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A pós-graduação no Brasil: função técnica e função social

COMENTÁRIOS

A pós-graduação no Brasil: função técnica e função social

Luiz Antonio C. R. Cunha

Professor do Instituto de Estudos Avançados em Educação (IESAE) da Fundação Getúlio Vargas

Dentre as grandes transformações por que passa o ensino superior no Brasil, a maior é, talvez, a sua diferenciação vertical interna. Termina uma fase em que o ensino superior consistia quase que exclusivamente em um só conjunto de estudos profissionais de duração semelhante (quatro ou cinco anos), conferindo um grau de mesmo "valor" acadêmico, e inicia-se outra onde há estudos de curta (três anos) e longa duração (quatro ou cinco anos), em nível de graduação e estudos de mestrado e doutorado, em nível de pós-graduação. Os graus conferidos por esses cursos passam a ter "valor" acadêmico diverso.

Em outro estudo1 1 Cunha, Luiz Antônio C. R. O milagre brasileiro e a política educacional. Argumento, ano 1, n. 2, nov. 73. mostramos que a organização dos cursos de curta duração, ao lado de outras medidas da Reforma Universitária de 1963, tinha a função (esperada) de concorrer para a ampliação das vagas oferecidas a um número sempre maior de candidatos, de modo que o custo da matrícula adicional não crescesse na mesma proporção dos estudantes.

A pós-graduação, embora pertença ao mesmo processo de diferenciação vertical do ensino superior, não tem, provavelmente, a mesma função. É nosso objetivo, neste texto, levantar algumas hipóteses sobre as funções do ensino pós-graduado no País e refletir sobre as possíveis repercussões decorrentes da sua organização num sistema de ensino superior reconhecidamente elitista ou, melhor caracterizando, discriminador.

A discriminação decorre do fato de que o diploma confere um privilégio. Ele indica que o seu possuidor é elegível para um determinado grupo de ocupações assegurando-lhe a posse de valores econômicos, de poder e de prestígio que, ao mesmo tempo, são negados aos demais. Assim reconheceu o próprio Conselho Federal de Educação (CFE) quando disse que "(,..) a competência do Conselho para regulamentar cursos superiores estende-se somente àqueles (...) que se habilitam à obtenção de diploma capaz de assegurar privilégios para o exercício de profissão liberal."2 2 Parecer n.º 977/65 do CFE. Sucupira, Newton. Definição dos cursos de pós-graduação, Documenta, n. 44, p. 68, dez. 1965.

É preciso frisar que o diploma não garante o acesso a ocupações, mas torna seu possuidor um candidato elegível para elas. A partir da posse dos requisitos educacionais mínimos, a competição se faz pela manipulação das relações pessoais, pela competência, etc.

1. A GÊNESE DA PÔS-GRADUAÇÃO

Quando indagamos das razões responsáveis peia institucionalização do ensino, de pós-graduação no Brasil, encontramos resposta na expansão das matrículas no ensino de graduação. Vamos apresentar, em seguida, alguns dados que servem para indicar a ordem de grandeza dessa expansão. No item seguinte, passamos a especular sobre as funções da pós-graduação no ensino superior em transformação.

Em 1965 o Ministro da Educação pediu ao CFE que regulamentasse os cursos de pós-graduação previstos na Lei Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, mas (ainda) não sujeitos a critérios de credenciamento. O pedido foi atendido no mesmo ano através do Parecer n.º 977. Nesse ano, o ensino superior tinha ingressado numa fase de crescimento extremamente intenso das matrículas, sem paralelo em outras épocas. No período 1960-65 as matrículas ampliaram-se de 67% , taxa bastante elevada se pensarmos que, nos últimos cinco anos da década de 50, esse crescimento foi de apenas 27%. O número de candidatos aos vestibulares crescia a taxas ainda mais elevadas, indicando que esse aumento das matrículas tendia a se elevar.3 3 Para maiores detalhes sobre a expansão, consultar Cunha, Luiz António C. R. Política educacional no Brasil: a profissionalização no ensino médio. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. cap. 4.

A partir de 1966, entretanto, essa tendência se acentuou, aparecendo a figura do "excedente", candidato aprovado nos exames vestibulares, mas não matriculado por falta de vagas, na maioria dos casos reivindicando o suposto direito de ingresso nas universidades, principalmente as públicas.

Ao longo desse processo de crescimento das matrículas nos cursos de graduação, vai-se elaborando a legislação que dá forma ao ensino de pós-graduação. Este já existia antes de 1965, mas de forma "livre", isto é, sem uma legislação própria, sem o reconhecimento do Ministério da Educação e, em conseqüência, não conferindo privilégios ocupacionais aos seus diplomados, a não ser em casos muito reduzidos e sempre restritos às universidades.

A partir de 1965, ano do Parecer do CFE que definiu os cursos de pós-graduação, tem sido abundante a legislação a eles pertinente, culminando com a criação do Conselho Nacional de Pós-Graduação em janeiro de 1974. Mas foi em 1968 que se evidenciaram as suas características principais.

A expressão política das insatisfações dos "excedentes" de 1968 passou a polarizar as frustrações dos estudantes já matriculados e assumiu formas que ameaçavam o próprio poder do Estado. Em decorrência disso, tomou-se uma série de medidas repressivas para efeito de curto prazo e começouse a elaborar uma série (ainda não terminada) de leis que compõem a Reforma Universitária. O ponto nodal dessa série é a Lei n.º 5 540 de 28.11.68 chamada Lei da Reforma Universitária que, ao lado de outras inovações, institucionalizou o ensino de pós-graduação. Chamamos essa lei de ponto nodal pelo fato de ela ter sido a convergência de várias medidas e propostas e por terem dela decorrido várias outras. No que se refere à pós-graduação, convergiram para a Lei da Reforma Universitária: a) a definição desse tipo de ensino pelo CFE, em 1965; b) o Relatório da Equipe de Assessoria ao Planejamento do Ensino Superior (resultado de um dos acordos MEC/USAI D) em junho de 1968, propondo a organização urgente do ensino pósgraduado no País; e, finalmente, c) o Relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária, em agosto de 1968, quejssumiu a definição do CFE, algumas sugestões do Relatório MEC/USAID e elaborou minutas de leis e decretos que, por sua vez, resultaram na Lei da Reforma Universitária.

2. AS FUNÇÕES DA PÓS-GRADUAÇÃO

Quando dizemos aqui que o ensino pós-graduado tem funções, queremos dizer que a sua existência acarreta certas conseqüências. Essas conseqüências podem ser esperadas, atribuídas pelos formuladores da política educacional, ou verificadas pela observação. Pode haver coincidência ou contradição entre ambas.

Neste texto examinamos as funções atribuídas ao ensino de pós-graduação no Brasil e especulamos a respeito da existência de outras funções por ele desempenhadas, verificáveis mas não atribuídas.

As funções atribuídas ao ensino pós-graduação são de dois tipos: há uma função técnica e uma função social.

2.1 A função técnica

A solicitação de regulamentação feita pelo Ministro da Educação ao CFE, em 1965, apontava "(... ) os três motivos fundamentais que exigem, de imediato, a instauração do sistema de cursos de pós-graduação: a) formar professores competentes que possam atender à expansão quantitativa de nosso ensino superior, garantindo, ao mesmo tempo, a elevação dos atuais níveis de qualidade; b) estimular o desenvolvimento da pesquisa científica por meio da preparação adequada de pesquisadores; c) assegurar o treinamento eficaz de técnicos e trabalhadores intelectuais do mais alto padrão para fazer face às necessidades do desenvolvimento nacional em todos os setores."4 4 Citado no Parecer n.º 977/65, em Documenta, cit. p. 72. É provávei que tenham existido, também, motivos apenas burocráticos nesse pedido de regulamentação. Os órgãos de financiamento e subsidio do Ministério da Educação careciam de critérios para julgar a conveniência de concessão de recursos solicitados por escolas e estudantes para a realização de cursos de pós-graduação no Pais.

Esses objetivos5 5 Para a verificação da consciência desses objetivos pelos administradores dos cursos de pós-graduação, consultar Sá, Paulo. A pós-graduação em universidades brasileiras. FGV/CETRHU, Rio de Janeiro, 1971. mostram que há dois grandes "mercados" exigindo a formação de pessoal em nível de pós-graduação. O primeiro mercado é o próprio sistema de ensino superior, em grande expansão quantitativa e apresentando uma forte tendência à queda de qualidade decorrente, por sua vez, das dificuldades de formação de professores por mecanismos espontâneos e de resultados aleatórios. O envio de bolsistas ao exterior era um processo muito utilizado para a pós-graduação. No período 1965-70 foram concedidas 13 409 bolsas de estudo em outros países, muitas delas para a pós-graduação.6 6 Cf. Treinamento do pessoal brasileiro no exterior. FGV/CETRHU, Rio de Janeiro, 1972. O estudo não separa as bolsas para pós-graduação das demais.

De todo modo, o temor de que esse processo fosse improdutivo ficou patente no Relatório do Grupo de Trabalho da Reforma Universitária que advertiu para o perigo de permanência dos bolsistas nos países onde estudaram. O segundo mercado para os pós-graduados é constituído pelas agências responsáveis pelo "desenvolvimento nacional em todos os setores". Os textos examinados não se referem explicitamente à utilização de profissionais pós-graduados pelo governo. Apesar dessa omissão, a burocracia governamental e as empresas públicas são grandes consumidoras desses profissionais e, até mesmo, incentivadoras da sua formação através de bolsas de estudo e dos acréscimos de salários a eles concedidos. Por Isso, acreditamos ser procedente colocar o setor público da economia bem como a burocracia governamental como sendo, ao lado das empresas privadas, agências do "desenvolvimento nacional em todos os setores". Essas agências estariam ingressando numa fase altamente exigente de pessoal dotado de qualificação superior à da graduação, exigindo, desta maneira, a institucionalização do ensino pós-graduado. Essas exigências não se resumem a pessoal para as atividades rotineiras, mas, principalmente, de pesquisadores necessários para a realização de nova etapa do desenvolvimento econômico do país. Isso fica claro na apresentação de um dos objetivos da pósgraduação pelo Presidente do CFE:

A formação de "pesquisadores que ampliam o conhecimento das nossas riquezas potenciais, desenvolvendo novos métodos e processos de produção que melhor se adaptem às peculiaridades da matéria-prima, da mão-de-obra e do mercado brasileiros, e que concorram para o aumento das nossas exportações".7 7 Santos, Roberto F. O ensino de pós-graduação no Brasil. Educação, ano 1, n. 2, p. 4, jul./set. 1971.

Entretanto, o atendimento do primeiro mercado, o do próprio ensino superior, é prioritário, devido ao seu efeito multiplicador:

"(... ) numa primeira etapa, ênfase especial na pós-graduação é dada aos contingentes que se dedicam à docência, particularmente nos níveis superiores, porque bons mestres formam alunos qualificados em suas respectivas profissões, abrindo caminho ao aperfeiçoamento imediato dos contingentes para os programas de ciência e tecnologia que o País está a exigir".8 8 Campos, Maria Aparecida Pourchet. Politica de pós-graduação no Brasil. Revista brasileira de estudos pedagógicos, n. 128, p. 235 out./dez. 1972.

Assim, se o suprimento de professores de nível superior (graduação) pelo ensino pós-graduado é prioritário, não é contraditório com o objetivo de atendimento direto às empresas e ao serviço público, já que "abre caminho" para a utilização de mestres e doutores. Há, então, no final das contas um único objetivo a ser atingido através de dois caminhos que se encontram: a formação de recursos humanos tal como são exigidos pela economia na fase atual. Essa unidade de objetivos fica ainda mais clara se prestarmos atenção na composição do Conselho Nacional de Pós-Graduação recentemente criado, que Inclui, além do ministro e de diretores de diversos órgãos ligados à educação, o Secretário do Planejamento e Coordenação Geral e o Presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico.

Além desse fluxo de recursos humanos há um outro, desta feita de tecnologia, dos cursos de pósgraduação para os consumidores, empresas e governo. É constituído dos produtos das pesquisas em ciências aplicadas.

Há, então, duas formas pelas quais as empresas e o governo se beneficiam com o ensino de pósgraduação: através da utilização de profissionais com graus de mestre e doutor e, também, do aproveitamento das pesquisas de docentes e estudantes que lhes permitam otimizar a sua atividade própria. O gráfico 1 apresenta esse fluxo de recursos humanos e tecnológicos conforme acabamos de expor.


2.2 A função social

Vista da ótica dos objetivos da pós-graduação, a expansão do ensino de graduação não foi um mal. Este residia na baixa de qualidade provocada pela Inexistência de mecanismos sistemáticos de formação de professores.

Entretanto, é possível perceber alguns traços de lamento quanto à expansão nos documentos que tratam da pós-graduação:

"No ensino superior moderno, cuja tendência à massificação parece tornar-se inevitável, a pós-graduação há de constituir a estrutura de excelência indispensável ao desenvolvimento da pesquisa científica e da cultura, em suas mais altas formas."9 9 Trecho da Exposição de Motivos do Ministro da Educação que acompanhou o projeto de criação do Conselho Nacional de Pós-Graduação, citado no Jornal do Brasil, 1º cad., p. 7, 5.1.74. (grifos nossos).

Pode-se observar, nesta citação, que a "massificação" do ensino de graduação faz baixar a qualidade, inevitavelmente. Talvez a formação de docentes seja, então, apenas uma tentativa para evitar que ela caia ainda mais. Torna-se necessária, então, a criação de um outro nível de ensino onde se possa exigir qualidade, uma "estrutura de excelência".

Já no Parecer de 1968 advertia-se a respeito do perigo de se reproduzir na pós-graduação o fenômeno da expansão-deterioração que vinha ocorrendo na graduação. A intenção era a de manter uma política de duplo critério: de um lado, promove-se a inevitável "democratização" da graduação e, de outro, restringe-se a pós-graduação que, "por sua natureza (... ) há de ser restrita aos mais aptos".10 10 Parecer n.º 977/65. Documenta, cit. p. 86. "De um lado a Universidade não pode fugir à contingência de absorver o fluxo crescente de candidatos, conforme o ideal democrático; doutra parte, para ser fiel a uma de suas dimensões essenciais há de contribuir para a manutenção da alta cultura que permanece privilégio de alguns."11 11 Reforma Universitária: relatório do" grupo de trabalho. Revista brasileira da estudos pedagógicos, n. 111, p. 137, jul./ set. 1968.

Apesar das advertências, o crescimento da pós-graduação tem sido enorme. Os cursos e as matrículas têm-se multiplicado de um ano para outro. De 1970 para 1971 o número de cursos quase quadruplicou e o de estudantes quase dobrou. Passase, então, a apontar a existência de uma pressão para esse crescimento, independente dos "mercados" que, originariamente, teriam determinado a organização desse tipo de ensino. São os graduados desempregados que constituem essa pressão autônoma.

"É preciso deixar claro que a pós-graduação vem sofrendo pressões sociais para expansão decorrentes multo mais do desemprego em que se encontram os seus candidatos do que das necessidades sentidas pelos institutos de ensino."12 12 Pastore, José. O ensino superior em São Paulo. São Paulo, Cia. Ed. Nacional 1972. p. 159.

Essas preocupações com a possível reprodução da "massificação" resultaram na criação do Conselho Nacional de Pós-Graduação com a atribuição de elaborar um plano que ordenasse a sua expansão em todo o País. A exposição de motivos do Ministro da Educação encaminhando o projeto de decreto ao Presidente da República é bastante clara a respeito das suas finalidades:

"Nos últimos anos podemos falar de uma proliferação indiscriminada de tais cursos, na sua maioria não credenciados pelo órgão competente, o que nos faz temer pelos destinos da pós-graduação brasileira. E todos sabemos que não dispomos de recursos humanos para atender a essa expansão da pós-graduação sem correr o risco de seu' abastardamento. Todo nosso empenho deverá, pois, ser a preservação da qualidade dos cursos de mestrado e de doutorado, mediante o planejamento racional de sua implantação, considerando-se que uma pósgraduação de alto nível é indispensável ao bom êxito de uma política de pesquisa científica e tecnológica e de expansão do ensino superior".13 13 Exposição de Motivos, clt.

Qual será no entanto, a verdadeira razão dos temores da "massificação" da pós-graduação? Por que a "massificação" é ruim? Traz a "massa" a marca da "poluição"? Não será possível um ensino bom para muitos?

Há duas variantes de respostas. A primeira é a que postula a natureza "poluidora" da "massa" ou que alimenta a esperança do acesso de todos à (alta) cultura num futuro distante, quando houver abundância de recursos humanos (docentes), materiais (instalações, prédios, laboratórios, bibliotecas) e financeiros; de todo modo, supõe a permanência da estrutura de ensino existente. A segunda variante é aquela que reconhece ser a estrutura do ensino existente montada para a formação de um pequeno número, exposta à deterioração sempre que o atendimento aumenta numericamente e/ou quando passa a abranger estudantes de mais baixo nível cultural, nível este também produzido e não "naturalmente" deficiente.

Conforme se opte por uma das duas variantes, a resposta será diferente. Caso se escolha a primeira, a resposta será a de que a contenção da "massificação" é uma espécie de mal menor; enquanto não se puder oferecer a muitos um ensino pós-graduado de boa qualidade, deverá ele ficar restrito àquele número que não compromete a sua "excelência". É a resposta que está mais ou menos explícita nos textos citados e, de resto, em todos os que justificam as medidas de política educacional de pós-graduação no País.

Entretanto, optando pela segunda variante, assumimos que a pós-graduação, como, aliás, todo o sistema educacional, desempenha função de discriminação social. Toda a argumentação sobre a possível perda de qualidade encobre a necessidade de se manter uma estrutura de ensino necessária à reprodução das diversas camadas sociais com diferentes graus de acesso aos valores sociais, tanto em termos econômicos quanto de poder e prestígio.

A função social da pós-graduação, na ótica proposta, é a de restabelecer o valor econômico e simbólico do diploma do ensino superior. Como o número de graduados aumentou a um ritmo acelerado, o valor do diploma de graduação caiu: sua posse deixou de ser distintiva, não indica mais que o graduado é "naturalmente" adequado para as ocupações que exigem maior "qualificação" e "responsabilidade", e, em conseqüência, são mais bem remuneradoras.

Na medida em que se organiza o ensino pós-graduado cria-se um diploma, ou melhor, dois, um de mestre e outro de doutor, que trazem a marca de raridade. E é essa raridade que vai conferir ao diploma um alto valor, tanto econômico (elegibilidade para as ocupações mais bem remuneradas) quanto simbólico (atribuição de maior "quantidade" de prestígio). É preciso dizer que é provável que um diploma de pós-graduação tenda a conferir o mesmo valor que antes da expansão era auferido pelo graduado. Se isso realmente acontecer a pós-graduação terá, então, restabelecido a situação anterior de discriminação, embora em outro nível.

Finalmente, não se pode deixar de destacar a congruência dos processos seletivos da pós-graduação com essa função social.

À medida que se expandia o ensino de graduação, os critérios de escolha iam sendo cada vez mais "objetivos", isto é, as provas consistiam em registro da resposta num cartão perfurado. A partir daí, a contagem do número de respostas certas, de notas, médias e a própria relação de aprovados passavam a ser tarefa de computadores. Isso era não só uma necessidade técnica (corrigir centenas de milhares de provas rapidamente) como, também, uma exigência da própria pressão social por mais vagas, demandando uma disputa cada vez mais previsível.

Os critérios para ingresso em cursos de pós-graduação, ao contrário, constam de cartas de recomendação e entrevistas, entre outros. Esses processos não são, necessariamente, meios de se institucionalizar um mecanismo de disputa imprevisível, mas, sim, um modo de se verificar a "aptidão" do candidato a um ensino que deve estar a salvo da massa. Dito de outro modo, é uma maneira de se verificar a posse, pelo candidato, de uma certa "quantidade" de capital cultural,14 14 Para a noção de capital cultural, consultar Bourdieu, Pierro & Passeron, Jean-Claude. La reproduction. Paris, Les Éditions de Minuit, 1970. o que nem sempre é possível através de provas de "múltipla escolha".

3. CONCLUSÕES

Pelo exposto, além da função técnica atribuída à pós-graduação pelos formuladores da política educacional, há uma função social que é a de restabelecer o valor econômico e simbólico que antes da expansão do ensino graduado era conferido pelo diploma "comum" do nível superior.

A organização do ensino pós-graduado, em particular, e a diferenciação do ensino superior, em geral (incluindo-se os cursos de curta duração) constituem mais uma etapa na transição dos padrões de discriminação desse grau de ensino. Antes a discriminação era feita pela divisão entre os concluintes do ensino médio que entravam no ensino superior e os que não entravam; agora se faz pelo modo como se sai do ensino superior, com diploma de que valor: curso de graduação de curta ou longa duração, curso de pós-graduação, mestrado ou doutorado. É como se houvesse, primeiramente, um processo físico de filtragem única que separa a substância procurada das impurezas, substituldo depois por um processo de múltipla filtragem de onde a substância sal com diversos graus do pureza conforme o número de filtros atravessados.

  • 1 Cunha, Luiz Antônio C. R. O milagre brasileiro e a política educacional. Argumento, ano 1, n. 2, nov. 73.
  • 2 Parecer n.ş 977/65 do CFE. Sucupira, Newton. Definição dos cursos de pós-graduação, Documenta, n. 44, p. 68, dez. 1965.
  • 3 Para maiores detalhes sobre a expansão, consultar Cunha, Luiz António C. R. Política educacional no Brasil: a profissionalização no ensino médio. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. cap. 4.
  • 5 Para a verificação da consciência desses objetivos pelos administradores dos cursos de pós-graduação, consultar Sá, Paulo. A pós-graduação em universidades brasileiras. FGV/CETRHU, Rio de Janeiro, 1971.
  • 7 Santos, Roberto F. O ensino de pós-graduação no Brasil. Educação, ano 1, n. 2, p. 4, jul./set. 1971.
  • 8 Campos, Maria Aparecida Pourchet. Politica de pós-graduação no Brasil. Revista brasileira de estudos pedagógicos, n. 128, p. 235 out./dez. 1972.
  • 9 Trecho da Exposição de Motivos do Ministro da Educação que acompanhou o projeto de criação do Conselho Nacional de Pós-Graduação, citado no Jornal do Brasil, 1ş cad., p. 7, 5.1.74. (grifos nossos).
  • 11 Reforma Universitária: relatório do" grupo de trabalho. Revista brasileira da estudos pedagógicos, n. 111, p. 137, jul./ set. 1968.
  • 12 Pastore, José. O ensino superior em São Paulo. São Paulo, Cia. Ed. Nacional 1972. p. 159.
  • 14 Para a noção de capital cultural, consultar Bourdieu, Pierro & Passeron, Jean-Claude. La reproduction. Paris, Les Éditions de Minuit, 1970.
  • 1
    Cunha, Luiz Antônio C. R. O milagre brasileiro e a política educacional.
    Argumento, ano 1, n. 2, nov. 73.
  • 2
    Parecer n.º 977/65 do CFE. Sucupira, Newton. Definição dos cursos de pós-graduação,
    Documenta, n. 44, p. 68, dez. 1965.
  • 3
    Para maiores detalhes sobre a expansão, consultar Cunha, Luiz António C. R.
    Política educacional no Brasil: a profissionalização no ensino médio. Rio de Janeiro, Eldorado, 1973. cap. 4.
  • 4
    Citado no Parecer n.º 977/65, em
    Documenta, cit. p. 72. É provávei que tenham existido, também, motivos apenas burocráticos nesse pedido de regulamentação. Os órgãos de financiamento e subsidio do Ministério da Educação careciam de critérios para julgar a conveniência de concessão de recursos solicitados por escolas e estudantes para a realização de cursos de pós-graduação no Pais.
  • 5
    Para a verificação da consciência desses objetivos pelos administradores dos cursos de pós-graduação, consultar Sá, Paulo.
    A pós-graduação em universidades brasileiras. FGV/CETRHU, Rio de Janeiro, 1971.
  • 6
    Cf.
    Treinamento do pessoal brasileiro no exterior. FGV/CETRHU, Rio de Janeiro, 1972. O estudo não separa as bolsas para pós-graduação das demais.
  • 7
    Santos, Roberto F. O ensino de pós-graduação no Brasil.
    Educação, ano 1, n. 2, p. 4, jul./set. 1971.
  • 8
    Campos, Maria Aparecida Pourchet. Politica de pós-graduação no Brasil.
    Revista brasileira de estudos pedagógicos, n. 128, p. 235 out./dez. 1972.
  • 9
    Trecho da Exposição de Motivos do Ministro da Educação que acompanhou o projeto de criação do Conselho Nacional de Pós-Graduação, citado no
    Jornal do Brasil, 1º cad., p. 7, 5.1.74. (grifos nossos).
  • 10
    Parecer
    n.º 977/65.
    Documenta, cit. p. 86.
  • 11
    Reforma Universitária: relatório do" grupo de trabalho.
    Revista brasileira da estudos pedagógicos, n. 111, p. 137, jul./ set. 1968.
  • 12
    Pastore, José.
    O ensino superior em São Paulo. São Paulo, Cia. Ed. Nacional 1972. p. 159.
  • 13
    Exposição de Motivos, clt.
  • 14
    Para a noção de capital cultural, consultar Bourdieu, Pierro & Passeron, Jean-Claude.
    La reproduction. Paris, Les Éditions de Minuit, 1970.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Out 1974
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