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A questão da formação do administrador

NOTAS E COMENTÁRIOS

A questão da formação do administrador

Fernando Claudio Prestes Motta

Professor titular no Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos - ADM, da EAESP/FGV

O ensino da administração no Brasil é um fenômeno bastante recente.no panorama universitário, como de resto em praticamente.todo o mundo, salvo nos EUA. Ali, em algumas universidades, ensina-se administração há quase um século, embora os cursos tenham ganho o formato que originou o atual a partir da I Guerra Mundial.1 1 Sá e Silva, G. Administração de empresas e desenvolvimento. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 11(3)1971. Nos demais países do mundo, o ensino de administração adotou o modelo de transferência de tecnologia desenvolvida nos EU A Isto ocorreu tanto na América Latina quanto na Europa.

Em 1954, instalou-se a primeira escola com um perfil nítido das business schools norte-americanas no Brasil. Um grupo de jovens professores ingressou nessa instituição e foi enviado para programas de mestrado na Michigan State University. De volta ao Brasil, passaram a lecionar nas áreas de administração geral, contabilidade e finanças, mercadologia e administração da produção. De original, desde o início, a escola preocupou-se em dar formação em campos tais como a economia, a sociologia, a política, a psicologia e o direito. Mais tarde, muitos desses docentes voltaram aos EUA ou se encaminharam para a Europa para estágios ou doutoramento.

Inicialmente, entretanto, as chamadas ciências humanas tinham mais a vocação instrumental para o estudo das áreas funcionais do que a vocação crítica necessária à compreensão e à avaliação da realidade. Uma mudança importantíssima ocorreu na esteira da crise de 1968, quando a segunda visão passou a prevalecer, inspirando um novo currículo para os cursos de graduação e novos critérios na formação de docentes nessas áreas.

A influência dessa instituição, que oferece cursos de graduação em administração de empresas e administração pública, programas de mestrado e doutoramento e diversos cursos de especialização, foi e continua sendo enorme no Brasil.

Outras instituições de grande relevância existem atualmente no país, ao lado dos cursos "caça-níqueis", que não cessam de se expandir. A experiência de cada uma delas é única e mereceria um estudo aprofundado. Um problema das faculdades de administração inseridas em universidades, algumas excelentes, tem sido, a meu ver, a pouca ênfase em análises críticas da realidade, o que se compreende a partir da estrutura universitária brasileira, que provoca o isolamento de especialistas. Assim, os estudantes sofrem uma formação frequentemente deficiente em áreas afins e os professores de administração não se beneficiam do contato com outros professores e pesquisadores.

Entretanto, creio ser inegável que os cursos de administração no Brasil vêm experimentando um nítido envelhecimento e há muitas razoes para isso.

Em primeiro lugar, é importante notar que a maior parte das escolas utiliza pessoal mal preparado e que, face à retribuição que recebe, não teria mesmo condições de se aperfeiçoar. Por sua vez, as grandes escolas já têm seus quadros relativamente estabilizados e, se não se envolverem imediatamente numa séria política de treinamento continuado, acabarão por se desatualizar irremediavelmente. Essa questão se articula com a da renovação dos quadros de docentes. Daí o fato de os melhores programas de administração do Brasil lembrarem cursos norte-americanos de 15 anos passados.

Naquela época, os programas norte-americanos revelaram uma situação de crença absoluta nos benefícios sociais gerais que o desenvolvimento capitalista prometia. Nem de longe se pensava na crise que, afinal, despontaria não muito tempo depois. Essa crença produziu uma visão monolítica ido que seria um administrador. Alguns autores chegaram mesmo a conceituá-lo como um ser um tanto fora dos padrões habituais, dotado de altíssimas capacidades sociais, conceituais e técnicas. Naturalmente, se pensava em formar altos administradores generalistas que tivessem um conhecimento que incluísse as noções básicas de mercadologia, produção, finanças e relações humanas.

Naqueles anos, pensava-se em administração geral como o local de coordenação de conhecimentos parcelados, em consonância com a divisão do trabalho industrial.

Essa área seria responsável pela transmissão de uma ideologia "managerialista", dos conceitos fundamentais, de planejamento, organização, coordenação e controle e, também, pelo ensino da política de negócios, que, com o título brasileiro de diretrizes administrativas, acabou evoluindo para o planejamento estratégico. Seria preciso esperar a década seguinte para a difusão de uma teoria das organizações derivada da sociologia e da psicologia social norte-americanas.

É curioso notar que os problemas ligados às relações de trabalho mereceram muito pouca atenção na gênese dos cursos de administração. Nos EUA essa lacuna era amenizada pela existência de algumas boas escolas de relações industriais, onde relações empresas-sindicatos eram exaustivamente estudadas. No Brasil, porém, isso não ocorreu.

Nos últimos anos, uma quantidade enorme de estudos sobre relações de trabalho vem-se avolumando nos países desenvolvidos. Alguns estudiosos chegam mesmo a apontar o campo das formas de participação como o fenômeno mais importante na administração neste final do século XX. Todavia, a maior parte desses estudos tem vindo de departamentos de sociologia industrial e economia. É mais uma vez surpreendente que um dos temas mais controvertidos da administração deixe de ser sistematicamente analisado nesses cursos. Só muito recentemente essa tendência vem-se revertendo nos EUA. Nesse particular, algumas escolas brasileiras parecem ter tido a sensibilidade, a partir de alguns docentes, de incluir em seus programas tópicos referentes ao tema. Isto, porém, se limita a poucas escolas.

O que, sobretudo, salta aos olhos nos programas brasileiros é a ausência quase total de tópicos ligados à dimensão internacional da administração, em contraste com a realidade de uma economia absolutamente internacionalizada; a insuficiência no tratamento das questões relativas a moeda e crédito, em termos de Brasil e de relações internacionais; a pouca ou nenhuma atenção dedicada a problemas específicos das empresas estatais, cada vez mais importantes no cenário econômico e político e a imensa lacuna no que diz respeito à gestão de pequenas e médias empresas, em contraste com um discurso oficial que a valoriza. Também é de se estranhar a ausência de cursos sobre tecnologia, mesmo nas melhores escolas. Não se trata apenas de tópicos ou disciplinas voltadas para a pesquisa e o desenvolvimento tecnológicos ou sobre tecnologias alternativas, que deveriam ser prioritários. Na realidade, nem mesmo a questão da transferência de tecnologia é suficientemente examinada. Cumpre lembrar ainda que a área de informática é igualmente pobre e defasada na maior parte dos programas. Finalmente, considerando o ritmo das mudanças ocorridas nas três últimas décadas, pouco ou nada se faz em termos de preparar os jovens aspirantes â administração para as questões que irão enfrentar num futuro muito próximo. Em suma, a maior parte dos cursos está preparando nem mesmo para hoje, mas sim para ontem.

Outra fonte de envelhecimento correlata se refere à pobre produção teórica brasileira, reflexo de uma ausência de tradição de pesquisa, reforçada pelos parcos recursos dedicados a essa atividade e pelos baixos salários universitários, que em muitos casos são pouco superiores aos de uma empregada doméstica, que, como se sabe, não ganha bem. Tudo isso faz do professor que se atualiza uma espécie de ser extraterrestre ou de Dom Quixote, mal compreendido e até ironizado, uma espécie de herói desarmado. Nessa situação é até difícil falar de administração numa época de crise. A crise está instalada na universidade há muito tempo.

Nessa altura, gostaria de me referir a um interessante trabalho produzido por Maria de Lourdes Covre,2 2 Covre, M. L. M. A formação e a ideologia do administrador de empresas. Petrópolis, Vozes. 1981.p. 184. sobre a formação e a ideologia do administrador de empresa, que me parece ainda o melhor em seu gênero.

Maria de Lourdes vê o administrador da mesma forma que o economista, como técnico específico requerido pelo sistema de produção na atual fase do desenvolvimento brasileiro. E apôs constatar o contingente de formandos colocados semestralmente no mercado de trabalho, se indaga sobre a razão desse número crescente de formandos e de administradores profissionais em geral.

Para responder a essa questão, nos termos em que se colocava especialmente na passagem da década de 70 para a de 80, lembra que o processo econômico se caracterizou pela impressionante concentração econômica, mormente após 1964, nos quadros de um desenvolvimento voltado para á grande empresa.

A grande empresa surge moderna no Brasil, utiliza tecnologia avançada e dispensa em larga medida a mão-de-obra não-qualificada. Essa tecnologia, por sua vez, depende cada vez mais do fortalecimento de funções de planejamento, controle e análise das atividades empresariais. Em suma, essas funções, tornadas mais complexas, exigem mão-de-obra qualificada.

Dá-se, dessa forma, um intenso processo de burocratização, no qual os profissionais requeridos devem ter fomação universitária. Destaca-se, assim, a necessidade do administrador como técnico exigido pelo sistema de produção e, paralelamente, ocorre a explosão de cursos de formação de administradores, que respondem igualmente, a meu ver, aos anseios de ascensão social da baixa classe média. Essa, barrada pelos vestibulares bastante seletivos das grandes escolas, que pressupõem cursos anteriores em bons e caros colégios, constitui-se no público por excelência das "faculdades de bairro".

Aqueles que se formam nas grandes escolas expressam, em regra, os expoentes que incorporam a ideologia neocapitalista, dotados ainda dos conhecimentos de mercadologia, finanças, produção é planejamento estratégico imprescindíveis à operação do empreendimento capitalista, como bem coloca Maria de Lourdes.

O processo a que são submetidos os estudantes de administração, o que se revela na análise dos cursos, evidencia interessantes conexões entre o processo produtivo e o processo pedagógico no campo específico, no caso brasileiro. Dito de outra forma, processo nos permite apreender o modo pelo qual os interesses ligados ao grande capital se fazem representar no campo universitário.

Além da diferenciação entre grandes escolas ou escolas de vanguarda e faculdades "caça-níqueis", no interior mesmo de algumas grandes escolas produz-se uma tipificação dos alunos e dos profissionais que formam. Covre distingue os seguintes tipos, que em certos casos se interpenetram:

" - aluno-imagem positiva do administrador (aspirante à administração);

- administrador em ascensão (preocupado em atender à empresa e ascender concomitantemente a ela);

- administrador propriamente dito (aquele que está bem situado na empresa e sente a influência da formação teórica na sua atuação em termos de estrutura decisória e relacionamento com subordinados);

- administrador deslocado (aquele que, tendo adquirido uma formação moderna, vê-se atuando na pequena e média empresa tradicional);

- administrador desajustado (aquele que encontra dificuldade no desempenho de sua função, ou mesmo que errou ao optar por esta carreira, por falta de características específicas como agressividade, competitividade etc.). Eu incluiria aqui a falta de habilidade social e política;

- administrador tecnocrata ou de vanguarda (aquele que mais facilmente evidencia a influência da formação escolar e do âmbito empresarial, em termos de preocupação com a integração dos funcionários à empresa);

- administrador-técnico (aquele que está fora da área burocrática, que atende mais a tarefas técnicas e não a relações humanas. Refere-se a várias funções e dentre elas a de assessoria e consultoria)."3 3 Covre, M. L. M. op. cit. p. 184.

As conclusões de Maria de Lourdes fazem pensar nesse momento de crise econômica e de crise das instituições. A par dos tipos mais específicos de administrador voltado para a grande empresa, percebe-se que só o administrador-técnico se enquadra também mais tipicamente na categoria daqueles estudantes que se dirigem para o Estado, seja na administração direta ou na indireta.

Nota-se, claramente, que as escolas de administração não estão formando administradores-políticos, imbuídos de uma visão transformadora da realidade social, em que pese ao conteúdo relativamente crítico de alguns programas. Observa-se, neste particular, uma crise de sentido nas escolas de administração, exatamente num momento em que os valores produtivistas e consumistas vacilam em todo o mundo e que formas variadas de socialismo avançam em diversos países, como França, Grécia, Espanha, Portugal etc., para não falar em nossa conturbada América Latina.

No que se refere ao administrador-deslocado, observa-se a incapacidade de uma transferência pura e simples de tecnologia de tratar com uma realidade multifacetada, onde não só o tradicional precisa conviver com o grande, mas o pequeno precisa permanecer por motivos que vão do social a todas as esferas da vida coletiva e que, além disso, sobrevive onde o grande capital não penetra, mesmo que por desinteresse.

Ligadas a essas questões, coloca-se, igualmente, uma nova luz sobre o administrador desajustado, que emerge geralmente durante a formação. Minha experiência tem indicado que nem sempre, mas com relativa freqüência, estão nessa categoria' pessoas de alto senso ético e de considerável sensibilidade e inteligência. Essas pessoas só são desajustadas se considerarmos uma formação voltada exclusivamente para o grande capital. Seu "desajuste", em grande medida, reflete também a crise de sentido a que já me referi.

São em geral pessoas que se sentem mal sob a tutela das instituições, inclusive do Estado, mas que teriam menos dificuldades em atividades nas fronteiras do sistema (cooperativas, editoras, livrarias, restaurantes, bares, atividades administrativas ligadas à cultura etc.).

Em larga medida são filhos nem sempre conscientes de maio de 1968 e para os quais o sentido político fica mais claro que Bahro, Castoríadis, Marcuse, Guattari etc., do que em autores e textos mais clássicos. Nisto se percebe que também a formação crítica está desatualizada na maioria das escolas de administração. Cursos sobre autonomia parecem importantes nessa fase de diversificação quase compulsória de campos de atuação.

Uma escola de administração é antes de mais nada uma instituição universitária e como tal deve voltar-se para a formação de indivíduos adultos, realizados, dotados de impulso renovador e bem equipados culturalmente, para não falar do sentido ético, que entra em crise com a perda de significado mais geral. Entretanto, mesmo no campo específico da administração, a universidade precisa estar atenta para a delimitação das esferas de atuação e para as oportunidades e necessidades geradas pór essa delimitação. Não basta formar apenas para a cúpula das grandes empresas nacionais ou multinacionais, quando elas pedem administradores médios bem preparados, ou quando não pedem administrador nenhum. Não basta formar bem para o Estado, quando com freqüência as oportunidades estão também ou até exclusivamente fora dele. Não basta, pelos mesmos motivos, formar exclusivamente, o que nunca é feito, para as pequenas e médias empresas ou para as áreas alternativas nas fronteiras do sistema. Uma boa escola de administração é suficientemente flexível e diferenciada para fazer tudo isso.

  • 1 Sá e Silva, G. Administração de empresas e desenvolvimento. Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 11(3)1971.
  • 2 Covre, M. L. M. A formação e a ideologia do administrador de empresas. Petrópolis, Vozes. 1981.p. 184.
  • 1
    Sá e Silva, G. Administração de empresas e desenvolvimento.
    Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas,
    11(3)1971.
  • 2
    Covre, M. L. M.
    A formação e a ideologia do administrador de empresas. Petrópolis, Vozes. 1981.p. 184.
  • 3
    Covre, M. L. M. op. cit. p. 184.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 1983
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