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O impacto do comando numérico na sociedade brasileira

NOTAS E COMENTÁRIOS

O impacto do comando numérico na sociedade brasileira

Henrique RattnerI; Claude MachlineII; Olivier UdryIII

IProfessor titular no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos, da EAESP/FGV. Foi coordenador da pesquisa da qual se originou este artigo

IIProfessor titular no Departamento de Administração da Produção e de Operações Industriais, da EAESP/FGV

IIIAluno do Curso de Pós-Graduação da EAESP/FGV

1. INTRODUÇÃO

A penetração e difusão da microeletrônica nos diversos setores de atividades econômicas têm causado impactos cuja dimensão e intensidade não estão sendo plenamente entendidas e assimiladas, merecendo, portanto, estudos e pesquisas a fim de se ter uma visão coerente do processo e suas implicações. A problemática do uso crescente da microeletrônica não se refere ao nível de emprego/desemprego por ela gerado, mas insere um conjunto de aspectos e desafíos, que abrange desde as relações sociais de trabalho até o controle do Estado sobre a sociedade civil, passando por problemas de política científico-tecnológica, de inovação e de investimentos economicamente rentáveis, de centralização do capital e do poder decisório ao nível da empresa e do Estado, e da satisfação e do significado do trabalho como atividade criativa e gratificadora.

Do ímpeto e da extensão do avanço da microeletrônica não se pode duvidar: máquinas de solda elétrica que substituem até 30 operários soldadores nas montadoras de veículos e dezenas de motoristas de guindastes substituídos por alguns programadores e operadores sentados diante dos painéis são fatos cada vez mais freqüentes nas grandes empresas. Na indústria de relógios, a montagem do relógio com quatro peças eletrônicas, em vez das mais de 100 peças mecânicas anteriormente utilizadas, tem liberado mais da metade dos operários qualificados. Na indústria gráfica, uma máquina eletrônica compõe 8 milhões de caracteres por hora, contra 25 mil por hora de uma máquina convencional.

A IBM está utilizando um robô computorizado que enxerga e é dotado de braços mecânicos capazes de montar, em 45 segundos, oito peças de uma máquina de escrever. No Japão está em funcionamento uma planta completamente automatizada para a produção de MFCN (máquinas-ferramenta de comando numérico), reduzindo de 1/3 o número de operários na produção, e de 15-20% o total dos empregados. Esta tendência se manifesta crescentemente também no setor de serviços, tradicionalmente grande absorvedor de mão-de-obra liberada pela indústria de transformação, e que sofre o impacto dos microprocessores, às custas dos "colarinhos brancos". Na RFA, a Siemens está desenvolvendo uma máquina de escrever automática que dispensará até 40% das secretárias que hoje datilografam entre 4-5 bilhões de páginas anualmente.

Previsões semelhantes são formuladas com relação ao impacto da microeletrônica sobre o mercado de trabalho, no Reino Unido, na França e nos outros países industrializados. Essas previsões se tornam ainda mais dramáticas quando realizadas no contexto das sociedades latino-americanas, cronicamente afligidas por um subemprego persistente, agravado nesses últimos anos pelo desemprego gerado pela crise de economia mundial e pelas políticas recessionistas, implantadas para combater a inflação e equilibrar o balanço de pagamentos.

As justificativas para a adoção da nova tecnologia e sua rápida difusão se fundamentam basicamente nos seguintes argumentos econômico-financeiros:

- a tecnologia microeletrônica, enquanto reduz o volume de capital por unidade produzida (output), aumenta o capital por operário, ou seja, torna os processos de produção mais capital-intensivos. Em conseqüência, atividades antes trabalho-intensivas são transformadas paulatinamente em capital-intensivas, com sérias implicações para as necessidades de poupança e de formação de capital;

- a automação crescente dos processos de produção, implicando em redução proporcional do custo do trabalho nos custos totais, reduz também as vantagens dos baixos custos da mão-de-obra nos NICs (novos países industrializados) e, assim, permite a volta da produção de bens mão-de-obra intensivos aos países industrializados, em condições competitivas com os primeiros;

- a penetração da microeletrônica nos diversos ramos industriais, ao torná-los mais capital e P&D-intensivos, exige também a aplicação e o desenvolvimento de processos de produção mais integrados;

- estes, por sua vez, concorrem para o aumento da eficiência, encorajando e fortalecendo as tendências à concentração e centralização do capital, inclusive à integração vertical, que resulta geralmente em aumento da eficiência na utilização dos recursos produtivos;

- a difusão da microeletrônica é mais intensa nos ramos onde design, qualidade e precisão são condições essenciais para a aceitação e a competitividade dos produtos;

- o uso de processos e equipamentos microeletrônicos, além de reduzir a mão-de-obra, leva à diminuição dos insumos, de movimentos de transporte, portanto, de espaço ocupado, resultando em redução de custos unitários;

- este último aspecto, todavia, deixa patentes as implicações sociais dessa inovação tecnológica: embora exija elevados investimentos para a introdução nas fábricas e oficinas dos novos equipamentos e processos, essas inversões, contrariamente à teoria econômica convencional e pela própria natureza e pelas características da tecnologia microeletrônica, não elevam o nível de emprego em termos agregados. Em outras palavras, ocorre um fenômeno inédito na história econômica: um crescimento sem geração de empregos (jobless growth);

- ademais, a introdução da tecnologia baseada em microeletrônica nas organizações produtivas tende a reforçar as posições de controle e de dominação da administração sobre os produtores, tornando mais nítida a separação entre as funções de planejamento, supervisão e coordenação, e aquelas de simples execução de ordens e instruções transmitidas de cima para baixo.

Transposta a nível macroeconômico e social, a nova tecnologia ressalta a ascensão e o fortalecimento da tecnocracia legitimada como depositária do "saber" e do know-how, acima dos interesses e paixões político-partidarios e ideológicos.

2. ALGUNS PROBLEMAS METODOLÓGICOS

Da leitura dos apontamentos acima alinhados decorre a necessidade de tratar do processo de difusão da tecnologia microeletrônica, não como um fenômeno isolado e estanque, mas como uma etapa talvez decisiva na evolução histórica da divisão social do trabalho. A maioria dos estudos sobre microeletrônica e suas aplicações no processo de produção, ao reificar o progresso técnico, isolando-o do processo mais amplo e geral de acumulação do capital, é pouco elucidativa e não nos leva à compreensão das tendências à automação, em escala global.

A abordagem alternativa da problemática aqui discutida propõe o caminho inverso, ou seja, a trajetória do raciocínio que vai do geral para o particular, da caracterização e das tendências mais gerais do sistema econômico e dos processos sociais de trabalho para os aspectos específicos e setoriais, tais como a microeletrônica e a automação.

Partindo das tendências empiricamente verificáveis à internacionalização do sistema produtivo e financeiro, cujos portadores e forças dinâmicas são as corporações transnacionais, torna-se necessário analisar os processos de concentração e centralização do capital, e suas variadas e múltiplas implicações econômicas, políticas e culturais.

Se, de um ponto de vista econômico, a concentração e centralização do capital tornam o planejamento, a produção e a estratégia de vendas em escala mundial viáveis e rentáveis, por outro lado, o uso de processos e equipamentos microeletrônicos potencializa a integração e a administração centralizada de imensos e poderosos grupos conglomerados. Ao expandir sua produção, estabelecendo empresas e plantas fabris nos principais mercados consumidores, os conglomerados transnacionais realizam uma verdadeira divisão internacional de trabalho, tirando pleno proveito das vantagens comparativas de cada país e região. Ademais, projetos internacionais, baseados na complementaridade e no intercâmbio de peças e componentes, se tornam altamente lucrativos, pelos ganhos decorrentes de contratos de transferência de tecnologia, de sub e sobrefaturamento, na exportação e importação, e de subsídios e incentivos concedidos pelos governos dos NICs, ávidos de atrair investimentos de capital de risco. O sistema de comunicações por satélites e o processamento instantâneo de informações, colhidas nas principais praças e mercados econômico-financeiros de todos os continentes, permitem a análise e a tomada de decisões, com rapidez e eficiência não igualadas, mesmo pelos governos mais centralizados e autoritários.

Em conseqüência, é acelerado e intensificado o processo de acumulação e de crescimento dos conglomerados, que passam a controlar também o desenvolvimento científico-tecnológico de seus respectivos ramos de atividade. Nessas condições, a "entrada" no mercado por parte de empresas nacionais (argentinas, brasileiras, mexicanas etc.) se torna extremamente difícil e arriscada. Sentindo-se inferiorizada em termos de capital, know-how, técnicas administrativas e de marketing mais eficientes e agressivas, a empresa nacional adota, na melhor das hipóteses, uma estratégia tecnológica imitativa, preferindo pagar royalties a lançar-se numa aventura de P&D.

Esta situação nos leva a enfocar o comportamento de um terceiro agente no cenário econômico, cujo papel e participação decisiva em todos os planos e programas econômicos não tem parado de crescer, nestas últimas décadas - o Estado.

A análise do desempenho do poder estatal e, particularmente, daquelas diretrizes e medidas claramente contraditórias e incoerentes com uma política de autonomia tecnológica relativa, é fundamental para se compreender a dinâmica e os problemas do desenvolvimento tecnológico e industrial nos países latino-americanos, sobretudo os casos da Argentina, do Brasil e do México.

As empresas estatais que atuam nas industrias de base (mineração, siderurgia, petróleo) e nos ramos mais dinâmicos da indústria de transformação (material bélico, petroquímica, aeronáutica, telecomunicações etc.) enfrentam uma situação contraditória e de conflito potencial, ao decidirem sobre sua política tecnológica. Como conciliar os objetivos da política econômica geral, .visando altas taxas de crescimento de PIB com a maximização do emprego? Ou ainda, a maximização do retorno sobre o investimento, com a maximização do bem-estar social? Essas empresas difícilmente escolherão uma tecnologia menos eficiente, ou seja, uma combinação de fatores que, por unidade de capital investido, resulte em nível de produção inferior, embora atendendo à necessidade de se criar mais empregos.

Para as grandes unidades produtivas, nos ramos mais dinâmicos, as escalas ótimas de produção são calcadas na experiência e nas dimensões do mercado dos países industrializados, pesquisadas, desenvolvidas e implantadas pelas empresas líderes dos respectivos setores. Da mesma forma que no mercado interno as empresas menores são obrigadas a seguir os padrões tecnológicos dos oligopólios líderes do ramo, assim também no mercado internacional os conglomerados dominam e controlam o progresso técnico de seu setor. A estrutura oligopólica dos mercados, reforçada pelos mecanismos de crédito e financiamento internacionais, e pelas normas de licitações e concorrências públicas impostas, torna praticamente impossível a escolha de uma tecnologia nova ou diferentes, de alto risco para a sobrevivência da empresa.

Por outro lado, o estudo da tendência histórica à mudança da composição orgânica do capital (> ) não pode ser dissociado da análise das transformações quantitativas e qualitativas do mercado de trabalho.

Se as máquinas em geral, e a automação em particular, substituem mão-de-obra qualificada e, assim, aumentam o exército de reserva industrial, os salários são pressionados no sentido de baixa, num período de grave recessão e de crise econômica do sistema capitalista.

A análise das transformações nas exigências de qualificação (skill requirements) da mão-de-obra não pode ser realizada como se acontecesse num vácuo, desligada da divisão de trabalho social e da tendência a ela subjacente à desumanização ou alienação do trabalho humano, pela separação cada vez mais nítida e crescente entre o "saber" e o "fazer". As implicações políticas desses processos se tornam evidentes ao verificar-se (ver, entre outros, os diversos relatórios apresentados sobre "produção e difusão de MFCN - máquinas-ferramenta de comando numérico") que os patrões preferem ampliar o número de pessoal de "colarinho branco" a tratar com os operários qualificados das oficinas e das linhas de montagem. Ora, um dos impactos mais nitidamente observados nas empresas usuárias de MFCN e, eventualmente, de CNC é a desqualificação dos antigos ferramenteiros e a transferência de uma parte substancial de suas funções para o pessoal do escritório - os programadores e supervisores da produção.

3. CRÍTICA DAS PREMISSAS

Sem pretensão de tratar do quadro de referência teórico em toda sua amplitude, parece importante discutir algumas das premissas subjacentes a um estudo sobre os impactos da microeletrônica.

As análises concentradas nos aspectos econômicos das inovações tecnológicas baseadas na microeletrônica se fundamentam quase invariavelmente nas teorias clássicas ou neokeynesianas, segundo as quais o crescimento econômico é induzido por investimentos de capital, cujo nível e volume é função da poupança. Estabelecendo a equivalência crescimento = desenvolvimento, exalta-se o investimento como a chave para a solução dos problemas de emprego, produtividade, salários, renda etc. dos países menos desenvolvidos. Entretanto, um balanço dos resultados de fases de crescimento intenso da economia (ver, por exemplo, o "milagre" brasileiro dos anos 1968¬ 1973) revela o crescimento "perverso" induzido por investimentos altamente capital-intensivos, incapazes de gerar empregos à altura dos contingentes que ingressam no mercado de trabalho, enquanto a nova tecnologia induzida (por exemplo, as fibras sintéticas que vieram substituir as de algodão) elimina empregos tradicionais, aumentando o exército de reserva industrial. Tais efeitos negativos são agravados pela automação baseada em microeletrônica, pelas características singelas de seus processos e produtos, que embora exijam menos matéria-prima e insumos em geral, reduzem as distâncias de transporte e substituem pesados servomecanismos mecânicos ou hidráulicos por circuitos eletrônicos, aumentam a velocidade dos processos e resultam em produtos de precisão e qualidade superiores. A difusão da tecnologia microeletrônica tenderia, então, a generalizar o "crescimento sem empregos" (jobless growth), de conseqüências dramáticas para os países menos desenvolvidos.

Esta colocação nos leva, também, a analisar criticamente o conceito fetichista de "progresso técnico" como chave do desenvolvimento, tal como aparece nas obras de C. Clark e J. Fourastié. Segundo estes autores, o atraso dos países menos desenvolvidos seria devido à insuficiência de seu progresso técnico, responsável também pela estrutura dualista de suas economias. Identificando-se progresso técnico com aumento da produtividade, esta resultaria em maiores rendimentos e assim em crescimento econômico.

Tal visão, extremamente simplista, não distingue entre dois processos fundamentalmente diferentes quanto à sua natureza e seus efeitos: a elevação da produtividade do trabalho stricto sensu e a maior intensidade do trabalho que procura aumentar a exploração da mão-de-obra.

A relação que se procura estabelecer entre o crescimento do produto social e a inovação tecnológica não é de natureza causal e linear. O "progresso técnico" não reduz necessariamente a jornada de trabalho, nem concorre para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.

Em conseqüência, cai por terra outra premissa agregada pela teoria convencional, segundo a qual a racionalidade e eficiência crescentes, internas às empresas, passariam como que por um filtro (trickle-down process) à sociedade global.

Se a automação eleva tremendamente a produtividade, e esta constitui a base do crescimento e do consumo afluente, então deveríamos propugnar pela adoção incondicional das últimas conquistas da tecnologia industrial ... Ora, o argumento acima parece falacioso por várias razões: a racionalidade formal e interna da empresa não resulta em racionalidade substantiva quando transferida ao meio ambiente sócio-político. Ao, contrário, podem se postular efeitos proporcionalmente inversos: quanto mais eficiente e produtiva a empresa, mais irracionais e contraditórias se tornam a estrutura e as relações sociais e políticas da sociedade. Por outro lado, o aceno e as promessas de uma afluência material ilimitada, graças ao uso da microeletrônica, se tornam irreais por abstrair das relações sociais da produção e, portanto, da distribuição do produto social; e irrelevantes, porque, mesmo que fossem realizáveis em termos de abundância para todos, não há necessariamente convergência entre esta e o bem-estar social e individual.

Finalmente, parece conveniente destrinchar uma série de equívocos ou pressupostos, copiados ou adotados de estudos realizados em outros contextos e circunstâncias.

Assim, os estudos sobre inovações em geral, e os na área de microeletrônica em particular, no que se refere a suas causas, sua dinâmica e seus efeitos têm como pano de fundo as nações mais industrializadas, sedes das corporações transnacionais, líderes de seus respectivos ramos, em termos de ativos fixos, faturamento e, sobretudo, gastos em P&D.

As empresas privadas de controle nacional nos países latino-americanos são, normalmente, de pequena ou média dimensão, incapazes de competir com os oligopólios transnacionais, mesmo no mercado interno. Essas empresas, além dos impactos das tendências oscilantes da economia mundial, são submetidas à influência das políticas econômicas, muitas vezes erráticas e inconsistentes em seus países, o que aumenta sua dependência do setor estatal da economia, principal fator de investimento e de formação de capital.

A nível da empresa, e no que tange a decisões empresariais, o panorama esboçado acima implica num conjunto de fenômenos e atitudes peculiares e até atípicos, quando comparados com o comportamento empresarial nas economias industrializadas e desenvolvidas.

Assim, os empresários nacionais ao tomarem decisões sobre investimentos não costumam fazê-lo preceder por estudos de viabilidade econômica e tampouco se preocupam com uma avaliação formal dos resultados. O fator importante, e até decisivo, para novas imobilizações é representado pela busca de eliminar ou reduzir os riscos e a incerteza quanto ao desempenho futuro da empresa, objetivo este materializado por contratos e encomendas das empresas estatais ou da administração pública direta.

Quanto à pouca expressão dos resultados empíricos referentes à redução de custos, ganhos de produtividade, redução de mão-de-obra etc, esses efeitos serão dificilmente observados em empresas de pequena ou média escala, incipientes na introdução do CN e/ou do computador.

No estudo brasüeiro sobre produção e difusão de MFCN, ficou evidenciado que a grande maioria das empresas usuárias detém uma só máquina (55%) ou duas (26%). Nessas condições, dificilmente poderá ocorrer redução de empregos. Ao contrário, a programação do CN, a supervisão, a manutenção do equipamento exigirão provavelmente um aumento dos efetivos, compensado por um acréscimo da produção física, mas não necessariamente da produtividade por empregado. Em outras palavras, parece haver um limiar (treshold) em termos de quantidade de MFCN ou de equipamentos automatizados, a partir do qual se tornam mais concretos os ganhos decorrentes da redução do número de empregados e dos custos, enquanto aumenta, ao mesmo tempo, a necessidade de implantar processos de produção mais integrados, utilizando plenamente o potencial inerente aos equipamentos microeletrônicos.

4. AS EMPRESAS, O ESTADO EA POLITICA TECNOLÓGICA NO SETOR DE MICROELETRÔNICA

Os países latino-americanos, mesmo os mais desenvolvidos como Argentina, Brasil e México, apresentam economias de desenvolvimento capitalista tardio, em que as estruturas de mercado e a presença dos conglomerados transnacionais inibem grandemente a emergência e o desenvolvimento de um sistema científico-tecnológico autônomo.

Tanto as empresas quanto as universidades são poderosamente influenciadas pelos padrões predominantes nos países centrais, cuja imitação e adaptação exigem recursos de vulto, reclamados do poder público. Nessas condições, não seria exagero afirmar que todas as iniciativas significativas na área de inovação tecnológica só teriam chances de vingar se contassem com o apoio do sistema oficial de ciência e tecnologia.

Entretanto, a intervenção do Estado na orientação do processo de desenvolvimento tecnológico e industrial não se tem caracterizado pela coerência e convergência de objetivos e de mecanismos operacionais. Caberiam aqui, portanto, algumas observações criticas sobre o papel do Estado no conjunto das controvérsias a respeito do desenvolvimento tecnológico nacional e da microeletrônica, em particular.

À luz da realidade histórica presente e do passado, seria ingenua ou mistificadora a definição do poder estatal como representante dos interesses coletivos da nação. Da mesma forma, sua caracterização como comitê executivo da classe dominante peca pela simplificação excessiva.

A situação concreta é bem mais complexa, dado o fato de mesmo entre as camadas dominantes haver vários grupos disputando e partilhando o poder, cada um com sua visão peculiar da situação e dos principais problemas, que levam a projetos, atitudes e comportamentos políticos diferentes. Governar ou exercer o poder, nessas circunstâncias, significa estabelecer prioridades, compor e distribuir vantagens e privilégios, tirando de uns e transferindo para outros, sem, contudo, deixar de conseguir legitimar suas decisões aos olhos da maioria politicamente ativa da população.

Disto decorre que o exercício do poder é considerado legítimo quando seus detentores forem capazes de mobilizar, em função de suas idéias, propostas e diretrizes de outros grupos e camadas sociais. Este tem sido o caso da ideologia e da política de desenvolvimento econômico difundida e praticada, nessas últimas décadas, no Brasil e na maioria dos países latino-americanos.

No caso específico do Brasil, só no fim da década de 60 foi que o país ingressa definitivamente no rol seleto dos NICs (novos países industrializados), com acentuado desenvolvimento de sua indústria metal-mecânica e de bens de capital, produzindo ampla gama de produtos complexos, inclusive para exportação, tais como veículos pesados, blindados e outros equipamentos militares, aeronaves e dispositivos e componentes para a indústria petroquímica. Todos esses setores exigem produtos de alta precisão e qualidade, competitivos em termos de custo e de tecnologia mais avançada.

O período pós-guerra, apesar da aceleração do processo de substituição das importações, não foi propício ao desenvolvimento tecnológico nacional. O Plano de Metas, procurando fazer o país desenvolver-se na base de "50 anos em 5", criou uma demanda por bens de capital orientada para fornecedores externos, seja em função dos supplier credits, seja dos padrões de qualidade exigidos e não encontrados no mercado nacional, ou ainda do custo mais baixo do produto importado, mesmo havendo similar nacional.

A importação de máquinas-ferramenta mais sofisticadas deixou para os produtos nacionais apenas os "nichos" do mercado interno e, eventualmente, os mercados pouco exigentes de alguns países latino-americanos. A inferioridade tecnológica da indústria nacional não foi superada, mesmo com leis tarifárias mais severas.

No fim da década de 70, elevando-se a produção anual de MF a 75 mil máquinas, com valor médio de US$ 3.300, as exportações representaram 18 mil máquinas de valor médio de USS 2.200, enquanto o valor unitário médio de uma máquina-ferramenta importada era de US$ 33 mil.

Somente nos primeiros anos da década de 70, o Governo formulou uma política tecnológica explícita, consubstanciada no I PBDCT (Primeiro Plano Básico de Desenvolvimento Científico-Tecnológico), com diretrizes e programas que favoreciam o desenvolvimento do potencial de C + T nacional. Contudo, não eliminou os determinantes da política tecnológica anterior, enfatizando apenas as inconsistências e ambivalencias das diretrizes de política econômica do Estado.

Nas décadas anteriores, tinha sido praticada uma política de "resposta" às exigências do sistema de produção, que levou à absorção e difusão de inovações tecnológicas, sem preocupar-se excessivamente com a origem externa dos conhecimentos técnicos.

À medida que progrediu a substituição das importações, reduziu-se o aporte externo de tecnologia incorporada, enquanto se intensificava o fluxo de tecnologia não-incorporada, mediante os contratos de assistência técnica, da elaboração de projetos de engenharia e de cessão de direitos de uso, de marcas e de processos protegidos por patentes.

Esses contratos foram celebrados sobretudo com subsidiárias ou associadas de empresas transnacionais, principais fontes e detentoras das inovações tecnológicas surgidas nas últimas décadas nos países industrializados.-Com o contínuo aumento dos investimentos estrangeiros nos anos 70, a presença crescente do capital transnacional no sistema produtivo brasileiro marcoupro fundamente o potencial e a problemática do desenvolvimento tecnológico nacional. A implantação de empresas estrangeiras, por um lado, desencadeava uma demanda de bens de capital locais, mas, por outro, gerava maior necessidade e dependência de tecnologia mais complexa e sofisticada. Assim, as próprias empresas estrangeiras foram procurar o know-how necessário em suas respectivas matrizes, constituindo-se sua entrada em obstáculo difícil-, mente transponível para a pesquisa tecnológica nacional, carente de recursos e sofrendo empecilhos organizacionais e institucionais, tais como a falta de apoio sistemático do poder público, a inexistência de uma infra-estrutura e de um sistema de informações em C + T, indispensáveis para o desenvolvimento tecnológico nacional.

Com raríssimas exceções, as empresas nacionais não podem ou não querem assumir os encargos de criação e manutenção de centros de pesquisa e desenvolvimento, ou da execução de projetos avulsos de inovação, a não ser que os mesmos sejam financiados, quase que integralmente, pelos órgãos governamentais. Por outro lado, em face da demanda existente no mercado, o Governo está sendo pressionado a liberar as importações, enfraquecendo assim as indústrias nacionais de MFCN e de equipamentos microeletrônicos, pois os preços relativos favorecem o produto importado (mais ou menos 50% do similar nacional, incluindo as despesas CIF e taxas alfandegárias), independentemente de consideração sobre a qualidade comparativa.

Entretanto, a tecnologia microeletrônica e suas aplicações na informática representam uma parte vital do equipamento militar moderno, o que a torna objeto de planos e diretrizes estratégicas e de segurança nacional, interpenetrando e amalgamando interesses geopolíticos, militares e econômicos.

O desenvolvimento desta tecnologia, especialmente na área de informática, tem sido extremamente rápido nos países centrais, ameaçando criar uma dependência absoluta dos NICs em relação àqueles. Dada a estrutura de poder existente, em que a tecnocracia civil e militar exerce um papel hegemônico em relação a seus aliados - os empresários nacionais e os representantes das corporações transnacionais - a definição da área de informática como uma das prioridades do Governo deve levar à formulação de uma política mais agressiva que garanta efetivamente o desenvolvimento de uma indústria nacional microeletrônica. Essa política, além da promessa de reserva de mercado, deverá materializar-se mediante investimentos públicos, financiamentos e incentivos às empresas nacionais, permitindo não somente a consolidação de sua posição atual no mercado, como também garantindo a sua expansão futura. Contudo, a política tecnológica na área da microeletrônica também apresenta contradições e diretrizes ambivalentes. Por um lado, foi incentivada a fabricação de produtos e insumos, com incentivos fiscais e reserva de mercado, e, por outro, exigiu-se das empresas que competissem, nos mercados interno e externo, com as grandes empresas transnacionais.

A política de proteção efetiva à indústria nacional de computadores surgiu durante o Governo Geisel (1974-78), com a criação da hoje extinta Capre - Comissão de Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico, na época subordinada à Seplan - Secretaria de Planejamento da Presidência da República.

Em conseqüência da atuação da Capre, foram criados, entre 1976-80, aproximadamente 70% das empresas nacionais de informática, que atualmente (1981) respondem por 17% dos 9 mil equipamentos instalados no país.

Em 1979, a Capre foi substituída pela SEI - Secretaria Especial de Informática - cuja atuação, apesar de contradições e indefinições, é considerada positiva pelos empresários do setor.

Estes criticam, todavia, a excessiva flexibilidade da SEI com relação a projetos de empresas transnacionais, as quais controlam 80% do mercado nacional. Assim, em 1980, a SEI aprovou os projetos da IBM e da Hewlett-Packard de microcomputadores, segmento de mercado considerado reservado às empresas nacionais.

Embora situada mais perto dos centros do poder do que a extinta Capre, a SEI utiliza o mesmo instrumento para implantar uma política industrial no setor da microeletrônica: ela exerce o controle sobre as guias de importação de equipamentos e peças para a fabricação e comercialização de computadores no país.

Criada em outubro de 1979, como complementação do Conselho de Segurança Nacional, ela funciona junto ao Gabinete Militar da Presidência da República. Sua estrutura compreende uma Comissão de Informática integrada por representantes de seis ministérios, além da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional, do Serviço Nacional de Informações, do Estado-Maior das Forças Armadas e da Secretaria do Planejamento.

No que diz respeito às suas atribuições, podemos destacar que seu conjunto visa, como primeiro e principal objetivo, à elaboração de um plano nacional para o setor de computação eletrônica. Demais atribuições essenciais são dadas por pronunciamentos sobre benefícios fiscais, contratos que impliquem pagamento ou remessa de divisas, similaridade nacional, currículos escolares e regulamentação profissional.

O papel da SEI estende-se igualmente sobre tratados, acordos, convênios e compromissos internacionais atinentes à informática, de modo a desenvolver a utilização da mesma, formar pessoal especializado, pesquisar tecnologia e exercer papel normativo na fixação de normas e padrões de contratos de compra e venda de equipamentos, programas e demais componentes por órgãos públicos da administração federal.

A função de controle está também presente nas atribuições da SEI, na medida em que é encarregada de pronunciar-se sobre a conveniência de concessão de canais e meios de transmissão de dados no âmbito nacional, para a ligação de redes de comunicação de dados e, no plano internacional, para ligação a bancos de dados e redes no exterior.

Outro elemento integrante das atividades da SEI consiste na apreciação dos critérios de similaridade nacional, sem prejuízo das atribuições da Cacex quanto a este papel.

O acompanhamento do parque nacional de informática está incluído igualmente nas atribuições da SEI, compreendendo o cadastramento de equipamentos, bancos de dados, recursos humanos etc, com a criação de mecanismos legais e técnicos para a proteção do sigilo dos dados armazenados.

Finalmente, no plano de geração de tecnologia, a SEI deverá incentivar e viabilizar a criação de laboratórios e grupos universitários de pesquisa e desenvolvimento de tecnologia de insumos, componentes, equipamentos, programas e serviços empregados pela informática. A criação de um sistema de P&D tecnológico para a informática poderá ser coordenada por um instituto especializado, dotado de autonomia e constituído sob a forma de sociedade anônima, de modo a gerar economias externas de P&D e facilitar o acesso a informações e recursos na área de informática.

Entre outras, convém ainda destacar as seguintes recomendações da SEI:

- que o contratante principal de fornecimento de equipamento para controle de processos seja obrigatoriamente uma empresa nacional, que deverá ter seu centro de decisões e controle técnico e acionário em mãos de brasileiros;

- que todos os insumos (hardware e software) necessários à elaboração de sistemas de controle de processos e automação (CPA) devam ser adquiridos no mercado interno, sempre que houver disponibilidade dos mesmos;

- que nas concorrências internacionais, para aquisição de equipamentos, seja solicitado separadamente o controle de equipamento, a fim de que seja enquadrado na problemática de similaridade nacional;

- que todos esses itens façam parte do Plano Nacional de Informática/CPA.

Por outro lado, apesar das recomendações estabelecidas pela comissão de software e serviços, nenhuma medida efetiva foi adotada nestas áreas, inclusive as duas principais reivindicações do setor - reserva de mercado e financiamento - ainda não foram atendidas pela SEI.

As medidas de maior repercussão foram na área de hardware, onde a SEI teve um comportamento contraditório: por um lado, manteve a reserva de mercado para a indústria nacional na faixa dos minicomputadores, estabelecida na época da Capre; por outro lado, adotou medidas que colocaram tal orientação em risco, com decisões (liberação, para produção no Brasil, do 4331 da IBM e do microcomputador da HP) que provocaram inúmeros protestos, fazendo com que a SEI restringisse determinadas vantagens concedidas a essas empresas. Outra crítica que se faz à atuação da SEI refere-se à falta de maior participação dos próprios interessados, membros da comunidade científica. Trata-se de ampliar o debate e democratizar os mecanismos de consulta, de acordo com o pressuposto de que (... ) "política de informática não se faz só com atos normativos e equipamentos industriais, mas também - e principalmente - com recursos humanos qualificados e motivados".

5. CONSIDERAÇÕES À GUISA DE CONCLUSÃO

Ao tentarmos concluir o presente trabalho, convém ressaltar algumas das evidências empíricas e suas implicações, extraídas de uma pesquisa recentemente concluída.

- movimentação de materiais, componentes e produtos;

- controle das diferentes variáveis do processo de produção;

- execução de usinagem, deformação, mistura e fundição de metais e outros materiais;

- organização e controle de linhas de montagem;

- controle de qualidade, inspeção e análise;

- organização, planejamento e controle da produção e do estoque;

- elaboração, adaptação e verificação do design;

- monitoração e manutenção do equipamento;

- automação de serviços de escritório.

Contudo, ao analisar o potencial e as perspectivas do CN e do equipamento microeletrônico nos diversos setores do sistema produtivo, aparecem claramente as limitações ditadas pela estreiteza do mercado e a completa dependência da maioria das empresas de encomendas das empresas estatais, as quais, juntamente com as corporações transnacionais, dominam e controlam os setores dinâmicos da indústria de transformação.

Enquanto as primeiras sofreram cortes drásticos de recursos orçamentários para investimentos, as segundas procuram verticalizar sua produção a fim de utilizar melhor sua capacidade instalada, passando assim a ocupar segmentos do mercado até recentemente atendidos por pequenas e médias empresas nacionais. Disto se infere a pouca probabilidade de expansão mais rápida e intensa de CN, CNC e CIM (computerized integrated manufacturing), nos próximos anos, no Brasil. A absoluta maioria das empresas brasileiras do setor de bens de capital e de MF vive na dependência mais estreita do Estado, não somente para obter encomendas, mas também para ter acesso a capital de giro e, no caso de expansão ou inovação, a recursos subsidiados para os investimentos.

Entretanto, a introdução do CN na indústria metal-mecânica deve ser considerada como um passo a mais em direção à automação do processo de trabalho, embora a redução dos custos de produção não seja garantida, dependendo de uma série de fatores que passam a influir à medida que a utilização de CN ou de robôs alcance determinadas dimensões de escala.

Da mesma forma, a avaliação do impacto da introdução de CN nas fábricas sobre o emprego é dificultada pelo fato de a maioria dos estabelecimentos trabalharem com uma ou duas máquinas apenas. Teoricamente, a MFCN exige menos qualificação de seu operador do quê a máquina convencional, o que tende a criar problemas de desemprego entre operários de meia-idade, menos aptos a adaptarem-se ou a passarem por uma reciclagem, em vista de tarefas mais qualificadas. Por outro lado, surge a necessidade de novas funções, tais como programação e manutenção do equipamento de CN antes inexistente na fábrica. Empresas com equipamentos de origem diferente, usando linguagem e instruções diferentes, têm dificuldades para tirar todo o proveito da tecnologia moderna. Avanços mais recentes, tais como o CAD/CAM, e o desenvolvimento de sistemas que integram as tarefas dos robôs com as MFCN e outros equipamentos da fábrica tendem a concentrar-se, por seu custo e pela complexidade operacional, em estabelecimento de grande porte, permitindo os ganhos de escala e a conseqüente racionalização no uso de mão-de-obra.

O CAD realiza desenhos, projeções e análises através de gráficos computorizados numa tela, reduzindo essas operações a fórmulas matemáticas armazenadas na memória do computador. Uma das vantagens deste método, além de maior rapidez e eficiência, é de permitir ao desenhista o estudo de vários aspectos e ângulos do objeto desenhado, fazendo-o girar, ampliando-o ou separando seus segmentos ria tela.

Realizado o desenho, o sistema CAD permite analisar e testar o objeto, sujeitando-o à simulação eletrônica de diferentes temperaturas, pressões, tensões mecânicas etc. que possam ocorrer durante sua operação real. O teste na tela pode, assim, poupar tempo e dinheiro necessários à fabricação de protótipos e permite realizar certas modificações e aperfeiçoamentos, transmitindo-se as devidas instruções ao computador.

Fundamentais para essas operações são os programas de software, contendo milhares de instruções, as quais permitem as respostas imediatas do computador à pressão de uma tecla.

Por outro lado, verifica-se enorme vantagem no uso dê CAM,' cuja velocidade, precisão, constância e confiabilidade não podem ser igualadas pelos operadores manuais. Contudo, todas essas potencialidades são bastante aumentadas quando se combina CAD com CAM, permitindo a redução de número de operários em proporções de 5 ou 10:1.

A capacidade de poupar mão-de-obra pelo uso de equipamentos microeletrônicos de tipo CN e CAD/CAM, especialmente quando empregados em certas dimensões de escala, é incontestável e um dos motivos para sua adoção nas empresas. Além da produtividade mais elevada, eles oferecem uma relativa independência aos empregadores-usuários, face às reivindicações e pressões dos trabalhadores. Sua introdução nas empresas coincide, todavia, com uma época de grave recessão econômica, em que as perspectivas de criação de oportunidades de emprego são praticamente reduzidas a zero.

É essa característica ambivalente da tecnologia de CN e de CAD/CAM que deve merecer a atenção dos estudiosos e pesquisadores da inovação tecnológica. Se, por um lado, seu uso promete substancial aumento de produtividade e, assim, maior competitividade nos mercados interno e externo, por outro lado, sua expansão e generalização ameaçam agravar o problema de desemprego nos países que sofrem de sérias distorções estruturais em seu mercado de trabalho.

Os investimentos nestas novas tecnologias não visam necessariamente a expansão do volume de produção, mas a racionalização do processo de produção, substituindo mão-de-obra que perceba altos salários.

O potencial do microprocessor, além de reduzir enormemente o espaço necessário para o leiaute, permite substituir centenas de peças móveis, eliminando destarte o trabalho e o tempo necessários para a fabricação das mesmas peças e sua montagem.

Em conseqüência, a microeletrônica penetra e tende a conquistar setores sucessivos da indústria, dos serviços e mesmo da agricultura, deslocando contingentes crescentes de mão-de-obra, mesmo em ramos tradicionalmente intensivos de mão-de-obra não-qualificada, como a indústria têxtil. A substituição da mão-de-obra não-qualificada pelas máquinas comandadas eletronicamente tende, a médio prazo, a anular as vantagens comparativas de mão-de-obra barata, trunfo importante dos novos países industrializados na nova divisão internacional de trabalho.

Finalmente, além dos efeitos sobre o nível de emprego, o uso crescente de computadores e de microprocessores tende à degradação e desqualificação da mão-de-obra, à medida em que funções importantes do processo de trabalho, tais como a programação e o controle, são transferidas da oficina e do operário para o escritório e o "colarinho branco". O uso de equipamento eletrônico tende a organizar o processo de trabalho de acordo com exigências do computador e da nova tecnologia, o que resulta, geralmente, em um maior controle sobre os trabalhadores. A aceleração das cadências, das linhas de montagem e do fluxo geral das operações torna o trabalho ainda mais alienado, reduzindo os operários a meros acessórios intercambiáveis da máquina.

Uma das características mais salientes da MFCN é seu custo maior (5-10X) quando comparado com a MF convencional, o que exige maior racionalização de seu uso em pelo menos dois e, às vezes, até três turnos. Essa necessidade de uso intensivo da máquina para se amortizar, em prazo mínimo, o capital investido, é contrabalançada pelas oscilações do mercado, especialmente numa época de recessão econômica, que não permite previsão e planejamento da utilização da MFCN. Por isso, as empresas tendem a comprar uma MFCN quando prevêem, com razoável grau de confiabilidade, um período de demanda elevada por produtos de alta precisão e qualidade, em lotes que tornem seu uso econômico e financeiramente rentáveis. À medida que se expande e generaliza a técnica de CAD/CAM, empresas de pequeno porte e menos recursos poderão adquirir programas de produção pré-elaborados, seja dos vendedores das MFCN ou de seus clientes. CAD/CAM e seu desenvolvimento futuro - CIM - computer integrated manufacturing - inserem a promessa de imensos ganhos em produtividade, redução de custos e racionalização completa dos processos de produção, mais do que qualquer outra inovação tecnológica no passado. Não devemos esquecer, todavia, que a racionalidade funcional nas empresas não se traduz automaticamente em racionalidade global e substantiva, a nível societário.

A penetração do microprocessor na indústria tem resultado em desemprego tecnológico, numa época em que o próprio setor terciário sofre os efeitos da racionalização dos serviços.

A introdução do micro chip na informática, aumentando a velocidade do processamento e, portanto, a produtividade do trabalho, resulta também, por seu volume reduzido, em menor demanda e custo da matériaprima e de transportes. Coincidindo com a queda da força de trabalho na agricultura, a automação crescente da indústria e dos serviços agrava os problemas de desemprego, em todos os países assolados pela recessão.

O mais sério desafio da automação, todavia, é representado pela tendência que lhe é inerente de reforçar a divisão de trabalho e, com ela, o controle centralizador e autoritário sobre os operários, ao mesmo tempo que acentua as características alienadoras do processo de trabalho social.

Resumindo, é possível apontar as seguintes evidências e tendências, embora sujeitas à confirmação mediante uma linha de estudos e investigações, a ser elaborada e desenvolvida futuramente:

- a introdução do comando numérico torna as indústrias mais capital-intensivas e leva ao desenvolvimento de processos de produção mais integrados;

- o desenvolvimento industrial brasileiro, mormente nas últimas duas décadas, acentuou o ingresso de muitas empresas em atividades altamente capital e P&D-intensivas, onde a precisão, a qualidade e o design do produto são essenciais para sua aceitação e competitividade no mercado;

- a introdução de CN e de outros processos baseados em microeletrônica tende a impulsionar a concentração e centralização de capital, na indústria e no setor de serviços, seja pelos ganhos de escala, seja pelas necessidades de maior volume de capital;

- o recurso à tecnologia baseada em microeletrônica resulta em redução de capital por unidade produzida (output); contudo, representa um aumento de capital por unidade de trabalho, ou seja, torna as empresas mais capital-intensivas. A paulatina transformação de processos de produção, de L-intensivos para K-intensivos, implica em necessidade imperiosa de formação de capital, em níveis mais elevados, de difícil concretização nos países em desenvolvimento;

- a redução proporcional do custo do trabalho nos custos totais diminui a vantagem dos salários mais baixos nos NIC's, que tornou possível a produção e exportação de bens de consumo manufaturados, nesses últimos anos. O uso de CNC e da automação em geral devolve condições de competitividade na produção e venda de bens antes mão-de-obra-intensivos aos países mais desenvolvidos;

- o processo de produção baseado no uso intensivo de microeletrônica aumentou a eficiência, permitindo a redução de mão-de-obra, do espaço para o leiaute, do número de insumos, do estoque, de peças de reposição, enfim, de matérias-primas em geral, o que tende a reduzir o nível de emprego, mesmo em períodos de investimento relativamente elevado, resultando em "crescimento sem emprego" (jobless growth);

- a introdução da microeletrônica na produção industrial e no setor de serviços não deve ser analisada como um fenômeno isolado e estanque. Ela representa, em última análise, uma etapa - talvez decisiva - do processo de divisão social de trabalho, cuja característica fundamental é a separação entre o "saber" e o "fazer". A nova tecnologia (CN, CNC, automação etc), transferindo mais funções e tarefas da oficina para o escritório, reforça a posição de dominação dos empresários e administradores nas empresas e da tecnologia, em geral.

6. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DAS PERSPECTIVAS ...

O comando numérico, tal como outros avanços tecnológicos, está sendo aclamado como fator de progresso social, apto a contribuir para a redução das tarefas pesadas e da privação material, e capaz de criar novas oportunidades para o lazer e a realização pessoal.

Não pode haver dúvidas quanto aos profundos impactos econômicos, sociais e mesmo políticos causados pela introdução da microeletrônica no processo produtivo. Entretanto, mudanças tecnológicas não ocorrem num vácuo, ou em um organismo social abstrato. Em nossa sociedade, inovações têm produzido e, muito provavelmente, continuarão a produzir benefícios para aqueles que controlam o capital e os meios de produção.

Devido à nossa estrutura sócio-econômica, é quase certo que, à falta de mudanças institucionais e políticas, uma ampla parcela da população não será beneficiada pelas inovações tecnológicas e, eventualmente, encontrar-se-á em situação pior, após sua plena difusão.

Embora isto possa parecer um argumento abstrato, existe evidência empírica suficiente sobre os efeitos da "revolução verde" nas condições de vida das camadas mais pobres nos países em desenvolvimento.

Mesmo nos NICs (newly industrialized countries), mudanças tecnológicas de CN, CNC, CAD/CAM e CIM resultam na eliminação contínua de empregos de certa qualificação e criam dificuldades crescentes para o ingresso de indivíduos com qualificação limitada no mercado de trabalho.

Em conseqüência, ocorre um aumento contínuo no número dos que sofrem do desemprego estrutural, e que são incapazes de realizar certas tarefas, profundamente alteradas pelas inovações no sistema produtivo.

Essa tendência torna-se mais nítida nos países em desenvolvimento, com largos contingentes da população desempregada ou subempregada, e que não têm chances de ter acesso às mudanças tecnológicas e a seu potencial para o desenvolvimento.

Na ausência de mudanças estruturais concomitantes no sistema social, mesmo as medidas concebidas para ajudar aos pobres podem conduzir à acumulação acelerada por aqueles que detêm o controle da riqueza e do poder.

Nas condições prevalecentes de nosso sistema sócio-econômico, nenhir.ia inovação tecnológica poderia por si só resolver os problemas de que padece a maioria da humanidade.

A fraqueza e a vulnerabilidade dos países em desenvolvimento, cujas economias estão baseadas em um ou dois produtos de exportação, são agravadas por uma estrutura social e um sistema político internos que se mostraram incapazes de absorver e assimilar as conseqüências políticas e culturais das mudanças tecnológicas.

Os obstáculos para uma difusão mais ampla das inovações tecnológicas revolucionárias parecem ser de dois tipos. De um lado, a presença de poderosos interesses das TNCs - proprietárias das inovações protegidas por patentes, sistema de licenças, contratos e disponibilidade superiores em recursos financeiros e de P&D - que procuram manter e ampliar suas vantagens frente às empresas concorrentes. Por outro lado, regimes políticos autoritários funcionam como barreira à difusão dos benefícios decorrentes da mudança tecnológica, benefícios esses expressos sob forma de salários mais elevados e uma distribuição da renda mais equitativa, que constituem as condições básicas para uma sociedade democrática e mais equilibrada.

  • 3 Rattner, Henrique, coord.; Machline, Claude & Udry, Olivier. Produção e difusão de máquinas-ferramenta de comando numérico. EAESP/FGV, 1981. mimeogr.
  • 1
  • 2
    Deve ainda manifestar-se sobre a conveniência de importações de componentes, insumos etc, juntamente com
    a Cacex, pronunciando-se também sobre as tarifas aduaneiras a serem aplicadas neste caso, junto com o Conselho de Polícia Aduaneira (CPA).
  • 3
    O equipamento microeletrônico (computadores, CN, CNC e CIM), embora de alto custo pelo denso conteúdo de capital e P&D, oferece uma série de vantagens potenciais, tais como redução dos custos de produção, do tempo operacional, do tamanho da planta e do equipamento, dos períodos de interrupção do processo de produção etc, ao mesmo tempo que aumenta a flexibilidade, a complexidade e a confiabilidade dos equipamentos, permitindo ainda sua integração sistêmica e compatibilização com subsistemas de informação e comunicação. Seu potencial de aplicação (no processo de produção industrial é praticamente ilimitado e abrange entre outros:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Set 1982
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