ibid. p. 290, 292.
  • 72
    Ibid. p. 293.
  • 73
    Ibid. p. 294.
  • 74
    Idealismo... p. 202, 208-9, 211-4.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1973
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