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Ciência e sociedade no Brasil

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Regina Lúcia de Moraes Morel

Ciência e sociedade no Brasil

Por Vanya Mundin Sant'Anha, São Paulo, Edições Símbolo, 1978

As análises mais comuns a respeito das diferenças existentes entre os sistemas científicos dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos se limitam, em geral, aos aspectos quantitativos de dados empíricos: número de cientistas e técnicos qualificados (output de universidades), proporção do PNB investido em Pesquisa e Desenvolvimento, etc. Tal abordagem não esconde seu caráter evolucionista e etnocêntrico. a ciência subdesenvolvida é vista como expressão de uma situação de atraso, uma disfunção ou desvio do padrão normal. A Ciência, definida de maneira genérica e idealista, é tomada como um conjunto de conhecimentos prontos e acabados, apresentando um desenvolvimento autônomo e unilinear. O padrão normal de desenvolvimento científico seria aquele ocorrido nos países desenvolvidos do Ocidente, explicado muitas vezes em função de aspectos culturais - desencantamento do mundo, racionalismo tipicamente ocidental, influência do protestantismo, obra e graça de uma elite de talento (o gênio criador). A institucionalização da pesquisa científica é então tomada como um sinal de secularização e modernização, parte de uma tradição cultural ocidental.1 1 Por exemplo: Ben-David. J. O papel do cientista na sociedade. São Paulo, Livraria Pioneira. 1974; K Merlon. Robert. Puritanism, Pietism and Science. In Barber, 8., & Hirsch, W. eds. The sociology of science. New York, The Free Press, 1962; Parsons, Talcott. The institutionalization of scientific investigation. In ibid, Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1967; e Weber, Max. O político e o cientista. Lisboa, Ed. Presença, s/d. Em análises desse tipo, o atraso e o desvio inerentes à ciência subdesenvolvida são, por sua vez, também atribuídos a problemas étnicos e culturais - os hábitos, valores e costumes das sociedades tradicionais seriam'fonte de resistência à mudança e à incorporação da ciência, condição sine qua non para o acesso à era de modernidade.

Uma outra linha de interpretação da ciência subdesenvolvida se aproximaria de uma abordagem que podemos chamar de estrutural. Opondo-se à tendência idealista e culturalista descrita acima, que não veria os nexos e relações entre ciência e sociedade, a ciência subdesenvolvida é agora vista como um reflexo da própria estrutura do subdesenvolvimento. Mas tal abordagem acaba não indo muito longe em propostas explicativas: prisioneira de um círculo vicioso, o máximo que consegue é levar-nos à conclusão de que se a sociedade é subdesenvolvida, a ciência também o é. E a recíproca é verdadeira.

Ora, ciência e sociedade não são duas realidades autônomas, que mantenham entre si apenas relações de exterioridade. Se tomarmos a ciência como produto do trabalho de indivíduos especialmente treinados, efetuado em organizações específicas, segundo uma divisão de trabalho e obedecendo a normas institucionalizadas, veremos que suas condições de produção, reprodução e utilização são produto histórico de relações sociais e de produção.

A ciência moderna - fruto da chamada Revolução Científico-Tecnológica - surge historicamente ligada às transformações no modo capitalista de produção e aos interesses de classe aí configurados. No entanto, as características institucionais e organizacionais da produção científica não podem ser tomadas como epifenómeno, reflexo mecânico de determinações externas ao campo. Os campos intelectual, em geral, e científico, em particular, possuem uma autonomia relativa que ~ deve ser lembrado - foi progressivamente constituindo-se dentro de sociedades históricas. Nesse sentido, possuem suas normas internas de legitimidade, de consagração, rituais específicos, relações de poder, etc.2 2 A esse respeito, dentre outros: Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974; Bourdieu, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In Pouillon, Jean et alii. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1968; Gíanotti, J.A. Ciência para o desenvolvimento; O contexto e os intelectuais, In Exercícios de filosofia. Seleções CEBRAP, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1975; Gianotti, J.A. Burocratas da cultura. Opinião, 21 mar. 1975, p. 20.

A propósito da ciência brasileira, o livro da Profª Vanya Sant'Anna levanta importantes questões para a reflexão e o debate. A abordagem histórica efetuada pela autora tem o mérito de sistematizar informações que se encontravam esparsas aqui e ali. Além disso, num esforço interpretativo, fugindo à mera descrição e a cronologias, a autora procura vincular a evolução das instituições científicas entre nós às transformações históricoestruturais da formação social na ,qua! elas surgem e se desenvolvem (ou não). Assim, seu trabalho não pode ser sumariamente enquadrado em nenhuma das duas linhas de tratamento da ciência subdesenvolvida que criticamos acima. No entanto, a meu ver, a análise feita incorre em alguns equívocos, pois foram subestimados importantes elementos que permitem a compreensão mais rigorosa da evolução da ciência nacional.

Ao tratar da relação ciência-estado-sociedade no Brasil, por exemplo, a autora tende a tratar os três elementos como entidades autônomas, independentes entre si. Resumindo - e espero estar sendo fiel às suas idéias - a sociedade brasileira nunca teria equacionado a ciência como fator de desenvolvimento; na ausência de uma burguesia industrial que aspirasse à liderança no processo de desenvolvimento nacional, que tivesse um projeto próprio, que colocasse demandas sociais à ciência, caberia ao Estado a implementação do desenvolvimento científico-tecnológico do país.3 3 Tal proposição está claramente definida na p. 97 do livro em questão.

Por vezes, a Profª Vanya parece achar que tais medidas, progressistas e modernizantes em si, seriam resultado da visão iluminada de uma elite esclarecida que, a despeito, por um lado, de reações populares (como no caso da febre amarela e da vacinação antívaríólica), por outro, de uma burguesia nacional fraca e, portanto, incapaz de identificar seus próprios interesses, assumiria a liderança na constituição de um sistema científico nacional.4 4 Pelo menos ern alguns momentos, a descrição feita da movimentação que cercou a erradicação da febre amarela e a campanha de vacinação obrigatória contra a varíola - "o primeiro embate sério entre ciência e sociedade" (p. 66) - nos conduz a essa interpretação.

Ê neste ponto que levanto algumas objeções. As medidas de política científica não são neutras em si - e sei que nisso a Profª Vanya concorda comigo. Aqui, como lá, nos países periféricos, como nos países hegemônicos do sistema capitalista, tais medidas se colocam como medidas políticas, que explícita ou implicitamente refletem, satisfazem ou se opõem a interesses e objetivos sociais bem definidos. Assim sendo, a questão da intervenção do Estado na ciência não pode ser tomada numa perspectiva voluntarista do processo de tomada de decisões (o Estado faz e acontece). Se partirmos do pressuposto de que o Estado no capitalismo expressa uma relação de dominação entre classes sociais, cabe indagar quem, em última análise, tais medidas beneficiam.

No Brasil, o Estado tem sido importante fator de expansão do setor industrial e de acumulação de capital; recentemente, sua atuação reflete não só o jogo de forças e interesses (alianças, conflitos, compromissos) do tripé representado pelo empresariado estatal, a burguesia nacional e as empresas multinacionais, como também as relações do bloco no poder com as classes subalternas. Nessa perspectiva, as vicissitudes que cerceiam o desenvolvimento científico-tecnológico nacional se ligam muito mais ao caráter associado que reveste a história da expansão capitalista entre nós - e às contradições que essa expansão engendra - do que a um fator tomado isoladamente, seja a incapacidade administrativa do Estado, ou a falta de uma burguesia empreendedora, nos moldes dos países de capitalismo central. Então, seguindo o raciocínio, a desvinculação entre ciência e sociedade, proposta pela Profª Vanya, não é causa de nosso atraso, mas sim efeito de todo um processo de expansão capitalista tal como historicamente ele se vem realizando na formação social brasileira.

Penso também que essa desvinculação, acima referida, não se verifica; deve ser questionada, ou ao menos qualificada. A menos que queiramos atribuir ao acaso - o que seria a negação da História - a institucionalização, diferenciação e especialização de um sistema de produção científica entre nós, devemos procurar estabelecer os nexos e relações que esse processo apresenta com interesses sociais específicos. Na verdade, é o que a Profª Vanya procura fazer no decorrer do livro. Ou seja, se várias vezes nega essa relação ciência-sociedade no Brasil, ela mostra - e nisso consiste a qualidade maior de seu trabalho - como historicamente o desenvolvimento científico flutuou ao sabor dos interesses dominantes na sociedade brasileira; desde o caso de medidas que cercaram a vinda da Família Real Portuguesa, em 1808, passando pelas medidas sanitárias do governo Rodrigues Alves, pelo surgimento do Instituto Biológico ligado à broca do café, em São Paulo, até as recentes formulações de planos específicos para a ciência e a tecnologia. Portanto, cabe indagar por que, em determinados momentos históricos, o campo científico se especializa e se diferencia entre nós; por que a político científica se institucionaliza, gerida por oganizações específicas que, de medidas esparsas, passam a implementar e financiar sistematicamente o desenvolvimento científico no Brasil. Cabe indagar, ainda, por que a ciência vem-se incorporar ao discurso governamental, onde é vista como a mola propulsora do desenvolvimento, a chave, portanto, dos portões do paraíso.

O problema, como aliás salienta a Profª Vanya, extrapola o campo neutro da ciência, sua organização interna, um planejamento mais ou menos eficiente. Consiste, isso sim, em desvendar por trás de toda a retórica que cerca as medidas de política científica o seu comprometimento com o jogo de forças sociais em diferentes momentos históricos da formação social brasileira. E por aí chegamos à conclusão que a ciência nacional é muito menos ornamental e desvinculada do que se possa pensar. O Estado, que tanto a financia e promove, parece ter descoberto isso há muito tempo.

  • 1 Por exemplo: Ben-David. J. O papel do cientista na sociedade. São Paulo, Livraria Pioneira. 1974; K Merlon. Robert. Puritanism, Pietism and Science. In Barber, 8., & Hirsch, W. eds. The sociology of science. New York, The Free Press, 1962; Parsons, Talcott. The institutionalization of scientific investigation. In ibid, Weber, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1967;
  • e Weber, Max. O político e o cientista. Lisboa, Ed. Presença, s/d.
  • 2 A esse respeito, dentre outros: Bourdieu, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974; Bourdieu, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In Pouillon, Jean et alii. Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1968; Gíanotti, J.A. Ciência para o desenvolvimento; O contexto e os intelectuais, In Exercícios de filosofia. Seleções CEBRAP, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1975; Gianotti, J.A. Burocratas da cultura. Opinião, 21 mar. 1975, p. 20.
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    Por exemplo: Ben-David. J.
    O papel do cientista na sociedade. São Paulo, Livraria Pioneira. 1974; K Merlon. Robert. Puritanism, Pietism and Science. In Barber, 8., & Hirsch, W. eds.
    The sociology of science. New York, The Free Press, 1962; Parsons, Talcott. The institutionalization of scientific investigation. In ibid, Weber, Max.
    A ética protestante e o espírito do capitalismo. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1967; e Weber, Max.
    O político e o cientista. Lisboa, Ed. Presença, s/d.
  • 2
    A esse respeito, dentre outros: Bourdieu, Pierre.
    A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1974; Bourdieu, Pierre. Campo intelectual e projeto criador. In Pouillon, Jean et alii.
    Problemas do estruturalismo. Rio de Janeiro, Ed. Zahar, 1968; Gíanotti, J.A. Ciência para o desenvolvimento; O contexto e os intelectuais, In
    Exercícios de filosofia. Seleções CEBRAP, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1975; Gianotti, J.A. Burocratas da cultura.
    Opinião, 21 mar. 1975, p. 20.
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    Tal proposição está claramente definida na p. 97 do livro em questão.
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    Pelo menos ern alguns momentos, a descrição feita da movimentação que cercou a erradicação da febre amarela e a campanha de vacinação obrigatória contra a varíola - "o primeiro embate sério entre ciência e sociedade" (p. 66) - nos conduz a essa interpretação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1978
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