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O papel do governo na proteção dos investidores

ARTIGO

O papel do governo na proteção dos investidores

Louis Loss

Professor na Harvard Law School

Os valores mobiliários são, segundo uma frase usada por um dos Comitês do Congresso em 1934, "uma mercadoria complicada". Ainda que ninguém possa imaginar um sistema de capital privado sem eles, é um fato lamentável que sua natureza essencial os converta em um instrumento inidôneo com o qual gente de moral duvidosa possa abusar dos despreparados e dos crédulos. Um historiador inglês, de nome John Francis, que escreveu sobre o Banco da Inglaterra em 1862, afirma ter visto com seus próprios olhos um prospecto de emissão de ações, distribuído em 1825 por uma empresa para "drenar o mar Vermelho em busca de ouro e jóias deixadas pelos egípcios em sua perseguição aos israelitas". Um descendente espiritual de tais promotores foi condenado por uma de nossas cortes federais, há apenas alguns anos, sob a acusação de ter otido mais de US$100 mil de pessoas de estados do Meio-Oeste norte-americano, bem como de províncias canadenses, por meio de um plano fraudulento que lhes parecera não menos fantástico: o Primeiro-Ministro Churchill, segundo consta, queria fazer algo para o Presidente Roosevelt, a fim de demonstrar sua gratidão pela ajuda norte-americana durante a guerra. O presidente, por sua vez, estava obrigado com um sócio do meliante em razão de seu trabalho de ter conseguido reaver US$23 milhões de pessoas que haviam fraudado o governo. Assim, continuava seu relato, organizou uma sociedade segundo "a lei canadense das sociedades secretas", e Churchill, bem como Rei George, convenceram o Parlamento inglês a pressionar o governo da Columbia Britânica, a fim de que este doasse à tal companhia 10 mil milhas quadradas de terras ricas em madeira, carvão e outros minerais. A empresa monopolizaria o mercado da "celanese". E, além de tudo, iria obter um empréstimo de USS60 milhões do Banco Internacional, porque os governos do Méximo, Austrália, índia e Nova Zelândia estavam interessados no projeto. Como se tudo isto ainda fosse pouco, o Rei George iria abdicar e morar na Columbia Britânica, no Canadá.

Assim, o primeiro problema criado pelo grande interesse nos valores mobiliários é como encontrar uma fórmula de proteger o público contra fraude - bem como a manipulação indevida do mercado - sem interferir nos negócios legítimos. Este problema é relativamente simples de solucionar, se comparado com os problemas mais delicados, ao menos em meu país, pelo crescente número de empresas modernas. Hoje já se reconhece que as macroempresas produziram dois fenômenos: a separação entre os conceitos de propriedade e controle, bem como a atomização do direito de propriedade. Existem atualmente cerca de 70 empresas, nos EUA, com capital de, ao menos, US$1 bilhão. Somente a American Telephone and Telegraph Company tem aproximadamente 1,5 milhão de acionistas registrados. Um estudo feito pela Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1956, demonstrou que cerca de 9 milhões de pessoas nos EUA são proprietárias de ações de capital aberto, fato que revela um crescimento de 33% em quatro anos. Na realidade existem tantos pequenos acionistas que a Bolsa de Valores de Nova Iorque cunhou a expressão "capitalismo do povo".

Estes são os fatores que moldaram a legislação dos valores mobiliários em meu país e, parece poder-se predizer, moldarão as leis em qualquer outro país cuja economia desenvolva características semelhantes. Qual o papel dos acionistas frente aos administradores? Deve a legislação reconhecer de forma explícita que as macroempresas são hoje geridas por diretores profissionais que "contratam" capital da mesma forma que se contrata trabalho? Ou deve a lei partir da presunção de que são os acionistas que, como proprietários, contratam os diretores? O primeiro conceito tem, ao menos para mim, colocações desagradáveis e perigosas, o que me obriga a adotar o conceito tradicional, o conceito da responsabilidade dos administradores em face dos acionistas. Mas é precisamente este conceito que aumenta muitos de nossos problemas. Como irão milhares, ou mesmo centenas de milhares de acionistas estar continuamente informados? Como irão exercer o direito eleitoral dentro de sua empresa, que é tão efetivo quanto político? Como serão protegidos contra o uso egoísta de informações confidenciais que tenham seus administradores ou controladores? Qual deve ser o papel do governo em face das companhias holdings, bem como das empresas de investimento?

Tenho a impressão que grande parte da economia mexicana se apoia sobre o setor público, em contraste com o que acontece em meu país. Na verdade, na medida em que um país viva sob o sistema de livre empresa, tais problemas devem, cedo ou tarde, ser abordados. Portanto, analisar brevemente tais problemas na Inglaterra, bem como nos EUA e Canadá, se reveste de um interesse mais do que acadêmico, pois experiências podem ser aproveitadas, da mesma forma que estes dois últimos países se valeram livremente da prática inglesa, quando suas próprias economias alcançaram um ponto similar de desenvolvimento.

No que se refere ao continente europeu, o investimento em valores mobiliários, por parte do público, não está tão desenvolvido como nos EUA, nem como na Inglaterra, e a filosofia regulamentadora do continente é baseada na resignada atitude que conclui pela impossibilidade de eliminar o risco das atividades de investimento. No México, segundo entendo, os valores mobiliários, ou pelo menos as ações, não são objeto de grandes investimentos por parte de particulares, ainda mais o Código Comercial mexicano está mais próximo dos cânones da Civil Law da Europa Ocidental do que da Common Law dos países de língua inglesa. Entretanto, também é fato que o campo dos valores mobiliários no México desenvolveu certas características que são peculiares ao nosso continente.

Uma de tais características é o órgão controlador autônomo, que vocês tiveram, de uma forma ou outra, desde 1939, e nós somente a partir de 1934, no campo federal. Outro traço comum em nossos países é a legislação específica que regula as sociedades de investimento. Este tipo de legislação não existe fora deste continente, até onde eu saiba, exceto no que se refira a certas disposições que digam respeito aos unit trust da legislação inglesa, de 1939, para a prevenção de fraudes. Creio ser prudente dizer neste momento que é muito mais adequado explorar os problemas da regulamentação antes que os abusos tenham oportunidade de se desenvolver, como vocês estão fazendo, do que fechar as portas do estábulo, depois que alguns cavalos foram roubados, como fizemos em meu país. De forma similar no campo das bolsas de valores, ainda que as bolsas francesas, inglesas e talvez outras na Europa possam estar dispostas a receber sugestões informais de seus governos, não conheço outros regulamentos governamentais das bolsas, além do México, EUA, algumas províncias canadenses, África do Sul e bem recentemente a índia, pela nova lei que regula os contratos com valores mobiliários, de 1956. É um fenômeno interessante que a bolsa de valores, na já há algum tempo Inglaterra socialista, viva sob o sistema de auto-regulação, enquanto os EUA, que é sobejamente conhecido como a cidadela do capitalismo, tenha uma regulamentação tão estrita. Olhando para o mercado livre, esta instituição é completamente desconhecida na Europa, ou está muito menos desenvolvida do que nos três países da América do Norte. E estes três países dividem todos os problemas especiais que são peculiares à atividade de mineração.

Peço desculpas por me concentrar no sistema regulador do mundo da Common Law, porém isto se deve simplesmente ao fato de que conheço muito pouco sobre as regulações semelhantes em outras partes do mundo. Nós advogados, com maior razão, devemos ser pragmáticos.

A história, logicamente, se inicia na Inglaterra. O Parlamento impôs na lei das sociedades (Companies Act), como condição, a emissão de prospecto; e isto desde 1844, depois de um relatório apresentado por um comitê especial, sob a presidência de Gladston, então jovem presidente da Junta Comercial. Este introduziu o princípio de proporcionar informações mínimas, de forma obrigatória, por meio da emissão de um prospecto, pela companhia que oferecia valores mobiliários ao público. As disposições concernentes às informações que o prospecto devia conter foram modificadas e reescritas, desde então, aproximadamente, uma vez a cada geração. Em 1890 o Parlamento promulgou a Lei da Responsabilidade dos Diretores (Director's Liability Act), hoje incorporada à lei societária, responsabilizando-os civilmente por declarações falsas contidas no prospecto, independentemente do dolo. Em 1939 veio à luz a Lei de Prevenção de Fraudes (Prevention of Fraud Investments Act), que exige o registro dos corretores de valores, além de criar normas dirigidas àqueles que os ingleses chamam de share pushing.

As disposições sobre o prospecto, contidas na lei societária inglesa - a lei está em vigor desde 1947 - influenciaram muito a legislação da Comunidade Britânica, inclusive a lei societária da índia, de 1956. Certamente, de maneira menos sensível, mas ainda de forma significativa, as normas inglesas concernentes ao prospecto se sentem na legislaçlão federal de meu país.

A legislação sobre valores mobiliários nos EUA e Canadá provém da Inglaterra. A transposição foi bem mais complicada devido, em parte, ao sistema federal que ambos países compartem com o México. As diferenças entre a lei fundamental do Canadá, segundo a qual são as províncias cujos governos têm poderes limitados, as Constituições do México e dos EUA se assemelham ao outorgarem poderes limitados ao governo federal, com autoridade residual aos estados. Afirmar isto, desde logo, será apenas iniciar o exame de nossos problemas constitucionais, porque os poderes outorgados ao governo federal do México são consideravelmente maiores, segundo creio, do que os outorgados ao governo federal de meu país, e talvez existam limitações específicas no que se refere aos poderes reservados aos estados.

No campo financeiro/comercial, nossa Constituição outorga ao Congresso o poder de cobrar impostos, levantar empréstimos, cunhar moeda e legislar sobre falências. Porém, das faculdades do governo federal que foram mais importantes, no que se refere à legislação sobre os valores mobiliários, sobressai a que dá o controle sobre os correios e a autoridade para regular o comércio interestadual e internacional.

À diferença do que ocorre no México, onde a lei comercial é federal, no meu país a lei societária e a legislação comercial em geral - bem como as leis referentes aos contratos, torts, propriedade etc. - são de competência estadual. Quer dizer, este grande conjunto de leis é ainda a Common Law herdada da Inglaterra, ressalvada no que diga respeito a diferenças de interpretação que tenham dado nossos tribunais, ou na medida em que tenham sido acrescidas pelas legislações estaduais. Como conseqüência, nossa lei comercial básica não é uniforme. Ainda que haja semelhança fundamental entre a Common Law e as legislações mercantis de nossos estados, há diferenças importantes entre uma jurisdição e outra.

No que se refere às formas de organizar das sociedades anônimas, é interessante notar que os três sistemas federativos desenvolveram três sistemáticas distintas. As sociedades anônimas mexicanas se organizaram todas conforme a lei federal. No Canadá há empresas incorporadas tanto segundo a lei da província, quanto sob a legislação federal. Em meu país, ainda que provavelmente fosse constitucional que o governo federal exigisse primeiro a incorporação sob a legislação federal, antes de se dedicar ao comércio interestadual ou internacional, o Congresso nunca exigia tal permissão, excetuados os bancos nacionais e alguns outros tipos de sociedade. O grupo de normas complexas sobre valores mobiliários, que o Congresso aprovou, entre os anos de 1933 e 1940, provocou muitos dos efeitos que uma legislação federal sobre as sociedades anônimas teria causado. Ainda mais que em algum possível conflito entre a lei federal e local, a primeira prevalece, segundo a previsão de nossa Constituição. Mas persiste o fato de que nossas sociedades anônimas se incorporam, em sua imensa maioria, segundo a legislação estadual ou territorial, bem como que cada uma destas unidades políticas tem legislações distintas sobre aspectos particulares. O Congresso teve muito cuidado em preservar a eficácia das leis estaduais quando elaborou a legislação federal sobre valores mobiliários.

Devo explicar também, ainda que muitos já saibam, que sob nosso sistema constitucional, os estados podem legislar em áreas nas quais o Congresso esteja autorizado a atuar, como é o caso do comércio interestadual, sempre e quando o Congresso permaneça em silêncio. Quando o Congresso legisla em alguma área particular, pode ou não adquirir um direito de prioridade neste campo. Na área dos valores mobiliários, como já disse, não houve uma legislação federal (excetuada a referente às empresas ferroviárias) até 1933, e o Congresso teve grande dificuldade, nesta época, mais de preservar do que substituir as legislações estaduais, mesmo nos casos concernentes às transações interestaduais oui internacionais. Tal fato é que torna complicada nos EUA a legislação sobre valores mobiliários. O advogado que represente uma grande companhia que queira fazer ofertas que abranjam todo o país - talvez uma oferta adicional de ações a seus próprios acionistas - deve não só registrar a emissão com a Secürities and Exchange Comission, em Washington, como também deve adequá-la às legislações de 40 e tantos estados; em todos com suas diversas definições, isenções, seus procedimentos e seus requisitos substantivos. Ainda mais, todos os registros devem sincronizar-se de maneira que a oferta possa ser feita simultaneamente em todo o país, já que seria difícil encontrar um subscritor que estivesse disposto a assumir os riscos de mudança de cotação do mercado, por um período de dias ou semanas. Realizar tal tarefa exige das pessoas a consecução de verdadeiro milagre. A explicação deste duplo sistema de regulamentação encontra-se no axioma do Juiz Holmes: "A vida do direito não é da lógica, mas da experiência. " Se o período de 1840 a 1914, que produziu nossas grandes leis antimonopolistas, tivesse assistido também ao surgimento do controle federal sobre os valores mobiliários, nunca teria aparecido qualquer legislação estadual relevante nesta área. Mas a regulamentação federal dos valores mobiliários - como a legislação social, na esfera federal, e boa parte de nossa legislação federal nas relações do trabalho, atualmente codificada - data somente da política do New Deal do Presidente Roosevelt, em 1933. Certamente houve alguns movimentos para a obtenção de legislação sobre valores mobiliários no princípio do século; entretanto, tudo o que produz o New Deal nunca teria ocorrido se não tivesse havido o colapso do mercado de valores mobiliários em 1929.

Tal situação deixou os EUA livres para atuar no primeiro terço deste século e eles o fizeram. De fato, houve legislações esporádicas com data anterior, mas somente aplicadas às estradas de ferro e a empresas prestadoras de serviços públicos. Hoje em dia 39 de nossos 48 estados, assim como o Distrito de Columbia, Havaí e Porto Rico, têm legislação específica regulamntando a emissão de valores mobiliários por companhias de eletricidade ou gás e, freqüentemente, ambas.

A legislação sobre valores mobiliários no plano estadual data da segunda década deste século. Algumas das fraudes levadas a cabo naqueles dias foram de tal sorte cínicas, que alguém afirmou que eles eram capazes de "vender terrenos no céu azul ". Tal fato deu origem a que as leis estaduais ficassem popularmente conhecidas como blue sky laws. A mania se difundiu de tal maneira que houve, de uma forma ou outra, imediatamente, blue sky laws em cada um dos 48 estados, excetuando Delaware e Nevada; também houve leis no Havaí e em cada uma das 10 províncias canadenses. Com exceção de uns poucos estados, as leis foram bem além da filosofia que inspirou a lei societária inglesa (English Company Act). Nas províncias canadenses estas leis se sobrepuseram às leis societárias das províncias, as quais, em sua maior parte, eram inspiradas na lei britânica. A filosofia inglesa exige simplesmente uma verdadeira e ampla informação. Não existe nenhum organismo governamental semelhante às Comissões de Valores Mobiliários de nossos países. Os prospectos são simplemente registrados na Junta Comercial. Estes não são examinados. É crime deixar de dar o prospecto a qualquer pessoa à qual se queira vender ações ou obrigações. Mas inexiste sanção penal - ou administrativa - por inexatidão dos prospectos. A sanção é simplesmente a responsabilidade civil em que incorre, individualmente, cada diretor ou promotor de vendas; e tal responsabilidade consiste em pagar ao comprador qualquer dano que resulte de uma declaração falsa incluída no prospecto.

A teoria, em poucas palavras, é que o governo não deve dizer quais valores mobiliários podem ou não ser vendidos ao público. Deve somente fazer com que um completo e adequado volume de informações chegue àqueles que são convidados a comprar valores mobiliários . Portanto, se um futuro investidor não se dá ao trabalho de se informar antes de arriscar seu dinheiro, ele não deve culpar a ninguém, além de si próprio. O Comitê presidido por Lord Davey disse em 1895: se o governo quisesse fazer mais neste campo, "seria jogar o que é responsabilidade do indivíduo sobre os ombros do Estado, e daria o fictício e irreal sentido de segurança ao investidor, bem como poderia conduzir a graves abusos".

Há uma cuidadosa grandeza em tal filosofia. Tem um halo da República de Plantão e que em meu país se costuma chamar de democracia jeffersoniana; "todos os homens foram criados iguais" e "a verdade os fará livres". Mas, desde logo, se todos os homens são detentores do direito inalienável de receberem o mesmo tratamento em face da lei, eles não foram dotados de igual sabedoria pelo Criador. O problema se reduz se o investidor comum se dará ao trabalho de estudar o prospecto de uma empresa moderna, até as últimas notas de rodapé dos estudos financeiros ou, mais ainda, se estará capacitado a entender o que lê. O prospecto típico não é leitura apropriada para ser feita antes de dormir.

Com algumas exceções, as legislações estaduais decidiram que seus cidadãos necessitam de algo mais do que simples informação. As 47 leis variam bastante em suas terminologias, mas podem ser entendidas dentro de três filosofias gerais. A primeira é a chamada filosofia da fraude: o procurador-geral (do órgão regulador) bem como o administrador de valores mobiliários têm autoridade suficiente para investigar fraudes, peticionar perante os tribunais para evitar a continuidade dc determinada prática, bem como para propor ações penais. A segunda filosofia exige o registro dos agentes e corretores, bem como, em época mais recente, dos conselheiros de investimento. A terceira filosofia exige da empresa interessada ou do corretor o registro dos próprios valores mobiliários, e não a simples informação, porém baseada em vários requisitos substantivos. Quer dizer, o legislador estadual ordena ao administrador de valores mobiliários que examine o registro de lançamento e permita que este entre em vigor somente se concluir que a oferta "não tenda a provocar fraude", ou que os termos da oferta, bem como o plano proposto para o negócio "são justos e equitativos", bem como não se proponha a emitir uma quantidade excessiva de valores mobiliários com a integralização em outros bens que não dinheiro, ou em troca de algo intangível, tal como a boa vontade. Há muitos requisitos semelhantes que variam de estado para estado. Em alguns há o requisito genérico que simplesmente fala em termos de "interesse público".

Estas três filosofias reguladoras - a fraude, o registro de agentes e de corretores, e os registros dos valores mobiliários - não são mutuamente exclusivos. A maioria dos estados segue as três. Tal não significa que as blue sky laws sejam igualmente exigentes em todo o país. Em termos gerais, temos que as legislações tendem a ser mais restritivas nos estados agrários do Meio-Oeste do que nos mais industrializados do Nordeste. Mas, desde logo, esta é uma enorme generalização.

Pelo que se vê com o desenrolar dos fatos num passado recente, exite alguma esperança de que as legislações estaduais tendem a simplificar-se, assim como de que venham a coordenar-se com a posterior legislação federal de que tratarei mais adiante. Possuímos uma organização chamada National Conference of Commissioners of Uniform State Law. Esta organização é integrada por representantes de cada estado e território, bem como do Distrito de Columbia, e aprovou um bom número de leis modelos ou uniformes, a maioria delas no campo mercantil. Ainda que não tenham poderes legislativos, suas recomendações obtiveram grande uniformidade em algumas áreas de nossa legislação estadual. Há três anos alguns representantes da National Conference pediram-me que elaborasse um projeto de legislação uniforme para os valores mobiliários. Como resultado de tal pedido, a Faculdade de Direito de Harvard iniciou um estudo, que durou dois anos, sobre a regulamentação estadual dos valores mobiliários, que dirige em cooperação com um comitê consultivo integrado por eminentes e qualificados representantes do governo, a Ordem dos Advogados e representantes do mercado de valores mobiliários. Como resultado, o que agora é o Uniform Securities Code foi aprovado no verão passado pela National Conference, pela Ordem dos Advogados e pela Associação Nacional dos Administradores de Valores. A lei foi substancialmente adotada em três estados e está em estudo em vários outros. Não é radicalmente diferente do modelo atualmente em vigor. Abrange as três filosofias reguladoras de que falei e está estruturada de tal forma que um estado possa adotar uma ou mais das três. Talvez seu ponto mais significativo seja sua coordenação com a legislação federal. É ainda muito cedo para dizer se tal legislação será adotada de forma ampla. Mas creio que há base para ser otimista.

Quando, finalmente, o Congresso entrou em cena em 1933, decidiu que uma legislação federal seria essencial porque as leis estaduais eram inadequadas para regular o que se havia convertido em legislação interestadual. A primeira decisão importante que o Congresso tinha que adotar era inglesa, ou a filosofia mais reguladora dos estados e das províncias canadenses. Escolher esta última estava claramene em maior consonância com a idéia de uma economia planejada manifestada no National Industrial Recovery Act com suas importantes repercussões nos diferentes setores industriais. Mas a consistência filosófica não é, certamente, a característica mais notável da legislação em uma democracia. Assim é que o Congresso escolheu a filosofia mais inofensiva, a da "informação", que prevalece na Inglaterra, em vez de optar pelos controles substantivos existentes nas leis dos estados.

O homem a quem talvez possa ser atribuída maior responsabilidade por tal decisão foi o preclaro ministro da Suprema Corte Louis D. Brandeis, cujo centenário celebramos recentemente em Harvard. Em sua obra Other people's money, publicada em 1914, ele disse que a publicidade era o melhor remédio para as enfermidades sociais e industriais em geral, bem como para os grandes ganhos dos underwriters. "A luz do sol é o melhor dos desinfetantes; a luz elétrica o policial mais eficiente." Ao mesmo tempo, também disse que a lei não deverá tentar evitar que os investidores façam maus negócios; não deverá sequer limitar os ganhos dos banqueiros, exceto, a incidentalmente, em relação às empresas ferroviárias ou prestadoras de serviços públicos. Citou a Pure Food Law como exemplo: não garantia a qualidade nem os preços, mas ajudava o consumidor a julgar a qualidade ao exigir que se informassem os ingredientes contidos nos alimentos que quisesse comprar.

Em 1931 o ministro da Suprema Corte Brandeis exarou um de seus famosos votos contrários no caso New State Ice Co. versus Liebmann, no qual a Corte decidiu unanimemente, ressalvado seu voto e do Ministro Stone, declarando sem efeito, com base na cláusula do due process of law da Constituição Federal, uma lei de Oklahoma que limitava o número de pessoas que teriam o direito de abrir empresas para explorar o negócio do gelo. Ele votou no sentido de se manter ao estado o direito de realizar experiências novas; advertindo que "devemos estar sempre de guarda para não erigirmos nossos preconceitos em princípios legais". Mas não estava totalmente convencido de qu? pessoalmente estaria de acordo com a necessidade de se obter licença estadual como requisito para investir novos capitais em setor industrial já saturado: "o remédio poderá trazer males mais graves do que a moléstia (...) As ciências econômicas e sociais são, em grande parte, mares inexplorados (...) A nova proposta abrange uma área enorme de controle (...) O homem é fraco e seu juízo falível".

Paralelamente Brandeis advertiu, no mesmo voto famoso, que: "A negação ao direito ao experimento pode estar cheia de graves conseqüências para a nação. É um dos aspectos positivos do sistema federal aquele que permite a somente um e valente estado poder, se seus cidadãos o desejarem, servir com laboratório; e fazer novas experiências sociais e econômicas, sem arriscar a tranqüilidade do resto do país." Seja devido a este inspirado federalismo ao qual nossos países estão ligados ou por considerações de oportunidade política - talvez tenha sido um pouco de ambos - o Congresso não interferiu nas drásticas blue sky laws estaduais.

A filosofia brandeisiana que prevaleceu no aspecto federal não foi insuscetível de crítica. O atual ministro da Corte Suprema Douglas, que estava destinado a ser presidente da Securities and Exchange Comission e posteriormente substituiu Brandeis na Corte Suprema, escreveu, como professor de direito na Universidade de Yale, em 1934, que a lei dos valores mobiliários de 1933 "era superficial". Era essencialmente, disse, "um pedaço de legislação do século XIX", a qual, fora de qualquer realidade, previa a volta a tempos mais simplificados dos pequenos complexos industriais. Douglas não clamava tampouco por uma legislação federal do tipo blue sky laws. Tal tipo de controle, com alcance nacional, pensava ele, seria demasiado complexo. Por isso advogava uma filosofia que combinasse a auto-regulação por parte do próprio setor interessado, com uma supervisão governamental, como fora feito na regulamentação da National Recovery Administration, as quais foram prontamente declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte.

Hoje em dia o debate parece haver terminado. Agora ninguém no governo quer ir além de uma filosofia de informação antecipada, excetuadas as áreas das empresas ferroviárias, de serviços públicos e das sociedades de investimento. Ao mesmo tempo, a administração Ei senhower apoiou bastante a legislação federal sobre valores mobiliários, como o fez quando da reformulação da legislação da década de 30. Há pouca gente no mercado que não considere a legislação federal sobre valores mobiliários um instrumento basicamente seguro, que muito fez por restaurar a confiança do público no mercado. Em um debate público em Harvard, há alguns anos, ouvi o antigo líder do Partido Socialista, Sr. Thomas, sustentar o mesmo critério, e sua opinião é muito importante quando se leva em consideração que o New Deal incorporou muitas de suas idéias a nossa sociedade capitalista.

No que me toca, devo confessar um certo preconceito resultante do fato de que a SEC e eu crescemos juntos, o que me autoriza a pensar que poderiam ter sido dados a um organismo federal poderes de vida ou morte virtualmente sobre todo o mercado de capitais do país, sujeitando os financiamentos no mercado de valores mobiliários a requisitos tão vagos como o que seja "justo e equitativo", ou que responda aos "princípios sadios de mercado ". Mas ainda que a filosofia da informação prévia tenha seus defeitos, tornou-se bem mais poderosa e eficaz do que se previa.

Permite-se, em teoria, a uma sociedade anônima oferecer suas ações num projeto que seja um simples furo na água, ou pagar aos promotores com uma quantidade exorbitante de ações por seus bons ofícios ao organizar a sociedade. Mas a conveniência prática de realizar este tipo de trabalho com base em informações ao público, como requer a Comissão, já é outra coisa. E se não são muitos os investidores que lêem e podem entender os prospectos, o fato de se enviarem tais informações a Washington faz com que eias cheguem aos investidores através de seus conselheiros e das publicações econômicas. Talvez se esteja simplesmente demonstrando que se deva trabalhar no governo, por um período considerável de tempo, para que se dê conta da limitação do mesmo.

Resta dar a vocês uma pequena descrição dos controles federais atualmente existentes em meu país. Alguns estão substancialmente duplicados em nossas leis e regulamentos. Outros não, e o seu sistema de regulamentação possui algumas características interessantes que o nosso não tem. Refiro-me, por exemplo, à autoridade que possui a Comissão Nacional de Valores, pelo art. 13, de sua lei de 1953, para atuar como árbitro por solicitação de qualquer das partes que se veja envolvida em disputa com valores mobiliários. Nossas bolsas têm procedimentos de arbitragem, porém nossos organismos estaduais e federal não têm.

Nossa lei de valores mobiliários de 1933 (Securities Act), com algumas exceções, requer o registro federal de todas as novas emissões de valores mobiliários que se ofereçam ao público por meio de correio ou qualquer instrumento de comércio interestadual ou internacional. Este é o requisito que exige nossa Constituição para que organismos federais possam intervir. A obrigação de registro também se aplica às emissões posteriores de valores mobiliários já emitidos, que sejam feitas por pessoas que guardem uma relação de controle sobre a emissão. E um prospecto que contenha a informação básica da solicitação de registro deve ser entregue a cada comprador.

A lei incluiu dispositivos que responsabilizam civilmente aqueles que não cumprem com o mencionado, o que segue fielmente as normas societárias inglesas (English Company Act). Porém, possui a máquina administrativa que não existe na Inglaterra. O prospecto e vários outros documentos que recebam o nome genérico de "declaração para registro" são cuidadosamente examinados pela Securities and Exchange Commission. A Commission não tem poderes para decidir sobre o mérito dos valores mobiliários e é crime apregoar que ela o tenha feito. Porém, ela pode emitir uma ordem de paralisação (stop order), sujeita a revisão judicial em uma corte federal de recursos (Court of Appeal), se ela entender que a "declaração de registro" está incompleta ou possa conduzir a erro. Desde que tal faculdade foi concedida à Commission, foi esporadicamente aplicada. Prefere-se o procedimento informal, pelo qual a declaração de registro é examinada por um grupo de analistas financeiros, contadores, advogados, e engenheiros, todos funcionários da Commission, e graças a eles são sanadas as deficiências encontradas. Estes exames detalhados freqüentemente são aborrecidos para os que solicitam o registro e para seus advogados; mas são essencialmente bem-vistos pelas comunidades legal e financeira, as quais têm uma garantia barata se comparadas com custosas ações judiciais.

A lei de 1933 foi a primeira, mas não a última das leis federais. Quase anualmente, durante os sete anos seguintes, o Congresso aprovou uma nova lei, até completar este número, as quais são, atualmente, administradas pela SEC.

A lei de 1934 (Securities and Exchange Act), a segunda lei da série, se refere à negociação de valores mobiliários já emitidos, bem mais do que ao processo de formação do capital. Cada bolsa de valores deve estar registrada na Comissão, a qual tem certos poderes para supervisionar no que concerne a seus regulamentos internos. Cada valor mobiliário que se deseja transacionar em uma bolsa de valores deve ser igualmente registrado. Informes anuais e com outras periodicidades devem ser enviados à SEC, para se manterem os dados de registros atualizados. A Comissão tem poder quase legislativo para adotar regras que regulam a solicitação de procurações para votar nas assembléias de acionistas. Os diretores, funcionários e acionistas que possuam mais de 10% dos valores mobiliários da empresa, em circulação, devem enviar informações mensais de suas posições e devem entregar à sociedade qualquer lucro que realizem ao operarem com valores mobiliários da empresa, se entre a compra e a venda o intervalo for menor do que seis meses. Todas estas disposições se aplicam somente aos valores mobiliários registrados em bolsa. Até hoje, no que se refere ao mercado de balcão, os valores mobiliários, em si, não são registrados, a menos que sua distribuição caia dentro das disposições da lei de 1933; porém, os agentes e corretores que operam no mercado de balcão devem ser registrados, bem como enviar anualmente relatórios financeiros. Ademais, a Comissão tem amplos poderes para definir o que se entenda por práticas fraudulentas; bem como para fazer cumprir as leis e os regulamentos por meio de investigações, processos civis ou denúncias criminais, para controlar a negociação de ações tais como short selling, stcibilizcttion, floor trading e hypothecation of customers'securities; e para suspender ou expulsar membros das bolsas, assim como para revogar o registro dos agentes e corretores, por conduta ilegal, que operem no mercado de balcão.

Toda esta regulamentação é complementada no plano ético pela National Association of Securities Dealers, uma associação de agentes e corretores que trabalham no mercado de balcão e que possuem este organismo semi-oficial. A lei de 1934 tentou também controlar a soma do crédito do país que se canaliza ao mercado de valores mobiliários, autorizando o Federal Reserve Board a estabelecer as regras secundárias, que são aplicadas pela Comissão.

Estas leis de 1933 e 1934, que foram modificadas várias vezes, são as leis básicas que se referem aos valores mobiliários em geral. As leis posteriores são mais especializadas.

No ano seguinte, 1935, o Congresso aprovou lei para as empresas que executam serviços públicos (Public Utility Holding Company Act), a qual foi motivada pelos abusos cometidos nos setores de eletricidade e gás. Depois de mais de 20 anos a Comissão levou a cabo a tarefa hercúlea de integrar geograficamente as companhias que controlam os serviços públicos, bem como simplificou sua organização interna. O sistema de empresas controladoras integradas e simplificadas que sobreviveram a este processo está sujeito a requisitos rigorosos que vão além da filosofia de informação da lei de 1933.

Em 1938 o Congresso alterou a Lei de Falências para adotar um procedimento pelo qual as companhias insolventes poderiam reorganizar-se, em vez de serem liquidadas. Tal lei não dá à Comissão nenhuma autoridade administrativa, se tomada no sentido usual. Em seu lugar ela contempla a experiência nova de cooperação administrativo/judicial, ao fazer da Comissão um perito imparcial dos tribunais federais, nos processos de reorganização.

A lei seguinte, na série, apareceu em 1939, quando o Congresso aprovou o Trust Indenture Act. Seu propósito é assegurar que as emissões de obrigações serão administradas por pessoas independentes, com o fim de proteger e exercitar os direitos dos obrigacionistas. A mecânica desta lei está adequada aos procedimentos de registro que estabeleceu a Lei de Valores Mobiliários de 1933. Cada obrigação ou valor que implique dívida, e que se ofereça ao público por meio de correio ou dos canais comerciais interestaduais, deve ser emitida de acordo com o documento aprovado pela Comissão. E nenhum documento pode ser aprovado, a menos que preveja a existência de um representante que satisfaça o estrito requisito de imparcialidade e que, de outro lado, preencha os requisitos legais.

As últimas duas leis foram promulgadas em 1940. Estas são: a Lei das Sociedades de Investimentos, que tem 58 páginas nos textos legais e é a mais complexa de toda a série; e a lei de aconselhamento de investimentos (Investment Adviser Act), umalei delicada, que exige o registro das pessoas que aconselham matéria de investimento.

A SEC, que administra todas estas leis, está organizada de uma forma diferente de sua Comissão de Valores Mobiliários. Excetuado no que se refere a seu presidente, o qual, segundo entendo, é o representante do Ministério da Fazenda e Crédito Público, sua Comissão é o que se poderia chamar um corpo ex-officio. Compõe-se de representantes dos vários ministérios, empresas e organizações governamentais, assim como dos bancos e das empresas de seguros e das bolsas de valores. Nós, de outro lado, temos poucas comissões estaduais de valores mobiliários que se componham de representantes de outros departamentos governamentais; mas a idéia de que exista um organismo administrativo que contenha representantes dos setores governamentais não é completamente desconhecida em nosso sistema legal. Porém, quando o nosso Congresso criou a SEC, recusou a idéia de um corpo organizado de tal forma e decidiu-se a favor de uma Comissão composta de cinco pessoas, todas designadas como funcionários do governo, com proibição de se dedicarem a qualquer outra atividade. Neste momento três de seus membros são advogados, um é engenheiro, que entes foi administrador estadual de seguros, e o quinto é um banqueiro que serviu, por um curto período de tempo, como funcionário da Comissão, antes que fosse feito membro desta. Porém, nenhum deles é contratado como representante de uma organização em particular que sustente um ponto de vista específico.

Os cinco membros da SEC são nomeados pelo presidente, aconselhado e obtendo o consentimento do Senado Federal. O seu mandato é de cinco anos, sendo que a cada ano se substitui um de seus membros. O presidente da República designa um de seus cinco membros como presidente da Comissão. Não mais de três dos cinco membros podem pertencer ao mesmo partido político; e há uma disposição que diz que ao se designarem seus membros deve-se procurar escolher alternativamente um membro de um partido e, após, um membro do outro. Foi, talvez, esperar demais crer-se que este último dispositivo se tornasse algo mais do que uma esperança piedosa. Tanto sob o governo republicano, quanto sob o governo do Partido Democrata, não se considerou "conveniente" designar mais de dois membros do partido que não está no poder. Porém, a proporção de três a dois assegura uma grande independência em face do Poder Executivo, e não creio que seja justo dizer que os membros da Comissão não tenham, tradicionalmente, se definido de acordo com os critérios de seus partidos. Isto, talvez, não produza mudanças surpreendentes, já que pessoas que visitam meu país me afirmam constantemente que têm dificuldades em distinguir as diferenças ideológicas de ambos. Certamente haverá mais de um de meus concidadãos que tenha as mesmas dificuldades.

Tais leis estão dentro do campo do direito administrativo. É uma matéria independente de estudo em muitas faculdades de direito, incluindo a minha. A SEC, desde logo, é somente um dos muitos órgãos administrativos, estaduais e federais, que se desenvolveram desde a criação do primeiro órgão administrativo federal, qual seja, a Comissão de Comércio Interestadual, em 1887.

Estes organismos - cuja existência, segundo suponho, seja considerada de vital importância por vocês, bem como por nós, em uma sociedade tão complexa como a de nossos dias - deram origem a muitos problemas constitucionais e processuais. Eles, desde logo, desafiam a tradicional tese de Montesquieu. Organismos como a SEC exercem as três funções governamentais: legislativa, executiva e judiciária. Algumas pessoas chamaram-nos de "quarto poder sem cabeça ", e sua condição jurídica exata com respeito aos Poderes Executivo e Legislativo não é fácil de definir.

O ponto que gostaria de ressaltar neste momento é que, completamente diferenciada do que chamamos de direito administrativo, a legislação sobre valores mobiliários criou, em meu país, um campo distinto de direito substantivo. A legislação federal reguladora dos valores mobiliários, como aqui foi resumido em meia hora, é objeto de um tratado, em dois grandes volumes, cujo autor, por modéstia, não devo mencionar. Um livro bem menor sobre as bluesky laws, quer dizer sobre o direito estadual, será publicado no próximo outono pelo mesmo escritor anônimo, com a ajuda de um jovem pesquisador chamado Cowett.

Para o meu gosto, um dos aspectos fascinantes deste vasto campo foi o relacionamento da nova legislação federal com a Common Law vigente nos estados, que criou novos procedimentos judiciais. Por exemplo, a SEC, por sua faculdade quase legislativa para definir o que seja fraude, adotou uma regra que, em termos gerais, proíbe as práticas enganosas com relação à compra e à venda de qualquer valor mobiliário, quando a transação envolve o uso do correio ou algum outro instrumento interestadual. Ainda que as sanções legais sejam de natureza administrativo-penal, os juízes federais criaram uma ação civil para reclamar perdas a favor do investidor que sofre prejuízo pela violação desta regra. Na ação pode-se reclamar a restituição (quase ex-contrato) ou o dano (ex-delito) e eu suponho que ao menos a primeira destas formas não seja desconhecida na Civil Law.

Um exemplo deste novo aspecto de que falamos é o seguinte: suponhamos que um diretor ou funcionário de uma empresa, ou alguém que dela tenha controle de fato - pessoa que chamaremos de insider - adquira valores mobiliários em circulação, de emissão da mesma, baseando-se em informações confidenciais. Talvez, por meio de sua posição ele saiba de um bom contrato ou de uma fusão, ou de uma nova descoberta geológica indicativa da presença de minerais em uma propriedade da companhia. Se ele faz uma declaração falsa, os vendedores prejudicados têm vários procedimentos judiciais previstos pela Common Law. Mas os tribunais de nossos estados não têm opinião comum para saber se o insider tem alguma responsabilidade se, ao revés, permanecer calado. Tem ele, em outras palavras, a obrigação de fazer uma declaração reveladora que vá além da obrigação que têm todas as pessoas de não mentir? Em suas palavras, obteve-se o consentimento do vendedor por meio de dolo, nos termos do art. 1.815 do Código Civil?

Nossos tribunais, de acordo com a Common Law, seguem três regras diferentes sobre este particular. O ponto de vista tradicional anglo-norte-americano é no sentido de que o insider tem obrigação de informar o que sabe. Os tribunais, em bem poucos de nossos estados, especialmente nos menos industrializados, no Oeste e no Sul, sustentaram ponto de vista contrário. E encontramos uma posição intermediária em uma sentença da Suprema Corte norte-americana, em que o litígio envolvia algumas disposições das Ordenações Filipinas, correspondentes às suas disposições sobre o consentimento obtido com dolo. Ao observar que a Common Law era essencialmente igual a estas disposições, a Suprema Corte sustentou que havia circunstâncias essenciais - negociações privadas para a venda de terras da companhia - que obrigavam o réu, ao atuar de boa fé, tornar públicos tais fatos antes de efetuar a compra.

De qualquer forma, os direitos de um acionista vendedoi, em face da Common Law, são incertos, quando um insider compra sem informar sobre determinado fato que afeta o valor das ações. Porém, pelas regras da SEC, das quais lhes falei, tudo o que o vendedor tem que demonstrar é o uso incidental do correio ou de alguma instrumentalidade de comércio interestadual, para ter direito de ação pela legislação federal. Quando os tribunais federais interpretam a legislação ou regras federais, não estão jungidos à Common Law dos estados, ainda que esta possa influir por analogia. Por causa da legislação federal sobre valores mobiliários, os tribinais federais têm decidido de maneira uniforme (ainda que algumas questões não tenham ido à Suprema Corte) que os insiders têm obrigação de informar sobre aspectos materiais que afetem o valor das ações, segundo o disposto na legislação da SEC sobre fraude. O resultado prático foi que um setor considerável de nossa legislação se federalizou. Certamente as ações implícitas que nascem das normas da SEC parecem estar sendo usadas para substituir os procedimentos privados específicos, oriundos do Congresso; da mesma forma que os advogados de países da Civil Law tendem a recorrer às cláusulas implícitas dos contratos como forma alternativa à legislação. Ainda mais, há alguma evidência de que a legislação federal sobre valores mobiliários afetou o modo de pensar dos tribunais estaduais ao decidir algumas questões de Common Law que envolviam valores mobiliários. Assim, a legislação cresce e se adapta às condições e situações sempre cambiantes. Isto não quer dizer que nós, nos EUA, tenhamos encontrado resposta a todos problemas. Se há alguns aspectos que possam servir a vocês, aproveitando de nossa experiência, bem como de nossos erros, seguramente nós poderemos fazer o mesmo. Alguns países desenvolveram práticas que nem são reconhecidas em outros.

Uma das instituições mexicanas, por exemplo, que gostaria de conhecer muito mais a fundo é a do comissário. Suponho que poderíamos traduzir por "supervisor", ainda que um termo como este não queira dizer nada em si mesmo. Segundo entendo, este personagem é um instrumento da companhia que exerce vigilância sobre os administradores e o andamento dos negócios em benefício da própria empresa. É conveniente dizer que a Universidade de Harvard é dirigida por uma sociedade permanente de sete membros e uma Junta de Supervisores (Board of Overseers) que atualmente são eleitos pelos ex-alunos. Em nosso direito societário não há instituição semelhante ao comissário de vocês, ainda que eu suponha que o nosso indenture trastee preencha funções semelhantes, no que diz respeito aos detentores de obrigações. Ocasionalmente os acionistas organizam comitês para negociar ou investigar o corpo administrativo da empresa; porém, quando isto ocorre, o relacionamento na companhia se assemelha muito a uma guerra civil. É interessante mencionar neste particular - ainda que nunca tenha sido demasiadamente atraído pela idéia - que a lei apresentada ao nosso Congresso em 1939, para exigir autorização federal para constituir sociedades anônimas, proporciona a idéia de que qualquer acionista de uma empresa que funcionasse sob autorização federal se possibilitaria outorgar procuração a uma pessoa autorizada pela Comissão de Serviços Civis, para atuar como representante nas administrações de tais tipos societários, o qual teria todos os direitos de acionista para votar e examinar os livros sociais da mesma.

Na Inglaterra o Comitê Cohen rejeitou proposta semelhante em seu relatório de 1945. Mas desde 1908 a lei societária inglesa autorizou a junta comercial a designar inspetores para que investiguem as companhias, por solicitação de sócios que detenham no mínimo 10% das ações emitidas, e que sua solicitação seja acompanhada de prova adequada. Nas modificações de 1947 foram introduzidos vários procedimentos novos. A Junta Comercial deve designar inspetores por pedido da própria empresa ou por decisão judicial; pode, também, designar por vontade própria se houver circunstâncias que permitam supor a ocorrência de fraude ou conduta indevida quando da incorporação da empresa, ou na administração de seus negócios, ou quando "seus negócios estejam sendo realizados de forma a prejudicar uma parcela de seus membros", ou quando "a seus sócios não tenham sido dadas informações relativas aos negócios sociais na forma razoavelmente esperada". O relatório dos inspetores pode ser publicado. Se o relatório dá a entender que houve fraude, conduta indevida, ou que se atuou em prejuízo da minoria, a Junta Comercial pode recorrer aos tribunais para obter uma ordem de liquidação da empresa, ou qualquer outra decisão adequada, "seja para regulamentar a conduta da empresa no futuro, ou para a venda das ações de alguns sócios a outros ou mesmo a própria companhia". Pode-se obter uma ordem semelhante pelo art. 210, por "qualquer membro de uma companhia que se queixe de que os negócios da mesma estão sendo conduzidos de forma a prejudicar parcela de seus acionistas (inclusive o próprio)". A Junta Comercial pode demandar em nome da companhia para recuperar o dinheiro ou propriedade daqueles que se aproveitam de tal situação.

Pode ser, e o próprio Comitê Cohen assim o disse, que a mera existência destes amplos poderes tenha tido o efeito profilático que tornou desnecessário a eles recorrer com freqüência. Esta é a política, como o ministro da Suprema Corte Douglas afirmou quando era presidente da SEC, de que o governo deve ter o revólver "atrás da porta, carregado, bem azeitado, limpo, pronto para seu uso, mas esperançoso de nunca ter de a ele recorrer". É ainda cedo para se poder aferir quão eficazes possam ser tais procedimentos ingleses. Mas devemos observá-los em meu país como uma forma alternativa possível, ou suplementar, de alguns de nossos atuais instrumentos jurídicos, para proteger os acionistas contra os abusos da companhia, como por exemplo, as regras da SEC, que regulam a solicitação de procurações, bem como o instituto não-escrito, mas próprio de nossa Common Law, que se chama stockholder derivative suit. Certamente vocês acharão conveniente analisar as experiências britânicas, especialmente em relação ao art. 19 de sua lei de 1953, que autoriza a sua Comissão Nacional de Valores Mobiliários a solicitar do Ministério das Finanças e Crédito Público permissão para intervir por substituição a qualquer emissor ou garantidor de valor mobiliário, quando houver justificado temor de que os investidores ou o mercado estejam em perigo de sofrer dano.

Outra de suas instituições que vale a pena ser estudada em meu país, ainda que esteja um pouco fora da área de regulamentação dos valores mobiliários, é a sociedade por cotas de responsabilidade limitada. Suponho que esta sociedade é aquela que muito genericamente poderíamos chamar de incorporatedpartnership, ainda que não tenhamos coisa semelhante. Os países da Comunidade Britânica e do Oeste europeu têm legislação sobre a sociedade por cotas de responsabilidade limitada de uma forma ou de outra - a prívate company inglesa, que data de 1907; a societé a responsabilité limiteé da França, que data de 1925; e a Geseiischaft mit Besdhrankter Haftung, que data de 1982. Mas, exceto por um esforço legislativo indeciso de um ou dois estados, só conhecemos uma classe de empresa - as sociedades anônimas. Quer dizer que tratamos de forma igual a United States Steel Corporation e a loja de cachorro-quente que se incorporou como sociedade anônima.

Temos uma associação com responsabilidade limitada (limited partnership). Mas mesmo esta instituição é desconhecida à Common Law. Nossos legisladores estaduais, que começaram a atuar nos primeiros anos do século XIX, apanharam este instrumento do Código Comercial francês de 1807. Este é o único aspecto importante no qual nosso direito de origem legislativa foi modelado à imagem diferente do direito inglês. A própria Inglaterra não adotou uma legislação sobre as sociedades limitadas senão em 1907, no mesmo ano em que sua lei societária introduzia a private company. Desta forma, nossa sociedade limitada se assemelha mais à sociedade em comandita simples mexicana. Mas ainda necessitamos ter, para as empresas possuídas por um pequeno grupo de pessoas, algo que combine a informalidade de uma sociedade de responsabilidade limitada com as outras vantagens da sociedade anônima. Para tanto, devemos demarcar melhor a linha que separa as empresas possuídas pelo público das empresas possuídas por pequenos grupos. Quando necessário, atualmente, falamos de uma sociedade possuída por poucos sócios (closed corporation), mas esta é uma pequena frase popular que carece de qualquer sentido legal. Neste aspecto temos muito a aprender.

Já se disse, e de maneira muito adequada, que se a integração econômica internacional alcançar um grau de evolução tal para que se considere, de maneira real, a caminho da internacionalização do direito, este movimento provavelmente começará no direito comercial, de forma muito mais acentuada do que no direito da família, ou no direito das sucessões, nos quais as tradições e reações peculiares provavelmente evitarão que países diversos adotem soluções uniformes. A bem da verdade, ao final dos anos 20 e princípio dos 30 assistiu-se à tendência internacional de reforma das leis societárias, com um grau bastante acentuado de influências recíprocas. A Bélgica e a Holanda adotaram novas leis referentes às sociedades mercantis em 1928, e a Alemanha em 1931. A França produziu um número considerável de reformas em seu direito societário e nas disposições conexas do Código Penal. A Inglaterra adotou uma nova lei societária em 1929, precedida pela África do Sul em 1926, e seguida por Austrália e Nova Zelândia em 1931 e 1934. No Canadá todas as províncias adotaram uma nova blue sky laws entre 1928 e 1935; e a legislação federal norte-americana sobre valores mobiliários apareceu em 1933 e nos anos seguintes.

O Prof. Berle, da Universidade de Columbia, em uma recente série de palestras, publicadas sob o título A revolução capitalista do século XX, fez a notável descoberta de que a nova sociedade anônima está desenvolvendo uma "alma social", que é a forma que este professor usa para dramatizar tal aspecto perante o público e, além de certas teorias legais, sustentando que a empresa é propriedade do público, não existindo somente para obter rendimentos em benefício de seus acionistas, senão que também tem uma tarefa social a realizar. Não desejo levar minhas teses ao nível do verme envolto por questões teológicas. Não sei se as sociedades anônimas têm alma, mas há indícios, em vários países, de que a atitude tradicional dos administradores, no sentido de conservar segredo absoluto em benefício da competição, deve dar lugar ao interesse público e desvendar os negócios sociais que sejam possuídos por uma grande quantidade de pessoas.

Um tal exemplo encontramos na lei societária sueca, de 1944, que requer que o balanço anual e a demonstração de lucros e perdas, na forma exigida por lei, seja anualmente publicado. O Parlamento sueco descobriu uma nova forma de conciliar o direito dos acionistas à informação e o direito dos administradores de conservar certos aspectos da companhia em segredo, em seu próprio benefício. Todos os detalhes que podem ser importantes para se julgar a situação da companhia, bem como a habilidade dos administradores, devem ser dados aos acionistas assim que solicitados, sempre que tais dados possam ser oferecidos "sem prejuízo da sociedade". Se o administrador alegar que ao dar tais informações poderia ir contra os interesses da empresa, tais informações devem passar previamente pelos auditores da sociedade, os quais devem submetê-las à Junta Comercial, dentro do mês seguinte à reunião dos mesmos, juntamente com a declaração de que as informações devem ou não ser dadas total ou parcialmente. Se se concluir pela liberação de informações parciais, devem eles dizer quais, bem como devem colocar-se à disposição dos acionistas na sede da empresa, além de enviar cópia destas informações aos acionistas solicitantes.

Outro exemplo encontramos, também, numa sentença recentemente prolatada pela Corte de Apelação de Paris (Societé aux Galeries Barbes versus Horovitz), que se considera um precedente importantíssimo no direito societário francês. Em uma disputa intentada por alguns acionistas para anular contrato entre a empresa e um de seus diretores, a Corte decidiu que o commissaire au compte não havia dado informações adequadas aos acionistas antes que eles ratificassem tal contrato . O que notabiliza este caso é que a Corte não aceitou o argumento de que podia causar dano à empresa o fato de tornar públicas tais informações, baseando-se em raciocínio semelhante ao que seguiu, poucos anos antes, uma das Cortes de Apelação do Distrito de Columbia, nos EUA, quando esta confirmou uma ordem da SEC, negando a solicitação de que deveria receber tratamento confidencial um estudo elaborado por uma companhia sobre as vendas e custos operacionais (American Sumatra Tobacco Corp. versus SEC). Ainda que a decisão daquela Corte não se refira à legislação que rege a SEC, as conclusões do procurador-geral da SEC pugnam contra a prática norte-americana, que tende a colocar de forma camuflada aquilo que realmente venha em benefício das próprias sociedades anônimas, encerrando-se em suas torres de marfim.

Termino como iniciei: algumas vezes podemos aprender das experiências e dos erros de outras pessoas, tanto quanto com os próprios erros. Ao aproveitar idéias, de forma indiscriminada, ignorando diferenças nos sistemas legais, bem como as diferentes condições econômicas, pode-se causar mais dano do que benefício. Quanto a isto não há dúvida; porém, é muito benéfico que recordemos que o estudo de direito comparado, como ciência pura, pode ter importância prática que vai muito além do prazer que produzem os encontros intelectuais.

Agradeço profundamente a honra que os senhores me conferiram ao vir para escutar minha palestra.

  • * O presente trabalho foi traduzido por Ary Oswaldo Mattos Filho, após a autorização do autor. A tradução originou-se da palestra proferida na Cidade do México, em 1957, pelo Prof. Louis Loss, a convite da Comisión Nacional de Valores do México, tendo sido reproduzida na Revista Delle Societá (anno III, (I): 100-8, 1958. Deve ser mencionado que daquela data até hoje o direito dos valores mobiliários sofreu alterações nos EUA. Assim sendo, aqui não se menciona grande alteração de 1964 que versou sobre o mercado de balcão. De qualquer forma a grande relevância do artigo prende-se à singular comparação entre a Common Law e a Civil Law, traço raramente encontrado nos doutrinadores.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1986
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