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Desenvolvimento: um desafio social

ARTIGOS

Desenvolvimento: um desafio social

Raimar Richers

Professor-Adjunto do Departamento de Mercadologia da Escola de Administração de Emprêsas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas

1. Sôbre o Conceito do Desenvolvimento

Afirma o economista inglês, G. L. S. SHACKE: "A doutrina econômica perdeu a sua ingenuidade adolescente e sua força direta de convicção";1 1 SHACKLE, G. L. S. A Scheme of Economic Theory. Cambridge, Cambridge University Press, 1955, p. X. e, poderíamos acrescentar: graças a uma rigidez metodológica e conceitual que obstrui a imaginação. É o que se verifica ao menos com uma boa parte da teoria do desenvolvimento, que ainda orienta muitos dos países novos, sob o lema, por vezes exclusivo, que o crescimento de uma nação se dá através da formação de capital e que a medida par excellence do grau de desenvolvimento de um país é a renda média da população. Inicialmente, queremos contestar ambas estas teses.

Vejamos, por exemplo, a seguinte definição: "Desenvolvimento significa incentivo às possibilidades do aumento das rendas reais de regiões subdesenvolvidas, provocando mudança através de investimentos que levem à expansão dos recursos produtivos, na expectativa de aumentar a renda per capita da população."2 2 BUCHANAN NORMAN, S. e ELLIS, Howard. Approaches to Economic Development. Nova Iorque, The Twentieth Century Fund, 1955, p. 21-22.

Mesmo uma personalidade como JOAN ROBINSON não resistiu à tentação de identificar subdesenvolvimento com escassez de capital, ao definir que "economias subdesenvolvidas são as insatisfações com a sua situação econômica, desejando melhorá-la. Para consegui-lo, terão de acelerar a sua taxa atual de acumulação. . . "3 3 ROBINSON, Joan. Anmerkungen zur Theorie der Wirtschaftlichen Entwicklung, em ZAPF, Wolfgang. (Editor), Theorien des Sozialen Wandels. Berlim, Kiepenheuer & Witsch, Köhn, 1969, p. 276. (O original dêste artigo foi publicado em 1956.)

Com estes (e semelhantes) conceitos opera-se, há decênios, se bem que num crescente mal-estar, o que levou alguns autores a colocar em dúvida a relação funcional direta entre desenvolvimento e renda por um lado, e desenvolvimento e formação de capital por outro. Entre as razões dessa dúvida, cabe ressaltar as seguintes:

O conceito de desenvolvimento nada revela sobre a distribuição geográfica da renda.

Nada nos diz, também, sobre a distribuição social da renda.

A renda não é o único critério de determinação do bem-estar econômico.

O conceito não revela qual deveria ser o nível da renda per capita para que um país possa ser considerado desenvolvido.

O conceito focaliza um resultado, mas não o processo que leva a esse resultado.

A expectativa de que a formação de capital contribua para aumentar sensivelmente, e a curto prazo, a renda média dos países em desenvolvimento é por demais otimista.

Se bem que apenas sumáriamente, queremos justificar cada um destes seis argumentos:4 4 Argumentos semelhantes aos nossos podem, hoje, ser encontrados em vários estudos críticos sôbre a teoria do desenvolvimento críticos sobre a teoria do desenvolvimento. Veja, por exemplo: HAGEN, Everett. The Economics of Development, IRWIN, Richard D. Honewood, I11., 1968, capítulos 1 e 2. Para dados recentes sobre a evolução da renda de todos os países do mundo, veja: HAGEN, Everett E. e HAWRYLYSHYN, Oli. Analysis of World Income and Growth, 1955-1965, Economic Development and Cultural Change. Vol. 18, n.º 1, parte II, out./1969.

1.1. A DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DA RENDA

Face à sua dimensão, o próprio Brasil oferece um excelente exemplo de quão absurdo é falar-se em renda média per capita nacional. No ano de 1965, por exemplo, esta renda era, no Estado da Guanabara, de NCr$ 791,00, e no Estado do Maranhão, de NCr$ 79,50 - ou seja, quase que dez vezes inferior.5 5 Dados do IBRA, da Fundação Getúlio Vargas. Quando as variações regionais na distribuição da renda de um país são tão amplas, a renda média deixa de ser um índice representativo do grau de desenvolvimento desse país. Outrossim, duvidamos que qualquer valor médio - seja êle a renda ou outro fator - sirva como indicador do nível de abastança de uma xegião, sobretudo quando os contrastes sociais são tão acentuados como no Brasil.

1.2. A DISTRIBUIÇÃO SOCIAL DA RENDA

Infelizmente, entre nós, os dados estatísticos sobre a distribuição social das rendas são extremamente escassos. Mas basta citar um exemplo: de acordo com uma estimativa das Nações Unidas, a diferença entre os níveis de renda das classes média-alta e média-baixa da América Latina equivalia (por volta de 1960) à relação de vinte para um, enquanto na Europa Ocidental a relação era de apenas dois para um.6 6 UNITED Nations. The Economic Development of Latin America in lhe Post-War Period. Nova Iorque, 1964, p. 54.

Óbviamente, o problema da renda nos países em desenvolvimento não se expressa apenas na baixa média das rendas, mas, sobretudo na desigualdade (ou injustiça) da sua distribuição. (Mais tarde, voltaremos a esse problema).

1.3. A RENDA COMO PARÂMETRO DE ABASTANÇA

O país Kuwait apresenta um dos padrões de renda mais altos do mundo. Significa isto que seja também um dos países mais desenvolvidos? Seria um absurdo fazer-se tal afirmação; mas já houve quem afirmasse ser o Kuwait uma exceção. Que seja. Então, perguntemo-nos: A renda média per capita de $99.00 da população da Índia é diretamente comparável à de $3,557.00 dos E.U.A.? Difícilmente, a não ser que os critérios de comparação sejam exclusivamente materialistas. Mas não é preciso ir a tais extremos. Com uma renda média de $1,905.00, a Alemanha Ocidental possui um poder aquisitivo que corresponde apenas a 54% ao da população norte-americana.7 7 Os dados referem-se ao ano de 1965 e são extraídos de: KAHN, Herman e WIENER, Anthony J. Ano 2.000. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1968, . 165. No entanto, duvidamos que a média dos americanos mantenha um nível de vida 100% superior à média dos alemães.

Estes exemplos mostram quão precário é o fator renda como parâmetro de abastança relativa de uma nação, pois, nada revela sobre possíveis fatores não monetários do desenvolvimento (como, por exemplo), a troca direta de bens ou o trabalho não remunerado em horas de lazer) ;8 8 Nesse contexto, convém chamar atenção a MORGAN, James N. que, desde há alguns anos, está conduzindo inquéritos sobre as possibilidades de quantificação daqueles fatôres da abastança que escapam aos levantamentos da renda, por exemplo: The Supply of Effort, the Measurement of Well-Being, and the Dynamics of Improvements, American Economic Review. Vol. LVIII, n.º 2, maio/1968, p. 31-39. isto, sem falar das distorções que surgem forçosamente nas taxas cambiais, quando da ausência de um mercado livre no intercâmbio internacional.

1.4. A DETERMINAÇÃO DO LIMITE DA RENDA

Além da avaliação das rendas nos países em desenvolvimento ser estatisticamente deficiente, faltam-nos os meios para estabelecer quais as rendas médias que poderiam ser aceitas como possível limite entre desenvolvimento e subdesenvolvimento. HLA MYNT, por exemplo, chamou a atenção para o fato da renda média per capita, tanto do Japão como da Argentina, ter sido de aproximadamente $400, apesar das diferenças consideráveis no grau de desenvolvimento desses dois países.9 9 MYNT, Hla. The Economics of the Developing Countries. Nova Iorque-Washington, Frederick A. Praeger, 1965, p. 11.

1.5. O CONCEITO DA RENDA COMO RESULTADO

O desenvolvimento é necessariamente algo dinâmico que pode conduzir a resultados mais ou menos positivos. A renda, porém, na melhor das hipóteses, é um resultado e, como tal, nada revela sobre a maneira em que se processou o desenvolvimento. O que realmente importa à teoria e prática do desenvolvimento não é tanto o sucesso obtido por medidas aplicadas em épocas passadas, mas a seleção e aplicação de decisões que visam ao futuro, sobretudo face à escassez dos meios de que dispõem os países em desenvolvimento para acelerar o seu crescimento. Por estas razões parece-nos necessário, ou pelo menos desejável, considerar e conseqüentemente definir o desenvolvimento como um processo e não como um resultado.

1.6. A FORMAÇÃO DE CAPITAL COMO FATOR DE DESENVOLVIMENTO

Este aspecto focal de uma corrente dominante da teoria do desenvolvimento merece destaque. A êle será dedicada uma parte do presente artigo, além de um segundo trabalho em fase de elaboração.

2. Desenvolvimento Como Mudança Social

Numa tentativa de reformular os conceitos de desenvolvimento e subdesenvolvimento, partiremos dos seguintes pressupostos hipotéticos:

a) Face às inúmeras dúvidas que pairam sobre a natureza do subdesenvolvimento, definições de desenvolvimento com caráter definitivo não são nem possíveis nem desejáveis. Na medida do possível, deveriam ser de natureza experimental, isto é: devem ser guias de conduta para a pesquisa e a teoria do desenvolvimento, ou seja: devem conter diretrizes de investigação científica.

b) Para que não se tornem vítimas de um puro ecleticismo teleológico, as definições do desenvolvimento devem dar margem à formulação de determinadas hipóteses teóricas, baseadas em observações empíricas, cuja validade universal possa ser confiada à pesquisa do desenvolvimento.

A partir destas premissas, definimos desenvolvimento como aquela forma de mudança social que se manifesta numa crescente mobilização e socialização de uma sociedade, e que se projeta através da ativação dos fatores de produção em potencial. Adotamos esta definição como diretriz hipotética para a formulação de algumas idéias com que visamos a esboçar uma teoria do desenvolvimento em futuro próximo. A esta altura queremos limitar-nos a esclarecer os elementos estruturais da definição.

O conceito de mudança social é extremamente amplo.10 10 Veja o resumo bibliográfico no fim deste artigo. Atualmente, êle ocupa uma posição central nas análises sociológicas que versam sobre quaisquer formas de conflito social e de suas possíveis soluções. Daí constituir, também, um instrumento teórico ideal da investigação de tendências e tensões sociais nos países subdesenvolvidos, o que facilmente se depreende das seguintes três definições:11 11 Estas e outras definições encontram-se em: ZAPF, W. op. cit., p. 13.

"Por mudança social compreende-se a totalidade das transformações que, num período de tempo, ocorrem na estrutura de uma sociedade." (PETER HEINTZ)

"A mudança social diz respeito à formação e dissolução de relações interpessoais."(DON MARTINDALE)

"Definimos uma mudança na estrutura de um sistema social como uma mudança em sua cultura normativa. Se considerarmos a camada superior de sistemas sociais, trata-se de uma mudança no sistema dos valores de toda uma sociedade." (TALCOTT PARSONS)

Nem todas as formas de mudança social levam, necessáriamente, ao desenvolvimento. Assim, uma revolução visa geralmente a alterar a estrutura social, o que, porém, não significa que não possa atuar como obstáculo ao desenvolvimento, mesmo quando politicamente bem sucedida . Acreditamos, por outro lado, que o desenvolvimento não pode ocorrer sem determinadas formas de mudança social: êle é um aspecto parcial dessa mudança. Pelo menos nos países subdesenvolvidos, não poderá realizar-se sem que as relações interpessoais e os sistemas de valores de uma sociedade sofram alterações em determinados sentidos.

Não queremos com isto dizer que as causas do desenvolvimento devam ser atribuídas exclusivamente às mudanças na estrutura social ou que a mobilização dos meios econômicos de produção (por exemplo, de um investimento) não possa influir sobre a mudança social. Queremos apenas deixar claro que, a nosso ver, o processo de desenvolvimento só é exeqüível sob os pressupostos de determinadas mudanças, que se processam nas estruturas sociais. Formularemos, oportunamente, algumas hipóteses e conclusões a respeito da natureza destes pressupostos . Desde já queremos antecipar que a forma de mudança social, aparentemente mais profícua ao desenvolvimento, é aquela que se processa no sentido de uma mobilização e socialização crescentes da sociedade e que se manifesta, simultâneamente, na ativação dos fatores de produção potencialmente disponíveis numa economia. Em suma: sem nos preocuparmos por enquanto com as possíveis causas daquelas forças da mudança social que incentivam o desenvolvimento, ressaltamos que elas podem ser expressas pela mobilização, pela socialização e pela ativação dos fatores de produção.

KARL DEUTSCH descreve a mobilização social como um "amplo processo de mudança pelo qual passam partes consideráveis da população dos países que se encontram a caminho da transformação das formas tradicionais em formas modernas da sua vida".12 12 DEUTSCH, Karl. Social Mobilization and Politicai Development, American Political Science Review. Vol. LV, setembro/1961, n.º 3, p. 493. Esta definição sugere quão importante pode ser a mobilização para a mudança social e o desenvolvimento. O mesmo vale para a socialização, que foi definida "como o processo pelo qual um indivíduo aprende a se adaptar a um grupo ao adquirir um comportamento social por este aprovado".13 13 NIMKOFF, Meyer F. Socialization, em: GOULD, Julius e KOLB, William L. (Ed.). A Dictionary of the Social Sciences. Londres, Tavistock Publications, 1964, p. 672. Por meio destes dois conceitos pretendemos, mais tarde, esclarecer as relações entre as motivações sociológicas e psicossociais do desenvolvimento econômico.

O terceiro elemento estrutural de nossa definição do desenvolvimento é a ativação progressiva dos fatores de produção potencialmente disponíveis, que desdobramos em três subelementos, quais sejam:

Primeiro: A ativação instrumental ou o incremento no insumo dos recursos econômicos potencialmente disponíveis numa determinada economia, ou seja, o aumento puramente quantitativo da oferta efetiva dos fatores de produção aplicáveis ao processo de desenvolvimento.

A ativação instrumental é de particular importância para o crescimento daquelas economias onde predomina o mercado vendedor em determinados setores ou ramos, ou onde as margens de lucro das empresas são muito elevadas devido a uma demanda efetiva não satisfeita. Nos países em desenvolvimento, são sobretudo os ramos industriais novos que se caracterizam por um mercado vendedor. À sombra do protecionismo estatal, as empresas auferem lucros desproporcionalmente altos, que só incentivam o crescimento quando reinvestidos, ou seja, quando utilizados para adaptar a oferta de produtos acabados à sua demanda e quando contribuem à redução dos níveis dos custos e preços, à elevação dos coeficientes de produtividade, ao aumento da renda real da mão-de-obra e à promoção do poder de compra dos consumidores em decorrência do crescimento das rendas e da diminuição dos preços.

A experiência demonstra que, nos países em desenvolvimento, margens de lucro elevadas não necessáriamente chegam a estimular o reinvestimento ou o aumento na produção, ou seja, que o processo de incentivo à concorrência, como acima o descrevemos, de modo algum se processa forçosamente através de uma maior iniciativa empresarial. Acreditamos poder atribuir esta contradição de um princípio liberal sobretudo ao comportamento tradicionalista dos empresários, cuja ambição é dirigida antes à satisfação de desejos materiais através do consumo conspícuo e da ostentação, do que à conquista de uma imagem social como pioneiros da racionalização e do expansionismo.

Segundo: A ativação funcional, que também pode ser entendida como uma melhoria na combinação dos fatores de produção. Do ponto de vista econômico, esta forma de ativação equivale a um aumentos dos coeficientes de produtividade. Na nossa opinião, para a maioria dos setores e ramos de atividade nos países em desenvolvimento, este aumento é condicionado mais por fatores sociais e culturais do que econômicos. Ainda no presente trabalho voltaremos a alguns aspectos desta tese.

Terceiro: A ativação social da força de trabalho, principalmente das camadas sociais inferiores, com o intuito de promover a mobilidade vertical social e econômica.

Em termos econômicos, o resultado da ativação social pode ser mensurado pela elevação ou pela reestruturação parcial das rendas reais das diversas camadas sociais. No entanto, o objetivo principal da ativação social não deveria ser a redistribuição das rendas disponíveis, mas o despertar das forças latentes nas camadas subdesenvolvidas da população, a fim de que essas possam participar do processo de modernização.14 14 Entendemos por mobilização o processo de assimilação de conhecimentos e atitudes dirigidas ao futuro. Em outro trabalho pretendemos demonstrar que esse processo orienta a direção e intensidade do fluxo de desenvolvimento de uma sociedade.

Para a maioria dos países em desenvolvimento, reformas tributárias são um pressuposto básico da redistribuição estrutural da renda, sobretudo quando visam a reduzir os picos das rendas particularmente altas. Não é de se esperar, porém, que estas reformas influam decisivamente sobre a ativação social. Em primeiro lugar, porque os meios adicionais que o Estado arrecadaria não seriam, de modo algum, suficientes para financiar um programa nacional de ativação social. Em segundo lugar, porque uma alta taxação progressiva que sempre traz consigo o perigo de desestimular a iniciativa empresarial, de incentivar a sonegação dos impostos e, de um modo geral, de acelerar o processo de corrupção. Finalmente, porque a força latente de trabalho jamais será desabrochada exclusivamente em decorrência de medidas políticofinanceiras. É preciso, pois, distinguir entre duas formas de reestruturação da renda: embora possam visar ao mesmo objetivo, a redistribuição pela política tributária é apenas fator complementar da ativação social.

A partir destes breves comentários sobre o conceito do desenvolvimento, queremos formular as seguintes teses:

a) O processo de desenvolvimento decorre da disposição e da capacidade de ação - psíquicas e físicas - de uma população, dirigida ao aproveitamento e à multiplicação racional dos recursos de que ela dispõe.

b) A maioria dos países em desenvolvimento só não consegue aumentar seu produto nacional real em proporção superior ao crescimento populacional, devido às dificuldades de transformação da sua força potencial de trabalho em empregos efetivos.

c) A ativação dos fatores de produção torna-se exeqüvel apenas através de uma mudança social que se preocupa sobretudo com a mobilização e socialização das camadas inferiores da sociedade.

3. As Bases das Teorias Econômicas do Desenvolvimento

Como estas teses apelam a uma espécie de inversão de pesos dos valores das teorias de desenvolvimento atualmente mais em destaque convém justificá-las:

Quase todas as teorias econômicas de desenvolvimento até hoje formuladas, partes de uma tese ou de um modelo, matemático ou descritivo, que se propõe separar as origens primordiais do subdesenvolvimento das origens secundárias, a fim de poder explicar tanto as relações causais existentes entre essas origens primordiais, como também para lançar luz sobre possíveis normas úteis à política econômica de promoção ao desenvolvimento. Assim, a maioria das teorias de desenvolvimento possui cunho de política econômica, mesmo quando não manifesta suas intenções práticas expressamente, pois quase sempre procura respostas a problemas reais, por mais abstrata que seja sua formulação.

A abstração exige necessáriamente a simplificação, quer na escolha dos pressupostos, quer na combinação (por exemplo, de uma quantificação) das variáveis escolhidas. Coagidos por esta premência à simplificação, muitos dos teóricos do desenvolvimento econômico preferem considerar - implícita ou expressamente - os fatos sociais dos países em desenvolvimento como funções indiretas. Em outra palavra: acreditam que os fatores sociais ou não exerçam influência alguma sobre o desenvolvimento, ou que essa influência seja apenas secundária; ou então, são da opinião de que uma alteração das medidas econômicas, tidas por eles como decisivas para o processo do desenvolvimento, provoque, automáticamente, uma mudança nos fatores sociais vinculados ao processo econômico.

Servindo-nos de alguns exemplos clássicos da literatura econômica sobre o desenvolvimento, tentaremos, a seguir, esclarecer as razões que nos levam a ter como injustificável esta tendência de considerar os fatores sociais como causas secundárias. Não o fazemos para refutar teorias, mas apenas para verificar se estas resistem a um confronto com a realidade social dos países em desenvolvimento, sobretudo os da América Latina.

Como ponto de partida, selecionemos o já famoso conceito do círculo vicioso da pobreza, base de muitas das teorias predominantes. RAGNAR NURKSE, por exemplo, descreve dois círculos viciosos do subdesenvolvimento intimamente ligados. Com relação à oferta, NURKSE parte da baixa renda real da população que, por estringir o volume de poupança, é também causa da escassez do capital e do baixo coeficiente de produtividade, os quais, por sua vez, levam novamente à baixa renda real. Com relação à demanda, NURKSE constata que a baixa renda real é responsável pelo baixo poder aquisitivo e que este provoca uma limitada propensão a investir, que tem como conseqüência o baixo nível da renda real.15 15 NURKSE, Ragnar. Problems of Capital Formation in Underdeveloped Countries. Oxford, Basil Blackwell, 1955, p. 4 e seguintes. Uma tradução foi lançada, em 1957, pela Editôra Civilização Brasileira, sob o título Problemas de Formação de Capital em Países Subdesenvolvidos.

A partir da tese de que os círculos viciosos são os indícios do mal fundamental do subdesenvolvimento, muitas teorias preocupam-se em, antes de mais nada, encontrar meios capazes de romper esses círculos.

Uma das primeiras sugestões a basear-se nestes pressupostos é a tese do big push, de ROSENSTEIN-RODAN . Parte da convicção de que um mínimo de investimentos de capital seja necessário para que um país, à semelhança de um avião que levanta vôo, possa deixar o solo do subdesenvolvimento, a fim de ser impelido ao espaço aberto do desenvolvimento.16 16 ROSENSTEIN-RODAN, Paul N. Problems of Industrialization of Eastern and South-Eastern Europe, Economic Journal. junho/setembro 1943, p. 204-7.

Um ponto de vista algo semelhante foi defendido, mais tarde, por HARVEY LEIBENSTEIN, em sua tese do "esforço crítico mínimo". É necessário acrescentar-se, contudo, que a tese de LEIBENSTEIN é bem mais ampla, além de basear-se num conhecimento mais profundo da problemática peculiar aos países em desenvolvimento, do que o breve trabalho de ROSENSTEIN-RODAN.17 17 LEIBENSTEIN, Harvey. Economic Backwardness and Economic Growth. Nova Iorque, John Wiley & Sons., 1959. Uma tradução foi lançada, em 1967, pela Fundação Getúlio Vargas, sob o título Atraso e Desenvolvimento Econômico.

Também, WALT ROSTOW focaliza aqueles impulsos exógenos, que são provocados sobretudo pelo aumento substancial no coeficiente de investimentos, e que levariam um país de um a outros estágios de desenvolvimento.18 18 ROSTOW, W. W. The Stages of Economic Growlh, A Non-Communist Manifesto. Cambridge, The University Press, 1964. (A primeira edição foi publicada em 1959). Uma tradução foi lançada em 1961, por Zahar Editores sob o título Etapas do Desenvolvimento Econômico.

Já em 1954, ARTHUR LEWIS afirmou que "o problema central do desenvolvimento econômico reside na rápida formação de capital (inclusive no conhecimento e no dom de saber lidar com o capital)", pensamento este que constitui a base do seu modelo da economia dualista ...19 19 LEWIS, W. Arthur. Economic Development with Unlimited Supplies of Labour, The Manchester School. Maio/1954, e Theory of Economic Growth. Londres, Allen and Unwin, 1955.

Ainda entre os pioneiros da teoria do desenvolvimento cabe mencionar ALBERT HIRSCHMAN, que preocupou-se com um problema que, desde há muito, era objeto de discussão: o do equilíbrio como meta da política econômica. Entre outros aspectos, HIRSCHMAN mostrou que - mesmo sob condições favoráveis ao investimento - inexiste, na maioria dos países em desenvolvimento, a disposição para a tomada de decisões espontâneas para investir, sem a qual não seria possível romper-se as barreiras do subdesenvolvimento. Sugere, por isso, a criação artificial de certos desequilíbrios setoriais, de preferência através de grandes volumes de investimento, o que forçaria tanto os empresários como o Estado, a realizarem investimentos adicionais, sobretudo em projetos cuja tecnologia complicada exigiria a atenção constante das autoridades responsáveis.20 20 HIRSCHMAN, Albert O. The Strategy of Economic Development. New Haven, Yale University Press, 1958.

Embora variem quanto às minúcias de análise e às suas conclusões, todas estas teorias têm um aspecto essencial em comum: baseiam-se no princípio de que a formação de capital físico é o pressuposto básico do desenvolvimento. Podemos, pois, afirmar que a teoria econômica do desenvolvimento é predominantemente uma teoria de capital.21 21 Em artigo à parte, procuraremos justificar porque e como esta generalização se aplica, também, à moderna teoria de trabalho, salvo raras exceções.

Desta dedução derivam-se duas perguntas intimamente ligadas, quais sejam: como incentivar a formação de capital nos países em desenvolvimento, apesar do seu baixo volume de poupança? E: onde e como aplicar, da maneira mais produtiva, esse capital tão escasso?

4. A Importância das Economias Externas

Evidentemente, as respostas apresentadas pelos diversos economistas a estas duas perguntas não são uniformes. No entanto, a maioria deles tende a seguir uma determinada linha de raciocínio que culmina na seguinte afirmação: a formação e a ampliação de capital é, acima de tudo, uma função do aumento da produtividade que resulta das chamadas economias externas.

Foi ALFRED MARSHALL quem criou o conceito de economias externas. No decorrer dos últimos decênios, porém, este conceito sofreu uma mudança de conotação. Hoje, podemos defini-lo como economias de custo de uma empresa, decorrentes da aquisição de subprodutos essenciais à fabricação de seus bens que, dada a especialização industrial, podem ser produzidos a preços inferiores pelos fornecedores. Estas economias de custo independem, pois, de medidas internas de racionalização tomadas por uma empresa. Elas aumentam na proporção em que se desenvolve a especialização e a integração vertical e horizontal, seja dentro de um determinado ramo, seja em relação a outros ramos de atividade. Por conseguinte, quanto mais elevado fôr o grau de industrialização e de diversificação de um país, tanto mais rápidamente se processará a especialização dentro das empresas. Uma empresa fabrica produtos em escala crescente para fornecê-los a outras do mesmo ramo, pelo fato de poder produzi-los a um custo mais vantajoso do que estas. Ao mesmo tempo ela se torna, em conseqüência da própria especialização crescente, compradora no mercado especializado de outras empresas, surgindo assim um entrelaçamento progressivo de indústrias, que provoca um progresso em toda a economia de um país. Resulta daí um processo que, na opinião de muitos economistas, levará quase que forçosamente ao desenvolvimento, pois que a implantação de uma nova empresa industrial traz consigo o aparecimento de outras empresas do mesmo ou de outros ramos de atividade.

Os principais obstáculos a uma rápida criação de economias externas, são, por um lado, a indivisibilidade do capital e, por outro, a demanda reduzida, ambas típicas para os países em desenvolvimento. A instalação de uma usina de aço compensa apenas a partir de uma alta capacidade instalada, já que uma usina com reduzido volume de produção não pode funcionar de modo rentável. Por outro lado, a demanda pelo aço tem que corresponder à capacidade produtiva da usina, a fim de que esta possa ser explorada de maneira racional. Em maior ou menor proporção, éste exemplo vale para todos os tipos de investimento, se bem que se aplique particularmente aos investimentos na infra-estrutura, como em usinas de energia elétrica ou em investimentos no setor de transportes.

Apesar destas limitações, a maioria dos especialistas do desenvolvimento considera a criação de economias externas como condição vital para o desenvolvimento. NURKSE, por exemplo, parte do postulado da formação de economias externas para formular sua teoria do crescimento equilibrado. Estava convencido de que o círculo vicioso da pobreza poderia ser interrompido pelas economias externas e por isso defendeu a aplicação daquilo que chamava de uma "onda de capital em diversos ramos industriais". Isto, por considerar que as "pessoas que trabalham com mais e melhores instrumentos em vários projetos se tornam fregueses mútuos", ampliando assim o mercado, o que levaria "a um rompimento das algemas do equilíbrio estacionário do subdesenvolvimento".22 22 NURKSE, R. op. cit., p. 11, 13 e 15. No centro da teoria de NURKSE encontra-se, pois, a noção de que o subdesenvolvimento pode ser rompido por investimentos capazes de provocar no mercado um mecanismo automático de incentivo à oferta e à demanda.

A importância atribuída por NURKSE à influência das economias externas sobre o mercado pode ser reduzida da seguinte afirmação: "Dentre um grande número de projetos, cada um levará à formação de economias externas para cada uma das empresas, contribuindo assim para a ampliação total do mercado. É possível até que, dentre todas as economias externas que no decorrer do progresso econômico conduzam a uma taxa crescente de produtividade, as mais importantes sejam as que contribuem para a ampliação do mercado e não aquelas preconizadas pelos economistas desde MARSHALL".23 23 Idem, p. 14-15.

De acordo com a nossa experiência, esta opinião é válida apenas quando os habitantes dos países em desenvolvimento estão dispostos, ou melhor, quando se sentem capacitados a aparecer no mercado como consumidores potenciais das inovações. Quando isto não se dá, os habitantes tendem a ignorar as inovações, por vezes com atitudes de total indiferença. Exemplificando em termos crassos: uma campanha de propaganda, que visa a despertar a atenção dos consumidores para o lançamento de um novo modelo de carro de luxo, poderá incentivar as pessoas de médio ou alto poder aquisitivo a multiplicar suas poupanças ou a trabalhar mais, mas dificilmente movimentará os espíritos daqueles que despendem 80% ou mais da sua renda na alimentação. Talvez a campanha provoque uma reação de revolta ou frustração entre os menos privilegiados, se bem que, ao menos na América Latina, este tipo de reação seja aparentemente raro, talvez porque os membros das classes sociais inferiores são levados a se conformar, desde a sua infância, com a realidade de não pertencerem às classes abastadas.

Em suma: infelizmente, nos países em desenvolvimento, uma oferta crescente de bens - como conseqüência natural da ampliação das economias externas - não parece ser suficiente para aumentar o tamanho do mercado, nem para estimular a ativação instrumental, funcional ou social, sobretudo nas camadas de renda baixa, a ponto de exercer uma influência decisiva na oferta da mão-de-obra e, de modo especial, na sua qualidade. Concluímos desta observação, que a tese de NURKSE não é apenas demasiadamente otimista, mas demonstra, também e sobretudo, que uma política de investimentos, baseada no princípio das economias externas, favorece o desequilíbrio na distribuição das rendas. Por nos parecer de primordial importância, esta conclusão merece um enfoque especial.

5. Os Privilégios do Círculo Interno

Do ponto de vista da política econômica, a formação de economias externas está intimamente ligada ao processo de substituição da importação ou do incentivo estatal à industrialização, particularmente quanto às suas repercussões no mercado, ou seja, sobre a pretensa acelaração do processo desenvolvimentista, no sentido que NURKSE e os autores, que raciocinam de modo semelhante, lhe atribuíram.

Convém distinguir entre dois aspectos que este problema suscita. O primeiro refere-se à pergunta de caráter geral, ou seja, se, e até que ponto, as medidas que visam a promover o desenvolvimento, são suficientes para despertar a demanda, independentemente do seu tipo. Este aspecto da questão será analisado em artigo à parte. A outra pergunta refere-se ao tipo da demanda a ser criado, e indaga até que ponto as economias externas têm, até hoje, provocado um real aumento da demanda nos países em desenvolvimento.

Ao que parece, a teoria do desenvolvimento tem-se dedicado muito pouco à análise desses dois problemas de natureza essencialmente prática. Acreditamos, contudo, que, se colocados diante da segunda questão, a maioria dos teóricos provavelmente concordaria com a tese de que sobretudo aquele tipo de demanda deveria ser incentivada, que fosse capaz de integrar maior parcela da população no processo de desenvolvimento, ou seja, aquela demanda que permitisse às pessoas ampliar as suas possibilidades de trabalho e de rendimento.

Que espécies de produtos são os que mais correspondem a este tipo de demanda? Em primeiro plano, deveriam ser colocados os bens mais fácilmente acessíveis ao nível de renda das camadas sociais inferiores, como por exemplo, artigos de produção em massa correspondentes às necessidades mais prementes de alimentação e de abrigo; e em segundo plano, os produtos que contribuíssem para aliviar a vida desta camada populacional. Tais produtos deveriam caracterizar-se, portanto, menos por altos padrões de qualidade do que por preços baixos. Assim, por exemplo, a preferência deveria ser dada não a talheres de alpaca (e muito menos aos de prata), mas a talheres de metal cromado ou de zinco; ou a refrigeradores que pudessem ser adquiridos pelas classes trabalhistas e médias-baixas, ao invés de modelos de luxo, preferidos por uma sociedade de alto poder aquisitivo.

Seria de se esperar que o processo de substituição da importação e de formação de economias externas visasse, nos países em desenvolvimento, (imediatamente após a criação das infra-estruturas), à produção dos artigos em massa que mais facilmente se adaptassem ao mercado e à demanda de uma extensa camada populacional. A prática, porém, tem demonstrado que, até hoje, apenas em casos excepcionais este princípio tem sido adotado. Tanto o Estado, como os empresários, dão preferência a investimentos que visam à satisfação das exigências de uma camada reduzida de consumidores, se bem que portadora de um poder aquisitivo individual elevado.

Desta regra, que a prática nos ensina, queremos derivar a seguinte hipótese: se as economias externas, desde que formadas, realmente conseguem despertar e mesmo incentivar a demanda e o próprio mercado dos países em desenvolvimento, induzem, em primeiro lugar, à produção de bens destinados primordialmente ao consumo conspícuo e, por esta razão, contribuem para que o capital existente seja aplicado preferencialmente em benefício de uma camada social privilegiada.

Deste modo, o desequilíbrio na distribuição da renda acentua-se em decorrência da substituição da importação.24 24 Argumento semelhante é apresentado e analisado por FURTADO, Celso em: Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, veja sobretudo os capítulos 2 e 3.

Chamemos esta camada social privilegiada de círculo interno. Êle é composto por aqueles grupos de produtores e consumidores que controlam a maior parte dos fatores de produção de um país, ou que têm acesso direto a decisões de ordem econômica ou política. Nos países em desenvolvimento, este círculo interno é formado, primeiro, por latifundiários, membros de famílias abastadas, por alguns grandes empresários e por membros das classes que ocupam altos cargos públicos ou militares. Em segundo lugar, participam do círculo, também, alguns membros da classe média-alta, menos abastados talvez, mas detentores de uma influência direta ou indireta sobre as decisões políticas ou econômicas, quer porque possuam relações com pessoas das altas esferas, ou em razão de seus talentos pessoais. O primeiro destes dois grupos destaca-se, principalmente, pelo seu controle sobre os meios de produção ou por seu elevado poder político; o segundo, salienta-se por abranger os principais sustentáculos do consumo, principalmente de bens duráveis.

Sempre que um círculo interno controla os destinos de uma nação - o que se dá na maioria dos países em desenvolvimento - as decisões quanto aos tipos de investimento tendem a ser determinadas por uma atitude seletiva dos que participam deste círculo; isto é: serão tomadas por aqueles que visam, antes de mais nada, a satisfazer os desejos de um consumo cada vez mais exigente. Deste modo, a circulação não só de grande parte do dinheiro e capital existentes, mas também das mercadorias e sobretudo das rendas, limita-se a uma área de mercado bastante restrita. Os que não pertencem ao círculo, mas nele desejam integrar-se, somente serão bem sucedidos se chegarem a acumular o necessário poder aquisitivo, o que, na maioria das vezes, só conseguem desde que participem do processo de fabricação ou de distribuição dos bens mais sofisticados, pois somente o círculo interno lhes oferece as oportunidades de trabalho ou de investimento, essenciais ao êxito financeiro e social.

Entre os produtos que mais se prestam a satisfazer os anseios do círculo interno estão, em primeiro plano, os bens duráveis de consumo, tais como automóveis, aparelhos domésticos ou móveis. Não é, pois, de estranhar que, principalmente nos países industrializados, o critério de seleção e sobretudo o acabamento técnico destes bens se assemelhe bastante ao das nações altamente desenvolvidas. Os modelos destes bens costumam ser importados de países desenvolvidos, seja através de contratos de licença, seja pela simples cópia. Normalmente, estes bens são produzidos com características tecnológicas custosas, impostas por um processo de acirrada concorrência, mas que, nos países desenvolvidos, se justificam, face à existência de um amplo segmento de consumidores de alto poder aquisitivo. Entre nós, contudo, oneram e dificultam a produção em larga escala, face aos mercados ainda bastante restritos.

Sob o aspecto da lógica do bom-senso, seria de esperar que, nos países em desenvolvimento, a maioria dos empresários procurasse acima de tudo, atingir aqueles mercados que lhes assegurassem um grande volume de produção, ou seja, que fabricassem artigos baratos em série, acessíveis à extensa faixa de consumidores com limitado poder aquisitivo. A prática, no entanto, parece refutar essa lógica: a maioria dos produtores prefere fabricar bens de alto valor unitário, por razões, cujas origens parecem ser as seguintes:

a) A predominância de um mercado vendedor, atribuível aos seguintes fatores: rápido crescimento da população; concentração da renda; protecionismo estatal da industrialização; restrição das importações e controle cambial; além (em alguns países) da alta taxa inflacionária que contribui para a concentração da renda, já que a adaptação das rendas reais dos assalariados ao nível crescente dos preços costuma ser mais lenta que a das margens de lucro dos produtores e intermediários.25 25 Um indício desta adaptação lenta reflete-se na defasagem entre o aumento do custo de vida e do salário mínimo. Veja, por exemplo: RATTNER, Heinrich. Considerações sobre a Política Salarial do Brasil, Revista de Administração de Empresas. Vol. 8, n.º 27, junho de 1968, p. 129-149.

b) A relutância dos empresários em quantificar as forças vigentes no mercado e a dificuldade de adaptação a essas forças, que se manifesta através das seguintes atitudes: a aversão ao planejamento a longo prazo, indispensável à criação de uma estrutura de produção em massa; a falta de conhecimento dos instrumentos de controle de custos e, também, da importância das economias de escala para atingir a produção em massa; as dificuldades inerentes à criação de um sistema de distribuição, capaz de estender-se além dos limites dos principais mercados urbanos, a fim de atingir os múltiplos mercados de menor potencial unitário.

c) A passividade com que as camadas sociais inferiores encaram a oferta de bens, atribuível não só ao seu baixo nível de renda, mas também à sua incapacidade de adaptar-se psicologicamente a uma sociedade de consumo e de produção em massa. Em virtude de uma educação deficiente - ou mesmo inexistente - e de uma atitude por vezes fatalística frente ao próprio destino, estas camadas freqüentemente não possuem condições para o entrosamento numa sociedade moderna.

A ação conjunta destes diferentes fatores deve contribuir substancialmente para concentrar as forças geradas pelas economias externas no mercado de produtos especializadas, sobretudo como esses produtos costumam assegurar margens unitárias de lucro bastante elevadas já que se destinam a compradores de poder aquisitivo discricionário e se caracterizam por uma alta elasticidade, tanto da renda, quanto do preço. Ademais, o consumo ostentativo é amplamente estimulado pelo efeito de demonstração e por sua influência sobre o status social.

Quanto maior fôr o número de pessoas do círculo interno com acesso aos meios modernos de comunicação, (tais como revistas, teatros, cinemas, televisão ou viagens ao exterior), tanto mais intensa se tornará a demanda de produtos especializados, dada a acentuada propensão do homem urbano a moldar seus desejos materiais a partir de padrões internacionais: destarte, a sociedade industrial gera um processo cumulativo, em que cada membro procura imitar ou até sobrepujar os padrões alheios, por vezes dando mostras de uma generosidade que caracteriza o emulador social disposto a pagar um preço elevado como autoconfirmação de qualidade excepcional.

Se o círculo interno estivesse aberto a todas as camadas da população, esses vícios sociais talvez não passassem de uma curiosidade. Mas como nele se integra apenas uma minoria, o desenvolvimento é por êle cerceado: primeiro, porque onera a balança comercial e o balanço de pagamentos, pois ao menos uma parte dos bens ou subprodutos a êle destinados, depende da importação; em segundo lugar, porque os custos unitários da fabricação doméstica costumam ser elevados, sobretudo para os bens que escapam à produção em massa; em terceiro lugar, porque uma parcela considerável do escasso capital é reivindicada pelos produtores e distribuidores desses bens, dificultando, assim, a realização de investimentos essenciais ao desenvolvimento a longo prazo; e, em quarto lugar, porque o círculo interno cria obstáculos ao processo de ativação social.

6. A Ativação Social Como Meta da Política do Desenvolvimento

Dentre essas quatro conseqüências, a última merece nossa atenção especial. A seu respeito queremos formular o seguinte postulado: a política desenvolvimentista das nações subdesenvolvidas deveria prestar uma maior ênfase à reestruturação da sua renda disponível do que ao aumento da sua renda média total, mesmo que isto implique numa estagnação temporária do crescimento real da economia.

Não são apenas argumentos de ordem sentimental que nos levam a defender esta tese, herética e reconhecidamente perigosa se aplicada sem um rígido controle do mecanismo monetário e fiscal. O objetivo é essencialmente econômico, visando a engendrar um processo multiplicador, através do qual seriam estimulados: a qualidade da mão-deobra existente, as taxas de produtividade da mão-de-obra e do capital, a renda real da população, o volume de poupança, a formação de capital, e, assim, novamente as taxas de produtividade, etc. Em outras palavras: partimos do pressuposto de que o círculo vicioso da pobreza possa e deva ser rompido, não apenas por meio de investimentos, mas principalmente por meio do aperfeiçoamento da qualidade do trabalho.

O objetivo precípuo deste tipo de política seria a gradativa transformação da pirâmide social em um hexágono, exposta, nas suas linhas gerais, em outro artigo à base do exemplo latino-americano.26 26 RICHERS, Raimar. Transformação Social pela Abertura de Novos Mercados, Revista de Administração de Empresas. Vol. 8, n.º 27, junho de 1968, p. 97-127. O objetivo central dessa transformação poderá ser ilustrada a partir de um simples exemplo numérico, como segue: partindo de uma estimativa sobre a distribuição social da renda na América Latina,27 27 UNITED Nations. op. cit., p. 53-54. e supondo que a população fosse de 200 milhões de habitantes, podemos compor o seguinte quadro, referente à estrutura da renda global da América Latina, por volta de 1960:

Por conseguinte, apenas 2% da população (Classe A) congregavam quase 20% da renda global, ao passo que a metade da população (Classe C) era obrigada a contentar-se com apenas 16,5% desta renda. A renda média per capita da população teria sido $363.28b28 28 Em Um Projeto para o Brasil (Editora Saga, Rio de Janeiro, 5.ª edição, 1969, p. 37-58) , FURTADO, Celso utiliza um exemplo numérico brasileiro, semelhante ao aqui transcrito para a América Latina, para propor medidas que considera essenciais a uma "transformação... da estrutura do sistema econômico, no tempo e no espaço" e a uma modificação do "perfil da demanda global" que visa a "neutralizar as tendências estruturais à concentração da renda". Essa análise de FURTADO foi submetida a severa crítica por SIMONSEN, Mário Henrique. Brasil 2001. Rio de Janeiro (Apec Editora, 1969, p. 89-95) . Pretendemos, em outro trabalho, voltar a essas duas abordagens numa tentativa de conciliá-las com os nossos pontos de vista.

Suponhamos que, no decurso de uma geração (ou seja, até aproximadamente o ano 2.000), a população da América Latina tenha aumentado em cerca de 150% (o aumento mínimo com o qual devemos contar), alcançando, pois, a cifra de 500 milhões de habitantes, e que durante este período uma transformação estrutural em direção ao hexágono se tenha processado até atingir a seguinte estratificação populacional: classe A: 5%; B+: 35%; B-: 50%; e C: 10%, mas sem que a renda real média de cada classe tivesse sofrido uma alteração. Nesse caso: qual seria a renda média per capita da população latino-americana?

A partir dos dados acima apresentados, é fácil determinar que esta renda média seria de aproximadamente $1.000, ou seja, ela teria que triplicar ($363 x 3) até o fim do século, o que corresponderia a uma taxa anual de crescimento de 2,5 % . Mesmo assim, uma renda de $1.000 ainda estaria abaixo dos valores médios atualmente vigentes nos países avançados. Do outro lado, o processo de reestruturação social, que tivesse dado origem à nova distribuição, seria acompanhado de uma profunda mobilização das massas populares, com excelentes perspectivas de continuidade, pois o número de pessoas que nele participassem, seria bem maior do que hoje.

Se, ademais, as rendas médias das quatro classes sociais sofressem uma redistribuição em favor dos pobres ao longo do processo de transformação, uma renda global média de $ 1.000 poderia ser alcançada sob as seguintes premissas de distribuição: classe A: $ 2.400; B+: $ 1.300; B-: $ 800; e C: 2 240. Sob o pressuposto de um número médio de 5 pessoas por família, esses valores corresponderiam a uma renda média familiar mensal de $ 1 .000 para a classe A - bastante apreciável inclusive para as classes superiores dos países industriais. Por outro lado, uma renda mensal de $ 100 por família da classe C, seria ainda muito precária, se bem que, em termos sociais, pudéssemos classificá-la de tolerável, graças ao número restrito da população (10%) que pertenceria a essa classe - em confronto com os 50% atuais e sua renda média mensal de apenas $ 50 por família.

Por enquanto, tudo isto não passa de um sonho.29 29 A Alemanha Ocidental (RFA) demonstrou que a transformação da composição social da renda de uma pirâmide a um hexágono é exeqüível, inclusive a curto prazo. Ainda no ano de 1953, 59% das famílias da RFA dispunham de uma renda líquida mensal inferior a DM 500. Em 1967, apenas 5% (SIC!) das famílias tinham que contentar-se com esse nível baixo de renda, enquanto 48% das famílias auferiam rendas de DM 750-1.000. Mesmo ao levar-se em conta a taxa inflacionária (bem inferior à nossa), essa mudança estrutural é impressionante e ilustrativa. Fontes dos dados: Die Zeit, Hamburgo, 18/4/69, p. 40. Mas, se nada fizermos a respeito, a América Latina terá uma população de 250 milhões de pobres até o fim do século, em confronto com apenas 25 milhões de ricos e medianamente ricos (das classes A e B+). O que até lá poderá significar a palavra confronto, deixamos à imaginação do leitor.

7. Conclusões: Quatro Preceitos do Desenvolvimento

Do exposto queremos extrair quatro preceitos interdependentes. O primeiro deles pode ser assim formulado:

a) Desde já, toda a teoria do desenvolvimento deveria orientar-se a partir da formulação de problemas e da determinação de objetivos essencialmente interdisciplinares, pois nenhum campo específico das ciências sociais dispõe de um instrumentário suficientemente amplo e preciso para abarcar toda a problemática do subdesenvolvimento e da sua superação, arriscando-se, por conseguinte, a oferecer análises e soluções apenas parciais ou até preconcebidas à política do desenvolvimento.

As áreas que, aparentemente, melhores condições oferecem a uma fusão interdisciplinar são: a economia, a sociologia, a psicologia social, a antropologia e a ciência política. Ademais, a fusão requer o uso de técnicas e instrumentos criados pelas ciências naturais, como da biologia, da genética, da medicina e sobretudo da estatística.

Evidentemente, não há gênio no mundo capaz de congregar todos os conhecimentos essenciais a esse tipo de esforço interdisciplinar - sem falar dos receios psicológicos, ou obstáculos naturais que qualquer perito consciente enfrenta ao abandonar a sua área de especialidade à procura de subsídios intelectuais de outros campos. Daí o segundo preceito:

b) O progresso da teoria do desenvolvimento depende sobretudo do grau de intensidade com que especialistas de vários setores da ciência social conjuguem seus esforços, a fim A) de descobrir as origens predominantes do subdesenvolvimento, B) de formular normas, regras e, se possível, até leis que determinam as relações causais entre essas origens e as condições que conduzem ao desenvolvimento e C) de indicar meios e instrumentos à política do desenvolvimento aplicáveis à superação do subdesenvolvimento.

De acordo com esse preceito, a ênfase deve ser dada à pesquisa, pois quase nada sabemos dos obstáculos ou das forças motrizes que façam com que um país se desenvolva ou não. Normalmente, vedamos os olhos frente a essa falta de conhecimentos, apoiando as nossas formulações teóricas em modelos abstratos, geralmente vinculados a pressupostos vagos ou verificados em termos apriorísticos não comprovados.

Do outro lado, é preciso selecionar um foco de atenção para a pesquisa interdisciplinar, para que esta não se perca em formulações ou projetos utópicos. Disto queremos

c) O principal enfoque da pesquisa do desenvolvimento deveria ser de natureza psicossocial.

Os economistas certamente protestarão. Passemos a consolá-los: em termos comparativos, a economia contribuiu bem mais à teoria do desenvolvimento do que qualquer uma das outras ciências sociais. É preciso, pois, restabelecer o equilíbrio. Mas, há um outro argumento, inclusive mais importante: a nosso ver, as causas do subdesenvolvimento são antes sociais que econômicas,30 30 Uma análise de regressão de 19 indicadores do crescimento, aplicada a 174 países subdesenvolvidos, revelou resultados estatísticos que apoiam essa tese. Veja: ADELMAN, Irma e TAFT MORRIS, Cynthia. An Econometric Model of Socio-Economic and Political Change in Underdeveloped Countries, American Economic Review. Vol. LVIII, n.º 5, dezembro de 1968, p. 1184-1218, complementada em termos de aplicações de ordem político-econômica por: ADELMAN, Irma, GEIER, Marsha e TAF9 MORRIS, Cynthia. Instruments and Goals in Economic Development, American Economic Review. Vol. LIX, n.º 2, maio de 1969, p. 409-426. o que justificaria uma maior atenção da teoria e política do desenvolvimento a aspectos sociais.

Desta regra ou ponto de vista queremos derivar a seguinte hipótese geral: nos países em desenvolvimento, os instrumentos puramente econômicos surtem efeitos desenvolvimentistas somente quando as pessoas estiverem psicológica e socialmente preparadas para utilizá-los de maneira produtiva. Em outras palavras: as oportunidades para investir, o acesso a inovações tecnológicas, as possibilidades de financiamento ou mesmo a oferta de um novo produto só são economicamente aproveitadas por empresários ou consumidores, na medida em que estes são capazes de estabelecer um relacionamento positivo com tais instrumentos, ou quando souberem aproveitá-las racionalmente.

Somos da opinião de que a grande maioria da população dos países subdesenvolvidos possui esta capacidade em grau apenas muito reduzido, o que explica o desperdício dos fatores de produção, ao qual já nos referimos.

É claro que, somente em casos excepcionais é possível estabelecer-se uma distinção exata entre a utilização adequada e inadequada dos fatores de produção - principalmente se levarmos em conta que a produtividade máxima é concebível apenas como uma conseqüência de associações racionais, e que estas podem ser aperfeiçoadas ad infinitum por meio de inovações. Todavia, uma noção bastante clara da produtividade obtém-se pelo simples confronto da aplicação dos fatores em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Esses tendem a provocar um desgaste rápido nos fatores à sua disposição ao tratá-los como bens de consumo quando deveriam usá-los como bens de produção, o que salta à vista sobretudo na economia agrícola, mas é comum também na industria e no comércio.31 31 Um aspecto curioso relacionado a esse fenômeno é o seguinte: ao calcular-se o produto nacional bruto real dos países em desenvolvimento, este desgaste não é computado como sendo o que realmente é: amortização, pois é impossível determiná-lo estatisticamente. Ou seja: não raro, um crescimento real do produto nacional processa-se à custa da diminuição dos recursos, e por isso o crescimento da renda nacional é, na realidade, menor do que aquele computado nas contas nacionais. Para nós, a causa principal desse tipo de atitude reflete-se no baixo grau de ativação funcional que parece caracterizar a maioria dos habitantes dos países subdesenvolvidos.

De um modo geral, pode-se classificar a capacidade de ativação funcional em três categorias, se bem que seja difícil determinar exatamente os limites dinâmicos e os pontos de transição entre elas. Indivíduos com capacidade de ativação funcional pronunciada destacam-se, sob o ponto de vista econômico, por uma elevada consciência do fator produtividade. Como consumidores, são hábeis administradores de seus rendimentos, e sobressaem como típicos poupadores e baluartes da formação de capital. Como empresários, preocupam-se sobretudo em introduzir métodos racionais e em conservar e possivelmente ampliar seus recursos. Além de aptidões e capacidades inatas, esta atitude requer um elevado nível de formação profissional e, principalmente, capacidade de planejar e de controlar. Nos países em desenvolvimento, apenas uma parcela mínima da população logrou alcançar este grau elevado de capacidade de ativação funcional.

Num segundo nível, encontram-se aqueles indivíduos que, embora conscientes da potencialidade do instrumentário econômico, não possuem suficiente preparo para utilizá-lo de modo produtivo. Nos países em desenvolvimento, a maioria dos empresários e empregados encontra-se nesta situação. Alguns deles são abastados, seja porque desempenham atividades em setores que se caracterizam pela predominância de um mercado vendedor, ou porque vivem menos do seu trabalho do que de bens herdados, ou porque, na qualidade de senhoers feudais, exploram suas terras e seus subalternos, ou mesmo até por serem corruptos. A renda que auferem não é, pois, critério de sua produtividade. Do ponto de vista econômico, podem pertencer tanto à elite, como às diversas camadas da classe média. O que os caracteriza são suas possibilidades de ativação funcional, seja com relação ao seu potencial de trabalho ou com relação a outros recursos. Geralmente, aproveitam mal essas possibilidades, o que se reflete em baixos índices de ativação efetiva, se comparados com os níveis médios alcançados pela população que, nos países desenvolvidos, dispõe de rendas equivalentes.

Os representantes do nível mais baixo de capacidade de ativação funcional podem ser mais facilmente identificados, pois deve existir uma correlação entre suas características econômicas e sociais. Pertencem a este grupo, predominantemente, os analfabetos ou então os que dispõem apenas de uma escolaridade bastante rudimentar. São os indivíduos com pouco prestígio social e poder de influência em decisões que ultrapassem o âmbito de suas relações familiares.

Como não dispõem de qualificações profissionais, percebem rendas baixas. A esse grupo pertence a maioria dos trabalhadores rurais e industriais, os empregados domésticos, os vendedores de rua, e uma grande parte dos artesãos da baixa classe média. Mesmo quando não são afetados por problemas de saúde, investem apenas uma parte muito reduzida de suas aptidões naturais e energias físicas no processo de produção. Em conseqüência, dispõem de grande margem de tempo livre, que desperdiçam em atividades economicamente supérfluas e são, freqüentemente, tidos como preguiçosos por observadores desprevenidos, enquanto que, na realidade, só não são mais ativos devido à sua falta de preparo técnico e de formação intelectual.

Estas considerações empíricas levam-nos à conclusão de que os países em desenvolvimento se caracterizam sobretudo por uma população incapaz de tirar pleno proveito racional das possibilidades econômicas e do potencial de recursos físicos e monetários à sua disposição . Atribuímos esta deficiência a certos entraves de ordem social, ou, invertendo o raciocínio: somos de opinião de que é possível efetivar o desenvolvimento através da aplicação consciente de determinadas formas de mudança social, que se manifestam sobretudo na mobilização e socialização de todas as camadas sociais, particularmente, das mais baixas. Defendemos, ainda, a tese de que uma mudança social progressiva poderá provocar um progresso cumulativo de ativação instrumental, funcional e social, capaz de aumenatr, não só o nível da oferta, mas também o nível da renda e o grau de produtividade. Finalmente, cremos que este processo de ativação deva ser realizado, principalmente, através da mobilização da capacidade de trabalho, com o duplo objetivo de entrosar a mão-de-obra em potencial no processo produtivo e de criar condições técnicas e sobretudo humanas para que os fatores materiais, como o capital e os recursos naturais, possam ser ativados e utilizados mais racionalmente.

Os pontos de partida de sma política dinâmica do desenvolvimento são, por conseguinte, sociais; porém, somente quando ativarem recursos econômicos subutilizados terão efeito produtivo. Assim sendo, a tarefa da pesquisa do desenvolvimento é descobrir a relação existente entre os entraves sociais do desenvolvimento e os seus prováveis efeitos econômicos, a fim de indicar caminhos e instrumentos capazes de superarem os entraves que se opõem ao desenvolvimento.

Em suma, apesar da abordagem predominantemente teórica da temática do presente ensaio, nossa preocupação focal gira em torno da formulação de uma nova política do desenvolvimento, aplicável particularmente à América Latina. Também, esse objetivo requer um preceito, qual seja:

d) Todas as nações latino-americanas estão sujeitas a tensões-sociais, que só podem ser eliminadas através de um destes dois caminhos: ou por autênticas revoluções, ou por uma mudança social bem sucedida, que promova o desenvolvimento.

Tensões sociais surgem em conseqüência de um desequilíbrio crescente entre as expectativas sociais e a realização destas expectativas. Quanto mais acentuado fôr este desequilíbrio, tanto maiores são os riscos de revolução.32 32 Veja os trabalhos de DAVIES, James C. Toward a Theory of Revolution, American Sociological Review, n.º 27, 1962, p. 5-19, e TANTER, Raymond e MIDLARSKY, Manus. A Theory of Revolution, Journal of Confiei Resolution, n.º 11, 1967, p. 264-280. Na prática, não é possível antever exatamente se - e quando - sobreviverá o ponto-de-quebra entre tensão suportável e insuportável. É de se esperar, porém, que, em alguns dos países latino-americanos, irrompam ainda revoluções autênticas, isto é, revoluções sangrentas, prolongadas e apoiadas por fortes movimentos populares. A estas revoluções parecem estar expostos sobretudo aqueles países onde os contrastes sociais são particularmente pronunciados, e onde as classes tradicionais têm logrado sufocar ou impedir tentativas legítimas de mudança social. Um forte recesso econômico, o desemprego crescente e o enfraquecimento do poder político da elite bastarão para que, nesses países, a insatisfação sufocada das massas se transforme em uma fogueira de ódio desenfreado.

Não sabemos quais dos países latino-americanos estão sendo, no momento, mais diretamente afetados por esse perigo. Certo é apenas que, em todos eles, o número das pessoas que não mais confiam em uma solução pacífica das tensões sociais se eleva continuamente. Inquietante sobretudo é o fato da insatisfação poder armar-se moralmente com os argumentos irrevogáveis da ideologia do desespero e que a ela, não raras vezes, pertença o direito da reivindicação da justiça social e do apelo à violência.

Nenhum autor soube formular este anseio de reivindicação com uma força de convicção mais ferrenha do que FRANTZ FANON. A fim de transformar os "condenados desta terra" de "irrelevantes expectadores oprimidos em atôres privilegiados" da sociedade, FRANTZ FANON exigiu "a descolonização nua. . ., pois que, se os últimos devem ser os primeiros, só o poderão ser após um choque decisivo e mortal (com os senhores feudais). Este desejo expresso de permitir que os últimos tomem as rédeas, logrará vencer apenas se todos os meios - incluindo a violência - forem colocados em jogo".33 33 FANON, Frantz. Die Verdammten dieser Erde, Rowohlt Verlag, Reinbeck bei Hamburg, 1969, p. 28. (O original francês foi publicado em 1961.)

Um influente europeu assim se manifesta a respeito desta posição: "Far-lhes-á bem ler FANON . Esta violência irreprimível não é, como êle claramente comprova, uma tempestade absurda, nem o renascimento de instintos tribais, nem tão pouco o efeito de um ressentimento: nãó é nada mais do que o homem a se autocriar. Acredito que esta verdade já nos era conhecida - mas nós a esquecemos: não há grau de Brandura capaz de abafar as manifestações da violência - apenas a própria violência tem a força para extingui-las".34 34 SARTRE, Jean-Paul. prefácio a FANON, Frantz. op. cit., p. 18.

É preciso levar a sério esta advertência de SARTRE: Não devemos enfrentar a iminente violência de braços cruzados, nem tentar sufocá-la com contra-violência. Resta-nos, apenas, um caminho para reduzir a um mínimo possível o sangrento jogo de forças dos países do Terceiro Mundo: atender, em tempo, às justas reivindicações dos oprimidos, antes que se transformem em frustrações abertas em larga escala. Para isso é preciso, primeiro, compreender as forças motrizes destas reivindicações e, a seguir, tentar transformá-las em instrumentos de mudança social, isto é: positivá-las social e economicamente.

Bibliografia

Citamos abaixo algumas obras sobre a mudança social. Face ao grande número de trabalhos existentes, restringiremo-nos a uma seleção de livros publicados desde 1966, com ênfase a coletâneas.

Uma tradução deste livro foi publicada por Zahar Editôres, em 1969, sob o título: Modernização: Protesto e Mudança.

  • ARON, R. B. e HOSELITZ, B. F. (Coord.). Social Development. Paris, 1965.
  • BARRINGER, H. R., BLANKSTEN, G. I. e MACK, R. W. (Coord.). Social Change in Developing Areas. Cambridge, Mass., 1966.
  • BLACK, C. E. The Dynamics of Modernization. Nova Iorque, Evanston, 1967.
  • BRANDÃO LOPES, J. R. Desenvolvimento e Mudança Social. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1968 .
  • DREITZEL, H. P. (Coord.). Sozialer Wandel. Luchterhand, Neuwied, 1967.
  • EISENSTADT, S. N. Modernization: Protest and Change. Englewood Cliffs, 1966 .
  • ETZIONI, A. Studies in Social Change. Nova Iorque, 1966.
  • FERNANDES, F. Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Zahar Editôres, 1968 .
  • MOORE, W. E. e COOK, R. M. (Coord.). Readings on Social Change. Englewood Cliffs, 1967.
  • ZAPF, W. (Coord.). Theorien des Sozialen Wandels. Berlim, Köhn, Kiepenheuer & Witsch, 1969.
  • 1
    SHACKLE, G. L. S.
    A Scheme of Economic Theory. Cambridge, Cambridge University Press, 1955, p. X.
  • 2
    BUCHANAN NORMAN, S. e ELLIS, Howard.
    Approaches to Economic Development. Nova Iorque, The Twentieth Century Fund, 1955, p. 21-22.
  • 3
    ROBINSON, Joan. Anmerkungen zur Theorie der Wirtschaftlichen Entwicklung, em ZAPF, Wolfgang. (Editor),
    Theorien des Sozialen Wandels. Berlim, Kiepenheuer & Witsch, Köhn, 1969, p. 276. (O original dêste artigo foi publicado em 1956.)
  • 4
    Argumentos semelhantes aos nossos podem, hoje, ser encontrados em vários estudos críticos sôbre a teoria do desenvolvimento críticos sobre a teoria do desenvolvimento. Veja, por exemplo: HAGEN, Everett.
    The Economics of Development, IRWIN, Richard D. Honewood, I11., 1968, capítulos 1 e 2. Para dados recentes sobre a evolução da renda de todos os países do mundo, veja: HAGEN, Everett E. e HAWRYLYSHYN, Oli. Analysis of World Income and Growth, 1955-1965,
    Economic Development and Cultural Change. Vol. 18, n.º 1, parte II, out./1969.
  • 5
    Dados do IBRA, da Fundação Getúlio Vargas.
  • 6
    UNITED Nations.
    The Economic Development of Latin America in lhe Post-War Period. Nova Iorque, 1964, p. 54.
  • 7
    Os dados referem-se ao ano de 1965 e são extraídos de: KAHN, Herman e WIENER, Anthony J.
    Ano 2.000. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1968, . 165.
  • 8
    Nesse contexto, convém chamar atenção a MORGAN, James N. que, desde há alguns anos, está conduzindo inquéritos sobre as possibilidades de quantificação daqueles fatôres da abastança que escapam aos levantamentos da renda, por exemplo: The Supply of Effort, the Measurement of Well-Being, and the Dynamics of Improvements,
    American Economic Review. Vol. LVIII, n.º 2, maio/1968, p. 31-39.
  • 9
    MYNT, Hla.
    The Economics of the Developing Countries. Nova Iorque-Washington, Frederick A. Praeger, 1965, p. 11.
  • 10
    Veja o resumo bibliográfico no fim deste artigo.
  • 11
    Estas e outras definições encontram-se em: ZAPF, W.
    op. cit., p. 13.
  • 12
    DEUTSCH, Karl. Social Mobilization and Politicai Development,
    American Political Science Review. Vol. LV, setembro/1961, n.º 3, p. 493.
  • 13
    NIMKOFF, Meyer F. Socialization, em: GOULD, Julius e KOLB, William L. (Ed.).
    A Dictionary of the Social Sciences. Londres, Tavistock Publications, 1964, p. 672.
  • 14
    Entendemos por mobilização o processo de assimilação de conhecimentos e atitudes dirigidas ao futuro. Em outro trabalho pretendemos demonstrar que esse processo orienta a direção e intensidade do fluxo de desenvolvimento de uma sociedade.
  • 15
    NURKSE, Ragnar.
    Problems of Capital Formation in Underdeveloped Countries. Oxford, Basil Blackwell, 1955, p. 4 e seguintes. Uma tradução foi lançada, em 1957, pela Editôra Civilização Brasileira, sob o título
    Problemas de Formação de Capital em Países Subdesenvolvidos.
  • 16
    ROSENSTEIN-RODAN, Paul N. Problems of Industrialization of Eastern and South-Eastern Europe,
    Economic Journal. junho/setembro 1943, p. 204-7.
  • 17
    LEIBENSTEIN, Harvey.
    Economic Backwardness and Economic Growth. Nova Iorque, John Wiley & Sons., 1959. Uma tradução foi lançada, em 1967, pela Fundação Getúlio Vargas, sob o título
    Atraso e Desenvolvimento Econômico.
  • 18
    ROSTOW, W. W.
    The Stages of Economic Growlh, A Non-Communist Manifesto. Cambridge, The University Press, 1964. (A primeira edição foi publicada em 1959). Uma tradução foi lançada em 1961, por Zahar Editores sob o título
    Etapas do Desenvolvimento Econômico.
  • 19
    LEWIS, W. Arthur. Economic Development with Unlimited Supplies of Labour,
    The Manchester School. Maio/1954, e
    Theory of Economic Growth. Londres, Allen and Unwin, 1955.
  • 20
    HIRSCHMAN, Albert O.
    The Strategy of Economic Development. New Haven, Yale University Press, 1958.
  • 21
    Em artigo à parte, procuraremos justificar porque e como esta generalização se aplica, também, à moderna teoria de trabalho, salvo raras exceções.
  • 22
    NURKSE, R.
    op. cit., p. 11, 13 e 15.
  • 23
    Idem, p. 14-15.
  • 24
    Argumento semelhante é apresentado e analisado por FURTADO, Celso em:
    Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966, veja sobretudo os capítulos 2 e 3.
  • 25
    Um indício desta adaptação lenta reflete-se na defasagem entre o aumento do custo de vida e do salário mínimo. Veja, por exemplo: RATTNER, Heinrich. Considerações sobre a Política Salarial do Brasil,
    Revista de Administração de Empresas. Vol. 8, n.º 27, junho de 1968, p. 129-149.
  • 26
    RICHERS, Raimar. Transformação Social pela Abertura de Novos Mercados,
    Revista de Administração de Empresas. Vol. 8, n.º 27, junho de 1968, p. 97-127.
  • 27
    UNITED Nations.
    op. cit., p. 53-54.
  • 28
    Em Um Projeto para o Brasil (Editora Saga, Rio de Janeiro, 5.ª edição, 1969, p. 37-58) , FURTADO, Celso utiliza um exemplo numérico brasileiro, semelhante ao aqui transcrito para a América Latina, para propor medidas que considera essenciais a uma "transformação... da estrutura do sistema econômico, no tempo e no espaço" e a uma modificação do "perfil da demanda global" que visa a "neutralizar as tendências estruturais à concentração da renda". Essa análise de FURTADO foi submetida a severa crítica por SIMONSEN, Mário Henrique.
    Brasil 2001. Rio de Janeiro (Apec Editora, 1969, p. 89-95) . Pretendemos, em outro trabalho, voltar a essas duas abordagens numa tentativa de
    conciliá-las com os nossos pontos de vista.
  • 29
    A Alemanha Ocidental (RFA) demonstrou que a transformação da composição social da renda de uma
    pirâmide a um
    hexágono é exeqüível, inclusive a curto prazo. Ainda no ano de 1953, 59% das famílias da RFA dispunham de uma renda líquida mensal inferior a DM 500. Em 1967, apenas 5% (SIC!) das famílias tinham que contentar-se com esse nível baixo de renda, enquanto 48% das famílias auferiam rendas de DM 750-1.000. Mesmo ao levar-se em conta a taxa inflacionária (bem inferior à nossa), essa mudança estrutural é impressionante e ilustrativa. Fontes dos dados:
    Die Zeit, Hamburgo, 18/4/69, p. 40.
  • 30
    Uma análise de regressão de 19 indicadores do crescimento, aplicada a 174 países subdesenvolvidos, revelou resultados estatísticos que apoiam essa tese. Veja: ADELMAN, Irma e TAFT MORRIS, Cynthia. An Econometric Model of Socio-Economic and Political Change in Underdeveloped Countries,
    American Economic Review. Vol. LVIII, n.º 5, dezembro de 1968, p. 1184-1218, complementada em termos de aplicações de ordem político-econômica por: ADELMAN, Irma, GEIER, Marsha e TAF9 MORRIS, Cynthia. Instruments and Goals in Economic Development,
    American Economic Review. Vol. LIX, n.º 2, maio de 1969, p. 409-426.
  • 31
    Um aspecto curioso relacionado a esse fenômeno é o seguinte: ao calcular-se o produto nacional bruto real dos países em desenvolvimento, este desgaste não é computado como sendo o que realmente é:
    amortização, pois é impossível determiná-lo estatisticamente. Ou seja: não raro, um crescimento real do produto nacional processa-se à custa da diminuição dos recursos, e por isso o crescimento da renda nacional é, na realidade, menor do que aquele computado nas contas nacionais.
  • 32
    Veja os trabalhos de DAVIES, James C. Toward a Theory of Revolution,
    American Sociological Review, n.º 27, 1962, p. 5-19, e TANTER, Raymond e MIDLARSKY, Manus. A Theory of Revolution,
    Journal of Confiei Resolution, n.º 11, 1967, p. 264-280.
  • 33
    FANON, Frantz.
    Die Verdammten dieser Erde, Rowohlt Verlag, Reinbeck bei Hamburg, 1969, p. 28. (O original francês foi publicado em 1961.)
  • 34
    SARTRE, Jean-Paul. prefácio a FANON, Frantz.
    op. cit., p. 18.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Maio 2015
    • Data do Fascículo
      Jun 1970
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