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O boato: comunicação patológica

ARTIGOS

O boato: comunicação patológica

Siegfried Hoyler

Gerente de Relações Industriais e Públicas da Alumínio do Brasil S.A. e Presidente da ABAPe - Associação Brasileira de Administradores de Pessoal

"... è an venticello, un'auretta assai gentile, che insensibile, sottile , leggermente, dolcemente, incomincia, incominicia a susurrar..." - Da ária La Callunnia de II Barbiere di Siviglia de ROSSINI.

Do vasto capítulo das comunicações, convém têrmos em mente, a fim de diagnosticá-las e, mais do que isso, a fim de evitá-las, as comunicações malsãs ou patológicas.

Dentre elas pontificam pela freqüência - e não raro pela gravidade das conseqüências - os boatos.

Entendemos como boato a notícia que, embora não corresponda à realidade, se apresenta de difícil comprovação e, além disso, de grande interêsse, o que determina sua intensa circulação entre as pessoas. GORDON W. ALLPORT, professor de Psicologia da Universidade de Harvard, inicia seu livro "The Psychology of Rumor" - do qual extraímos a maioria dos conceitos expostos neste artigo - afirmando: "Grande parte da conversação da sociedade é constituída de intercâmbio de boatos".

Em nossa conversa cotidiana recebemos e transmitimos vasta lista de boatos, nem sempre inofensivos. Chamaremos de boato ocioso aquêle que preenche nossos diálogos e cujo objeto não é outro senão trocar gentilezas com nossos amigos. Ao passar um boato ao amigo, não pretendemos fazer mais do que aquilo que fazemos num inocente "bom dia, que bela manhã não é verdade?"

Contudo, a prática social que nada expressa em particular salvo vagos sentimentos de amizade com o nosso interlocutor, que susbtitui um incômodo e embaraçoso silêncio, é tão somente uma das formas em que se processa a troca de boatos. Há muitos boatos que estão longe de ser ociosos: são até profundamente intencionais. Apontam fins determinados e servem a importantes objetivos emocionais. A natureza exata dêsses fins não o saberia dizer nem o transmissor nem o receptor do boato. Sabem tão somente que o boato lhes é interessante, lhes convém de alguma maneira. De forma até certo ponto misteriosa, parece acalmar-lhes uma incerteza intelectual e uma ansiedade pessoal.

Os boatos, portanto, variam muito entre si. Às vêzes, vemo-los preencherem com um pouco de tempêro uma conversa ociosa, outras desencadear torrentes de violência. Às vêzes seu âmbito é restrito, outras vêzes são milhões que ouvem e transmitem os boatos. Algumas vêzes o boato surge e fácilmente se desgasta, outras desafia o tempo, cristalizando-se em lendas imorredouras. Quer seja, porém, fugaz ou duradouro, limitado ou muito extenso, o fato é que o boato, como fenômeno básicamente social, existe na intimidade de qualquer cultura.

Os imperadores da antiga Roma reconheciam a importância dos boatos a ponto de nomear "delatores" cuja missão era misturar-se com a "gente da rua" e levar ao palácio imperial a voz do povo. As histórias do dia eram tidas como excelente barómetro dos sentimentos populares. A qualquer momento, os "delatores" podiam - sendo necessário - lançar uma contra-ofensiva de boatos para atender aos objetivos dos imperadores. Logo se vê que a guerra psicológica não é tão moderna assim!

O episódio do incêndio de Roma, no ano 64 de nossa era, proporciona-nos exemplo interessante. Segundo a análise que CHADWICK efetuou das provas históricas, a plebe admitiu e difundiu o boato de que NERO - soberano certamente não muito popular - se não havia iniciado o incêndio de Roma, havia pelo menos cometido a aberração bárbara de se deleitar com êle, compondo uma ode às chamas devoradoras. De nada valia a NERO o fato de que o boato fôsse infundado. Em defesa própria, êle lançou mão do recurso do contraboato, fazendo circular a notícia de que os cristãos, talvez ainda mais aborrecidos do que êle, haviam ateado fogo à cidade. Essa versão se mostrou, na realidade, ainda mais sintonizada com os preconceitos e temores correntes. Bem poderia ter sido dos aborrecidos cristãos um ato dessa natureza e, assim, voltou-se imediatamente contra essas vítimas expiatórias a fúria da plebe que esqueceu por um momento sua hostilidade em relação a NERO.

As situações de guerra apresentam condições ótimas para a disseminação de boatos. A natural reserva das autoridades em revelar planos táticos e estratégicos, a dúvida generalizada de que os números e fatos apresentados pela imprensa correspondam à realidade, o natural estado de excitação de tôda a população, a maior integração da população em vista de perigo iminente, a infiltração inimiga e muitos outros fatores, fazem das situações de guerra ocasiões propícias para a origem e o desenvolvimento de boatos.

Esquecidas as diferenças na arte bélica, as duas grandes guerras têm extrema semelhança do ponto de vista dos boatos. Os tipos de boatos que circularam na Guerra de 14 a 18 parecem ter permanecido apenas submersos, até que a situação de pânico e ansiedade do período de 39 a 45 voltou a trazê-los à superfície. Tomemos, por exemplo, o boato da língua e do sêlo postal, cujo conteúdo era mais ou menos o seguinte: um prisioneiro norte-americano - em campo de concentração alemão na Primeira Guerra, e em campo japonês na Segunda - enviou uma carta à família, que não continha nenhuma informação particular a não ser a de que fôsse guardado o sêlo do envelope. Ccmo o soldado jamais havia mostrado interêsse por filatelia, surpreendeu à família o estranho pedido, levando-a a investigar o assunto. Ao retirar cuidadosamente o sêlo, estava escrito no envelope, debaixo da estampilha, que o inimigo havia cortado a língua ao pobre homem. Êsse boato absurdo circulou em ambas as guerras, desconsiderando os fatos fortemente contraditórios de que as cartas dos prisioneiros de guerra não levavam sêlo e de que a extirpação da língua teria causado quase certamente, a morte ao soldado. Os boatos de que as tropas inimigas envenenavam os poços de água em suas retiradas ressurge em cada guerra, assim como as histórias de atrocidades cometidas sempre pelos inimigos, pois é claro que bárbaros são sempre os do outro lado, cruéis são sempre os inimigos que amputam braços às crianças e seios às mulheres.

Outra história típica de boato de guerra é a do cego da Rua Knesebeckstrasse. Certa noite, nessa rua residencial, com adjacências levemente bombardeadas, um cego tropeçou numa jovem que acabava de sair de seu escritório e permanecia detida pelos sinais de trânsito. Era homem de meia idade, bem trajado e de óculos escuros. Vestia um casaco e ia tateando o caminho com seu bastão. Tinha na outra mão uma carta. Núm braço levava o bracelete amarelo marcado com a pirâmide de bolas negras que todo cego ou surdo deve levar nas ruas da Alemanha. O homem se desculpou com a mulher por ter esbarrado nela. Ela não deu importância ao fato e perguntou-lhe se podia ser-lhe útil de alguma forma. Respondeu êle que, de fato, podia, e lhe entregou uma carta pedindo que lhe indicasse como fazer para chegar ao enderêço escrito no envelope. Como a carta estava dirigida a pessoa residente a várias quadras de distância, na mesma rua, e a mulher lho dissesse, suspirou o cego: "Ah, Deus! Tanto que andei hoje!" E concluiu: "Não poderia a senhora entregar a carta por mim?" Ela lhe respondeu que sim, que o faria com muito prazer, principalmente porque iria passar de qualquer forma por êsse enderêço. O cego lhe agradeceu muito, os dois se despediram e êle se afastou, tateando com o seu bastão, em direção oposta. A jovem havia andado cêrca de vinte metros, quando lhe ocorreu verificar se o cego seguia seu caminho sem dificuldades. Sim, seguia, e bem. Bem demais, pois êle caminhava a largos passos, com o bastão debaixo do braço. Sim, era êle mesmo, não podia ser outro. Em vez de entregar a carta, a mulher levou-a ao quartel de polícia e contou como havia chegado a seu poder. A polícia foi ao enderêço indicado na carta e encontrou ali dois homens e uma mulher, e também uma quantidade de carne que, inspecionada por peritos, verificou-se, posteriormente, ser humana. A carta dizia simplesmente: "Esta é a última que te mando hoje".

Essa história, como muitas outras, é pura fábula. Afirma ALLPORT que todos os alemães de Berlim que êle conheceu tinham-na ouvido, e que 95% dentre êles acreditaram nela. Freqüentemente, ainda, indivíduos que discutiram o caso com ALLPORT deram-lhe a entender, com extrema segurança, que conheciam pessoalmente a mulher que estêve a ponto de ser vendida a alguns marcos por quilo. Gordinha, porém, muito bonita, assim a descreviam alguns.

Durante algum tempo, prossegue ALLPORT, não havia berlinenses que não cressem na história do cego, por duas razões: em primeiro lugar, seria difícil imaginar-se algo inverossímil nos dias finais da Segunda Grande Guerra e naqueles que os sucederam imediatamente; e, segundo, muitos berlinenses de mais idade recordavam um precedente histórico: em 1925, FRITZ HAARMAN, de Hannover, segundo foi sobejamente conhecido em tôda Europa, foi executado por haver assassinado várias dezenas de rapazes e por haver vendido seus pernis ao público, confessando mesmo haver esquartejado e vendido muitas dezenas mais do que as mencionadas na instrução do processo, não estando certo se trinta ou quarenta. Dizem que quase tôda a população de Hannover se tornou vegetariana por vários anos após êsse fato. Essa história reviveu duas décadas mais tarde, na imaginação popular, na forma de intenso boato.

AS CAUSAS DOS BOATOS

Não são, porém, somente as situações de guerra as que fecundam o solo para a germinação de boatos. Êsses não respeitam nem mesmo o campo dos eruditos e cultos: mesmo a fria ciência paga tributo às suas deformações e falsificações, segundo procurou comprovar o Dr. G. SIMPSON, do Museu Norte-Americano de História Natural, em artigo intitulado "História de uma Notícia Científica", aparecido na revista "Science" em 1940: "Em 21 de agosto de 1937, o Museu Nacional dos Estados Unidos publicou um boletim de minha autoria, sob o título de "Fort Union de Crazy Mountain Field, Montana, e sua fauna mamífera", de caráter sumamente técnico. Essa publicação, de 287 páginas, descrevia a geologia e a paleontologia dos extratos médio e superior paleocenos da zona de Montana. Segundo antiga prática, a Administração do Museu entregou à imprensa um boletim sinóptico, para fins de divulgação científica. Era um compêndio correto e, ao mesmo tempo, de texto fácilmente compreensível. A quarta parte dessa versão tratava dos mais antigos primatas conhecidos, incluídos nas faunas descritas no boletim. Como no boletim original, destacava-se que êsses não se achavam em linha direta de ascendência nem com os modernos primatas, nem com o homem, presumindo-se que fossem, porém, representantes muito antigos do mesmo e vasto grupo de mamíferos. As publicações ressaltavam que não era eu o descobridor dêsses antigos primatas.

"Algum tempo depois, o Museu colecionou as versões do boletim publicadas por 93 diferentes periódicos. Verificou-se, então, que até aquêles que reimprimiram o boletim sem cortes nem condensações, cometeram deslizes e erros, dentre os quais a informação de que os fósseis em questão eram de 70 milhões de anos, o que era claramente um disparate. A "Associated Press?' utilizou o boletim do Museu como base para um artigo que, substancialmente alterado, foi publicado em cadeia por 34 periódicos. Sua tônica consistia na seguinte mensagem: 'O homem não descende do macaco; descende talvez de um animal de aproximadamente dez centímetros de comprimento, que habitava as copas das árvores e que se constituiu em remoto tataravô de todos os mamíferos que habitam hoje o globo terrestre'. Prosseguia o artigo insinuando que eu afirmara que o primeiro homem viveu talvez nos Estados Unidos, e não na Ásia. Os títulos eram curiosos e ate escandalosos."

A notícia original de SIMPSON, como aliás tôda a longa série de hipóteses evolucionistas, tinha de ser considerada naturalmente com muita reserva. Mas o sensacionalismo da imprensa popular criou nesse caso boatos de ampla divulgação para satisfação provável dos que fizeram do evolucionismo o seu credo e têm firmada no macaco a sua fé.

Os boatos são freqüentemente usados também como estratégia, nos muitos ramos da política, desde a interna de uma emprêsa, até a internacional : são boatos que reduzem o valor e o prestígio de outro grupo ou nação; são boatos que criam ameaças e propõem vinditas; são boatos que ridicularizam ou hostilizam, segundo o sabor malsão de seus urdidores.

Ainda recentemente, ouvíamos brilhante conferencista que citava, com pequena modificação, a tradicional história das "Indústrias Michelin" francesas, segundo a qual uma operária da emprêsa, traindo o baixo grau de moral do grupo de empregados teria dito : "Nasci na maternidade da Michelin; fui criada numa creche da Michelin; depois fui para o jardim de infância e para as escolas da Michelin. Conheci meu noivo num cinema da Michelin, casei-me na igreja da Michelin, e moro numa casa da Michelin. Hoje luto intensamente para não ser enterrada num cemitério da Michelin".

A pequena modificação dessa história, apresentada pela conferencista, era que, segundo a versão francesa, um operário americano das fábricas Pullmarm reproduzia exatamente o mesmo monólogo, acrescentando apenas, de acordo com o sabor picante francês, que um dia, depois da morte, o americano "temia ir parar num inferno Pullmann".

Muitos boatos surgem como conseqüência de frustrações. Determinada emprêsa possuía uma prática de administração de salários segundo a qual deveria haver aumento geral cada vez que o custo de vida se elevasse em x%. Êsse nível de x% havia já sido ultrapassado. A emprêsa não se julgava em condições de dar continuidade à sua prática. O grupo se sentia frustrado. Surge, então, um boato intensamente difundido de que os gerentes haviam aumentado seus próprios salários em prejuízo dos trabalhadores.

Outros boatos são causados pelo mêdo. Uma emprêsa estava empenhada num processo de racionalização. A produtividade, com o auxílio de algumas máquinas já adquiridas, seria elevada em 20% e, portanto, a mesma produção seria alcançada com menos 20% de mão-de-obra. Todos se sentiam inseguros e a tensão aumentava. O boato apareceu para definir a situação: haveria dispensa em massa. A companhia se apressou a fazer o que deveria ter feito há muito tempo. Comunicou que estava prevista uma grande expansão, que daria lugar não só aos 20% excedentes da mão-de-obra, mas a mais 30% adicionais a serem recrutados.

Outros boatos são causados por profissionais do boato. Não desconhecemos, por certo, a atuação dos profissionais ou práticos, criadores de mal-estar do operário. Existe uma minoria que se compraz, com rara mestria, em aproveitar-se de situações de emergência, criando boatos, frustrando o grupo, cultivando animosidades, urdindo greves e aproveitando-se teatralmente da liberdade que a democracia lhes outorga, com finalidades e interêsses próprios e inconfessáveis.

A INTENSIDADE DOS BOATOS

Voltando mais uma vez a ALLPORT, encontramos em seu livro exposição sobre as condições básicas necessárias para que o boato prenda a atenção das pessoas, ou, para usar a expressão corrente, "para que o boato corra": em primeiro lugar, o assunto deverá revestir-se de certa importância, tanto para aquêle que transmite o boato, como para aquêle que o escuta; e, segundo, os fatos reais deverão estar revestidos de certa ambigüidade. Essa ambigüidade poderá ser criada pela natureza contraditória dos fatos, pela desconfiança em relação às notícias, por tensões emocionais que tornem o indivíduo capaz de aceitar os fatos apresentados no noticiário oficial, mas, acima de tudo, pela ausência ou precariedade de notícias exatas. Daí afirmarmos que a circulação de boatos é um atestado de deficiência nas comunicações, um sintoma da má qualidade das comunicações.

ALLPORT e POSTMAN na obra citada chegaram a estabelecer uma lei que presidiria à intensidade de um boato. Assentaram assim a seguinte fórmula para medir a intensidade do boato:

i = a X b,

onde "i" representa a intensidade do boato, "a" representa a ambigüidade da notícia, que multiplica "b", a importância da notícia. A relação entre importância e ambigüidade não é, portanto, aditiva, mas multiplicativa, visto que com importância ou ambigüidade = 0, não haverá boato.

Segundo essa lei, por exemplo, não poderia esperar êxito em sua tarefa o cidadão brasileiro que se propusesse a transmitir boatos relativos aos preços dos camelos no Afeganistão, uma vez que o assunto careceria completamente de interêsse para êle, assim como para outros brasileiros, embora fôsse verdadeiramente ambíguo para nós, pela falta de notícias que temos a seu respeito. A ambigüidade, por si só, não é suficiente para lançar à circulação um boato e mantê-lo em atividade. O mesmo é válido para a importância: se alguém recebe uma herança e tem conhecimento de quanto monta, não dará crédito ao« boatos que a exagerem.

Na guerra, os militares de alta patente são, em geral, menos sensíveis aos boatos do que os simples recrutas, não porque os acontecimentos esperados lhes sejam menos importantes, mas porque, em geral, estão mais a par dos planos e estratégias do que êstes.

À luz dessa lei, voltemos ao incidente de Roma. Aceitando como certa a análise de CHADWICK , vamos encontrar em ação a dinâmica típica do boato: a origem do fogo se ignorava, donde a ambigüidade em torno do fato; o incêndio na vida da população citadina era de importância catastrófica. Alto grau de ambigüidade e alto grau de importância deram ao boato intensidade irresistível. O povo clamava tanto por uma explicação como pelo alívio de poder descarregar a culpa sobre alguém. A insatisfação pré-existente contra o tirânico governante sugeria a fórmula. Não obstante, logo o mêdo de seu poder e o hábito de prolongada obediência tornaram-no mais disposto a voltar sua vingança sobre vítima mais débil e certamente menos ofensiva, que era a jovem e desconhecida seita dos cristãos. Lançou-se, assim, sobre êles - como de resto sobre tôda a minoria indefesa, nos cambiantes períodos da história - o pêso da vingança da população frustrada e enfurecida.

O assunto nos parece de extrema atualidade, porque, numa civilização em mudança - e em mudança nada pacífica - a humanidade parece novamente vagar em busca de alguma minoria à qual possa atribuir todos os seus fracassos e vingar-se de todas as suas frustrações.

O episódio sugere outro ponto de interêsse. Embora tenha o boato relacionado com a culpa de NER O ficado rechaçado de momento, êle reapareceu posteriormente. A composição de uma ode musical às chamas de Roma se converteu em lenda histórica e mais tarde adquiriu fôrça de provérbio. Se êle o fêz ou não, em nada aumenta ou diminui o boato. Incisivo e metafóricamente certo, êle permanecerá ligado para sempre ao seu nome.

O boato mandou SÓCRATE S à morte, acusado de perverter os jovens de Atenas e incitá-los à rebelião. Durante a Idade Média, as guerras religiosas, as cruzadas, eram sustentadas recorrendo-se a relatos exagerados, a milagres, feitiçarias e pilhagens.

OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E OS BOATOS

A esta altura perguntaríamos preocupados: que porção da História deverá ser atribuída a reações de importantes grupos sociais a boatos correntes? Cremos que grande parte, visto que, até muito recentemente, a humanidade não possuía meios de comunicação muito mais avançados do que aquêles que chegavam pelas vias normais do boato.

CABRAL ou COLOMBO não possuíam meios de comunicação muito mais eficazes que os governantes da Trácia ou da Fenícia. Os diários, o telégrafo, o rádio e a televisão são invenções recentes. Antes de seu advento, o povo se via obrigado a depender das notícias de algum MARCO POLO que voltava da Ásia, ou das notícias transpiradas da corte, de algum VAZ DE CAMINHA que escrevia de terras distantes. Somente alguns estadistas e monarcas recebiam despachos escritos e selados, e mesmo as fontes dêsses despachos não estavam, necessariamente, imunes aos boatos.

Em nossos dias, existem modernas fontes de informação, como o correio, a imprensa, o telégrafo, o rádio, a televisão etc., que têm diminuído muito as distâncias e supostamente também nossa submissão ao boato. Já não é necessário que alguém viva ignorando o que acontece no mundo e poderíamos aventurar-nos a esperar que o curso da História se fundasse hoje mais em questões de fato, e menos em crenças, crendices e boatos. Contudo, essa conclusão seria precipitada. Os fatos objetivos, relativos a guerras, catástrofes, experiências, explorações etc., tornaram-se do conhecimento geral muito mais rápidamente do que em qualquer época pretérita; porém, se nossos horizontes se alargaram, as áreas de ambigüidade igualmente se estenderam.

Pensar que fatos como a renúncia de JÂNIO QUADROS, a invasão de Cuba, a Revolução da Hungria, o suicídio de GETÚLIO VARGAS, sem falar na vida privada dos atores e atrizes e em outros fatos políticos e sociais, sejam trazidos ao nosso conhecimento com perfeição, seria pecar por otimismo ingênuo, porque, se foi dilatado o teatro dos acontecimentos, e com êle o nosso interêsse, continua sendo a nossa comunicação inadequada e ambígua. Valemo-nos ainda do boato para estruturar o nosso - agora apenas muito mais vasto - ambiente. Ainda mais, apesar das modernas invenções, nossas necessidades emocionais e de conhecimento não se diferenciam das de nossos antepassados no sentido de lograr explicação coerente para os ainda insondáveis mistérios de nossa vida pessoal e, como êles, deixamo-nos guiar freqüentemente por lendas e boatos.

Na vida moral e religiosa acontece muitas vêzes o mesmo. O homem, afastado de convicções sérias e firmes quanto à sua História, seus objetivos de vida, seu passado e seu futuro, alijando-se de alicerce espiritual objetivo e externo, encontra em hipóteses mais ou menos espiritualistas, numa credulidade existencial mais ou menos sensacionalista, as distrações que lhe permitem apenas suportar o fardo de sua vida.

O BOATO NA EMPRÊSA

A vida empresária, pela intensidade dos contatos, pela proximidade dos fins que se propõem, pela igualdade de condições e dependência de planos e objetivos das pessoas, oferece igualmente campo fértil à proliferação de boatos, que, se em primeiro momento ocupa as mentes e parece uni-las em tôrno de um nôvo interêsse, logo em seguida cobra quase sempre o seu preço, o seu elevado preço, em desgaste do moral do grupo, indiscutivelmente o maior patrimônio da emprêsa.

Assim, também o campo empresarial paga o seu tributo - e não raro pouco leve - às conseqüências dos boatos. Não faz muito tempo, em São Paulo, numa emprêsa comercial e industrial teve lugar uma greve branca geraí de seu pessoal de escritório, após o almoço. Algumas horas de greve e tudo voltou ao normal. Mas era um precedente grave que merecia análise cuidadosa. A razão encontrada foi simples: a companhia havia admitido um novo controlador no mês de outubro. Muito bem intencionado, êle redigiu uma circular a tôda a companhia, solicitando gentilmente a colaboração de todos os empregados para uma campanha de redução dos custos de operação, que lhe pareciam muito altos. A situação da emprêsa era sólida, mas não brilhante, e todos deveriam colaborar em proveito geral, a fim de vencerem as dificuldades que se apresentavam. Chegava-se ao final do ano e o 13.º salário ainda não havia sido instituído por lei. Os empregados inferiram dessa circular ingênua uma segunda intenção da companhia, "maquiavélicamente engendrada contra seus empregados": não lhes pagar o abono de Natal. Assim, antes que qualquer segunda iniciativa viesse, êles deveriam defender os seus direitos, conquistados por tradição, ainda que através de greve. Surgiu o boato, então se fêz uma greve e assim aquela emprêsa perdeu alguns milhões de cruzeiros.

Em outra emprêsa, pagou-se a primeira parcela do 13.º salário a seus empregados em 1965, muito antes do prazo exigido por lei. Tal medida altruísta foi mal recebida pelos empregados porque, apesar do critério e cuidado na elaboração do comunicado, entendiam os empregados que tal medida visava a prejudicá-los, por não fazer essa primeira parcela parte de qualquer aumento salarial posterior.

OS MEIOS DE COMBATE AOS BOATOS

Cremos ter ilustrado de sobejo a freqüência e os perigos dos boatos na comunidade. Qual a relação, porém, dos boatos com um plano de comunicações, ou, em outras palavras, como comunicações eficientes poderão, se não evitar o aparecimento de boatos, reduzir ou minimizar sua intensidade? Essa é pergunta que nos propomos a responder em seguida.

ALLFORT , cuja experiência na Segunda Grande Guerra com os boatos foi realmente muito grande, sugeriu que uma campanha de publicidade contra o boato poderia empregar as seguintes linhas de ataque:

1.º) O boato não merece fé; é quase sempre falso; nenhuma pessoa sensata confiaria nêle;

2.º) O boato pode ser instrumento de propaganda inimiga;

3.º) O boato destrói a moral do povo; é antipático e vergonhoso difundi-lo;

4.º) A pessoa que espalha boatos é insensata, má e perigosa;

5.º) Difundir boatos é uma forma de descarregar em pessoas inocentes as próprias fraquezas.

Numa emprêsa os boatos podem ser reduzidos em freqüência e intensidade melhorando o moral do grupo. A melhora do moral não se compra com salários elevados, nem se mantém pela força do comando autoritário. O moral elevado de grupo representa uma conquista do grupo pelo respeito recebido e oferecido por todos os seus participantes aos demais membros do grupo. Isso não exclui o problema salarial e não elimina nem reduz a necessidade de disciplina, a hierarquia e a ordem. Mas um baixo moral de grupo pode coexistir mesmo com salários elevados e com autoridade hierárquica forte.

Dentre as medidas que podem ser sugeridas para a elevação do moral do grupo destacam-se as que combatem os boatos em suas raízes e não em suas conseqüências: tanto quanto possível, deve a administração evitar as frustrações individuais e coletivas; deve evitar as situações de insegurança e temor, por meio de plano adequado de comunicações, pois muitos boatos são causados pelo mêdo; e deve, finalmente, manter-se atenta aos focos de "profissionais do boato" para até mesmo eliminá-lo da emprêsa.

Somente assim poderá a emprêsa ver-se a salvo de convulsões que abalem as relações das pessoas no seu ambiente. Somente assim poderá o grupo trabalhar com tranqüilidade para cumprir os objetivos da organização.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 1966
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