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O que faz o Brasil, Brasil?

RESENHAS

Fernando C. Prestes Motta

Professor titular do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV

O QUE FAZ O BRASIL, BRASIL?

ROBERTO DaMATTA

Rio de Janeiro, Rocco, 1989,125 páginas.

Garoto esperto!

Quatrocentos e noventa

anos de conciliação.

Jamais ouvi de um japonês, de um canadense ou de um norte-americano nem mesmo a mais leve indicação de se considerarem patrícios de Deus. Entretanto, quantas vezes ouvi brasileiros expressarem de forma inequívoca essa idéia! Num livro intitulado Explorações: Ensaios de Sociologia Interpretativa, Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro que tão bem tem captado as peculiaridades de nossa sociedade, analisa essa noção, lembrando que Deus é concebido como ideal de totalidade, totalidade que só se pode pensar a partir das divisões infinitas nas quais o universo se apresenta, totalidade que, no caso brasileiro, só pode ser pensada como integração de dimensões bastante separadas, como a rua, a casa e o "outro mundo", integração que concilie o alto e o baixo, o forte e o fraco, o Estado, a sociedade e o cidadão, a lei e a vida, o amigo e a autoridade, o "caxias" e o malandro.

Em casa, junto aos familiares, padrinhos e amigos, vivo no conforto das relações pessoais, num mundo em que devo e recebo favores, no qual devo e me devem respeito, afeto e distinção, Na rua, ninguém me deve nada, eu e os demais cooperamos e competimos por recursos escassos sob o primado das regras, das leis e das normas das instituições da vida econômica e profissional.

O que não acho em casa, procuro na rua. E se não acho nem em casa, nem na rua? Sendo brasileiro, é provável que procure no "outro mundo", rezando, fazendo promessas, indo às igrejas, terreiros ou casas abertas aos aflitos em geral. É bem possível que eu vá a todos eles, que chame Nossa Senhora da Conceição de Iemanjá ou Iemanjá de Nossa Senhora da Conceição.

A especificidade da cultura brasileira não está na separação ente as diversas esperas da vida, mas sim em sua integração, Com freqüência, o Pai, no mistério da Santíssima Trindade, é associado à lei e à impessoalidade, o Filho, à humanidade e ao pessoal e, ensina a Igreja Católica, o Espirito Santo é o amor que os une- Essa idéia de Deus é fascinante, ao exibir totalidade e diferença, fazendo do amor o cimento que relaciona Pai e Filho. A sociedade brasileira também se pensa dessa forma: divisão e relação. Para compreender a cultura de nossa sociedade, é preciso compreender que "o relacionar" é fundamental.

De modo mais sistemático, numa linguagem a cujo sortilégio é difícil resistir e igualmente difícil não compreender, mesmo desconhecendo antropologia, Roberto DaMatta explora esse e outros temas em O que faz o Brasil, Brasil? Difícil também é não concordar com a tese da impossibilidade de compreender o Brasil a partir de uma única causa ou princípio social. O que torna o Brasil compreensível é UIÍISL lógica comum que perpassa a sociedade, lógica que DaMatta chama relacional, a manifestar-se como negociação e conciliação, no domínio político, numa ênfase na área pública que só tem paralelo no vigor da iniciativa privada, fazendo da economia brasileira um caso especial em muitos sentidos e num sincretismo religioso onde as crenças, rituais e práticas em geral das religiões populares e, sobretudo, as de origem africana, convivem com o catolicismo romano, tendo santos católicos correspondentes entre os orixás.

Interessantes, igualmente, são as produções literárias, musicais e artísticas de todo tipo que essa sociedade exibe. Num país onde os espaços internos estão extremamente divididos, onde o luxo e a vida convivem com a fome e a morte, onde o mais moderno capitalismo de oligopólios coexiste com a economia de subsistência, onde as mais antigas superstições e a tecnologia de ponta disputam espaços e mentes nas periferias das cidades ou nos classificados dos jornais, a música de Chico Buarque expressa as divisões, ao mesmo tempo que opera a mediação. No fundo, gostando das musicas de Chico Buarque, irmanamo-nos de tal sorte que num tempo remoto na nossa consciência havia até quem dissesse que gostava do lado romântico do grande compositor-cantor.

Tendo a crer que o que de fato gostamos na música de Chico é o que ela traz de mais brasileiro ao expor divisões e integração. De fato, nós, brasileiros, tanto aspiramos ao total, à compietude, que há até quem veja na nossa decantada hospitalidade, que talvez realmente não conheça outra similar, metafórica antropofagia a revelar-se na esfera cultural e afetiva. Não menos metaforicamente antropofágico parece o nosso racismo peculiar, o desejo de diluir no sangue brasileiro todas as raças e etnias, sempre no sentido de uma arianização beneficiada pelo melhor de cada povo ou raça. Disso não têm escapado mesmo mulatos e negros brasileiros ao verem, no sangue dos bantos e sudaneses, "o carvão para a fornalha das raças", o elemento propulsor do aperfeiçoamento racial, como colocou Cassiano Ricardo.

Parece ser usual ao brasileiro a opção pelos dois, quando dois caminhos se apresentem. Assim, o brasileiro exige, a um só tempo, que se lhe dispense o tratamento de indivíduo e o de pessoa. O de individuo, dentro da melhor tradição democrática, que confere a todos os homens direitos que são fundamentais, e o de pessoa, na melhor tradição aristocrática, que confere aos homens direitos desiguais conforme seu nascimento ou relações sociais. Se isso parece a qualquer um contraditório é porque, no Brasil, a distância entre intenção e gesto que, segundo texto declamado pelo moçambicano e brasileiro Rui Guerra, herdamos no sangue lusitano, não difere da distância entre discurso e prática, salvo quando o empresário progressista paga decentemente sua empregada doméstica e quando os juramentos feitos no altar são mantidos até que a morte os separe, quando o discurso revolucionário e o voto no "partido de esquerda" são acompanhados da disposição do burguês médio, grande ou pequeno, de renunciar ao colégio "aberto" dos filhos, a telas ou gravuras dos artistas da moda, ao automóvel prestigioso e outras pequenos luxos que garantem a reprodução social, à série alternada "pelicano, ovo, pelicano, ovo,..." divulgada pelo sociólogo Pierre Bourdieu, Isso parece difícil, é certo. Aliás, mesmo alguns poucos casos, que observei ou de que ouvi falar, nunca me pareceram convincentes.

Se, para alguns, é difícil entender por que era tão italiano O Guarani de Carlos Gomes, é igualmente difícil compreender o sucesso da lenda do lobisomen, a força de Cauby Peixoto cantando a composição de Chico Buarque, o enigma do personagem Diadorim, de Guimarães Rosa, o fenômeno Caetano Veloso, a perspicácia do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade, a excitante Gabriela, de Jorge Amado, e a natural e sabida boneca de pano de Monteiro Lobato. Entretanto, todos esses fenômenos são, entre muitos, a melhor expressão de nossa cultura, que permite a coexistência de um lado oficial c legal e de outro oficioso e pessoal, do critério impessoal e do tratamento pessoal, e até mesmo, de um Estado federativo que, sob tantos aspectos, mais parece unitário. Aliás, é comum ouvir no país a expressão: "Para os amigos tudo, para os inimigos a lei".

A leitura que DaMatta faz da sociedade brasileira indica o "estigma" de uma sociedade dividida onde, às vezes, se torna difícil perceber que os membros dos diferentes estratos sociais são patrícios que falam uma mesma língua, não apenas porque, com freqüência, a comunicação direta é difícil, como porque até os tipos físicos são muito diferentes; isso, para não falar do que Bourdieu chamou "eixo corporal", conjunto de sinais de origem social que se referem aos gestos, movimentos, forma de expressão e vestuário. No Brasil, evidentemente, há ainda a desnutrição, a falta de saúde, de educação formal e de oportunidades educativas exte-escolares e a precariedade da saúde pública e a baixa renda a refletirem-se em diversos comportamentos e situações, Acrescentem-se a isso as diferenças de oalem econômica, social e étnica que, conjugadas, tornam também rico e pobre tipos muito diversos.

Entretanto, apesar dâ enorme gravidade dessa situação, DaMatta também evidencia a capacidade quase ilimitada de sintetizar, relacionar e conciliar o que caracteriza o brasileiro. Difícil imaginar no Brasil uma homogeinização semelhante à que ocorreu em sociedades como a norte-americana e a soviética, ou o perfil que, aos nossos olhos, parecem ter, muitas culturas orientais, entre as quais a japonesa. For outro lado, também o individualismo - que não contradiz a homogeneidade cultural norte-americana, que se torna motivo de preocupações em outros países desenvolvidos, notadamente europeus - não parece encontrar terreno muito fértil no Brasil. Ao sintetizar, relacionar e relativizar, o povo brasileiro mantém o deslumbramento da descoberta e da invenção; e ê nessa capacidade que se deve investir, como forma de sair da crise social que assola o país - que mais parece um suicídio das elites que talvez tenham esquecido alguns dos traços que definem o que é ser brasileiro.

O brasileiro é capaz especialmente de fazer o Carnaval, momento supremo da lógica relacional, onde o impossível inexiste, onde tudo e todos se combinam, onde o jovem executivo paga módica mente para desfilar na Marquês de Sapucai, em meio às crianças, jovens e velhos dos morros que, subitamente, se transformam em autênticos marajás indianos, em Luiz XVI e Maria Antonieta, em samurais, em artistas, políticos e outras personalidades locais. Não se podem esperar dos brasileiros comportamentos de americanos e japoneses. Num sentido muito especial, o que ê preciso é "carnavalizar" a rua, isto é, possibilitar o reflorescimento da inventividade brasileira na sua capacidade relacional de integração das diversas esferas da vida. É claro, a vitória numa Copa do Mundo facilitaria muito. Se não der, até concurso de "miss" pode ajudar. Uma pequena ajuda, algo que se possa comemorar com uma boa feijoada ou um bom vatapá, comidas de brasileiro, que, além de tudo mais, são líquidas e sólidas a um só tempo, para que nada se deixe de lado e, entre um estado e outro, escolham-se os dois.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1990
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