Acessibilidade / Reportar erro

Autogestão: alternativa socialista para o capitalismo

COMENTÁRIOS

Autogestão: alternativa socialista para o capitalismo

Antonio Kobaquim; Roberto Antonio Quintaes

1. Introdução

O que é bom para o socialismo seria bom para o capitalismo? Pelo menos em uma coisa alguns economistas modernos acham que sim: a autogestão. Modelo de administração empresarial desenvolvido na Iugoslávia c que não só foge ao centralismo burocrático-soviético como também o contesta, a autogestão - participação direta dos trabalhadores no comando da empresa - seria a fórmula adequada para se alcançar a democracia industrial.

Quando a intervenção estatal no setor privado, mesmo no sistema capitalista, tende a aumentar, cm razão da complexidade dos interesses coletivos a defender, o modelo iugoslavo surge para alguns como instrumento de manutenção do equilibrio democrático e de aperfeiçoamento político-económico. O que surpreende o professor norte-americano Robert. A. Dahl é que não se tenha pensado nessa solução há mais tempo.1 1 Robert A. Dahl é professor de ciências políticas da Universidade de Yale e autor dos seguintes livros: Modern politicai analysis, Congress and foreign policy, Pluralist Democracy in the United States: Conflict and consent e After the revolution?

Todo o poder aos trabalhadores, proclama o clássica slogan marxista, formulado numa época em que o mundo dividia-se entre o Bem e o Mal. O Bem era o sonhado internacionalismo proletário; o Mal, o capitalismo. Ou vice-versa, já que os dois lados proclamavam-sc representantes do Bem, na nova versão de guerra santa que marcou a infância e a adolescência da era industrial.

Jamais passou pela cabeça de Marx, Engels ou Lênin que a entrega do poder aos trabalhadores viesse a ser defendida, algum dia, não como instrumento dc construção do socialismo, mas como de aprimoramento do capitalismo. E muito menos devem ter imaginado que defensores da idéia pudessem temer exatamente a falta dc interesse dos trabalhadores pelo poder. Afinal dc contas - perguntam hoje esses defensores -. um operário qualificado dc uma grande indústria, com um razoável stattis de consumidor, adquirido individualmente e não como representante de uma classe, estaria disposto a assumir uma responsabilidade a mais, fora de sua especialização?

Robert A. Dahl, professor dc ciências politicas da Universidade de Yale, por exemplo, tem essa dúvida. Mesmo assim, não deixa de defender o princípio da autogestão das empresas, desenvolvido na Iugoslávia a partir dc 1950, como alternativa para o sistema administrativo vigente nos países capitalistas desenvolvidos.

Numa época Cm que a força das ideologias fica restrita quase que somente ao campo propagandístico, incapaz de evitar inclusive incoerências flagrantes no delineamento de áreas de influência politica, já não causa espanto a afirmativa de Dahl de que socialismo e capitalismo têm muita coisa em comum, sobretudo os erros. A União Soviética e os Estados Unidos, perseguindo por caminhos e conceitos diferentes uma democracia industrial, acabariam chegando a um mesmo tipo de distorção: modelos de organização empresarial em que o idealizado principio da participação democrática seria suplantado pelo de hierarquia.

No socialismo de modelo soviético sacramentou-se a burocracia; no capitalismo de modelo norte-americano, a gerência especializada. Em ambos os casos, prevaleceria sempre o princípio hierárquico, dando margem à formação de castas profissionais isolados dos elementos que participam diretamente da produção.

"A Iugoslávia é o único país do mundo onde se tem feito um esforço sério para transformar em realidade o velho sonho da democracia industrial" - diz Robert A. Dahl.2 2 Artigo Power to the worker?, publicado no The New York Review. Nov. 19. 1970. Os conselhos de trabalhadores, organizados dentro das empresas e instrumentos da política de autogestão, "parecem ter produzido não apenas uma economia relativamente descentralizada como também um aumento substancial de participação dos trabalhadores na orientação da indústria e do próprio trabalho, de um modo geral". E embora considere impossível a comparação dos níveis de produção iugoslavo e norte-americano, lembra que a implantação da autogestão na Iugoslávia foi seguida por um rápido aumento de produtividade.

Isso ocorreu dentro de um modelo de organização econômica muito mais compatível com um sistema de governo democrático, como extensão da participação política dos cidadãos ao campo empresarial, do que com um sistema de governo do tipo iugoslavo, de partido único. Não seria o caso de absorção do modelo?

2. As famílias tecnocráticas

Uma das dúvidas quanto à aplicabilidade de autogestão no sistema capitalista situa-se no profissionalismo a que chegou a administração de empresas dentro desse sistema. Foram-se os tempos em que um administrador vinculava sua vida à empresa em que trabalhava, orgulhando-se das promoções conquistava gradativamente. O novo executivo, altamente especializado, muda facilmente de emprego. Embora não seja menos dedicado ao êxito da empresa do que o velho tipo de administrador, esse êxito o interessa sobretudo à medida que o valoriza como profissional, que aumenta seu conceito no mercado de trabalho. Se a escolha desses profissionais obedece ao critério de eficiência, tanto poderiam ser contratados por um conselho de trabalhadores como por um conselho de acionistas.

De um ponto-de-vista técnico não haveria diferença. Mas, nos Estados Unidos, teóricos preocupados com o problema, como Richard Barber,3 3 Autor do livro The American corporation: Its power, Its money, Its politics. Dutton. 1970. já assinalam a inquietação trazida pelos poderes hoje em mãos dessas "famílias de tecnocratas", que se comportam exclusivamente como profissionais, embora manobrem interesses legítimos de pessoas mais ligadas à empresa, como os trabalhadores. Quem os controlaria, quem disciplinaria seu tecnicismo em princípio ligado apenas à produtividade? Barber não dá a resposta, que Dahl considera "muito óbvia" os conselhos de trabalhadores, atualmente uma solução que só poderia ser ignorada num "país cego, ilogicamente vinculado à concepção ortodoxa de empresas privadas, das quais os acionistas seriam donos".

3. Resistência dos trabalhadores

Para Dahl, o grande entrave à implantação da autogestão nos Estados Unidos talvez fosse uma possível resistência dos próprios trabalhadores à participação nos conselhos. "Embora sentimentalistas da esquerda possam considerar a idéia repugnante a seus estômagos, trabalhadores e sindicatos podem ser as grandes barreiras a qualquer reconstrução do sistema empresarial neste país".

Os trabalhadores qualificados norte-americanos e de outros países desenvolvidos integram hoje a chamada sociedade afluente, com aspirações voltadas principalmente para o consumo. Deste modo, o individualismo, o interesse apenas na família, predominaria sobre a "consciência de classe". Essa tendência deixaria pouco campo para aspirações de participação efetiva no comando das empresas. O espírito de classe, embora funcione durante os acordos trabalhistas ou nas greves por melhores salários ou melhores condições de trabalho, não é movido por qualquer desejo de mudar a estrutura do poder dentro da empresa.

A esse desinteresse talvez se some a oposição de líderes sindicalistas, que poderiam ver na autogestão uma ameaça à sua influência.

Dahl acredita que a idéia da autogestão venha a ter maiores defensores não camadas sociais que "a esquerda convencional há tanto tempo corteja", e sim entre funcionários administrativos, técnicos e até mesmo entre os executivos. "Se um número significativo de empregados, sejam operários ou pessoal de administração, descobrir que a participação nos assuntos da empresa contribui para reforçar sua própria noção de qualificação individual e lhes fornece o controle sobre parte significativa de sua vida diária, o descaso e a indiferença diante da participação poderá transformar-se em interesse e comprometimento".4 4 Artigo Power to the workers?

4. Os grupos de interesse

Mas Dahl reconhece que a existência de uma empresa vai muito além do que diz respeito apenas a acionistas e empregados. Envolve consumidores e outras pessoas ocasionalmente afetadas por decisões a respeito de aluguéis, locação de serviço, problemas de poluição, de segurança etc. Decisões tomadas na indústria automobilística têm, por exemplo, conseqüências óbvias fora de seu âmbito.

Como teriam as pessoas vulneráveis a decisões tomadas no âmbito de uma empresa particular a certeza de que seus interesses seriam tomados em consideração nessas decisões? Fazer do Estado o único defensor desses interesses, conservando a estrutura atual, na opinião de Dahl, levaria a uma espécie de socialismo burocrático. Afrouxar o controle sobre a atividade das empresas seria, em contrapartida, um liberalismo incompatível com a moderna vida comunitária. "Precisamente porque nos permite escapar a esse dilema é que a autogestão cresce como alternativa valiosa".

Isto não implicaria a ilusão de que os membros de um conselho de trabalhadores se transformassem, automaticamente, em defensores ardorosos da coletivididade. Mesmo assim, estariam identificados mais de perto com seus problemas e supririam o controle de poder público sobre a empresa.

À primeira vista pareceria lógico estender a representação no conselho das empresas não apenas aos empregados mas também a instituições e grupos interessados em seu adequado funcionamento social. O conselho diretor de uma empresa poderia ter lugar, por exemplo, para representantes dos consumidores e para delegados estatais. É o que Dahl denomina de grupo administrativo de interesses.

Na prática, ele não acredita na eficácia dessa solução, aparentemente mais democrática do que a autogestão. "Os representantes dos interesses envolvidos, de uma forma ou de outra seriam indicados pelo governo, por grupos organizados, por associações profissionais. Haveria o melindroso problema de se decidir sobre quais interesses deveriam ser representados e em que proporções, um problema que as organizações socialistas enfrentam há muito tempo, sem jamais terem encontrado, suponho, uma solução satisfatória".

O grupo administrativo de interesses seria um progresso em relação aos tipos atuais de organização, mas estaria longe de representar uma mudança estrutural capaz de reduzir a incapacidade de decisão de que ainda é vítima o trabalhador comum no âmbito da empresa.

Além disso, esses grupos não eliminariam a necessidade de controles governamentais sobre as empresas, numa época em que o capitalismo tem que adequar-se às necessidades sociais e a políticas econômicas globais, e não apenas a uma simples realidade de mercado.

Não há mais sistema econômico que conceda ao setor privado ilimitados poderes de fixar preços ou ilimitado acesso a fundos de investimentos. Reconhecida a necessidade de controle externo, per gunta Dahl, os interesses comunitários não estariam melhor representados nesse controle do que nos conselhos das empresas? Os grupos administrativos de interesses seriam espécies de redundâncias, ou tentativas de se alcançar um determinado resultado pelo caminho mais longo, mais difícil e mais incerto?

E o que contrabalançaria o controle estatal, num sentido de garantia democrática, seria justamente a autogestão. "Dentro das alternativas, somente a autogestão pode dar algo aproximado à autoridade genuinamente democrática no sistema empresarial americano. Nem o atual sistema, nem o socialismo burocrático, nem os grupos administrativos de interesse trazem consigo qualquer esperança verdadeira de reconciliação dos imperativos da organização econômica com a autoridade democrática".

5. Conselhos de trabalhadores: o que são? Como funcionam

A autogestão, como idéia e prática, é genuinamente iugoslava. Implantada a partir de 1950, quando a Iugoslávia libertou-se da esfera de influência soviética, o sistema de administração de empresas por seus próprios trabalhadores se solidificaria a ponto de transformar-se num "verdadeiro tabu nacional", como o considera o sociólogo suíço Albert Meister, que tem vários livros dedicados ao assunto.

Durante a década de 50 e primeira metade da seguinte, a autogestão obedecia ao controle externo de um plano de desenvolvimento nacional, cabendo aos trabalhadores a aplicação desse plano no âmbito das empresas. Com as reformas introduzidas a partir de 1965, a Iugoslávia aderiu a uma economia regida mais pelo mercado que pelo planejamento, o que implicou muito maior autonomia para as empresas. Essa autonomia é a base da autogestão em seu estágio atual. Teóricos dividem-se na apreciação dos benefícios ou prejuízos advindos com a reforma, mas mesmo alguns de seus defensores reconhecem uma crise na economia iugoslava em razão das medidas adotadas em 1965. "A reforma deu grande estímulo ao mercado, mas desarticulou a planificação, acentuando a inflação e facilitando a penetração capitalista" - diz Jean Rous, autor do livro Où va l'autogestion yougoslave? Entretanto, ele acha que, "se a autogestão passa por uma crise, onde seus aspectos positivos nivelam-se aos negativos, parece, entretanto, estar às vésperas de uma correção e de um novo salto à frente."

A autogestão, em sua fase atual, funciona assim:

O conjunto de empregados de uma empresa elege de dois em dois anos um conselho de trabalhadores, único órgão habilitado a tomar as grandes decisões de política empresarial, como aquelas sobre distribuição de lucros, plano de investimentos, comercialização etc.

Empregados de qualquer categoria podem candidatar-se às eleições do conselho de trabalhadores. Basta que seu nome seja apresentado por três outros empregados. Pelo menos teoricamente, nem os sindicatos nem o Partido Comunista têm o poder de indicar candidatos. O conselho de trabalhadores elege seu presidente, que tem mandato de dois anos.

Cabe ainda ao conselho de trabalhadores designar um comitê de administração, encarregado da execução da política empresarial. A escolha, com muita freqüência, recaí no escalão superior de diretores da empresa.

O diretor-geral é eleito por quatro anos (renováveis) por um colegiado composto de três membros do conselho de trabalhadores, dois membros da comuna (proprietária da empresa) e de um representante da República, ou seja, do Estado local, já que a Iugoslávia é uma federação de estados. O diretor-geral pode ser destituído pelo conselho de trabalhadores.

6. Um retrato de duas empresas iugoslavas

Em 1969, quando começaram a avolumar-se os debates sobre a validade ou não da autogestão, tendo em vista principalmente a reforma econômica iugoslava de quatro anos antes, o jornalista francês Jean Dru, especialista em economia e de formação marxista, passou várias semanas na Iugoslávia, para estudar objetivamente a situação. A parte mais importante de seu trabalho talvez seja a descrição do funcionamento de duas das maiores organizações industriais iugoslavas, um funcionamento que apresenta originalidades tanto para o mundo capitalista como para o comunista de modelo soviético.

Em resumo, narrou Jean Dru: "A Elektronska Industrija, com 18 mil funcionários, está instalada em Nis, na Sérvia. Fundada em 1950, contou de início com a assistência técnica da Philips e desenvolveu-se comprando patentes de fabricação européias e japonesas. Agrupa hoje 20 estabelecimentos. Em 1967 fabricou 280 mil televisores, 25% dos quais foram exportados. Embora o pessoal seja remunerado exclusivamente à base do número de peças fabricadas, os níveis de produção se apresentam muito mais baixos do que na França: mil pessoas produzem 10 milhões de tubos receptores por ano, quando na fabrica de Chartres, da Radiotechnique, o mesmo número de pessoas produz um pouco mais de 15 milhões.

"Em 1968, os lucros deveriam representar 37% dos investimentos, mas esses índices não podem ser comparados aos resultados obtidos pelas formas francesas, pois na Iugoslávia a remuneração do pessoal é computada como lucro. Em 1971, os investimentos deverão ser 50% maiores que em 1968.

"O conselho de trabalhadores compreende um conselho central e conselhos departamentais para cada unidade ou grupo de produção. Atualmente, o presidente do conselho central é um operário mecânico-eletricista, ex-deputado da República da Sérvia. Mas a maioria dos membros do conselho possui diploma universitário. Na verdade, o pessoal elege (por votação secreta) de preferência candidatos de qualificação técnica superior. Assim é que, entre os eleito, não há mais de 7% de pessoal não qualificado, ao mesmo tempo em que esse pessoal representa 67% do efetivo da organização.

"A Iskra, a maior empresa da Eslovênia, com 13.500 empregados, fabrica também material eletrônico e faz concorrência à Elektronska. Em 1967 fez investimentos um pouco superiores aos da Elektronska, com 32% de lucros, sendo 26,5% para remuneração do pessoal e 5% para reinvestimentos.

"O conselho central da Iskra é presidido por um engenheiro e compreende 70 membros. Também ali o pessoal técnico de nível superior e administrativamente qualificado tem muito maior representação do que os operários, embora compreendam apenas 5% do efetivo da empresa.

Os operários qualificados, embora representem 50% do pessoal, têm apenas um representante no conselho central. È sintomático constatar que os engenheiros e o pessoal administrativo são eleitos com um número muito maior de sufrágios do que os operários."

  • 2 Artigo Power to the worker?, publicado no The New York Review. Nov. 19. 1970.
  • 3 Autor do livro The American corporation: Its power, Its money, Its politics. Dutton. 1970.
  • 1
    Robert A. Dahl é professor de ciências políticas da Universidade de Yale e autor dos seguintes livros:
    Modern politicai analysis, Congress and foreign policy, Pluralist Democracy in the United States: Conflict and consent e After the revolution?
  • 2
    Artigo Power to the worker?, publicado no
    The New York Review. Nov. 19. 1970.
  • 3
    Autor do livro
    The American corporation: Its power, Its money, Its politics. Dutton. 1970.
  • 4
    Artigo Power to the workers?
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1972
    Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de S.Paulo Av 9 de Julho, 2029, 01313-902 S. Paulo - SP Brasil, Tel.: (55 11) 3799-7999, Fax: (55 11) 3799-7871 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rae@fgv.br