Acessibilidade / Reportar erro

Carvalho, Célia Pezzolo de. Ensino noturno: realidade e ilusão

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Jaime Francisco Parreira Cordeiro

Bacharel em história pela Universidade de São Paulo (USP)

Carvalho, Célia Pezzolo de. Ensino noturno: realidade e ilusão. São Paulo, Cortez Autores Associados, 1984.112 p.

O livro é resultado de uma dissertação de mestrado apresentada à Universidade Federal de São Carlos. Através dele, a autora pretende contribuir para a solução dos problemas do ensino noturno, procurando beneficiar todas as pessoas envolvidas nesse tipo de ensino. Pretendo, aqui, tecer algumas considerações sobre o texto, reordenando algumas idéias da autora, de acordo com as questões despertas durante a leitura.

A metodologia escolhida foi a do estudo de caso. Através da análise de uma escola do interior de São paulo, a autora monta suas conclusões e suas generalizações. A análise baseia-se nas representações dos sujeitos do ensino noturno - alunos, professores e funcionários - fornecidas através de entrevistas, questionários e redações. A própria pesquisadora adverte quanto aos riscos dessa metodologia: o texto, ao fundamentar-se no senso comum, pode tornar-se repetitivo (isso de fato acontece, mas não compromete a análise).

A autora parte de uma preocupação com a realidade concreta do ensino noturno no Brasil à época da pesquisa (final da década de 70). Mas a situação descrita não parece ter-se alterado substancialmene; ao contrário, alguns problemas agravaram-se. Constata-se de início a evidência de que as escolas públicas estão programadas para funcionar no período diurno: o curso noturno é quase uma excrescência. Isso se confronta com outra evidência, a de que grande parte da população estudantil freqüenta os cursos noturnos, tentando "combinar" trabalho e estudo. Essa situação leva às grandes insatisfações nos cursos noturnos, relacionadas com o aproveitamento dos estudos, disciplina e condições gerais do ensino. Situadas essas insatisfações, esses problemas, Célia P. de Carvalho alerta para um ponto importante: as soluções não podem vir através de novas técnicas didáticas ou de providências administrativas. As propostas atuais, como a de transformação dos cursos noturnos em supletivos, ou a do Projeto Noturno, deliberadamente ignoram que as razões da existência dos cursos noturnos estão fora da escola; elas provêm da necessidade do trabalho infantil para a reprodução social das famílias das classes trabalhadoras. Segundo o texto, a associação entre trabalho e estudo noturno faz "parte da presente trajetória de vida da família das classes trabalhadoras" (p. 10).

Cumpre-se aqui destacar uma preocupação que, embora abordada, não é muito ressaltada na obra. Quando se fala nessa "presente trajetória" da vida dos trabalhadores, fica uma dúvida; o que vem primeiro, a necessidade do trabalho infantil, ou os cursos noturnos? Não se pode esquecer que a criação desses cursos apareceu, num primeiro momento, como reivindicação e conquista das classes trabalhadoras, que acreditaram na escolarização como mecanismo de ascensão social.

Não vou tratar aqui de expor as descrições da autora quanto à práticas e ao cotidiano escolar, já que isso implicaria na transcrição de longos trechos. Creio porém que o centro da discussão da obra está na contraposição que é feita entre a realidade encontrada (através da análise das representações de alunos, professores e funcionários sobre o ensino noturno) e as possibilidades de mudança dessa situação, entrevistas e propostas pela autora. A esse confronto eu dei o nome de escola reprodutora versus escola transformadora.

Escola reprodutora: pontos de partida e pontos de chegada

A conclusão final da obra é a de que "podemos supor que a escola está cumprindo seus objetivos, ou seja, mediando a reprodução do trabalhador que melhor se ajuste às relações capitalistas de produção" (p. 109:). Para chegar até aí, o livro parte dá crítica de uma certa bibliografia, especialmente francesa, da década de 70, que procura entendera escola como o mecanismo por excelência da reprodução das relações e desigualdades sociais. Baseando-se em Lautier e Tortajada, Célia de Carvalho assume uma postura menos pessimista: a escola não é o lugar da pura reprodução; ela tem espaços para resistências e superação. Pessoalmente, entendo que a escola não é nem mesmo o lugar fundamental dessa reprodução. Existem outras instituições, como a família, que cumprem bem melhor esse papel.

É inegável, porém, que a escola participa da reprodução das classes sociais e das discriminações correspondentes. A autora vai buscar entender como isso se dá através da análise das relações efetivas entre escola e processo produtivo. Essas relações se caracterizam pelo domínio do trabalho sobre todo o ritmo da vida do trabalhador-estudante. Tal domínio leva á grande dificuldde de combinar escola e trabalho.

A associação que a escola faz (e que o aluno introjeta) entre avaliação e poder, estudo e competência, leva a uma desqualificação do trabalho manual em relação ao trabalho intelectual. As técnicas e os saberes transmitidos na escola são radicalmente distintos das técnicas e dos saberes utilizados no contexto do trabalho produtivo. "O essencial na escola é a aprendizagem da disciplina, adquirida ao ficar horas no mesmo lugar, ouvindo as mesmas coisas ditas pelas mesmas pessoas, recebendo conteúdos desvinculados da experiência diária e determinados por uma autoridade hierarquicamente superior" (p. 70).

Essa rotina escolar prepara as pessoas para aprenderem no processo produtivo através da introjeção de atitudes disciplinadas e submissas. Prepara-as também para aceitar colocações inferiores na hierarquia social, através da associação entre melhor estudo e maior competência. Colabora dessa forma para a reprodução da força de trabalho, das discriminações sociais e das divisões de classes.

Escola transformadora: espaços possíveis

Este diagnóstico assustador pode levar o leitor a uma posição fatalista frente ao ensino noturno e, mais, frente a qualquer ensino institucionalizado. Mas, ao longo do texto, em várias passagens, é possível entrever momentos em que a autora aponta um possível caminho rumo a soluções viáveis.

Célia de Carvalho afirma que, para que a relaçlão entre trabalho e escola se modifique, é necessário reformular o conceito de trabalho que existe na nossa sociedade. E é claro que esse conceito só pode ser totalmente reformulado em outra sociedade (não no sentido geográfico; outra como alteridade histórica, como transformação dessa mesma sociedade). Mas, para que essa alteridade torne-se menos distante, ou menos inviável, é preciso que a escola e o professor trabalhem com o conhecimento adquirido no universo do processo produtivo, no sentido de propiciar a sua crítica e a sua reelaboração pelos estudantes. É preciso oferecer oportunidade "para a organização e sistematização dos elementos de interpretação da realidade que a vida cotidiana de trabalho permite, mas que não se dá espontaneamente" (p. 64)

Torna-se necessário trabalhar agora, dentro da escola, no sentido de refazer a relaçlão entre o processo produtivo e o ensino, entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento sistematizado que pretensamente se transmite. É preciso que professores e estudantes, nas práticas escolares cotidianas eftivas, percebam e repensem a sua função puramente disciplinadora. E parece que isso não é impossível, nem utópico (no mau sentido da palavra). Claro que requer novas práticas sociais dentro da escola, tanto em' relaçlão ao ensino, quanto em relação a todas as pessoas nele envolvidas. Implica sair da posição por vezes cômoda do professor-transmissor e tentar estabelecer ou propiciar uma nova relação das pessoas com o saber aprendido-ensinado.

Esta análise deixou de lado alguns aspectos interessantes do livro, principalmente a abordagem das representações que alunos, professores e funcionários fazem da prática escolar. Mas me parece que o grande mérito da obra é apontar que a melhor forma de tratar os problemas do ensino é tentar perceber como eles se manifestam efetivamente no dia-a-dia da escola. No campo do ensino, de pouco adiantam as grandes generalizações e as grandes receitas teóricas, que quase fatalmente se esquecem de que estão lidando com pessoas, que não têm comportamentos, nem repostas e nem situações históricas invariáveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 1986
Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rae@fgv.br